quinta-feira, 21 de junho de 2007

Basta de mediocridade!


(*) Artigo extraído de http://www.cfh.ufsc.br/~aped/

(**) Filósofo, sociólogo e historiador, Cornelius Castoriadis também foi economista e psicanalista. "Um titã do pensamento, enorme, fora do comum" , é a opinião de Edgar Morin sobre ele. Nascido na Grécia, em 1922, instalou-se em Paris em 1945, quando criou a revista "Socialismo ou barbárie" . Em 1968, com Edgar Morin e Claude Lefort, publicou "Maio 68: a brecha" (edit. Fayard, Paris). Em 1975 aparece "L'institution imaginaire de la société" (edit. Seuil, Paris), sem dúvida sua obra mais importante. Em 1978, ele se engaja na série "Les Carrefours du labyrinthe" . Foi após a publicação de "La Montée de l'insignifiance" (edit. Seuil, Paris, 1996), que ele concedeu uma entrevista, em novembro de 1996, a Daniel Mermet - produtor do seriado "Là-bas si j'y suis" , da emissora France-Inter - na qual se baseou este texto.






Faz falta a voz de Cornelius Castoriadis, esse dissidente fundamental, nestes tempos de "não-pensamento". Ele não se acomodou numa resignação de esteta, nem mergulhou no cinismo ou nessa apatia bem nutrida que diz: "Tudo se equivale, já não há mais nada a ver e nada leva a nada." Ele denuncia uma elite política que se restringe a aplicar o integrismo neoliberal, mas ressalta também a responsabilidade do "cidadão" que, na precariedade, desiste da atividade cívica. Silenciosamente, uma formidável regressão foi tomando conta desse espaço: um não-pensar que produz essa não-sociedade, esse racismo social. Até o fim, Castoriadis buscou radicalidade: "Sou um revolucionário que defende mudanças radicais", dizia, algumas semanas antes de morrer, em dezembro de 97.
No tempo da monarquia, para chegar ao poder era necessário bajular o rei. Hoje, na nossa "pseudo- democracia", a arte de chegar ao poder está em ser fotogênico na televisão, em saber farejar a opinião pública.
É evidente que o que caracteriza o mundo contemporâneo são as crises, as contradições, as fraturas, mas aquilo que realmente me chama a atenção é a mediocridade. Tomemos a discussão entre esquerda e direita. Ela perdeu o sentido. Tanto uns como outros dizem a mesma coisa. A partir de 1983, os socialistas franceses puseram em prática uma política, depois veio Balladur e fez a mesma política; voltaram os socialistas e fizeram, com Pierre Bérégovoy, a mesma política; voltou Balladur e fez a mesma política; Chirac ganhou a eleição de 1995 dizendo: "Vou fazer diferente" e fez exatamente a mesma política.



A impotência da política



Os dirigentes políticos são impotentes. A única coisa que podem fazer é seguir a corrente, ou seja, aplicar a política ultraliberal da moda. Os socialistas não fizeram outra coisa desde que voltaram ao poder. Não se trata de políticas, mas de políticos, no sentido de politiqueiros. Gente que caça voto de toda e qualquer maneira. Não têm programa algum. O seu objetivo é permanecer no poder ou voltar ao poder e para isso são capazes de tudo.
Existe um vínculo intrínseco entre essa espécie de nulidade da política, essa transformação da política em nulidade, e a mediocridade que grassa na arte, na filosofia, na literatura. É a característica espiritual de uma época. Tudo conspira no sentido de prolongar a mediocridade.
A política é um ofício curioso. Ele pressupõe duas faculdades sem qualquer relação intrínseca. A primeira é a de chegar ao poder. Sem se chegar ao poder, de nada adianta ter as melhores idéias; e isso então implica numa arte de chegar ao poder. A segunda faculdade, é a de saber governar, quando já se está no poder.
Há milhões de cidadãos na França. Por que não seriam eles capazes de governar? Porque toda a vida política tem justamente como objetivo desensiná-los, convencê-los que existem peritos a quem se deve confiar o governo.
Nada garante que quem sabe governar sabe como fazer para chegar ao poder. No tempo da monarquia, para chegar ao poder era necessário bajular o rei, cair nas graças de Madame Pompadour. Hoje em dia, na nossa "pseudo-democracia", a arte de chegar ao poder consiste em ser fotogênico na televisão, em saber farejar a opinião pública. Digo "pseudo-democracia" porque sempre achei que a democracia dita representativa não é uma democracia de verdade. Já dizia Jean-Jacques Rousseau: os ingleses pensam que são livres porque elegem os seus representantes a cada cinco anos, mas no fundo eles só são livres um dia a cada cinco anos: o dia da eleição. Não que haja necessariamente fraude nas urnas. A eleição é trambicada porque as opções se definem previamente. Nunca se indaga ao povo quais são os assuntos sobre o quais ele quer votar. Dizem-lhe, por exemplo: "Vote a favor ou contra Maastricht" . Mas quem é que elaborou o tal tratado de Maastricht? Certamente não foi o povo.



Uma fábrica de cínicos



Há aquela frase maravilhosa de Aristóteles: "Quem é o cidadão? Cidadão é aquele que é capaz de governar e de ser governado." Há milhões de cidadãos na França. Por que não seriam eles capazes de governar? Porque toda a vida política tem justamente como objetivo desensiná-los, convencê-los que existem peritos a quem se deve confiar o governo. Existe, portanto, uma contra-educação política. Ao invés das pessoas se habituarem a exercer todo tipo de responsabilidade e a tomar iniciativas, habituam-se a seguir cegamente ou a votar nas opções que lhes são apresentadas. E como não são idiotas, as pessoas passam a acreditar cada vez menos na política, tornando-se cínicas.
E o que fizeram muitos intelectuais? Desenterraram liberalismo nu e cru do início do século XIX, tão combatido durante cento e cinqüenta anos e que teria indiscutivel- mente conduzido a sociedade à catástrofe.
Nas sociedades modernas, desde os tempos das revoluções americana (1776) e francesa (1789) e mais ou menos até o fim da segunda guerra mundial (1945), havia um vivo conflito social e político. Havia oposições, as pessoas se manifestavam sobre causas políticas. Os operários faziam greve, e nem sempre por interesses mesquinhos, corporativos. Havia grandes questões que diziam respeito a todos os assalariados. Foram lutas que marcaram os dois últimos séculos.
Observa-se, hoje, um recuo na atividade das pessoas. É um círculo vicioso. Quanto mais cresce o número de pessoas que desistem da atividade, mais os burocratas, os politiqueiros, os pretensos dirigentes, vão tomando conta do pedaço. Eles chegam com a justificativa: "Estou tomando a iniciativa porque ninguém faz nada..." E, quanto mais dominam, mais as pessoas ficam dizendo: "Não vale a pena se envolver, já tem bastante gente cuidando e, além disso, de qualquer maneira, não se pode dar jeito em nada."
O segundo motivo, vinculado ao primeiro, está na dissolução das grandes ideologias políticas - fossem elas revolucionárias ou reformistas - que queriam realmente operar mudanças na sociedade. Por mil e uma razões, essas ideologias foram desconsideradas, deixaram de corresponder às aspirações, à situação e à experiência histórica da sociedade. Um acontecimento de enormes proporções foi o colapso da URSS e do comunismo em 1991. Será que algum, entre todos os políticos de esquerda, para não dizer politiqueiros, parou para refletir sobre o que aconteceu? Por que isso aconteceu e quem soube, como diria o bobo, tirar as lições? Uma evolução desse tipo mereceria uma reflexão muito aprofundada, começando pela sua primeira fase - a acessão à monstruosidade, ao totalitarismo, ao Gulag etc. - e passando em seguida ao colapso propriamente dito; e uma conclusão sobre aquilo que um movimento que quer mudar a sociedade pode fazer, deve fazer, não deve fazer, não pode fazer. No entanto, o que temos? Nada, absolutamente nada.
Por volta de 1850, o liberalismo era uma verdadeira ideologia, porque apostava no progresso. Os liberais acreditavam que, com o progresso, ocorreria uma elevação do bem-estar econômico. Nas classes exploradas, as pessoas não ficariam ricas, mas a jornada de trabalho seria cada vez menor e o trabalho menos pesado: era esse o grande tema da época.
E o que fizeram muitos intelectuais? Desenterraram o liberalismo nu e cru do início do século XIX, combatido durante cento e cinqüenta anos, e que teria indiscutivelmente conduzido a sociedade à catástrofe. Pois, convenhamos, o velho Marx nem sempre estava errado. Se o capitalismo tivesse corrido solto, cem vezes teria desmoronado. Teria havido uma crise de superprodução a cada ano. Por que não desmoronou? Porque os trabalhadores lutaram, impuseram aumentos salariais, criaram enormes mercados de consumo interno. Impuseram reduções na jornada de trabalho que absorveram praticamente todo o desemprego tecnológico. Tem gente que estranha agora o fato de que há desemprego. Nem lembram que não houve, desde 1940, diminuição da jornada de trabalho ...
Os liberais nos garantem: "É preciso confiar no mercado." Mas os próprios estudiosos de economia refutaram essa afirmação desde a década de 30. E esses economistas não eram revolucionários nem marxistas! Eles mostraram que toda a conversa dos liberais sobre as virtudes do mercado - que garantiria o melhor investimento possível dos recursos e uma distribuição mais imparcial da renda - era um monte de aberrações. Tudo isso foi demonstrado. O que temos aí é essa grande ofensiva econômico-política das camadas governantes e dominantes - cujos símbolos estão nos nomes de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher, e até mesmo no de François Mitterrand! Que diz: "Muito bem, chega de brincadeiras! Agora, todo mundo na rua!", vamos eliminar as "gorduras ruins", como disse Juppé! "Depois, a longo prazo, vocês verão que o mercado irá garantir-lhes o bem-estar." A longo prazo... Nessa espera, fica-se na França com uma taxa oficial de desemprego de 12,5%!



A crise não é uma fatalidade



Já se falou do tipo de terrorismo do pensamento único, ou seja, do não-pensamento. Ele é realmente único no sentido de ser o primeiro tipo de pensamento que é um não-pensamento integral. Um pensamento único liberal que ninguém ousa contestar. Qual era a ideologia liberal em seus tempos áureos? Por volta de 1850, o liberalismo era uma grande ideologia, porque se acreditava no progresso. Os liberais daquele tempo pensavam que, com o progresso, ocorreria uma elevação do bem-estar econômico. Mesmo quando não havia enriquecimento, como nas classes exploradas, caminhava-se em direção à diminuição do trabalho, ou para torná-lo menos penoso: era esse o grande tema da época. Dizia Benjamin Constant: "Os operários não podem votar porque são embrutecidos pela indústria [falou sem rodeios, naquela época eles eram mais honestos!], portanto é preciso um sufrágio do tipo censitário".
O que prevalece, hoje, é a resignação, inclusive entre os representantes do liberalismo. Qual é, afinal, o grande tema do momento? "Talvez seja ruim, mas a outra alternativa seria pior." E isso intimida bastante as pessoas. Elas pensam mais ou menos assim: "Se a gente fizer muita onda, acaba indo na direção de outro Gulag."
Mais tarde, diminuiria a jornada de trabalho, viriam a alfabetização, a educação, algumas luzes, não mais as luzes subversivas do século XVIII, mas luzes que, mesmo assim, difundem-se pela sociedade. Desenvolve-se a ciência, humaniza-se a humanidade, civilizam-se as sociedades e, aos pouquinhos se irá chegando a uma sociedade onde praticamente inexistirá exploração, onde essa democracia representativa se tenderá a transformar-se numa verdadeira democracia.
Mas não deu certo! Em consequência, as pessoas não acreditam mais nessas idéias. O que prevalece, hoje, é a resignação, mesmo entre os representantes do liberalismo. Qual é, o grande argumento que se ouve agora? "Talvez seja ruim, mas a outra alternativa seria pior." E isso imobilizou um bocado de gente. Ficam dizendo, para seus botões: "Se a gente fizer muita onda, vai acabar num novo Gulag." É isso que existe por trás deste esgotamento ideológico; e dele só sairemos se uma crítica poderosa ao sistema realmente vier a ressurgir. Junto com um renascimento da atividade e da participação das pessoas.



Nova chance para as utopias



Todavia, aqui e ali já se começa a compreender que a "crise" não é uma fatalidade da modernidade à qual cada um teria que se subordinar, "se adaptar", para não ser arcaico. Já se percebem vibrações de uma retomada de atividade cívica. E aqui surge o problema do papel dos cidadãos e da competência de cada um para exercer direitos e deveres democráticos com o objetivo - doce e bela utopia - de sair do conformismo generalizado.
Para tanto, será que nos deveríamos inspirar na democracia ateniense? Quem era eleito em Atenas? Não os magistrados, que eram designados através de um sorteio ou por rotatividade. Para Aristóteles, é bom relembrar, um cidadão é aquele que é capaz de governar e de ser governado. Como todo mundo é capaz de governar, escolhe-se por sorteio. A política não é para ser feita por especialistas. Não existe ciência da política. O que há é uma opinião, a doxa dos gregos, não há episteme 1. A idéia de que não há especialistas da política e que as opiniões têm igual valor é a única justificativa razoável para o princípio da maioria. Portanto, voltando aos gregos, o povo decide e os magistrados são escolhidos por sorteio ou por rotatividade. Nas atividades especializadas - construção de estaleiros ou de templos, condução de uma guerra -, especialistas são necessários. Esses são eleitos. Eleição é exatamente isso. Eleição significa "escolha dos melhores" . E aí intervém a educação do povo. Faz-se uma primeira eleição, ocorre erro, constata-se, por exemplo, que Péricles é um deplorável estrategista militar; ora muito bem, não o reelejamos, ou revoguemos seu mandato.
A política não é para ser feita por especialistas. Não existe ciência da política. O que há é uma opinião, a doxa dos gregos, não há episteme. A idéia de que não há especialistas da política e que as opiniões têm igual valor é a única justificativa razoável para o princípio da maioria.
Mas é necessário que a doxa seja cultivada. E como se pode cultivar uma doxa que se refere ao governo? Governando. A democracia, portanto - e isto é importante -, trata da educação dos cidadãos, o que definitivamente não existe hoje em dia.



Reflexão e ação



Recentemente, uma revista francesa publicou uma estatística revelando que 60% dos deputados confessam não entender coisa alguma de economia. Deputados que a todo momento estão decidindo! Na verdade, esses deputados, assim como os ministros, dependem dos seus técnicos. Têm seus especialistas, mas também têm preconceitos ou preferências. Quem acompanha de perto o funcionamento de um governo, ou de uma grande repartição burocrática, pode ver que os dirigentes confiam em especialistas, mas escolhem, entre estes, os que concordam com suas opiniões. É um jogo completamente imbecil, e é assim que somos governados.
As instituições dos dias de hoje enxotam, afastam, dissuadem as pessoas de participar. E, no entanto, em matéria de política, a melhor educação é a participação ativa - o que exige uma transformação das instituições de modo que essa participação passe a ser permitida e incentivada.
A educação deveria ser muito mais voltada para a coisa comum. Seria preciso compreender os mecanismos da economia, da sociedade, da política etc. As crianças se chateiam nas aulas de história, no entanto, aprender história é algo apaixonante. Seria preciso ensinar uma autêntica anatomia da sociedade contemporânea, como ela é, como funciona. Aprender a se defender das crenças, das ideologias.
A sociedade capitalista tende ao suicídio, pois não aprendeu a se autolimitar. E uma sociedade realmente livre, uma sociedade autônoma, deve saber fazê-lo: deve saber que há coisas que não podem ser feitas, ou que não se deve nem tentar fazer, ou que não devem ser desejadas.
Aristóteles dizia: "O homem é um animal que deseja o saber." Não é verdade. O homem é um animal que deseja a crença, a certeza de uma crença; daí a força e a influência das religiões, das ideologias políticas. O movimento operário tinha, no começo, uma postura muito crítica . Observe-se a segunda estrofe da Internacional: "Messias, Deus, chefes supremos: Nada esperamos de nenhum!" - nada de religião, nada de Lenin!
Hoje em dia, mesmo havendo uma parcela que continua procurando a fé, as pessoas tornaram-se muito mais críticas. Isso é muito importante. A "cientologia", as seitas ou o fundamentalismo são fortes em outros países, não no nosso, ou nem tanto. As pessoas tornaram-se muito mais céticas. E isso as inibe de agir.
Em seu discurso ao povo de Atenas, dizia Péricles: "Nós somos os únicos para quem a reflexão não inibe a ação." Admirável! E acrescenta: "Os outros povos, ou não refletem - e são temerários, cometem absurdos - ou então, por refletirem, acabam nada fazendo, pois ficam dizendo: há o discurso e há o discurso contrário." Atualmente atravessamos uma fase de inibição, sem dúvida. Gato escaldado tem medo de água fria... Não há carência de grandes discursos, há carência de discursos verdadeiros.



Os desejos e os limites



Seja como for, há um desejo irredutível. Nas sociedades antigas ou tradicionais, não há um desejo irredutível, esse desejo transformado pela socialização. Essas sociedades são sociedades de repetição. Lá se diz, por exemplo: "Tomarás tua mulher em tal clã ou tal família. Terás uma única mulher em tua vida. Se tens duas mulheres, ou dois maridos, será em segredo, será uma transgressão. Terás uma posição social, essa aqui e não uma outra."
Há uma frase maravilhosa de Tucídides: "É preciso escolher: descansar ou ser livre". Liberdade é atividade. E a liberdade é uma atividade que ao mesmo tempo se autolimita, ou seja, sabe que pode fazer tudo, mas sabe que não deve fazer tudo. Esse é o grande problema da democracia e do individualismo.
Ora, há hoje em dia uma liberação, em todos os sentidos da palavra, com relação às restrições impostas pela socialização dos indivíduos. Entramos numa época de ilimitação e é nisso que temos o desejo de infinito. Essa liberação é, num sentido, uma grande conquista. Não se trata de voltar às sociedades de repetição. Mas também é preciso - e esse é um tema da maior importância - aprender a se autolimitar, individual e coletivamente. A sociedade capitalista é uma sociedade que caminha para o abismo, sob todos os pontos de vista, por não saber se autolimitar. E uma sociedade realmente livre, uma sociedade autônoma, deve saber se autolimitar, saber que há coisas que não se pode fazer, que não se deve nem tentar fazer, ou que não se deve desejar.



Descansar ou ser livres



Vivemos neste planeta que estamos destruindo - e enquanto pronuncio essa frase, tenho em mente maravilhas. Penso no mar Egeu, nas montanhas cheias de neve, na vista sobre o Pacífico que se tem num cantinho da Austrália, penso em Bali, nas Índias, nos campos da França, que estamos transformando em desertos. Tantas maravilhas em vias de extinção. Penso que deveríamos ser os jardineiros deste planeta. Teríamos que cultivá-lo. Cultivá-lo como ele é e pelo que é. E, a partir daí, encontrar nosso lugar, nossa vida. A tarefa é enorme. Poderia absorver grande parte do lazer das pessoas, liberadas de um trabalho imbecil, produtivo, repetitivo etc. Só que isto está muito longe não só do atual sistema quanto da imaginação dominante. O imaginário da nossa época é o da expansão ilimitada, é a acumulação de bugingangas: uma tevê em cada quarto, um micro em cada quarto... isso é que é preciso destruir. É nesse imaginário que o sistema se apóia.
A liberdade é difícil. Porque é muito fácil a gente se deixar levar. O homem é um animal preguiçoso. Há uma frase maravilhosa de Tucídides: "É preciso escolher: descansar ou ser livre". E Péricles dizia, ao povo de Atenas: "Se quiserem ser livres, vocês têm que trabalhar." Não podem descansar. Não podem ficar plantados na frente da tevê. Vocês não são livres quando estão na frente da tevê. Voces se imaginam livres ao apertarem como idiotas os botões do controle remoto, mas vocês não são livres, isso é uma falsa liberdade. Liberdade é atividade. E a liberdade é uma atividade que ao mesmo tempo se autolimita, ou seja, sabe que pode fazer tudo, mas sabe que não deve fazer tudo. Esse é o grande problema da democracia e do individualismo.


Filósofo, sociólogo e historiador, Cornelius Castoriadis também foi economista e psicanalista. "Um titã do pensamento, enorme, fora do comum" , é a opinião de Edgar Morin sobre ele. Nascido na Grécia, em 1922, instalou-se em Paris em 1945, quando criou a revista "Socialismo ou barbárie" . Em 1968, com Edgar Morin e Claude Lefort, publicou "Maio 68: a brecha" (edit. Fayard, Paris). Em 1975 aparece "L'institution imaginaire de la société" (edit. Seuil, Paris), sem dúvida sua obra mais importante. Em 1978, ele se engaja na série "Les Carrefours du labyrinthe" . Foi após a publicação de "La Montée de l'insignifiance" (edit. Seuil, Paris, 1996), que ele concedeu uma entrevista, em novembro de 1996, a Daniel Mermet - produtor do seriado "Là-bas si j'y suis" , da emissora France-Inter - na qual se baseou este texto. [voltar]
1 O saber teoricamente fundamentado, ciência. [voltar]