terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A ‘walmartização’ da economia global


Uma entrevista com o autor do livro Por que não nos odeiam. A verdadeira história do conflito de civilização. Uma análise corrosiva e brilhante da globalização e das formas de resistência que se desenvolvem no norte e no sul do planeta. A reportagem e a entrevista são de Benedetto Vecchi e foram publicadas pelo jornal Il Manifesto, 21-05-2008.

Mark LeVine é um jovem estudioso – ensina História Moderna do Oriente Médio na Universidade da Califórnia – para quem o paradigma do conflito de civilização é restrito; na verdade o considera o resultado de uma campanha ideológica real e oportuna para garantir a hegemonia ocidental no planeta. No volume Porque Não nos Odeiam (DerivaApprodi), sustenta que há muitos mais pontos de contato entre um homem de negócios do Marrocos e da Califórnia do que entre um operário de Chicago e um manager wasp da Wal-Mart. Para LeVine, na realidade, a globalização favoreceu o crescimento de uma elite global que compartilha não a religião, mas a mesma tendência de viver como um corpo separado dentro do estado-nação onde nasceram. Para o resto da população mundial, ao contrário, a articulação da identidade, das formas de vida produz uma colcha de retalhos na qual, por exemplo, o Islã convive com a música heavy metal ou o rap.





O senhor escreve muito sobre a difusão global de estilos de expressão, sobre formas artísticas que vêm moldadas segundo os contextos locais. O Senhor quer dizer que a globalização neoliberal está parada, enquanto a cultural não?


Na atual globalização, o social e o econômico foram “culturalizados”. Explico-me: as empresas baseiam seus lucros no poder da marca, enquanto fazem uma rede de empreendimentos externos fazer o trabalho “sujo”. Tudo isso significa que empresas, como Nike ou Microsoft, vendem a idéia de um produto que é produzido por outros. Também, no livro escrevo sobre “walmartização” da economia global. Wal Mart não é somente uma empresa transnacional, mas também um modelo de relação entre capital e força de trabalho oposto àquele normalmente definido como fordista. Nas fábricas automobilísticas de Henry Ford, é sabido, os salários eram relativamente altos, de tal modo que os operários podiam comprar o modelo T que produziam. Wal Mart, ao contrário, paga salários tão baixos que os seus empregados conseguem apenas sobreviver. Essa tendência de rebaixamento salarial vale em todo o mundo. Por exemplo, na Jordânia, as empresas não contratam os trabalhadores jordanianos ou palestinos, mas os homens e mulheres provenientes de Bangladesh ou do Paquistão, porque são “mais baratos”; desse modo, pode-se pagar-lhes pouquíssimo e rapidamente podem ser substituídos a qualquer momento. E isso acontece também em Dubai, em Israel, em qualquer lugar.

Atualmente, Rotana, o gigante saudita do entretenimento, traz à luz produtos culturais dentro de um modo de produção que não é assim tão diferente do que os intelectuais islâmicos denunciavam como orquestração ocidental de eliminar a diversidade cultural do Islã. Ao mesmo tempo, são manifestadas fortes tendências underground em que a hibridização entre o Islã e outras “culturas” é muito acentuada. Por exemplo, os jovens mulçumanos – o grupo demográfico mais importante dos países árabes – produzem artefatos culturais “contaminados”. E, desse modo, existem muitíssimos grupos de jovens islâmicos que tocam Heavy Metal. Essa é a “cultura de interferência”, o lado positivo da globalização que pode ajudar a formação de ações políticas e relações econômicas alternativas àquela proposta pelos extremistas neoliberais ou religiosos.

No volume, a globalização é sinônimo de desigualdade, uma bomba-relógio que pode trazer uma nova guerra global bem mais temível do que aquela preventiva desejada por George W. Bush. Cresce, além disso, a ascensão da China e da Índia. O senhor não acredita que realmente o ingresso fragoroso deles na boa sala de estar da economia mundial trará outro tipo de globalização e que precisará considerar recomposta aquela que o pesquisador Ken Pomerranz chamou de eterna “grande divergência”?



O livro de Pomeranz A grande divergência é importante, porque convida a olhar os eventos atuais dentro de uma perspectiva histórica de longa duração. Pomeranz afirma que até 1750 a China era a sociedade econômica e socialmente mais desenvolvida do mundo. Então, uma combinação de fatores (presença de enormes recursos naturais como o carvão e a madeira unidos ao acesso colonial às minas de prata do Novo Mundo) permitiu a alguns países o velho continente – a Inglaterra, França e mais tarde a Alemanha – conquistar a liderança da economia mundial. Concordo com essa reconstrução, porque ajuda a compreender o fato que o desenvolvimento capitalista europeu, e, mais tarde, o estadunidense, baseou-se sobre o que eu chamo de “a matriz da modernidade”. O colonialismo e o nacionalismo são fenômenos amplamente estudados: sem eles não teria sido possível o desenvolvimento capitalista.

Igualmente estudada é a tendência de reduzir os fenômenos sociais à entidade mensurável. Uma tendência à racionalização usada para construir a ideologia sobre superioridade ética, cultural do Ocidente com relação ao resto do planeta.

A atual relevância da China e da Índia no panorama mundial está seguramente em contra tendência em relação à história dos últimos séculos. Todavia, a realidade que está escondida atrás do “milagre asiático” é menos rósea que contínua. Na China, por exemplo, a democracia permanece uma miragem, ao passo que a opressão em que é mantida grande parte da população e o aumento das desigualdades sociais são os preços pagos pelos chineses pelo desenvolvimento econômico. Para completar esse triste afresco há o deslocamento voraginoso de milhões de camponeses em direção à cidade. A Índia, por sua vez, é com certeza um país democrático, mas com milhões de trabalhadores que recebem salários um pouco acima do nível de pobreza, enquanto se multiplicam as denúncias de corrupção do pessoal político e da burocracia estatal. O milagre econômico chinês e indiano está, sim, mudando o equilíbrio na globalização, mas não representa um modelo alternativo para ela. A China e a Índia constituem-se um exemplo de como funciona hoje a globalização.

Segundo o senhor, o Islã tornou-se uma marca global. Provocação por provocação: não acha que a reivindicação de uma identidade islâmica seja, na realidade, um modo para afirmar uma marca que participa do grande banquete da economia mundial?


Depende de qual Islã se fala. Existem, de fato, inumeráveis expressões da cultura islâmica, muitas das quais estão em conflito profundo, e freqüentemente radical, uma contra a outra. Por exemplo, se é desenvolvida uma cultura islâmica neoliberal, freqüentemente é ridiculariza como o “Islã do ar condicionado”, que é explícita da burguesia muçulmana, uma classe social protagonista na definição das políticas neoliberais dos regimes autoritários como o Egito, o Marrocos, a Tunísia, onde a repressão dos grupos islâmicos e de outros opositores foi particularmente brutal. A elite islâmica neoliberal vive em comunidade fechada, exibem artigos de grife, estão sempre conectados à rede, exatamente como a elite ocidental. Comportamentos e estilos de vida que têm a sua representação na visão distópica proposta na arquitetura de Dubai.

Até eu creio, então, que a elite dos países muçulmanos participa do grande banquete da economia mundial. Há, no entanto, mulheres e homens islâmicos que lutam contra a pobreza em seus países. A verdadeira questão é como todos nós, independentemente de nossa religião ou nacionalidade, podemos sentar-nos a uma mesa em que cada um possa comer segundo sua necessidade. Isso significa achar uma saída do neoliberalismo, antes que os danos sociais, ambientais e políticos desses produtos se tornem irreversíveis.

Um novo consenso é necessário




A superação da crise atual, sistêmica e estrutural, exige a construção de uma nova agenda civilizatória. Para isso, é preciso formar uma maioria política que alie capital produtivo e estratos sociais organizados, como trabalhadores e seus sindicatos, associações de bairros e entidades de classe média. Uma das principais tarefas é a defesa da sustentação das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo.

A análise é de Márcio Pochmann, presidente do IPEA, em artigo publicado pela Agência Carta Maior, 11-01-2009.


Eis um trecho do artigo:

"(...)Neste começo do século XXI, quando se conforma a sociedade pós-industrial que têm mais 70% das ocupações envolvidas com atividades intangíveis, a produtividade que mais cresce é aquela que decorre do trabalho imaterial. A concentração dessa nova e imensa riqueza em poucas mãos é que potencializa a grave crise do capital globalizado. O enfrentamento dessa crise requer receitas novas, contemporâneas com as oportunidades atualmente em curso. A transformação da propriedade em favor de todos, especialmente as decorrentes das propriedades financeira e intelectual, impõe exigências como educação para a vida toda, não mais para as faixas precoces da vida (crianças, adolescente e jovem).

Adultos e velhos necessitam continuar estudando ao longo da vida, especialmente numa sociedade cuja expectativa média de vida deve superar os 100 anos de idade. Para educação de vida toda, em que o exercício do trabalho pode ser realizado em qualquer lugar (casa, praça, aeroporto, rodoviária, entre outros), deixa de ser funcional a velha e rígida divisão fordista da atividade (trabalho) com inatividade (estudo), pois o trabalho material é realizado fundamentalmente no local próprio de trabalho (fábrica, escritório, fazenda, laboratório, etc.).

Com o trabalho imaterial sendo efetuado cada vez mais fora do seu local tradicional, não há razão técnica que justifique as longas jornadas oficiais de trabalho do século 20, pois do contrário o cidadão permanece plugado no trabalho heterônomo quase 24 horas por dia. Aumentar o tempo livre requer financiamento público, como para as ações que envolvam descontaminar o trabalhador das novas doenças profissionais.

Enfim, há oportunidade para que tudo isso pode e deve ser feito nos dias de hoje. Ademais da lutas sociais em termos do embate das idéias que possam revolucionar o projeto de sociedade atual, urge implantar uma profunda reforma do Estado que implique avançar o fundo público para mais de 2/3 do total do excedente econômico, por meio da tributação dos ricos, sobretudo os detentores das novas riquezas imateriais.

Da mesma forma, a ação estatal de novo tipo requer o seu próprio empoderamento para tratar do novo contexto global controlado por somente 500 grandes grupos econômicos, responsáveis por quase 50% do Produto Interno Bruto mundial. A defesa do espaço nacional, com exploração plena de todo o potencial econômica impõe fortalecimento da iniciativa privada, com novas regras que permitam ampliar a competição, mesmo com ação estatal em setores potencializadores da sociedade pós-industrial. Este Estado está ainda por ser constituído. Somente uma nova maioria política poderá viabilizar essa complexa e necessária construção. Que o Brasil lidere esse movimento, assim como na Depressão de 1929 foi um dos protagonistas a adotar o keynesianismo avant la lettre e, por isso, permitiu ser um dos primeiros países a superá-la."

Sem chuva da Amazônia, SP vira deserto





São Paulo tem vocação natural para deserto. Só não é terra seca porque existem os Andes e a Amazônia. "Os Andes não vão sair de lá, a não ser que aconteça um cataclisma. Mas destruir a Amazônia para avançar a fronteira agrícola é dar um tiro no pé do agronegócio." O agrônomo Antonio Nobre, 50 anos, 22 deles vividos na Amazônia e autor da frase acima, tem se dedicado a estudar e dar visibilidade aos trabalhos de colegas sobre o regime de chuvas no país, uma área difícil, de poucos dados, e fundamental no horizonte do aquecimento global. "A Amazônia é uma bomba hidrológica gigantesca que traz a umidade do Oceano Atlântico para dentro do continente e garante que a região responsável por 70% do PIB da América do Sul seja irrigada", continua.

A reportagem e a entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 12-01-2009.

Antonio Nobre vem de família rara. O pai era jogador de futebol, a mãe, pintora. Criaram seis filhos com DNA dominante de cientista. O irmão mais velho é Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas do país. Paulo estuda como a destruição da Amazônia afeta os oceanos e é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde também trabalham Carlos e Antonio. Outro irmão é professor da Fundação Getúlio Vargas, o caçula faz doutorado em ecoturismo no Colorado (EUA). A única mulher do time é psicóloga e astróloga - "faz pesquisa no sutil", diz Antonio, casado com uma pesquisadora do Inpe.

Com mestrado em biologia tropical pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (o Inpa, de Manaus), e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, há cinco anos Antonio é o homem do Inpa dentro do Inpe. Em sua sala em São José dos Campos (SP), rodeado por quadros da mãe, busca conectar a experiência amazônica com o que os satélites enxergam do espaço. Como todos os cientistas que se dedicam à mudança climática, o que vê não é promissor. "Temos cinco ou seis anos para impedir que uma catástrofe maior se estabeleça."

Entre os mais novos estudos que vem recolhendo sobre o regime das chuvas, há dados impressionantes. A Amazônia evapora, em um único dia, 20 bilhões de toneladas de água. "Este rio voador, que sai para a atmosfera na forma de vapor, é maior que o maior rio da Terra", diz Antonio, comparando o potencial de chuvas da Amazônia às 17 bilhões de toneladas de água que o Amazonas lança todos os dias no Atlântico. "Está se descobrindo que a floresta é dez vezes mais importante do que se imaginava", diz ele. "Estudos mostram que, nas regiões com floresta, a chuva continua igual por 500 km, 2 mil km; nas regiões do mundo onde ela foi tirada, dentro do continente é deserto", explica.

O cientista lembra que as primeiras consequências do desmatamento já são sensíveis. Em Tocantins, Pará e Mato Grosso já se detectam temperaturas muito altas. O Rio Grande do Sul está perdendo safras. "Não é para parar com o desmatamento da Amazônia em 2015. Era para parar ontem. Tem que ser zero, nenhuma árvore mais derrubada. Precisamos replantar a floresta."

Na entrevista, Nobre explica como chuvas, ventos, oceanos e florestas estão interligados e por que alterar este equilíbrio pode trazer danos irreversíveis à vida.

Eis a entrevista.

Como o senhor interpreta as chuvas que castigam Santa Catarina, Minas, Espírito Santo?

O único comentário que tenho é que lamentavelmente isso pode ser fichinha diante do que está vindo. Eventos extremos sempre aconteceram, mas a Terra tem mecanismos de atenuação. Agora, como a humanidade tem perturbado esses mecanismos, estamos tendo um aumento de frequência desses eventos. Professores da Universidade Federal de Santa Catarina disseram que o sofrimento que esta chuva produziu é quase 100% responsabilidade da forma como foi feita a ocupação naquela região. É o mesmo que acontece em Minas, no Rio e está sendo imposto na Amazônia. Um sofrimento decorrente de construir em encostas íngremes, de cortar floresta e deixar a região fragilizada. O problema não é da natureza, é humano. Santa Catarina é uma região propensa a esse tipo de evento, infelizmente. Mas também é uma prova da falência do sistema político brasileiro, que só atende ao imediatismo. O Código Florestal, desrespeitado, é de 1965 e nem leva em consideração as mudanças climáticas. Se levasse, seria muito mais restritivo, porque só temos cinco ou seis anos para impedir que a catástrofe maior se estabeleça sem chance de retorno.

O Brasil está enxergando a Amazônia com outros olhos?

O imaginário coletivo coloca nas florestas tropicais de modo geral, e na Amazônia, de modo particular, a sensação de algo de muito valor, de coisa grandiosa, mística. A Amazon.com não escolheu seu nome à toa. As pessoas atribuem esse valor ao sentido de paraíso perdido, de riqueza, de vida. Isso é senso comum. Exceto por um povo no mundo: o brasileiro.

Por quê?

Porque o brasileiro médio acha que está deitado eternamente em berço esplêndido. E ele entende por isso vastas áreas propícias para agricultura, chuvas plenas, clima ameno, rios caudalosos que permitem geração de energia, um eldorado de minerais e agora o petróleo. É um país abençoado. Isso define a visão ufanista de que temos valores extraordinários no Brasil.

E não é assim?

Analise o que falei: área para agricultura, água nos rios para energia, biocombustíveis, minerais, não tem nada vivo! Bem, a agricultura é viva, mas não é natural. O berço esplêndido do brasileiro é a terra aberta, não há registro da nossa herança viva. É a nossa visão cultural. O verde está lá, tremulando na bandeira, mas não o valorizamos.

Por que não?

Várias razões. Uma é a que chamo herança maldita dos invasores. O europeu que chegava aqui, na colonização, era o que tinha de pior naquela sociedade. Mercenários que encontravam uma terra sem lei nem rei, onde havia uma floresta de vigor incrível, ouro, povos sem exército nem pólvora. Toda essa abundância ofertada obscenamente para pilhagem. E com o agravante da Igreja, que dizia que os povos da terra não tinham alma enquanto não fossem batizados. Portanto, o conhecimento da natureza que esses povos tinham valia zero. Assim se removeu o saber indígena do "pool" cultural do brasileiro e o pouco caso com o ambiente passou a fazer parte do nosso caráter.

Como se muda isso?

Primeiro reconhecendo que tem carrapato em cima da vaca. Por que o brasileiro chama floresta de mata? Mata é coisa sem valor. Porque era assim para o invasor e nós perpetuamos a rapina. Continua ativa a mesma mentalidade, hoje disfarçada de direito, que faz parte do nosso sistema de valores, foi incorporada no governo e se disfarçou. Agora se chama desenvolvimento. Temos que reconhecer esse fardo ignaro e pensar positivamente para frente. Parar de brigar ambientalista com desenvolvimentista e redescobrir nossa identidade. O brasileiro tem uma reação forte contra pirataria: "Estão roubando os nossos bens", diz, indignado. Mas um ataque sem precedentes aos biomas, com tratores e correntões, motosserra e fogo não desperta revolta. É claro que temos que desenvolver, precisamos de agricultura. O Blairo Maggi [governador do Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo] perguntou outro dia se queremos árvores ou se queremos comida. É um dilema totalmente falso.

Por quê?

Porque sem árvores não tem água e sem água não tem comida. Uma tonelada de soja consome várias toneladas de água para ser produzida. Quando exportamos soja, estamos exportando água doce para países que não têm esta chuva e não podem produzir. É o mesmo com o algodão, com o álcool. Água é o principal insumo agrícola. Se não fosse assim, o Saara seria verde, porque tem solos fertilíssimos.

As pessoas acreditam que chuva é um fenômeno eterno...

Pois é. Mas pense numa caixa d´água. Se tem só um cano saindo e nenhum entrando, vai esvaziar. Os rios saem dos continentes e vão para o oceano. Precisa ter alguma volta de água ou seca o continente.

De onde vem essa água?

Essa é uma pergunta que ninguém se faz. Aprendemos assim na escola: a água salgada do mar evapora pela ação do sol, o sal fica no mar e a água doce forma as nuvens. O vento sopra a umidade, chove no continente e a água volta para os rios.




Está errado?

Então devia ter água em todos os continentes da Terra, mas existem desertos, não é? É só olhar o globo e ver que em toda a zona equatorial tem florestas. Ou tinha, as estamos destruindo. Mas nas áreas contíguas, a 30 graus de latitude norte e sul, existem desertos. O Kalahari, deserto da Namíbia, o Atacama, o Saara. Isso tem uma explicação, chama-se circulação de Hadley: a parte central do planeta recebe maior radiação solar, ilumina muito, é uma área muito quente, evapora muita água, a evaporação produz chuvas na região. A produção de chuva faz com que o ar circule assim: sobe no Equador e desce a uns 30 graus norte e sul. O ar que sobe, perde umidade, chove; quando desce rouba umidade da superfície e formam-se os desertos. Só há duas exceções, no Sul da China, um lugar atrás do Himalaia, e na região que produz 70% do PIB da América do Sul, o quadrilátero que vai de Cuiabá a Buenos Aires e de São Paulo aos Andes. Toda essa atividade econômica depende de chuva. Se prevalecesse a circulação de Hadley, seria deserto também. Teria floresta na Amazônia e aqui não teria nada.

E por que não é deserto?

Por duas razões. Uma, publicada pelo José Marengo [outro especialista em clima, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Inpe]. Se esta região deveria ser deserto e não é, tem algo na América do Sul que é diferente. O quê? Os Andes, uma parede de 6 mil metros de altura, que corta o continente até a Patagônia. Funciona assim: a massa de ar gira sempre de leste para oeste em cima do Equador e o vento sopra ao contrário na faixa entre a zona equatorial e a polar. A umidade do Atlântico entra sobre a Amazônia, a floresta a mantém, e se não existissem os Andes passaria direto ao Pacífico. Mas o ar bate na cordilheira e no verão consegue chegar ao sul e irrigar o nosso quadrilátero produtivo.

É uma chuva importante?

Significa mais de 90% da chuva que cai na região. A transmissão de umidade da Amazônia para o centro agrícola da América do Sul é o que faz produzir e não deixa a área virar deserto. A condição dos Andes é importante, é por isso que o pessoal diz que o Acre é onde o vento faz a curva. Mas é o segundo fator que considero o mais importante: temos uma esponja verde como cabeceira de água na América do Sul, a floresta amazônica. As árvores conseguem evaporar mais água do que os oceanos por unidade de área.

Como é esta comparação?

Nobre: Uma árvore grande, com copa de 20 metros, chega a evaporar 300 litros de água por dia. No oceano, 1 m2 é 1 m2 de superfície evaporadora. Mas 1m2 de floresta chega a ter 8, 10 m2 de folha. Evapora oito, dez vezes mais que o oceano. A floresta é como um radiador de automóvel, é um evaporador otimizado. As folhas são distribuídas em vários níveis por 40 m de altura. O vento vem, encontra a superfície cheia de galhos, faz turbulência, gira, entra pelo meio. Isso ajuda a remover umidade da superfície. Medimos o quanto a Amazônia evapora, é um número astronômico: 20 bilhões de toneladas de água em um dia. Para ter ideia do que é este volume, o rio Amazonas lança 17 bilhões de toneladas de água por dia no Atlântico. Este rio voador, que sai para a atmosfera na forma de vapor, é maior que o maior rio da Terra.

É por isso que o senhor diz que avançar a fronteira agrícola para a Amazônia é dar um tiro no pé?

Claro. A Amazônia é uma gigantesca bomba de água. A evaporação precisa do sol para acontecer. Calculamos quanta energia seria necessária para evaporar toda aquela água. Quantas Itaipus precisaríamos para evaporar um dia de água da Amazônia? Precisaríamos de 50 mil Itaipus a plena carga.

Como atua essa bomba?

Cerca de 50% da chuva cai de novo na floresta. O fato de ela absorver essa energia toda na superfície e liberar em altitude, onde condensam as nuvens, produz circulação atmosférica. A floresta gera uma bomba que puxa o vento do oceano para dentro da terra. Chega este ar cheio de umidade, chove, a floresta evapora, o ar úmido continua seu caminho para dentro do continente, chove de novo. São 4 mil km até os Andes. Quando alcança os Andes, ainda está carregado de umidade, bate na cordilheira, desce e vai irrigar as plantações de soja do Centro-Oeste, Sudeste, Sul e segue. Estudos mostram que nas regiões com floresta, a chuva continua igual por 2 mil km. Nas regiões onde foi tirada, lá para dentro do continente é deserto. As primeiras consequências do desmatamento já estão disponíveis. O Rio Grande do Sul já está perdendo safras. Se desmatarmos e enfraquecermos a bomba, a região toda vai secar, porque é seu destino natural.




A Amazônia, então, é fundamental para a agricultura?

Está se descobrindo que a floresta é dez vezes mais importante do que se imaginava. Tem outros fatores, também: a floresta faz chover. Essa foi uma descoberta fantástica do projeto LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia). Gotas precisam de alguma coisa sólida para se formarem, é fácil perceber quando se tira uma garrafa de refrigerante da geladeira e formam-se gotinhas em volta. A floresta emite vapores orgânicos para a atmosfera, que funcionam como sementes de nuvens. Mas precisa ser a quantidade certa para chover, se tiver demais não chove. A fumaça das queimadas introduz partículas demais na atmosfera, seca as nuvens e elas não chovem. Durante o período seco, das queimadas, a floresta sempre mantinha uma chuvinha que a deixava úmida e não-inflamável. Agora passam dois meses sem chover. A floresta começa a ficar muito seca e o fogo entra por ela. As árvores da Amazônia, diferente do Cerrado, não têm resistência ao fogo. Um fogo bobo mata todas as árvores que têm raízes rasas, e aquela floresta está condenada. Existem árvores imensas sendo destruídas assim.

Então é um mito que a Amazônia é muito forte?

É forte quando o regime de chuvas está perfeito, mas com fogo, correntão e motosserra fica difícil. Em Tocantins, está dando 40 graus. No Pará e no Norte do Mato Grosso, registramos temperaturas muito altas. Cuiabá é quentíssima. Já está em curso um processo que a gente não sabe se é sem volta e temos que acabar com a hipocrisia que acende esse debate. Não é para parar com o desmate em 2015. Era para parar ontem, zero, nenhuma árvore mais derrubada. Temos que replantar a floresta.

O sr. faz uma espécie de militância científica?

Foi o efeito da floresta no meu espírito. Eu me senti muito frustrado com tudo o que vivenciei na Amazônia. Tive uma fase de militância ambientalista, depois vi que temos que ter pé no chão e não falar só "não pode". Mas, se destruirmos as florestas, vamos estourar o nosso sistema climático. A condição do sistema terrestre hoje é a de já estarmos na UTI com falência múltipla de órgãos. Isso é o aquecimento global. A queima de combustíveis fósseis tem papel importante, mas a destruição dos órgãos de manutenção do clima, florestas e oceanos é o principal fator para o descontrole global. Não adianta todos os carros virarem elétricos se continuarmos a desmatar.

Quem conhece as coisas da Amazônia?

Os povos nativos, intuitivamente. Mas são desrespeitados, não são valorizados. Temos que considerá-los um dia, se quisermos ser uma grande nação. E existe o conhecimento científico disperso em uma enorme variedade de disciplinas. Eu sou um garimpeiro de pérolas, em diferentes áreas. É isso que faço, ligo uma coisa à outra.

O senhor é otimista sobre a nossa mudança de consciência?

Não consigo ver a mudança sem passarmos, infelizmente, por uma catástrofe. Aqui, o crescimento sem controle do agronegócio está danificando o funcionamento hidrológico da América do Sul. Enquanto lá fora se fala em serviços ambientais, aqui é só agronegócio, aço, minério, assuntos do século XX. A gente só chega depois, temos mentalidade de colônia até hoje. Mas o mundo vai depender cada vez mais dos nossos serviços ambientais. O Brasil não é só grãos.




Extraído de: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=19253