segunda-feira, 27 de abril de 2009

Governo incentiva a destruição da Amazônia


''O BNDES usa recursos da sociedade contra ela mesma'',


Por: Marina Silva



Na semana que passou, a Folha trouxe excelente reportagem (22/4, Dinheiro) de Marta Salomon mostrando, com base em estudo da organização não governamental Amigos da Terra ("A Hora da Conta: Pecuária, Amazônia e Conjuntura"), o avanço da pecuária na Amazônia e, especialmente, a migração para lá de grandes frigoríficos, com recursos do BNDES.

Nada contra a pujança do setor. Tudo contra a maneira anárquica e predatória como se instala na Amazônia, alavancada por dinheiro público e sem condicionantes sociais e ambientais. Até com certa afronta, o presidente da associação que representa os grandes frigoríficos fecha questão: "Não dá para ter condicionantes. Acabar com o abate de gado de origem ilegal é desejável, mas impraticável".

E como fica o governo e suas normas de proteção ambiental (decreto presidencial do final de 2007) que determinam a criminalização de toda a cadeia produtiva originada de práticas ilegais?

Para conceder Bolsa Família, acertadamente são exigidas várias contrapartidas dos beneficiários.
Por que não se faz o mesmo com outros setores, aos quais nada se pede em troca?

O uso de ferramentas econômicas para redirecionar ou criar novos processos em benefício de toda a sociedade é dever do Estado, e sem isso ficaríamos sempre presos à teia dos interesses imediatistas e de seu pragmatismo. Mas falta ao Estado brasileiro inteligência estratégica para extrair dos empreendimentos um plus na forma de nova qualidade na produção, de compromissos para além da realização dos objetivos de negócio. O BNDES, no fundo, usa recursos da sociedade contra ela mesma. Se abre o cofre sem qualificar social e ambientalmente o resultado que espera do investimento, em lugar de contribuir para o cumprimento das leis, financia o desprezo por elas até o ponto de os beneficiários declararem em alto e bom som que não vão cumpri-las. E ponto final.

Nunca houve discussão séria sobre as dimensões que cercam o apoio ao setor agropecuário. A agenda tradicional fala só de anistia, perdão de dívida, créditos subsidiados. Com a conivência dos governos, que não as exigem, não se fala de contrapartidas na forma de colaboração para proteger rios e florestas, potencializar o uso correto da biodiversidade e outros itens de interesse coletivo.

O irônico é que os cuidados ambientais revertem em benefício da própria produção, no longo prazo. Que parte do agronegócio se recuse a pensar nesses termos é lastimável, mas compreensível. O que não dá para entender -nem aceitar- é que as instituições públicas operem na mesma lógica.



O fim do trabalho ?

Entrevista com Ricardo Antunes

Em 1980, o cineasta mineiro João Batista Andrade filmou O homem que virou suco para contar as agruras de um imigrante nordestino confundido com um assassino de um manager de uma empresa multinacional. A imagem antecede ao conceito, usado pelo sociólogo Ricardo Antunes, de “liofilização” organizacional - tomado de empréstimo da química para explicar o processo de transformar substância líquida em pó (como acontece com o leite em pó ou com o veneno).
Para Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em temas do mercado de trabalho, as empresas, antes da crise atual, passaram por processos de “liofilização” e enxugaram suas “substâncias vivas”, os trabalhadores, por meio da modernização tecnológica e da reestruturação produtiva. O resultado disso foi o crescimento do chamado desemprego estrutural, que poderá aumentar em muito com a crise econômica mundial de hoje.
Ele avaliou que o trabalho está sob enorme ameaça e o dia 1º de maio deste ano será “digno do século XIX”. Nesse contexto, são abandonadas as teses sociológicas que enxergavam o fim do trabalho ou do trabalhador como categoria de análise e voltam a circular críticas ao capitalismo e idéias de uma sociedade assentada em novas relações de produção. Ele afirmou que a crise mundial atual poderá ser mais intensa do que a de 1929, nos Estados Unidos.
A entrevista é de Gilberto Costa, da Agência Brasil.

Eis a entrevista.

Que ameaças a crise econômica mundial trouxe ao trabalho?

Não é mais ameaça. A crise econômica já tem um resultado devastador para a classe trabalhadora. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) fez a previsão de novos 50 milhões de desempregados em 2009, o que eleva o número de desempregados para até 340 milhões de pessoas no mundo. Este número é uma estimativa moderada. Só a China anunciou que 26 milhões de ex-trabalhadores rurais, que estavam ocupados nas cidades, perderam o emprego. A tragédia que se abateu entre os trabalhadores é monumental, a começar pelos imigrantes à cata de trabalho nos países do norte do mundo, mas também a classe trabalhadora em geral, que estava empregada na indústria metal-mecânica, têxtil, no setor alimentício. A primeira providência que o empresariado toma na eminência de uma crise é o corte nos postos de trabalho. É emblemático que os Estados Unidos, a Inglaterra e o Japão vivem a maior taxa de desemprego das últimas décadas.

Qual a versão brasileira dessa situação?

O governo tentou nos vender a idéia, completamente falsa, de que estávamos imunes à crise. A verdade, no entanto, é que nós, no final do ano, tivemos 640 mil novos desempregados. De lá para cá, os dados melhoraram, porque o governo tomou medidas, como a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) dos automóveis, para impedir que a recessão fosse mais dura. Mas essas medidas têm folego curto. A economia brasileira é muito globalizada. O Brasil depende muito do mercado externo por causa das commodities. O desfecho da crise brasileira está bastante atado ao desfecho da crise internacional. Não podemos ter uma ilusão de que o país é uma ilha rósea em um mar turbulento.

Antes da crise essa “ilha” tinha metade dos seus trabalhadores sem os direitos reconhecidos, não?

Chegamos a quase 60% da nossa População Economicamente Ativa, em meados dos anos 2000, na informalidade, o que é expressão da tragédia social. Imaginar que o Brasil vai ficar no século 21 fornecendo, por exemplo, cana-de-açúcar com trabalho semi-escravo e pessoas cortando até 17 toneladas de cana por dia, sob um regime de mensuração do trabalho que subtrai os valores de remuneração. Essa não pode ser a alternativa brasileira. O Brasil não é o pior cenário no contexto internacional, mas pensar que estamos imune a ele é um completo equívoco.

O trabalho no Brasil chegou ao século XXI?

Estamos vivendo uma situação bastante contraditória. Embora o mundo produtivo às vezes atinja um patamar do século XXI, as condições de trabalho estão regredindo às condições verificadas nos séculos XVIII e XIX. O trabalho escravo, semi-escravo e infantil, que nós imaginávamos fazer parte do início da Revolução Industrial, estão hoje esparramados em vários setores, e não é só no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, também existe trabalho infantil, e o trabalho sujo do imigrante, que é tratado como um cidadão de quarta categoria. Tudo isso nos joga a querer ser uma economia do século XXI com condições pretéritas de trabalho, o que faz com que a luta do 1º de maio de 2009 seja semelhante à luta do 1º maio de 1886, ano da Revolta de Haymarket, em Chicado, nos Estados Unidos.

O senhor disse que políticas como a isenção do IPI têm fôlego curto. Por que os governos optam por medidas para a indústria automobilística, a despeito dos problemas ambientais e dos problemas de saúde? Não há outros setores com maior empregabilidade?

O Brasil é uma triste repetição de governos que representam os interesses dominantes. Por que que a indústria automobilística joga pesado? Porque seu lobby é decisivamente forte, assim como os bancos também o são. Os governos olham para o capital, para o setor produtivo e financeiro, de um modo muito diferente de como olham para o trabalho. Os trabalhadores só conseguem alguma medida em seu favor quando lutam de forma consciente. Como muitas centrais sindicais, hoje, estão prisioneiras de política oficiais, trabalhadores e sindicatos de base perderam força. Muitas das centrais oscilam em defender a política do governo e defender os trabalhadores. Mas sabemos que as conseqüências para o desemprego, quando a indústria automobilística entra em recessão, são graves. Se reduz o emprego nessa indústria aumenta o nível geral de desemprego porque a cadeia produtiva atinge o fornecedor, toda a rede de autopeças, que existe em função da montagem do sistema automotivo.

E quanto à sustentabilidade?

Se voltarmos a produzir, recuperaremos o emprego da indústria automobilística e de sua cadeia produtiva, mas aumentam os níveis de destruição ambiental e de poluição global. Se tivermos a retração do emprego, o desemprego aumenta a barbárie social. Atividades que são profundamente positivas na medida em que preserva a sociedade, pela via reciclável, daquela tendência do capitalismo de destruir as mercadorias para produzir outras, são subvalorizadas e não recebem incentivos. Isso nos faz ter que pensar um novo modo de vida e de produção para o século XXI. Vamos querer viver eternamente nesse sistema que exclusão, precarização, informalidade, desemprego e barbárie social são o predominante?

As características desse sistema é que constituem a atual morfologia do trabalho, tratada em um dos novos artigos de seu livro Adeus Trabalho?, relançado agora?

O meu livro foi, desde sua primeira edição (em 1995), uma resposta à tese do fim do trabalho e de que a classe trabalhadora não tinha mais sentido. O que venho mostrando desde então é que é preciso compreender quem é a classe trabalhadora de hoje. Temos trabalhadores no telemarketing que não existiam antigamente, de hipermercados, motoboys. Temos uma nova morfologia, um novo desenho. Não é que acabou o trabalho, e muito menos as possibilidades da revolução do trabalho. A nova morfologia é para não ter uma visão restrita da classe trabalhadora como apenas os operários metalúrgicos.

Essas idéias do fim do trabalho foram apropriadas pelas correntes de ciência social aplicada que defendiam a chamada qualidade total, a eficiência e o aumento da produtividade. Essas melhorias não foram benéficas à sociedade?

Esse conjunto de medidas nasceram no Japão e depois se ocidentalizaram. Esses processos tiveram como resultado o aumento da produtividade e dos ganhos do capital, maiores lucros das empresas e crescimento do desemprego. Com esse processo de liofilização, digo utilizando um termo cunhado pelo sociólogo espanhol Juan Jose Castillo, as empresas passaram a produzir dez vezes mais com cinco vezes menos trabalhadores. Quem perdeu foi o pedaço da humanidade que depende do trabalho. Foi aí que o desemprego estrutural, em escala planetária, aumentou. O problema é que as pessoas afetadas hoje estão no desemprego, informalidade, precarização, narcotráfico, economia do crime.

O que o senhor acha da proposta de banco de horas para evitar o desemprego atual, visando uma extensão de jornada no futuro?

É ruim, descalibra a vida dos trabalhadores. Fiz uma pesquisa há alguns anos analisando essa situação e havia trabalhadores que não teriam férias nos três anos seguintes. Significa que o trabalhador nunca vai poder ter férias programadas, vai estar sempre devendo. Por que os trabalhadores têm que pagar o ônus de uma crise sobre a qual não têm nenhuma responsabilidade?

Em um dos artigos da última edição de Adeus Trabalho?, o senhor afirma que “a crise penetra no centro dos países capitalistas, numa intensidade nunca vista anteriormente”. A atual crise é pior que de 1929?

A crise atual é diferente, e seu espectro é de mais intensidade. A crise de 1929 ainda foi herança de um período cíclico: ciclo de expansão e ciclo de crise. Há pensadores muito qualificados que dizem que desde o fim dos anos 1960 entramos em uma crise estrutural de longa duração, na qual não teremos mais aqueles ciclos. É uma longa fase depressiva, onde não há mais como equacionar dentro da lógica do capital a destruição ambiental e não tem como atender toda a humanidade que precisa trabalhar para sobreviver. Estamos em um buraco de proporções razoáveis. Isso não quer dizer, no entanto, que estamos no fim do capitalismo.

O senhor diz que o socialismo não morreu. Que projeto a classe trabalhadora pode ter neste cenário?

Se há um pensador que ressurge das cinzas com vigor explosivo neste momento é o Karl Marx. Nenhum pensador chegou perto de análise crítica do (livro) O Capital (de 1867). Um texto escrito há 150 anos se mostra atual, ainda que o capitalismo tenha mudado bastante. No Manifesto Comunista (de Karl Marx e Frederich Engels, de 1848) já estava escrito que o capitalismo precisa de um mercado global. Assim como não há capitalismo em um só país não há socialismo em um só país. As revoluções socialistas do século XX foram derrotadas, mas àqueles que disseram que o socialismo acabou eu provocaria dizendo que o socialismo não pôde começar. O século XXI é um laboratório em ebulição.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Nós oferecemos uma escola disciplinadora, com conteúdos que não são significativos


Entrevista especial com Euclides Redin



IHU On-Line – Em sua opinião, por que a porcentagem de evasão escolar ainda é tão grande e crescente?

Euclides Redin –
De fato, essa questão está em pauta. A pesquisa da Fundação Getulio Vargas mostra que, especialmente no Ensino Médio, há uma porcentagem grande de jovens que não vão para escola, ou vão e depois desistem. A pesquisa conclui que a maioria que desiste é por falta de interesse. Uma minoria dos desistentes diz que é por causa do trabalho. A meu ver, existe ainda que há uma questão mal colocada pela pesquisa. O jovem tem interesse em estudar, assim como toda criança e jovem sadio quer aprender, tanto que todos eles são curiosos e aprendem coisas que às vezes nem deveriam. O aprender faz parte do descobrimento do mundo e de si mesmo. Não é possível culpar o aluno dizendo que ele não quer aprender. O que está acontecendo é que a escola que oferecemos não é interessante. Nossa escola é disciplinadora, com conteúdos que não são significativos e não irão levar a grandes mudanças e melhorias na vida dos jovens. O desafio da sobrevivência é muito maior e vai além dos bancos escolares.

A proposta da escola, desse modo, não está respondendo à necessidade de progressão. Por exemplo, toda escola, sobretudo no Ensino Médio, está voltada para a universidade, e a preparação do jovem para o ensino superior. Tanto é que o Enem começa a fazer parte da seleção de vestibular. Então, de fato, os conteúdos são voltados para a universidade, não para a vida, assim como para os interesses imediatos e longos do jovem. No entanto, nas escolas técnicas, praticamente, a evasão é zero. Há filas de espera no Senai, Senac, escolas técnicas, formada por jovens que querem estudar nelas porque sabem que depois estão praticamente empregados. Então, essas escolas oferecem conteúdos que têm consequência na vida do jovem, mesmo que elas sejam pesadas, exigentes. Precisamos pensar, portanto, num novo tipo de escola. A causa não está no jovem, mas na escola que não oferece uma experiência significativa de dignidade humana, de existência, de cidadania e que melhora a sua perspectiva de vida. Além disso, nós, professores, não estamos muito voltados a entender a expectativa do jovem. Temos mais um compromisso com o conteúdo, com processos didático-pedagógicos, com a disciplina.

IHU On-Line – O mercado vem disputando o jovem com a escola. Que influência a escola pode ter para que o jovem também corresponda a essa expectativa do jovem?

Euclides Redin –
A escola não prepara para o mercado, mas, sim, para o ensino geral. A escola deveria ser profissionalizante, mas, conforme a lei, ela só pode ser desse modo quando cursada paralelamente ou após o Ensino Médio. De fato, a escola não prepara para o mercado de trabalho, mas visa à obtenção dos estudos do ensino superior. No entanto, grande parte da população não tem em vista o ensino superior quando falta comida em casa, quando o pai está desempregado, ou quando o fundamental é garantir a sobrevivência. Grande parte da população jovem quer ir para o mundo do trabalho. Para isso, precisa de alguma competência básica. Muito do conhecimento proposto pela escola não tem aplicabilidades para o jovem poder lutar por emprego e integração no mundo do trabalho. O mercado precisa de gente preparada e a exigência é a experiência. O que o mercado quer é a competência para resultados, o que ainda não conseguimos.

IHU On-Line – Que perfil tem esse jovem que opta pelo mercado? E que tipo de adulto ele se forma?

Euclides Redin –
Tenho, a partir da minha experiência, que o jovem brasileiro, nesse impasse que estamos em relação ao futuro, quer viver o tempo presente agora, já e imediatamente. Isso porque em relação ao futuro ele não tem grandes expectativas. Não sabemos que futuro estamos oferecendo a ele. Há um presenteísmo no perfil do jovem do mundo: ele precisa consumir e aproveitar o momento presente porque não sabe se irá viver o amanhã. Além disso, o futuro não se apresenta como promissor. Isso tem consequências no sentido de que homem futuro a sociedade está construindo. Este homem é um pouco desesperançado. Não sabemos o que esperar de nossos jovens daqui a meio ano, um ano. Aí estão todos os jovens, os que têm e os que não têm estudo. Nós, na universidade, vivemos esse drama no período de formatura. Recebe-se um diploma, mas o aluno sai, no dia seguinte, à procura de emprego, às vezes por meses e anos. Muitas vezes, o trabalho que consegue não é na área em que se especializou, porque o mundo mudou. Não temos, portanto, muitas expectativas sobre o futuro. Há uma desesperança globalizada, então a questão do homem do futuro é uma incógnita. Isso explica violências de vários tipos, comportamentos desesperados, assassinatos, mortes, consumismo, aproveitamento do momento presente.

IHU On-Line – Há uma cultura nova se formando a partir desse grande número de jovens abandonando as escolas?

Euclides Redin –
Essa é a grande pergunta. A escola, para o jovem, é boa. O que ele não gosta é da sala de aula. Ele aprecia, na escola, a companhia dos educadores, o pátio etc. O que está acontecendo no mundo é esse presenteísmo, que é um desafio. O futuro não dá grandes esperanças. O desafio é criar uma cultura em que valha a pena investir em valores humanos, cívicos, cidadania, dignidade. Não podemos desistir da luta. Se o jovem não for à luta, ficará pior. É preciso, a partir daí, criar uma cultura da esperança. Quando cada instituição fizer a sua parte, dará força a essa ideia de uma cultura para um outro futuro.

IHU On-Line – O professor precisa rever seu papel na escola, diante dos alunos?

Euclides Redin –
Nós, os professores, precisamos nos preparar melhor. Há muito professor bom, especial, interessado e que deseja fazer da escola uma experiência de dignidade, cidadania, construção de pensamento, de emoções. Mas há muitos professores que estão desestimulados. Nós sofremos de uma síndrome do desânimo, do descaso. Somos muito maltratados pelo sistema. É possível ver como os professores do Rio Grande do Sul têm sido tratados, nos últimos anos, pelas secretarias estaduais, pelos governos. E o sindicato dos professores do estado é um dos maiores da América Latina. É preciso investir nos professores, no acompanhamento, na renovação de sua formação continuada, para que possamos cumprir melhor a função de mestres, professores e companheiros dos alunos.

A outra coisa que precisa ser repensada é a função dos sistemas de educação. As leis e as políticas públicas da escola precisam ser repensadas. Nós vivemos de plano em plano, coordenados pela União (MEC, Capes etc.), promovendo reformas. Mas reformas sempre em função de alterar procedimentos. Para que serve a escola? Isso não está sendo questionado. O conceito de escola, hoje, é o mesmo do tempo do início da modernidade. Alteraram as metodologias as didáticas, as tecnologias, mas a escola é a mesma, um espaço em que as crianças e jovens recebem disciplinamento do corpo e da mente. Existem experiências de escolas que estão voltadas à construção conjunta de uma cultura de cidadania.

IHU On-Line – Esse posicionamento dos alunos, de desinteresse pelas aulas que leva ao abandono das escolas, explica, de alguma forma, a postura violenta de que tanto se fala nos últimos dias?

Euclides Redin –
Nunca apareceram tantos casos de violência na escola, mas tenho a impressão de que essa violência sempre existiu. A imprensa gosta quando a notícia tem sangue e, quando as coisas se tornaram mais violentas, se insiste no assunto. A violência não nasceu na escola, e não é a escola que irá acabar com a violência nas ruas. Há uma nova visão de civilização para poder participar do mercado. Hoje, vivemos a relação social de incluídos e excluídos. Isto aparece de diversas maneiras, há muito tempo, fora da escola e agora adentrou este espaço. O que a escola pode fazer? Trabalhar uma experiência diferente de vida e, assim, fazer com que essa experiência possa escoar para as ruas, para as casas, para os pátios, porque, se vamos fazer uma pesquisa sobre as múltiplas violências que ocorrem dentro de casa, vamos nos assustar ainda mais.

IHU On-Line – Como o senhor vê o modelo proporcionado pelas escolas itinerantes do MST?

Euclides Redin –
Ali há uma coisa significativa. De fato, a escola itinerante, que era reconhecida pelo estado, estava centrada em cima das crianças de famílias acampadas. O currículo era montado em função dessas crianças e estava dando certo! Quem estava sendo transferido para escolas tradicionais estava se dando muito bem. O controle do sistema sobre a escola itinerante não era tão efetivo e, assim, ele começou a fechá-la, pois não havia como fazer seu controle. A infraestrutura era feita debaixo de uma árvore, ou de uma lona preta, com professores acampados e com crianças passando por um momento complicado. A situação é precária, claro, mas essa escola tratava melhor a questão da vivência.


(Euclides Redin é graduado em Pedagogia, pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora da Imaculada Conceição, com especialização em Orientação Educacional, pela PUC-Rio. Nesta mesma universidade, realizou o mestrado em Educação. Também é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo (USP). Por longos anos foi professor na Unisinos e pesquisador do PPG em Educação da mesma universidade. Autor de Paulo Freire: ética, utopia e educação (São Leopoldo: Vozes, 1999), atualmente é professor da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS.)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A análise de Hobsbawm



Socialismo fracassou, capitalismo quebrou: o que vem a seguir?


A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. A prioridade não é o aumento do lucro e do consumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Isso significa iniciativa pública não baseada na busca de lucro. Decisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal. A análise é do historiador britânico Eric Hobsbawm em artigo publicado no The Guardian e reproduzido pela Carta Maior, 15-04-2009.

Eis o artigo.

Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políticos imaginam. O século XX já ficou para trás, mas ainda não aprendemos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a idéia básica que dominou a economia e a política no século passado desapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos era um modo de pensar as modernas economias industriais – em realidade todas as economias -, em termos de dois opostos mutuamente excludentes: capitalismo ou socialismo.

Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sistemas em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globalização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dúvida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anarquismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planificado e descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O futuro, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante de nós hoje, em particular para a gente de esquerda.

Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas de tipo soviético, não só por suas deficiências políticas, mas também pela crescente indolência e ineficiência de suas economias, ainda que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxitos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do capitalismo de livre mercado.

Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não recordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour, o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser qualificados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos.

A idéia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socialismo era desnecessário e que se podia confiar no sistema capitalista para fazer florescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma distribuição eqüitativa. Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização dificultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Trabalhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de 1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de uma atualização.

Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização econômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para a exportação (ao contrário do que fizeram Alemanha, França e Suíça) e apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos serviços financeiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lavadores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra e a economia britânica será provavelmente o mais catastrófico de todas as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também.

É possível afirmar que tudo isso já são águas passadas. Que somos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a nacionalização -, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No entanto, essa idéia sugere que sabemos o que fazer com as ferramentas. Mas não é assim.

Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as instituições financeiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída.

Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas. Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa privada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eficaz meio de fazer as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial? Não creio que tenham superado tudo isso.

No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais dos últimos 30 anos. Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico e a abundância que comporta são um meio, não um fim. Os fins são os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expectativas das pessoas.

Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós que a economia de Londres floresça. Mas a prova de fogo da enorme riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contribuído com 20 ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é nenhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos. Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restaurantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles mesmos em estrelas. Podem levar seus filhos à escola? A falta de escolas adequadas não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres podem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores de prêmios Nobel.

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso significa – ou deveria significar – iniciativa pública não baseada na busca de lucro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.

Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a crise do meio ambiente. Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, significará um deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pública, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico. E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.









Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21439







quarta-feira, 15 de abril de 2009

Soja envenenada


O tóxico dos campos


O agrotóxico básico da indústria da soja produz deformações neuroniais, intestinais e cardíacas, mesmo em doses muito inferiores àquelas utilizadas na agricultura. O estudo, realizado em embriões, é o primeiro em seu tipo e refuta a suposta inocuidade do herbicida.

A reportagem é de Darío Aranda e publicada no jornal argentino Página/12, 13-04-2009. A tradução é do Cepat.

As comunidades indígenas e os movimentos camponeses denunciam há mais de uma década os efeitos dos agrotóxicos utilizados na soja sobre a saúde. Mas, sempre bateram de frente com os desmentidos de três atores de peso: os produtores (representados em grande parte pela Mesa de Enlace), as grandes empresas do setor e os setores governamentais que impulsionam o modelo agropecuário.

O argumento recorrente é a ausência de “estudos sérios” que demonstrem os efeitos negativos do herbicida. Após treze anos da febre da soja, pela primeira vez uma pesquisa científica de laboratório confirma que o glifosato (químico fundamental da indústria da soja) é altamente tóxico e provoca efeitos devastadores em embriões. A comprovação foi dada pelo Laboratório de Embriologia Molecular do Conicet-UBA (Faculdade de Medicina) que, com doses até 1.500 vezes inferiores àquelas utilizadas nas fumigações da soja, comprovou transtornos intestinais e cardíacos, deformações e alterações neuroniais.

“Concentrações ínfimas de glifosato, comparadas com aquelas usadas na agricultura, são capazes de produzir efeitos negativos na morfologia do embrião, sugerindo a possibilidade de que estejam interferindo nos mecanismos normais do desenvolvimento embrionário”, destaca o trabalho, que também insiste na urgente necessidade de limitar o uso do agrotóxico e pesquisar suas consequências no longo prazo. O herbicida mais utilizado a base de glifosato é comercializado com o nome de Roundup, da Monsanto, líder mundial dos agronegócios.

O Laboratório de Embriologia Molecular conta com vinte anos de trabalho em pesquisas acadêmicas. Funciona no âmbito da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA) e do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). É uma referência no estudo científico, formado por licenciados em bioquímica, genética e biologia. Durante os últimos quinze meses estudou o efeito do glifosato em embriões anfíbios, desde a fecundação até que o organismo adquirisse as características morfológicas da espécie.

“Foram utilizados embriões anfíbios, um modelo tradicional de estudo, ideal para determinar concentrações que podem alterar mecanismos fisiológicos que produzam prejuízo celular e/ou transtornos durante o desenvolvimento. E devido à conservação dos mecanismos que regulam o desenvolvimento embrionário dos vertebrados, os resultados são totalmente comparáveis com o que aconteceria com o desenvolvimento do embrião humano”, explica Andrés Carrasco, professor de embriologia, pesquisador principal do Conicet e diretor do Laboratório de Embriologia.

A equipe de pesquisadores disse que as diluições recomendadas para a fumigação pela indústria agroquímica oscilam entre 1% e 2% da solução comercial (para cada litro de água recomenda-se 10/20 mililitros). Mas, no campo é de conhecimento de todos – inclusive reconhecido pelo setor – que as ervas daninhas a serem eliminadas criaram resistências ao agrotóxico, razão pela qual os produtores de soja utilizam concentrações maiores. O estudo afirma que na prática cotidiana as diluições variam entre 10% e 30% (100/300 mililitros por litro de água).

Utilizando como parâmetro de comparação os padrões teóricos (aqueles recomendados pelas empresas) e os reais (aqueles usados pelos produtores de soja), os resultados de laboratório são igualmente alarmantes. “Os embriões foram incubados por imersão em diluições com um mililitro de herbicida em 5.000 de solução de cultivo embrionário, que representam quantidades de glifosato entre 50 e 1540 vezes inferiores àquelas usadas nos campos com soja. Houve diminuição de tamanho embrionário, sérias alterações cefálicas com redução de olhos e ouvidos, alterações na diferenciação neuronial precoce com perda de células neuroniais primárias”, afirma o trabalho, que foi dividido em dois tipos de experimentação: imersão em solução salina e por injeção de glifosato em células embrionárias. Em ambos os casos, e em concentrações variáveis, os resultados foram contundentes.

“Diminuição do comprimento do embrião, alterações que sugerem defeitos na formação do eixo embrionário. Alteração do tamanho da cabeça com comprometimento da formação do cérebro e redução de olhos e da zona do sistema auditivo, que poderiam indicar causas de deformações e deficiências na etapa adulta”, alerta a pesquisa, que também avança sobre efeitos neurológicos graves: “(Foram comprovadas) Alterações nos mecanismos de formação de neurônios precoces, por uma diminuição de neurônios primários comprometendo o correto desenvolvimento do cérebro, compatíveis com alterações com o fechamento normal do tubo neuronial ou outras deficiências do sistema nervoso”.

Quando os embriões foram injetados com doses de glifosato muito diluído (até 300.000 vezes inferiores àquelas utilizadas nas fumigações), os resultados foram igualmente devastadores. “Deformações intestinais e deformações cardíacas. Alterações na formação e/ou especificação da crista neuronial. Alterações na formação das cartilagens e ossos do crânio e face, compatível com um incremento da morte celular programada.” Traduzindo, estes resultados implicam que o glifosato afeta um conjunto de células que têm como função a formação das cartilagens e depois dos ossos da face.

“Qualquer alteração de forma por falhas de divisão celular ou de morte celular programada leva a deformações faciais sérias. No caso dos embriões, comprovamos a existência de menor quantidade de células nas cartilagens faciais embrionárias”, detalha Carrasco, que também destaca a existência de “deformações intestinais, principalmente no aparelho digestivo, que mostra alterações em sua rotação e tamanho”.

A soja semeada no país ocupa 17 milhões de hectares em dez Províncias e é comercializada pela Monsanto, que vende as sementes e o agrotóxico Roundup (a base de glifosato), que tem a propriedade de permanecer extensos períodos no ambiente e viajar longas distâncias arrastado pelo vento e a água. Aplica-se em forma líquida sobre a planta, que absorve o veneno e morre em poucos dias. A única coisa que cresce na terra borrifada é a soja transgênica, modificada em laboratório. A propaganda da empresa classifica o glifosato como inofensivo ao ser humano.

Como todo herbicida, é formado a partir de um princípio “ativo” (neste caso o glifosato) e outras substâncias (chamadas coadjuvantes ou surfactantes, que por segredo comercial não é especificado em detalhes), cuja função é melhorar seu manejo e aumentar o poder destrutivo do ingrediente ativo. “O POEA (substância derivada de ácidos sintetizados de gorduras animais) é um dos aditivos mais comuns e mais tóxicos, se degrada lentamente e se acumula nas células”, acusa a pesquisa, que descreve o POEA como um detergente que facilita a penetração do glifosato nas células vegetais e melhora a sua eficácia. Pesquisadores de diversos países centraram seus estudos nos coadjuvantes e confirmaram as suas consequências.

O estudo experimental do Conicet-UBA (segundo seus autores, o primeiro em pesquisar os efeitos do herbicida e o glifosato puro no desenvolvimento embrionário de vertebrados) se centra no elemento menos estudado e denunciado do Roundup. “O glifosato puro introduzido por injeção em embriões em doses equivalentes às usadas no campo entre 10.000 e 300.000 vezes menores, tem uma atividade específica para prejudicar as células. É o responsável por anomalias durante o desenvolvimento do embrião e permite sustentar que não apenas os aditivos são tóxicos e, por outro lado, permite afirmar que o glifosato é causador de deformações por interferir em mecanismos normais de desenvolvimento embrionário, interferindo nos processos biológicos normais”.

Carrasco resgata as dezenas de denúncias – e quadros clínicos agudos – de camponeses, indígenas e bairros fumigados. “As anomalias mostradas por nossa pesquisa sugerem a necessidade de assumir uma relação causal direta com a enorme variedade de observações clínicas conhecidas, tanto oncológicas como de deformações reportadas na casuística popular ou médica”, adverte o professor de embriologia.

A pesquisa lembra que o uso de agrotóxicos sojeiros obedeceu a uma decisão política que não foi baseada em um estudo científico-sanitário (“é inevitável admitir a imperiosa necessidade de ter estudado estes, ou outros, efeitos antes de permitir seu uso”), denuncia o papel complacente do mundo científico (“a ciência é instada pelos grandes interesses econômicos, e não pela verdade e o bem-estar dos povos”) e faz um chamado urgente para realizar “estudos responsáveis que forneçam maiores danos colaterais do glifosato”.


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terça-feira, 14 de abril de 2009

Por entre correntezas da História


Como estiagem depois de meses de aguaceiro, 20 líderes mundiais, entre chefes de Estado e chefes de governo, reuniram-se em Londres na quinta-feira, para endossar uma ofensiva conjunta de enfrentamento da crise econômica global. Houve muita fotografia. Atividade frenética dos seguranças. iPod e afagos para a rainha. E até a tietagem explícita do "companheiro" Obama ao saudar Luiz Inácio da Silva como o político mais popular do mundo. "Esse é o cara", disse o colega americano. Na City londrina, manifestantes com sotaques e trajes diversos enfrentaram policiais, quebraram vitrines e garantiram a participação. Antes que os holofotes se apagassem, veio a declaração final do encontro: anunciou, entre outros pontos, a injeção de US$ 1,1 trilhão na economia planetária para programas de recuperação e desenvolvimento econômicos, mais regulação dos mercados financeiros no plano nacional, críticas contundentes aos paraísos fiscais e uma promessa de retomar a Rodada Doha. Os líderes e suas comitivas se despediram em clima quase de euforia.

A reportagem e a entrevista é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 07-04-2009.

Depois, vida real. O economista Ignacy Sachs, um perito em desenvolvimento sustentado, como que voltou ao "cenário do banquete" para avaliar o que se passou por lá e o que terá sobrado da festa. O G-20 superou expectativas? Deixa dúvidas no ar? Que caminhos aponta? Como se verá a seguir, as análises de Sachs, pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales, a EHESS, em Paris, mostram quão complexas são as relações de poder que permeiam esse grupo de mandatários que vale quanto pesa - 85% do PIB mundial. Para o professor, ainda que se possa questionar a lista dos 19 convidados de Gordon Brown (20, com a própria Inglaterra), a reunião mostrou que as tensões do passado ainda se manifestam nas discussões de hoje, como ecos de um processo geopolítico que começou lá trás, no embate entre capitalismo e socialismo.

O mundo é outro, os dirigentes mudam, a crise tem feições graves e inusitadas, mas as correntes subterrâneas da história ainda movem os indivíduos e as nações. É disso que trata a entrevista de Ignacy Sachs, um polonês que chegou ao Brasil nos anos 40 fugindo da guerra, aqui estudou, fez carreira, família e daqui foi "devolvido" ao mundo para ser um dos grandes defensores do conceito de ecodesenvolvimento. Autor de vários livros, entre eles Rumo à Ecossocioeconomia - Teoria e Prática do Desenvolvimento (Cortez Editora, 2006) a autobiografia sairá em breve pela Companhia das Letras.

Eis a entrevista.

O G-20 tem poder para consertar a economia mundial?

Em termos formais, não. Mas, em termos reais, o G-20 ganhou poder pela força econômica que representa, ou seja, 85% do PIB mundial. Ele hoje até parece substituir algum órgão do sistema das Nações Unidas que, a meu ver, deveria estar deliberando. A ONU anda em baixa... Não é preciso ir longe: no meio dessa crise, o secretário-geral da organização convocou uma comissão de alto nível liderada pelo Prêmio Nobel Joseph Stiglitz para estudar a situação. A comissão divulgou, em 19 de março, um documento com diagnóstico completo, várias propostas e apontou a necessidade de se criar um órgão econômico no âmbito das Nações Unidas. A coisa não foi para a frente. Ninguém em Londres pensou na Comissão Stiglitz. Porém, num programa de reformas de longo prazo, talvez seja importante reforçar o sistema das Nações Unidas.

Falar em Nações Unidas após os anos Bush, período em que a organização foi esvaziada, faria sentido?

Bom, os anos Bush terminaram e agora atravessamos um momento histórico. Em 80 anos, a humanidade foi chamada três vezes a se debruçar sobre a equação qual Estado, para qual modelo de desenvolvimento. A primeira vez foi a partir da crise de 29. Tivemos como resultantes o socialismo, o nazismo, o New Deal rooseveltiano. A segunda ocasião aconteceu no fim da 2ª Guerra. Naquele momento, formou-se um consenso em torno de três ideias-forças: um Estado pró-ativo no campo econômico e social, o pleno emprego como objetivo e a valorização do planejamento, pilares de sustentação do welfare state, o Estado de bem-estar e previdência, como formulou Keynes. Mas, veja que interessante, em 1944, quando Friederich von Hayek, futuro Prêmio Nobel, publicou em Londres seu libelo contra o planejamento, The Road to Serfdom, ali ele já instalava a ideia da dissidência em relação ao modelo do bem-estar. Continuando, o choque entre dois sistemas políticos levou o capitalismo a se reformar, especialmente pela ascensão do socialismo, e então viria o que o professor de Harvard Steve Marvin chamou de a "idade de ouro do capitalismo". Ou seja, o sistema entrou numa fase de crescimento rápido, impulsionado pelos processos de reconstrução abertos com o fim da guerra, pelo Plano Marshall, isso entre 1945 e 1975.

O que marca a mudança de paradigmas nos anos 70, na sua opinião?

O desencanto com o socialismo real foi um elemento forte. Uma data fundamental nessa mudança terá sido a invasão da Checoslováquia pelos soviéticos. Acabou com a credibilidade do sistema. Sim, houve anteriormente momentos duros, como a invasão da Hungria, em 1956, mas foi em 1968, quando aqueles tanques soviéticos avançaram sobre Praga, esmagando um socialismo de face humana, que a credibilidade veio abaixo. Gorbachev, apesar de ter se empenhado, não conseguiu mais reverter a situação. Vieram os processos inflacionários, a primeira crise energética, enfim, outros fatores entraram em cena preparando o palco para Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Assim entramos no período que o economista austro-britânico Hans Singer, secretário de Keynes em Bretton Woods, chamaria de a "contrarreforma neoliberal", propondo menor presença do Estado, menos planejamento e autorregulamentação do mercado. Pois bem, o socialismo está morto, mas o neoliberalismo anda mal das pernas. Isso obriga a geração que está atualmente no poder a inventar alternativas, pois estamos sentados sobre paradigmas falidos. Em termos históricos, este é o terceiro momento em que os países são chamados a responder àquela pergunta.

Como é que os dirigentes de hoje podem "inventar" alternativas?

A crise é oportunidade, não apenas tragédia. Os dirigentes de hoje estão conscientes disso, me parece, até porque estão sendo confrontados com situações realmente históricas, como a eleição de Barack Obama nos Estados Unidos. Você viu a imagem de Obama, ao lado da rainha Elizabeth, acompanhado de sua mulher, Michelle, que num gesto simpático deu até um tapinha nas costas da anfitriã? Chega a parecer inacreditável. E o que dizer da rainha enquadrada na foto oficial tendo seu primeiro-ministro, Gordon Brown, de um lado e Lula, do outro? Também é uma imagem cheia de significado. Eric Hobsbawn analisa muito bem em sua obra como o choque dos sistemas capitalista e socialista, que quase nos levou à 3ª Guerra Mundial, acabou propiciando a emancipação dos "países do Sul", a começar pela independência da Índia, em 1947, num processo geopolítico que não parou mais. Embora a crise econômico-financeira de hoje não tenha se originado em países que já foram a periferia do mundo, não é do nada que eles conquistam importância no debate atual.

Olhando pelo binóculo da história, a bancarrota do Lehman Brothers, vista como deflagradora da crise, seria mero acidente de percurso?

Ah, aquilo foi prova de que havia um sistema falho do ponto de vista da regulação. Nesse ponto, o momento que atravessamos hoje é até favorável, pois desmistificou-se o "capitalismo de cassino". Só que, de repente, todo mundo virou keynesiano, todo mundo agora fala que o Estado estava sendo vilipendiado...

E o que o senhor acha dessa súbita conversão ao keynesianismo?

Aí está o problema. De que keynesianismo se fala? Lá atrás, houve um keynesianismo que inclusive favoreceu a corrida armamentista. Então, não basta querer um Estado forte e atuante, a pergunta é: forte e atuante para o quê? É tempo de explicitar os objetivos. Olha, não vou desdizer aqui nesta entrevista a minha vida inteira: sempre acreditei no Estado, sou de uma geração influenciada pelo socialismo, mas também vi as barbaridades que foram cometidas nesse modelo centralizador. Também não acreditei quando me disseram que era chegado o "fim da história", e quem o previu agora está se desdizendo. O que afirmo é o seguinte: não podemos nos dar ao luxo de brincar com a ideia de refazer a história. Parece possível trabalhar na direção de um Estado mais atuante, com um grande setor de mercado que pode até ser estimulado por esse mesmo Estado. Gordon Brown, em Londres, encerrou os trabalhos dizendo que a reunião do G-20 marca o fim do Consenso de Washington. É uma afirmação forte, importante, mas como se traduz na prática?

A declaração também anunciou o destino de mais de US$ 750 bilhões para o FMI, para programas de estímulo econômico. Que efeito terão?

Pois é, o relatório Stiglitz reconheceu que muitos países foram vítimas, no passado, das condicionalidades dos programas implantados pelo FMI e pelo Banco Mundial, o Bird. Então, não sei se os problemas de hoje serão sanados jogando mais dinheiro nessas instituições. Não seria também necessária uma mudança na maneira como elas operam? É de conhecimento geral como a África sofreu com os ajustes estruturais exigidos pelo fundo e pelo banco, e os resultados catastróficos dessas políticas estão aí, para quem quiser ver. Não sou contra a existência do FMI, que foi um dos passos decisivos da conferência de Bretton Woods, em 1944, fundamental para a reconstrução do mundo, mas não deveríamos ficar olhando para essa dinheirama de agora sem debater em que condições, em que bases e com que fins ela será aplicada.

Pode haver uma mudança no perfil do FMI e do Banco Mundial?

Da noite para o dia, não. Ideias novas não se consolidam numa reunião de um dia, como essa de Londres, em que cada chefe de Estado teve direito a se manifestar por 11 minutos. A propósito, essa semana ouvi uma frase muito divertida, atribuída a Benedito Valadares ( ex-governador de Minas no período do Estado Novo): "Reunião? Só com negócio fechado". Em que pesem as diferenças, ficar discutindo o alcance G-20 talvez não nos leve longe, porque não havia o "negócio fechado" antes da reunião. E tem muito teatro nisso tudo. O que ficou de positivo no G-20? Basicamente três coisas. Primeira, ele aconteceu, o que demonstra a preocupação dos principais líderes do mundo com o que estamos vivendo, embora, repetindo uma afirmação do ex-ministro Rubens Ricupero, a cúpula virou um encontro de egos, com direito a mútuas felicitações e auto-elogios. Segunda coisa, Obama estreou na cena mundial, mas, convenhamos, está numa posição favorável em que ainda pode jogar culpas no antecessor. Terceira, os países ricos sentaram-se à mesa com os países emergentes. Pode-se até dizer que há um tanto de cooptação nisso tudo, pois foi o G-8 que constituiu o G-20, numa lista de países que sempre carregará a suspeita de ser arbitrária. Mas ver o presidente do Brasil ou o primeiro-ministro da Índia nessas negociações confirma aquele processo geopolítico sobre o qual já falamos. Resta agora institucionalizá-lo.

Ao longo do encontro, Obama chegou a dizer que o mundo não pode ficar refém dos EUA. Depois modulou, mas chegou a dizer isso.

Foi uma declaração hábil da parte dele. Será que é retórica? Como vou saber? Vamos julgar pelos fatos a seguir. Como será usado o dinheiro, mais de US$ 1 trilhão? Teremos que esperar, mas me surpreende a proeminência que o FMI voltou a ter. Será que o fundo mudará sua governança? De novo, como saber? Enfim, há muitas questões em aberto.

Dentre tantas incógnitas, qual é a da China?

Estamos assistindo a uma situação inédita: os EUA dependem da vontade da China em acumular excedentes em dólares, e a China, que ainda não abandonou a fraseologia do seu "socialismo de mercado", não pode se dar ao luxo de não apoiar a economia americana. Imagine uma desvalorização do dólar... a China vai para o espaço. Estão atrelados. Existe um ditado polonês que fala de dois inimigos que ficam presos um pela barba do outro... é o caso. Aparentemente, a China já começou a ensaiar sua participação no jogo dos grandes ao propor uma nova moeda para reservas, e não devemos perder de vista a crescente e impressionante influência que ela vem consolidando na África, especialmente em países com petróleo, como Angola. São investimentos formidáveis, mas tenho lá minhas dúvidas sobre a maneira como vêm sendo feitos. Por exemplo, mandam mão de obra chinesa para construir prédios na Argélia, enquanto os desempregados argelinos ficam sentados ao redor do canteiro, olhando... isso é um absurdo econômico. Só com os efeitos da crise recente, já se fala em mais de 20 milhões de demitidos na China. É muita gente. Outro problema é esse modelo híbrido de capitalismo, no qual se veem novos-ricos em carrões e boa parte da população desprovida de serviços básicos. E o que dizer da degradação ambiental? Rios chegam ao mar já secos. Por outro lado os chineses são capazes de grandes programas de reflorestamento. Enfim, é um país de contradições.

A chanceler alemã, Angela Merckel, e o presidente francês, Nicolas Sarkozy, foram para o G-20 com um discurso forte em defesa da regulação. Essa Europa do G-20 espelha expectativas de todo o continente?

A Europa está muito dividida. O economista francês Michel Albert acaba de publicar mais um estudo sobre o capitalismo, em que mostra não só as várias faces do sistema, como as diferenças específicas no contexto europeu, como o "capitalismo anglo-saxão" e o "capitalismo renano". Alguma coisa disso esteve presente no G-20. Sarkozy, com resquícios do gaullismo, e Merckel, apoiada na importância que a economia alemã já teve no passado, têm de fato uma visão diferente do modelo anglo-americano, de maior liberdade ao sistema financeiro. Outra forma de olhar: temos os países que são "fundadores" da Europa e os que chegaram agora a ela. Há os países que adotaram a moeda comum, outros que estão fora disso. Há o estranhamento eterno da Europa continental com uma Inglaterra que fez o jogo da Aliança Atlântica. Então, veja quantas divisões internas, quantas diferenças históricas. Países que entraram recentemente na União Europeia (UE) estão muito mal, como a Hungria, que apresentou um plano de recuperação econômica que os alemães rejeitaram. Isso foi há um mês. A Irlanda era "o" modelo do capitalismo bem resolvido, agora enfrenta problemas. A Islândia, outro modelo, faliu. Os países bálticos, declaradamente capitalistas, estão decaídos. Enfim, a Europa vive uma situação complicada. Lá trás, no processo de integração à UE de países como Espanha, Portugal e Grécia, houve investimentos fortes. Na segunda rodada de integração, já não houve o mesmo aporte, o que a meu ver foi um erro. Quando Helmut Kohl decidiu pela unificação alemã, disse: "A decisão é política e vai custar o que vai custar. Vamos arcar com ela". Agora, as decisões continuam sendo políticas, mas não podem custar muito. Como seria aprovada a Constituição Europeia nesse contexto? Sem chance.

E o papel da Inglaterra neste momento?

O Gordon Brown estava por um triz. Só se safou porque, quando estourou a crise, propôs algo diferente do Plano Pauls (Henry Pauls, secretário do Tesouro de George W. Bush). Ali foi uma intervenção corajosa. Ele se diferenciou das linhas mestras do capitalismo anglo-saxão ao propor a nacionalização temporária de bancos, ideia com a qual Obama lida com dificuldades. A propósito, o que podemos esperar da equipe econômica que está na Casa Branca? Outra incógnita. Lembra quando Lawrence Summers, atuando no Banco Mundial, disse que se deveriam mandar indústrias poluentes para a África? Depois, como reitor de Harvard, falou que as mulheres não têm cabeça para a pesquisa. Pois bem, ele é o conselheiro econômico do novo presidente dos EUA. Quero dissociar duas coisas: a vitória política de Obama é um marco histórico, pelas qualidades pessoais que ele parece ter e pela maneira como soube operar o racismo americano. Daí a ter carta branca para fazer e desfazer na economia é outra conversa. Tomara que acerte.

O que acha da busca por um acordo de desarmamento entre Obama e Medvedev?

Teatro puro. Os dois lados têm hoje ogivas para destruir o mundo várias vezes. O que significa reduzir isso em um terço? Significa que terão capacidade para destruir o mundo 50 vezes, em vez de 75? Não faz sentido. Isso me remete à mesma posição que tenho sobre o Protocolo de Kyoto. Não dá para ficar discutindo quanto cada país vai cortar nas emissões de carbono. Antes, é preciso firmar o objetivo, depois se vê como faz. Quando temos um problema, tomemos a solução, depois a repartição do custeio.

As discussões ambientais, tal como o clima e o planeta, ficaram mais aquecidas.

Não é possível dizer que o meio ambiente seja a bola da vez, deixando para lá os problemas sociais. Ou tomar os problemas sociais, postergando decisões no campo ambiental. O momento é de atacar todas as frentes. A crise ambiental pode ser vista numa outra perspectiva de tempo, ou seja, numa perspectiva macro-histórica da evolução humana na biosfera. Em centenas de milhares de anos, tivemos duas grandes transições: a neolítica, caracterizada pela domesticação das espécies e pela sedentarização dos grupos humanos, com um comecinho de urbanização. A outra, na passagem do século 17 para o 18, foi o início da utilização em larga escala das energias fósseis, do carvão, depois do petróleo e gás. Resultou na primeira Revolução Industrial, com impactos demográficos e econômicos, numa evolução impressionante que acabou nos levando à crise ambiental de hoje. Agora entramos noutro capítulo, que pode ser chamado de o fim da era do petróleo e, se formos inteligentes, o fim do consumo de energias fósseis. É um processo largo, não sei se vai levar décadas ou séculos, mas, de qualquer maneira, estamos no começo de uma saída. E temos que pensar alternativas. Até onde podemos ir com a energia solar? Já há estudos apontando para a terceira geração dos biocombustíveis, as algas. Pois bem, até que ponto avançar nos recursos marinhos? Até onde caminhar no aproveitamento da biomassa? Todo mundo tem, da boca para fora, a ideia de um New Deal verde, com empregos verdes, economia verde, política verde. Não sei no que vai dar, mas, de qualquer modo, a síntese entre ambientalismo e desenvolvimentismo é uma ideia que está posta pelo menos desde 1972, na Conferência de Estocolmo.

Então o Brasil tem boas oportunidades pela frente.

O Brasil é a maior biodiversidade do planeta, a maior floresta tropical do mundo, e não estou minimizando o fato de que um quinto dela tenha sido derrubada. Tem uma dotação confortável de água, uma pesquisa científica já de padrão internacional que, se bem administrada, torna-se também um recurso. Tem um setor de financiamento público poderoso. Mas há os impasses. Por exemplo: devemos caminhar para uma agricultura altamente mecanizada, uma agricultura sem homens, e conviver com favelas apinhadas? Ora, o Brasil tem o valor da sua gente e tantos recursos de que dispor que, não fazendo bobagem, a perspectiva é de futuro promissor. Às vezes me passa uma coisa pela cabeça: a desforra dos trópicos. Durante muito tempo lidou-se com a ideia de que o trópico era um obstáculo ao progresso. Os europeus vangloriavam-se do clima onde viviam. Pois este é mais um mito que vem abaixo. E novos cenários se descortinam neste lado do mundo.