terça-feira, 4 de agosto de 2015

A Lava Jato vai limpar a nossa matriz energética?


Operação da PF expôs o elo entre energia insustentável e corrupção no Brasil; um efeito colateral poderá ser um impulso às renováveis. O comentário é de Ricardo Baitelo e Carlos Rittl em artigo publicado por Blog do Planeta, 30-07-2015.

Eis o artigo.

Quando o governo federal anunciou a decisão de construir duas mega-hidrelétricas no rio Madeira, mesmo após um parecer contrário do Ibama, ambientalistas e técnicos do setor chiaram. As usinas eram obviamente problemáticas do ponto de vista ambiental: previa-se que causariam alagamentos, problemas à pesca e pressão sobre a floresta e os serviços públicos em Porto Velho (tudo isso está acontecendo hoje). O governo foi adiante: atropelou o Ibama, grudou nos ambientalistas o rótulo de inimigos do Brasil e licenciou Santo Antônioe Jirau.

Começava ali um roteiro que seria seguido depois em Belo Monte e agora no complexo deusinas do Tapajós: atropelos a salvaguardas socioambientais e fartos subsídios a empreendimentos caros, de alto risco e baixa viabilidade econômica. São investimentos que aumentam a fragilidade do sistema elétrico brasileiro ao colocar a geração a milhares de quilômetros dos centros de consumo e, como mostraram estudos recentes da Secretaria de Assuntos Estratégicos da própria Presidência, ainda nos deixam em risco de desabastecimento por causa das mudanças do clima. A ministra de Minas e Energia responsável por implementar esse modelo, na administração Lula, atendia pelo nome deDilma Vana Rousseff.

A opção por hidrelétricas faraônicas fazia ainda menos sentido quando se olhava o que estava acontecendo no panorama energético lá fora. A energia solar entrava numa espiral descendente de preços, com o avanço de uma revolução chamada geração distribuída: cada família poderia produzir parte da eletricidade que consome ao instalar painéis solares em casa – energia segura e sustentável. Durante anos o governo federal torceu o nariz para a energia solar, alegando que essa fonte era cara demais. Só não explicava por que subsidiar solar não podia, mas tudo bem empatar R$ 30 bilhões para barrar o rio Xingu.

Uma das maiores razões para essa fixação em grandes obras começou a ser escancarada pela Polícia Federal e o Ministério Público: corrupção. A Operação Lava Jato, que já havia levantado indícios fortes de pagamento de propinas em Belo Monte, começou nesta semana a vasculhar mais a fundo o setor elétrico. Na última terça-feira, foi preso o diretor licenciado da Eletronuclear. A “holding” Eletrobras está agora na mira dos investigadores.

Há muito tempo se especula sobre o elo entre energia insustentável e corrupção: partidos políticos fatiam entre si os cargos-chave no setor. Os operadores de cada partido elegem as obras prioritárias e distribuem sua execução entre as empreiteiras do “clube”. Estas superfaturam os preços e, em troca, irrigam o caixa dos partidos e o bolso pessoal dos operadores partidários nos órgãos públicos. Como requinte de crueldade, ainda recebem crédito subsidiado do BNDES para isso, numa operação cujas dimensões o governo relutou em revelar. Quanto maior a obra, quanto mais pedra, cimento e terra escavada, mais gorda é a propina. A conta sobra para a população, que paga três vezes: pelo sobrepreço, pelo subsídio e pelo passivo ambiental.
O conluio entre agentes públicos e empreiteiras era algo de que apenas se suspeitava, até aLava Jato puxar o fio da meada de outra produtora de energia suja e intensiva em capital – a Petrobras – e botar na cadeia os presidentes das maiores construtoras do país. O mergulho ora iniciado no setor elétrico tem tudo para não deixar tijolo sobre tijolo.

Um efeito colateral das investigações poderá ser um impulso às energias renováveis que operem de forma mais descentralizada. Com a ligação entre construtoras e agentes públicos exposta, o governo pode se sentir inibido em seguir tocando a mesma música. É uma oportunidade para uma ação mais séria em geração solar distribuída (contam-se em poucas centenas as residências no Brasil que têm painéis solares e trocam energia com a rede).

O governo dá sinais de que pressentiu o golpe. O próprio discurso de Dilma sobre renováveis mudou: em 2012, ela chamava a energia solar de “fantasia”; no mês passado, adotou uma meta de expansão de eletricidade renovável para 20% da matriz em 2030. Mesmo que a meta não seja nada ambiciosa - poderíamos chegar a pelo menos 40% - o fato de a presidente falar hoje em investir em energia solar é, sim, novidade.

No mês que vem, o Ministério de Minas e Energia realiza um leilão de energia solar fotovoltaica. Um segundo está marcado para novembro, e só o ritmo atual de contratação já superaria a meta pífia de 3,5 gigawatts instalados projetada pelo governo para 2023. Alguns Estados já começam a rever sua política de tributação para energia solar.


Nunca se deve duvidar da capacidade do sistema político brasileiro de mudar para manter o status quo. Bem pode ser que após a Lava Jato a corrupção encontre outros caminhos para continuar poluindo, desmatando e excluindo. Mas nunca o caldo de cultura no país esteve tão favorável a outras fontes de energia, renováveis e limpas, em todos os sentidos – e em novas formas de vendê-las e distribuí-las.

sábado, 1 de agosto de 2015

A longa marcha dos neoliberais para governar o mundo


Com a fundação da Mont Pélerin Society (MPS) em 1947, teve início a longa marcha que levou o neoliberalismo a conquistar uma hegemonia totalitária sobre a economia e a política. Com as dramáticas consequências que ainda hoje experimentamos.

A opinião é do sociólogo italiano Luciano Gallino, professor emérito da Universidade de Turim, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 27-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando eu abro as janelas de manhã, nestes dias, o olhar cai inevitavelmente no Mont Pélerin, para além do lago. É uma montanha suíça a poucos quilômetros de Montreux, conhecida desde os anos 1920 pelos bons hotéis e pelo clima suave.
É também o lugar a partir do qual teve início, com a fundação da Mont Pélerin Society (MPS) em 1947, a longa marcha que levou o neoliberalismo a conquistar uma hegemonia totalitária sobre a economia e a política da Europa inteira. Com as dramáticas consequências que ainda hoje experimentamos.
Gramsci acharia muito interessante a estratégia adotada pela MPS para conquistar a hegemonia, entendida no seu pensamento como um poder exercido com o consentimento daqueles que se submeteram a ele. Em vez de constituir mais uma fundação ou um think tankespecializado em promover este ou aquele ramo da economia, a MPS optou por construir em grande escala um "intelectual coletivo".
Em 1947, quando Friedrich Hayek reuniu um pequeno grupo de economistas e outros intelectuais (incluindo Maurice Allais, Walter Eucken, Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper) para fundar a MPS, os congregados eram apenas 38, em sua maior parte europeus. No fim dos anos 1990, eles tinham se tornado mais de mil, espalhados por todo o mundo, embora a maioria continuasse vindo da Europa.
Radicados em grande parte na academia, esse coletivo intelectual não redigiu ambiciosos manifestos programáticos (as "intenções" formuladas em 1947, no momento da fundação, são uma pequena página bastante banal, que também se pode ler de modo idêntico no site da MPS), nem grande projetos de reformas institucionais. Em vez disso, produziu milhares de ensaios e livros, muitos de nível notável, que giram todos em torno de temas que, para os sócios da MPS, eram e são a essência do neoliberalismo: a liberalização dos movimentos de capital; a superioridade fora de questão do livre mercado; a categórica redução do papel do Estado como construtor e guardião das condições que permitam a máxima difusão de um e de outro.
Graças a esse trabalho imenso e capilar, por volta de 1980, as doutrinas econômicas e políticas neoliberais tinham ocupado todos os espaços essenciais nas universidades e nos governos. Obviamente, não foi apenas a MPS que se consumiu para tal fim, mas o seu papel foi enorme. Não exagerava um historiador do pensamento neoliberal (Dieter Plehwe) quando definiu a MPS, anos atrás, como "um dos mais poderosos órgãos de conhecimento da nossa época".
No entanto, os sócios não se limitaram a publicar artigos e livros. Muitos deles chegaram a ocupar posições centrais no aparato de governo dos maiores países. Nos tempos da presidência Reagan (1981-1988), de cerca de 80 conselheiros econômicos do presidente, mais de um quarto eram da MPS.
As liberalizações financeiras decididas pelo governo Thatcher na primeira metade dos anos 1980, que mudaram o rosto da economia britânica, foram elaboradas, em grande parte, peloInstitute of Economic Affairs, uma filiação da MPS fundada e dirigida por dois sócios,Antony Fisher e Ralph Harris.
A cúpula da indústria francesa e alemã sempre foram numerosos nas fileiras da MPS, entretendo estreitas relações com os sócios provenientes do mundo político.
De destaque foi a participação italiana na MPS. Entre os seus primeiros sócios, estava Luigi Einaudi. Dois italianos foram presidentes: Bruno Leoni (1967-1968) e Antonio Martino(1988-1990), que ainda figura entre os sócios, ao lado de (salvo engano) Domenico da Empoli, Alberto Mingardi, Angelo Maria Petroni, Sergio Ricossa.
Duas características marcam fortemente a hegemonia da MPS sobre a cultura e a práxis econômico-política dos Estados europeus a partir dos anos 1980. A primeira é a desmesura da vitória sobre qualquer outra corrente de pensamento – especialmente na economia. O keynesianismo, desde as origens o arqui-inimigo da MPS, foi reduzido à insignificância e, com ele, o pensamento de Schumpeter, de Graziani, de Minsky. Sobrevivem aqui e ali, em algum departamento universitário, mas na política econômica da União Europeia contam como zero.
À força de liberalizações inspiradas pela cultura da MPS, o sistema financeiro domina a política não menos do que a economia – como demonstrou mais uma vez o caso grego. Os sistemas públicos de proteção social estão em curso de avançada demolição: não servem, ao contrário, são nocivos, pois cada indivíduo, segundo a cultura neoliberal, é responsável pelo seu destino.
A escola e a universidade foram reformadas, começando pela Alemanha para acabar pelaItália, de modo a funcionar como empresas. Wilhelm von Humboldt deve estar se revirando no túmulo.
A segunda característica da cultura econômica neoliberal de formato MPS é a sua incrível resistência às pesadas refutações que a realidade lhe inflige há ao menos 15 anos. O início dos anos 2000 viu o colapso das empresas dot.com, glorificadas pelos economistas neoliberais, que, em nove de cada dez casos, eram estratagemas nos quais as Bolsas, em nome da hipótese de que os mercados sempre são eficientes, apostavam bilhões de dólares.
O fim dos anos 2000, ao contrário, testemunharam ao quase colapso da economia mundial, minada pelas finanças baseadas deliberadamente em milhões de empréstimos hipotecários que as famílias não tinham meios para pagar.
Depois de 2010, os economistas neoliberais e os políticos por eles doutrinados impuseram às populações da União Europeia as políticas de austeridade, que se revelaram um fracasso total na opinião dos seus próprios promotores. Em síntese, os economistas formatoMPS predispuseram os dispositivos que produziram a grande crise; não a viram chegar; não souberam explicá-la e propuseram remédios que pioraram a situação. Apesar de tudo isso, continuam ocupando a sala de comando das políticas econômicas da União Europeia.
Se alguém pudesse perguntar a Gramsci como é que as esquerdas europeias, independentemente de como se denominem, começando pela italiana, foram abaladas sem opôr resistência pela ofensiva hegemônico do neoliberalismo iniciada em 1947 a partir deMont Pélerin, talvez ele responderia "porque vocês não os souberam imitar".
Ao rio de publicações voltadas a afirmar a ideia dos mercados eficientes, vocês não souberam opor nada de semelhante, para demonstrar com argumentos sólidos que os modelos com os quais se queria demonstrar tal ideia se fundamentam em pressupostos totalmente inconsistentes.
Além disso, continuaria Gramsci, onde estão os seus artigos e livros que, dirigindo-se tanto aos especialistas, quanto aos políticos e ao grande público, cimentam-se para provar, a cada dia, com argumentos sólidos, a superioridade técnica, econômica, civil, moral da saúde pública sobre a privada; das pensões públicas sobre as privadas, diante dos ataques cotidianos às primeiras pela mídia e pelos políticos, baseados geralmente em dados incorretos; do Estado sobre as empresas privadas para produzir inovação e desenvolvimento, hoje, assim como em toda a segunda metade do século XX; da importância econômica e política dos bens comuns sobre o absurdo das privatizações?
Como a natureza tem horror ao vácuo, o vazio cultural, político, moral das esquerdas foi pouco a pouco preenchido pelas sucessivas levas de leitores, eleitores, professores, funcionários de partido e das instituições europeias, instruídas pelo coletivo intelectual que surgiu da MPS.

É preciso construir o consenso, e a MPS demonstrou saber fazer isso. As esquerdas nem sequer tentaram.