quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Como construir uma nova sociedade da abundância.

Como construir uma nova sociedade da abundância. Artigo de Serge Latouche


O filósofo francês Serge Latouche foi um dos convidados internacionais do Festivalfilosofia, que ocorreu entre Modena, Carpi e Sassuolo entre os dias 14 a 16 de setembro e que teve como tema as Coisas (direção científica de Michelina Borsari). O programa incluía mais de 200 encontros e 50 lectio magistralis das quais participaram, dentre outros, Enzo Bianchi, Cacciari, Augé e Bauman.



Publicamos aqui uma parte da lectio que Latouche proferiu no dia 16 na Piazza Grande, em Modena. É assim que o estudioso volta às suas teses mais célebres como a do "decrescimento feliz".



O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 14-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelo tto.



Eis o texto.



Vivemos em uma sociedade do crescimento. Isto é, em uma sociedade dominada por uma economia que tende a se deixar absorver pelo crescimento como fim em si mesmo, objetivo primordial, senão único, da vida. Justamente por isso a sociedade do consumo é o resultado óbvio de um mundo baseado em uma tripla ausência de limites: na produção e, portanto, na extração dos recursos renováveis e não renováveis, na criação de necessidades – e, portanto, de produtos supérfluos e resíduos – e na emissão de lixo e poluição (do ar, da terra e da água).



O coração antropológico da sociedade do crescimento torna-se então a dependência dos seus membros ao consumo. O fenômeno é explicado de um lado com a própria lógica do sistema e, de outro, com um instrumento privilegiado da colonização no imaginário, a publicidade. E encontra uma explicação psicológica no jogo da necessidade e do desejo.



Para usar uma metáfora, tornamo-nos "toxicodependentes" do crescimento. Que tem muitas formas, já que a bulimia da compra – somos todos "turboconsumidores" – corresponde ao workaholism, a dependência do trabalho.



Um mecanismo que tende a produzir infelicidade porque se baseia na criação contínua de desejo. Mas o desejo, ao contrário das necessidades, não conhece a saciedade. Pois se dirige a um objeto perdido e inencontrável, dizem os psicanalistas. Sem poder encontrar o "significado perdido", ele se fixa sobre o poder, a riqueza, o sexo ou o amor, todas coisas cuja sede não conhece limites. (...)



Até por isso é preciso imaginar um novo modelo. Econômico e existencial. Assim, a redefinição da felicidade como "abundância frugal em uma sociedade solidária" corresponde à força de ruptura do projeto do decrescimento. Ela pressupõe que se saia do círculo infernal da criação ilimitada de necessidades e produtos, e da crescente frustração que ele gera, e de modo complementar de temperar o egoísmo resultante de um individualismo de massa.



Sair da sociedade de consumo é, portanto, uma necessidade, mas o projeto iconoclasta de construir uma sociedade de "abundância frugal" só pode suscitar objeções e confrontar-se com formas de resistência, independentemente dos cursos e dos percursos do decrescimento. Acima de tudo, nos perguntarão, a própria expressão "abundância frugal" não é talvez um oxímoro pior do que aquele justamente denunciado do "desenvolvimento sustentável"?



Pode-se no máximo conceber e aceitar uma "prosperidade sem crescimento", segundo a proposta do ex-conselheiro para o meio ambiente do governo trabalhista, Tim Jackson, mas uma abundância na frugalidade é realmente demais! Na verdade, enquanto permanecermos encerrados no imaginário do crescimento, só poderemos ver nisso uma insuportável provocação.



De outro lado, ao contrário, se sairmos de certas lógicas, pode ficar claro que a frugalidade é uma condição preliminar com relação a toda forma de abundância. A abundância consumista pretende gerar felicidade através da satisfação dos desejos de todos, mas isso depende de rendas distribuídas de modo desigual e, portanto, sempre insuficientes para permitir que a imensa maioria cubra as despesas básicas necessárias, principalmente quando o patrimônio natural foi dilapidado.



Indo ao oposto dessa lógica, a sociedade do decrescimento se propõe a gerar a felicidade da humanidade através da autolimitação para poder alcançar a "abundância frugal".



Como toda sociedade humana, uma sociedade do decrescimento certamente deverá organizar a produção da sua vida, isto é, utilizar de modo razoável os recursos do seu ambiente e consumi-los através dos bens materiais e dos serviços. Mas fará isso um pouco como aquelas "socied ades da abundância" descrita pelos antropólogo Marshall Salhins, que ignoram a lógica viciosa da raridade das necessidades, do cálculo econômico. Esses fundamentos imaginários da instituição da economia devem ser postos em discussão.



Jean Baudrillard havia visto isso muito bem em seu tempo, quando disse que "uma das contradições do crescimento é que, ao mesmo tempo, ele produz bens e necessidades, mas não os produz no mesmo ritmo". O resultado é o que ele chama de uma "pauperização psicológica", um estado de insatisfação generalizada, que define, ele afirma, "a sociedade do crescimento como o contrário de uma sociedade da abundância". A verdadeira pobreza está, de fato, na perda da autonomia e na dependência.



Um provérbio dos nativos norte-americanos explica bem o conceito: "Ser dependente significa ser pobre; ser independente significa aceitar não enriquecer". Sejamos, portanto, pobres, ou mai s exatamente miseráveis, nós que somos prisioneiros de tantas próteses. A frugalidade reencontrada permite precisamente que se reconstrua uma sociedade da abundância, com base no que Ivan Illich chamava de "subsistência moderna". Ou seja, "o modo de viver em uma economia pós-industrial, dentro da qual as pessoas são capazes de reduzir a sua dependência do mercado e chegaram a isso protegendo – através de instrumentos políticos – uma infraestrutura em que as técnicas e os instrumentos servem, em primeiro lugar, pra criar valores de uso não quantificados e não quantificáveis por parte dos fabricantes de necessidades profissionais".



O crescimento do bem-estar, portanto, é a via mestra do decrescimento, porque, sendo felizes, somos menos suscetíveis à propaganda e à compulsividade do desejo.



Muitas dessas opções implicam uma mudança da nossa atitude, também com relação à natureza. Ainda me lembro da minha primeira laranja, encontrada na minha meia no Natal, no fim da guerra. Também me lembro, alguns anos mais tarde, dos pimeiros cubos de gelo que um vizinho rico que tinha uma geladeira nos trazia nas noites de verão e que nós mordíamos com prazer como se fossem guloseimas. Uma falsa abundância comercial destruiu a nossa capacidade de nos maravilharmos diante dos dons da natureza (ou da engenhosidade humana que transforma esses dons). Reencontrar essa capacidade suscetível de desenvolver uma atitude de fidelidade e de reconhecimento com relação à mãe Terra, ou mesmo uma certa nostalgia é a condição de sucesso do projeto de construção de uma sociedade do decrescimento sereno, assim como a condiç ão necessária para evitar o destino funesto de uma obsolescência programada da humanidade.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Prosperidade com ou sem crescimento

Prosperidade com ou sem crescimento




"Face à realidade mundial mudada, a questão é: como produzir, respeitando os limites natureza, os seres vivos, os humanos e abrindo-se ao Transcendente?", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.



Segundo ele, "na resposta a esta questão se decide se há prosperidade sem crescimento para os países desenvolvidos e prosperidade com crescimento para os pobres e emergentes".



Eis o artigo.



A crise ecológico-social que se espraia em todos os países está nos obrigando a repensar o crescimento e o desenvolvimento como ocorreu na Rio+20. Sentimos empiricamente os limites da Terra. Os modelos até agora vigentes se mostram insustentáveis.



Por esta razão, muitos analistas afirmam: os países desenvolvidos devem superar o fetiche do desenvolvimento/crescimento sustentável a todo custo. Eles não o precisam porque conseguiram praticamente todo o necessário para uma vida decente e liberta de necessidades. Para eles, no lugar do crescimento/desenvolvimento cabe cobrar uma visão ecológico-social: a prosperidade sem crescimento (melhorar a qualidade de vida, a educação, os bens intangíveis). Ao contrário, os países pobres e emergentes precisam de prosperidade com crescimento. Eles tem a urgência de crescer materialmente para satisfazer as necessidades de suas populações empobrecidas (80% da humanidade).



Não é mais sensato perseguir o propósito central do pensamento econômico industrialista/capitalista/consumista que se perguntava: como ganhar mais? Ele supunha a dominação da natureza em vista do benefício econômico.



Agora face à realidade mundial mudada, a questão é outra: como produzir, respeitando os limites natureza, os seres vivos, os humanos e abrindo-se ao Transcendente?



Na resposta a esta questão se decide se há prosperidade sem crescimento para os países desenvolvidos e prosperidade com crescimento para os pobres e emergentes.



Para compreendermos melhor esta equação é ilustrativo distinguir quatro tipos de capital: o natural, o material, o humano e o espiritual. É na articulação destes quatro que se gera a prosperidade com ou sem crescimento. O capital natural é formado pelos bens e serviços que a natureza gratuitamente oferece. O capital material é aquele construído pelo trabalho humano. O vigente foi alcançado, geralmente, sob condições de exploração da força de trabalho e de degradação da natureza. O capital humano é constituído pela cultura, as artes, as visões de mundo, a cooperação, realidades pertencentes à essência da vida humana. Aqui importa reconhecer que o capital material submeteu o capital humano a constrangimentos pois fez dos bens culturais também mercadoria. Como denunciou recentemente Davi Yanomami, xamã e cacique, num livro lançado na França sob o titulo A Queda do céu: “vocês brancos, são o povo da mercadoria, o povo que não escuta a natureza porque só se interessa por vantagens econômicas”(veja o site desinformemonos.org).



O mesmo se deve dizer do capital espiritual. Ele pertence também à natureza do ser humano que se pergunta pelo sentido da vida e do universo, o que podemos esperar para além da morte, os valores de excelência como o amor, a amizade, a compaixão e a abertura ao Transcendente. Mas devido a predominância do material, o espiritual se encontra anêmico e não pôde ainda mostrar toda sua capacidade de transformação e de criação de equilíbrio e de sustentabilidade.



O desafio que se apresenta hoje é: como passar do capital material ao capital humano e espiritual? Logicamente, o humano e o espiritual não dispensam o capital material. Precisamos de certo crescimento para garantir minimamente a subsistência material da vida. Um cadáver não pensa nem reza.



No entanto, não podemos nos restringir ao crescimento com prosperidade porque ele não é um fim em si mesmo. Ele se ordena ao desenvolvimento integral do ser humano.



Modernamente, foi Amartya Sen, indiano e prêmio Nobel de economia de 1998, quem melhor nos ajudou a compreender o que seja o desenvolvimento integral, capaz de ser sustentável e trazer prosperidade. O título de seu livro já define a tese central: Desenvolvimento como liberdade (Companhia das Letras 2001). Ele se coloca no coração do capital humano ao definir o desenvolvimento como “o processo de expansão das liberdades substantivas das pessoas ”(p. 336), as de modelar o seu destino, as de definir sua profissão, as de atender seus anseios fundamentais de reconhecimento e dignidade e outras.



O brasileiro Marcos Arruda, economista e educador, apresentou também um projeto de educação transformadora a partir da práxis e como exercício democrático de todas as liberdades (veja Educação para uma economia do amor: educação da práxis e economia solidária, Idéias e Letras 2009).



Não se trata apenas de atender à nutrição e à saúde, condições de base para qualquer prosperidade mas o decisivo reside em transformar o ser humano. Para Amarthya Sen e para Arruda são fundamentais para isso a educação e a democracia participativa. A educação não para ser sequestrada como um item de mercado (professionalização), mas como a forma de fazer desabrochar e desenvolver as potencialidades e capacidades do ser humano, cuja “vocação ontológica e histórica é ser mais, o que implica um superar-se, um ir além de si mesmo, um ativar os potenciais latentes em seu ser” (Arruda, Educação para uma economia do amor,103).



Crescimento/desenvolvimento que visam a prosperidade significam então a ampliação das oportunidades de modelar a vida e dar-lhe um rumo. O ser humano se descobre um ser utópico vale dizer, um ser sempre em construção, habitado por um sem número de potencialidades. Criar as condições para que elas possam vir à tona e sejam implementadas, eis o propósito do desenvolvimento humano como prosperidade.



Trata-se de hum anizar o humano. A serviço deste propósito estão os valores ético-espirituais, as ciências, as tecnologias enossos modos de produção. A forma política mais adequada para propiciar o desenvolvimento humano sustentável e próspero é, segundo Sen e Arruda, junto com a educação, a democracia participativa. Todos devem sentir-se incluídos para, juntos, construir o bem comum.



Esse capital humano e espiritual quanto mais se usa mais cresce, ao contrario do capital material que quanto mais se usa mais decresce. A crise atual nos convida a buscar esta direção.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Os custos pesados do trivial variado

Os custos pesados do trivial variado


"Porque não temos uma legislação adequada para cada bioma, como tanto pedia o professor Aziz Ab'Saber: como regular da mesma forma a beira-rio na Amazônia, onde 20% das terras são alagadas ou alagáveis, e a de terras do Semiárido, ou do Cerrado, ou do Pantanal?", pergunta Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 26-10-2012.



Eis o artigo.



É quase inacreditável, mas o próprio ministro interino de Minas e Energia admite (Estado, 23/10), após apagões, que "o sistema elétrico do Distrito Federal não é confiável". Se não é confiável lá na capital da República, sede do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em mais alto nível, ao lado de centenas de órgãos e instituições, onde o será? (No momento em que estas linhas estão sendo escritas, em Goiânia, começa mais um dos blecautes que acompanham chuvas; segue-se com bateria de computador e luz de velas.)



A informação sobrevém à de que "a seca levou o Operador Nacional do Sistema Elétrico a acionar as usinas térmicas a óleo combustível" (poluentes). E à de que 32 parques eólicos (não poluentes) estão prontos, mas não podem operar e fornecer energia porque as linhas para ligá-los às redes de transmissão não foram instaladas (19/10). E este ano já aconteceram 63 amplos "apagões" (21/10). Ainda assim, só planejamos multiplicar a energia eólica (que é competitiva com a das hidrelétricas) por quatro, passando de 2 GW para 8 GW até 2015. No mundo, calcula-se que essa forma de energia possa chegar até a 18 trilhões de watts (FEA-USP, 23/10), como diz o livro Energia Eólica, coordenado pelo professor José Eli da Veiga. Já a energia solar aumentou 20% em uma década. Melhor passar a outro assunto, neste trivial variado, para não correr o risco de entrar também pelo imbróglio das concessões de hidrelétricas.



E como aflora o tema das energias poluentes, pode-se mencionar a aflição dos participantes de uma discussão sobre respostas das cidades aos desastres climáticos - promovido em Brasília pelo Urban Environment -, diante das informações de que é insignificante a atuação do poder no Brasil, um dos países que mais sofrem com "eventos extremos". Mesmo sabendo que neste momento temos mais de mil municípios do Semiárido sofrendo com a maior seca em 50 anos. Com 1,7 milhão de pessoas em São Paulo vivendo em áreas de risco ou inadequadas, 400 mil ocupando áreas de preservação permanente à beira de reservatórios. No Rio de Janeiro, mais de 3 milhões em 2.500 favelas. A Amazônia e o Extremo Sul enfrentando secas devastadoras e inundações alternadas.



Adiante, no trivial, para encontrar a informação de que 50% das áreas mais importantes para a biodiversidade no Brasil (dono de pelo menos 13% do total mundial) não têm proteção adequada. Na reunião da respectiva convenção, encerrada na semana passada na Índia, a visão dos especialistas foi de que é preciso multiplicar os investimentos na área no mundo, chegar a pelo menos US$ 200 bilhões - mas só foram aprovados US$ 5 bilhões anuais, que poderão ser US$ 10 bilhões a partir de 2015. O WWF acha que seriam necessários US$ 200 bilhões anuais. Bráulio Dias, o brasileiro que dirige a convenção, pensa que poderiam ser US$ 600 bilhões.



E tomaram-se decisões importantes ali, como a de ratificar as metas convencionadas em Nagoya (2010), de proteger pelo menos 17% das áreas terrestres e 10% das áreas oceânicas importantes para a biodiversidade (o Brasil protege 16,8%, em termos legais, de áreas terrestres, mas só 1,5% de áreas marinhas). Muito importante também, na Índia, a decisão de incluir nas avaliações de impactos ambientais obras de infraestrutura e outros projetos, inclusive em áreas costeiras.



Por aí se entra no trivial estampado pela comunicação no capítulo dos custos "ambientais" ocultos. E pode-se começar pela notícia de que o Ministério Público de São Paulo está exigindo na Justiça que a empresa de saneamento pague R$ 11,5 bilhões pela poluição no Rio Tietê provocada pelo despejo de esgotos sem tratamento. Pode-se ir longe, já que perto de 40% dos domicílios brasileiros nem sequer dispõem de coleta de esgotos, só uns 30% dos esgotos coletados recebem algum tratamento e os não tratados vão para os rios. Mas só 4% dos municípios cumpriram no prazo a Lei do Saneamento, que os obriga a fazer planos diretores para a área. E nos oito anos do governo Lula só foram aplicados R$ 26,5 bilhões dos R$ 51,6 bilhões previstos para a área (Instituto Trata Brasil, 14/1/2011).



Também pela senda dos custos ocultos se chega ao tema dos resíduos, do lixo, do qual ninguém quer ouvir falar - cidadãos e empresas. Todo mundo acha que esse é um custo que "cabe ao Estado", seja qual for a quantidade que cada um produz e sua especificidade (tóxico, eletrônico, orgânico, seco, resíduos de construção, etc.). Só de lixo domiciliar são 220 mil toneladas diárias (mais de um quilo por pessoa), que, ao custo médio de R$ 50 por tonelada coletada, significam R$ 11 milhões diários, mais de R$ 4 bilhões anuais. Fora o custo dos aterros. E o desperdício, pois 90% do que está no lixo domiciliar, levado para aterros (que também têm custos de implantação e operacionais), poderia ser reaproveitado ou reciclado.



E os custos no sistema público de saúde gerados pela poluição do ar produzida por veículos? E os custos de implantação/manutenção das infraestruturas de transporte? E custos como o da transposição das águas do Rio São Francisco, que em cinco anos passaram de R$ 4,6 bilhões para R$ 8,2 bilhões e no ano que vem aumentarão pelo menos mais 18% (Rematlântico, 23/10)?



Se ainda fosse pouco, vai-se ficar também com os custos do desmatamento legal ou ilegal, que - qualquer que seja o resultado final da disputa em torno do Código Florestal - vão continuar ocorrendo. Porque a fiscalização é quase inexistente (repita-se: o Ministério do Meio Ambiente tem menos de 1% do Orçamento federal e parte desses recursos é contingenciada todo ano). Porque não temos uma legislação adequada para cada bioma, como tanto pedia o professor Aziz Ab'Saber: como regular da mesma forma a beira-rio na Amazônia, onde 20% das terras são alagadas ou alagáveis, e a de terras do Semiárido, ou do Cerrado, ou do Pantanal?



Melhorar parar com esse trivial variado duro de roer.



sexta-feira, 26 de outubro de 2012

As mazelas do Código Florestal

Fato e opinião


"É fato que o agronegócio (cuja importância na macroeconomia e no comércio internacional ninguém nega) não é que coloca "comida na mesa" do povo brasileiro, que 60% da cesta básica é garantida pela agricultura familiar, também responsável por 7 em cada 10 empregos no campo?", pergunta Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 26-10-2012.



Segundo ela, "se assim for, as reformas no código perdem a justificativa de defender os pequenos agricultores e, de fato, atendem ao interesse de grandes empresas. Mesmo porque, entre as mudanças feitas, há fatos que vêm sendo omitidos".



Eis o artigo.



Há um pensamento arrogante, derivado de um positivismo rudimentar, que prega a superioridade dos fatos objetivos sobre as opiniões, consideradas meras suposições subjetivas. Aí esconde-se uma esperteza: os fatos são cuidadosamente selecionados para comprovar uma opinião já formada com base em interesses, estes, sim, muito objetivos.



Os que contrariam tais interesses e contestam a escolha dos fatos são levianamente desqualificados como ideológicos e radicais. No debate sobre o ex-Código Florestal, cabe perguntar aos idólatras dos "fatos":



1) É fato que o agronegócio (cuja importância na macroeconomia e no comércio internacional ninguém nega) não é que coloca "comida na mesa" do povo brasileiro, que 60% da cesta básica é garantida pela agricultura familiar, também responsável por 7 em cada 10 empregos no campo?



2) É fato que existem mais de 140 milhões de hectares de áreas degradadas, improdutivas ou com baixíssima produtividade e que é possível dobrar a produção agrícola e o rebanho bovino sem desmatar novas áreas, bastando agregar tecnologia simples e disponível?



3) As propriedades com menos de quatro módulos fiscais (na Amazônia são 400 hectares) nem sempre coincidem com a agricultura familiar, que muitas são agregadas à pecuária ou às empresas agrícolas?



Se assim for, as reformas no código perdem a justificativa de defender os pequenos agricultores e, de fato, atendem ao interesse de grandes empresas. Mesmo porque, entre as mudanças feitas, há fatos que vêm sendo omitidos.



O art. 67 dispensa imóveis menores que quatro módulos fiscais de recuperar reserva legal desmatada até julho de 2008. Isso é anistia. O Ipea calcula que 3,9 milhões de hectares deixarão de ser recuperados.



O art. 63 abre várias exceções que anistiam desmatamento ilegal em topos de morro e encostas, e o art. 61-A oferece as mesmas bondades, dependendo do tamanho do imóvel, a quem desmatou ilegalmente margens de rios, nascentes, olhos d'água, lagos e veredas.



Quem não foi anistiado, ainda pode usar 50% de plantas exóticas (comerciais) para recuperar áreas degradadas (artigos 61-A 13 e 66, parágrafo 3º).



Nos mangues e apicuns, as áreas degradadas não serão recuperadas e novas áreas podem ser ocupadas com criação de camarões e loteamentos urbanos (art. 11-A). A mata ciliar deixa de ser contada a partir do ponto de cheia do rio e muda a definição de "topo de morro", reduzindo, em alguns casos, até 90% da área protegida.



A liberdade de pensamento é uma das maiores conquistas de nossa preciosa democracia. O código deixa de ser florestal, torna-se um sistema de concessões para a ocupação predatória de quem quer aumentar terras em vez de agregar tecnologia. Vai na contramão do século 21 e é um retrocesso.