quarta-feira, 31 de julho de 2013

Manifesto Convivialista

“O convivialismo, uma ideia nova para evitar a catástrofe”. Entrevista com Alain Caillé

“Jamais a humanidade dispôs de tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas (...) Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade”. Essas são as primeiras frases do Manifesto do Convivialismo, uma publicação de 40 páginas, mas de grande ambição intelectual diante desse sentimento de urgência.



Na origem está a vontade de Alain Caillé, sociólogo fundador do MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), que conseguiu reunir e fazer trabalhar juntos um grupo de 64 pesquisadores e universitários procedentes do mundo inteiro, de sensibilidade altermundista, ecologista, ou oriundos do cristianismo social (Edgar Morin, Susan George,Patrick Viveret, Serge Latouche, Elena Lassida, Jean Baptiste de Foucauld, Jean Pierre Dupuy, Jean Claude Guillebaud...). O resultado é a elaboração de uma nova base doutrinal filosófica, o convivialismo, para responder às quatro grandes crises – moral, política, econômica e ecológica – vividas pelas nossas sociedades nesse início do século XXI.



A entrevista é de Olivier Nouaillas e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 17-06-2013. A tradução é do Cepat.



Eis a entrevista.



Qual é a gênese desse Manifesto Convivialista?



O ponto de partida é um colóquio organizado em julho de 2011 em Tóquio em torno da herança de Ivan Illich. Havia especialmente três convidados franceses: Serge Latouche, que é um promotor do decrescimento, Patrick Viveret, que trabalhou muito sobre os novos indicadores de riqueza, e eu. E para minha grande surpresa, embora eu tenha muitas reticências em relação aos dois primeiros conceitos – especialmente o decrescimento que é uma palavra inutil mente desmancha-prazeres –, nós fomos capazes de ultrapassar as nossas divergências intelectuais para nos colocar de acordo sobre uma constatação: não podemos mais fundamentar o projeto democrático sobre uma perspectiva de crescimento infinito. A humanidade não sobreviverá a ele.



A questão que se coloca então e para a qual temos que encontrar um novo conceito é como, apesar das suas imperfeições, a palavra convivialismo se impôs a nós. Depois, no meu retorno à França, decidi escrever um livro Rumo a um manifesto do convivialismoreunindo pessoas – cerca de 40 nomes que eu gostaria de associar a este projeto. E para minha grande surpresa, todos eles aceitaram participar do projeto, sem nenhum confronto narcísico. Como se houvesse um sentimento de urgência diante do estado do mundo. Depois, com reuniões de trabalho em Paris e intercâmbios pela internet com outros amigos que se encontram nos Estados Unidos, no Japão e no México, chegamos a esse manifesto, um texto curto de 40 páginas, publicado pela editora Le Bord de l’Eau e que lançamos em Paris no dia 19 de junho. Eu estou muito orgulhoso com esse resultado, pois creio que soubemos manter um equilíbrio entre duas extremidades possíveis: o catastrofismo (o decrescimento) e uma versão irênica (o amor universal).



Você pode dar uma definição simples do convivialismo?



A palavra pode ser problemática. Por outro lado, quando dois terços dos participantes, se reuniram, dissemos: “Estamos de acordo em trabalhar juntos, mas não em relação ao termo que se utilizaria”. Certamente, porque compreendia, por um lado, a palavra convivialidade e, por outro, havia um “ismo”. Mas, como não encontramos uma palavra melhor, voltamos ao ponto de partida. Eu defendia muito o “ismo” por uma razão fundamental: nós temos 36.000 soluções de políticas econômicas, financeiras, ecológicas para propor, mas o que nos falta hoje é uma base doutrinal de filosofia política comum. E para representar isso, nós precisamos de uma palavra em “ismo” que seja agregadora. Daí esta definição que propomos de convivialismo, segundo os trabalhos de Marcel Mauss: como conviver sem se massacrar? É uma questão prévia, central em todas as sociedades humanas e indispensável para colocar antes daquela de saber qual seria o bom regime político (monarquia, república, império, socialismo, etc.), em relação ao qual cada um pode ter suas preferências.



A constatação do mundo que vocês fazem é inquietante. Vocês evocam especialmente as “dinâmicas mortíferas”, e inclusive que “a questão da sobrevivência física e moral da humanidade está colocada”. Por que tamanho pessimismo?



Havia uma enorme inquietação em nosso grupo. Embora eu esteja cheio de otimismo, é preciso levar a sério a versão pessimista. Seria à maneira de Jean Pierre Dupuy, que afirma que “o único meio de evitar a catástrofe é estar seguro de que ela virá”. Quando se vê os riscos nucleares pós Tchernobyl e Fukushima, o esgotamento dos recursos naturais ou ainda as ameaças de aquecimento climático, só podemos estar inquietos.



Das quatro crises que o Manifesto evoca – moral, política, econômica e ecológica – qual lhe parece a mais grave?



A mais grave é, certamente, a crise moral, porque sua resolução condiciona todas as outras. Tomemos as discussões sobre o desenvolvimento sustentável; podemos imaginar todos os tipos de soluções técnicas, mas se você não tem homens e instituições confiáveis para colocá-las em prática, nada acontecerá. E, portanto, anterior a um verdadeiro desenvolvimento sustentável é uma democracia duradoura que, ela mesma, tem necessidade de um alicerce, de uma base ética duradoura. É uma condição para que os políticos não caiam na hubris, na desmedida. E a tradução concreta e visível desta desmedida é a corrupção, seja financeira, seja pelo poder. Ela explode em os cantos do mundo. Especialmente na França com a acumulação dos negócios (Cahuzac, Tapie, Guéant) que atingem tanto a direita como a esquerda. Como imaginar um instante em que podemos salvar a democracia, se, de um lado, não há mais crescimento econômico e se, do outro, todas as classes dominantes estão corrompidas? Esta corrupção está estreitamente ligada aos paraísos fiscais e a uma economia criminosa, às vezes constituída de verdadeiras máfias, como no Oriente Médio, na Ásia e na Rússia.



Pelo contrário, vocês evocam uma infinidade de iniciativas alternativas – do slow food à sobriedade voluntária, passando pelo cuidado ou pelo comércio justo. Mas elas têm peso diante de um sistema econômico mundializado?



Todas essas iniciativas aparecem de forma dispersa e não chegam a explicitar o que têm em comum. Ora, a hipótese central do Manifesto é que nós não chegaremos a inverter uma relação de forças com um neoliberalismo rentista e especulativo, caso não encontrarmos uma forma de unidade. As cúpulas altermundistas tinham esta vontade, mas elas não tiveram sucesso nisso. Porque elas permaneceram na justaposição de visões ético-ideológicas de uns e de outros, mas isso faz um patchwork insuficiente.



Com efeito, o principal problema que se coloca é um problema de filosofia política. Nós somos herdeiros das grandes filosofias políticas da modernidade: o liberalismo e o socialismo, com suas derivações que são o anarquismo e o comunismo. Estas quatro doutrinas não estão mais à altura dos atuais problemas. Porque todas elas repousam sobre uma visão errada de ser humano, visto como um “homo economicus”. As quatro doutrinas, com efeito, tinham em comum a ideia de que o principal problema da humanidade era a falta de meios para a satisfação das necessidades materiais. Que o homem é um ser de necessidades movido pela escassez e que, portanto, a solução primária é o crescimento. Ora, esta visão antropológica é falsa – os homens não são seres de necessidades, mas de desejos – e a solução proposta tornou-se impossível de achar, inclusive perigosa: o crescimento contínuo, permanente do PIB não pode mais ser uma solução. Primeiramente, porque já não é mais uma realidade nos países ricos – nós não teremos mais as taxas de crescimento dos “Trinta Gloriosos” – e, em segundo lugar, nos países emergentes vai diminuir e não será mais ecologicamente sustentável.



Quais podem ser os contornos de uma “alternativa ao modo de existência atual”? Vocês apontam algumas pistas, como a instauração de uma renda máxima ou a relocalização da produção nos territórios...



A solução está em pesquisar do lado desta velha ideia dos economistas ingleses do século XIX, como John Stuart Mill, a saber, que as sociedades tendem para um estado estacionário. Mas, hoje, tratar-se-á, com todas as invenções tecnológicas de que nos beneficiamos (na informática, na medicina, etc.) de um estado estacionário dinâmico, uma espécie de “prosperidade sem crescimento”, termo que empresto de Tim Jackson, outro economista inglês, desta vez contemporâneo.



Esta sociedade estacionária dinâmica deverá ser relocalizada, reterritorializada, permanecendo aberta ao mundo inteiro. Há uma reabilitação a fazer aqui e agora, porque nada deve ser comandado a 20.000 quilômetros de onde se vive. E se quisermos colocar no centro do projeto a luta contra a desmedida e a corrupção, isso implica igualmente duas outras medidas simples de compreender, mas mais difíceis de realizar: uma renda mínima e uma renda máxima. Para nós, tanto a extrema pobreza como a extrema riqueza são ilegítimas. Pois, o Manifesto do Convivialismo se assenta sobre uma forte vontade de justiça social.







segunda-feira, 29 de julho de 2013

Monitoramento digital é intolerável, afirma Stallman


Celebridade da computação, Richard Stallman chegou ao Fórum Internacional do Software Livre (Fisl), em Porto Alegre, deixando o mínimo de rastros possível. O pai do sistema GNU/Linux usa cartão de crédito apenas para comprar passagens de avião, não tem celular e proíbe que tirem fotos suas para postar no Facebook. O americano formado por Harvard e MIT parece ranzinza, mas contou até piadas em português.

A entrevista é de Paula Minozzo e publicada no jornal Zero Hora, 06-07-2013.

Eis a entrevista.

Como o senhor vê a inclusão digital, que permite mais pessoas com acesso à internet?

Eu não acho que inclusão digital seja necessariamente boa. Depende o tipo de sociedade digital em que vivemos. Se é uma sociedade livre, que respeita nossa liberdade, então é boa. Se é injusta e tirânica, como a que Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos proporciona, o povo está melhor sem inclusão digital. O que deveríamos fazer é lutar por uma sociedade digital livre.

Software livre seria a saída?

Não apenas o software livre. Uma das ameaças à nossa liberdade é o software que controla os usuários, ou seja, software que não é livre. Podemos nos livrar desse problema, porém há outras ameaças. O constante monitoramento digital de certos países é intolerável. As pessoas não deveriam confiar dados pessoais aos sites. As pessoas não deveriam usarsites que exigem essas informações. Eu uso internet no computador de outras pessoas, para que minha navegação não seja relacionada a mim.

O senhor tem celular?

Eu não tenho um aparelho móvel porque ele rastreia você.

Então a internet não seria um meio tão democrático assim?

Democrático é um termo ambíguo, e eu não tenho certeza do que significa, mas de alguma maneira, se você publicar conteúdo em alguns sites, você pode receber atenção sem ser rico ou famoso, mesmo que eu saiba que empresas como Microsoft pagam pessoas para falar bem dos produtos deles na internet. Há pessoas usando a internet de forma errada e, ao mesmo tempo, empresas coletam muitos dados sobre as pessoas que se relacionam com elas.

Toda empresa faz isso?

Angry Birds (jogo para smartphones), por exemplo, coleta informação sobre a localização de usuários, e claro, é um software que não é livre. Mas o que você esperava? É claro que é mal-intencionado. Os programas mais vendidos são conhecidos por terem funções maliciosas. Há três funções maliciosas: restringir o usuário (as chamadas algemas digitais), a espionagem e os backdoors (falhas no sistema que permitem entradas sem conhecimento do usuário). Computadores da Apple têm só algemas digitais, creio, mas os com Windowstêm os três.

Isso pode ser combatido?

Refleti sobre isso quando estávamos fazendo um telefone móvel apenas com software livre, mas tive de pensar: ‘há uma maneira de fazê-lo funcionar e controlar o rastreamento?’ Não consegui encontrar uma forma de fazer isso. Eu teria de carregar uma antena junto, para mirar nas torres. Seria um grande trabalho, então decidi não ter celular. Quando preciso ligar, peço para alguém fazer a ligação por mim, e nunca tive problemas. Consegui alguém todas as vezes que precisei.

Por que o senhor considera inseguras as urnas eletrônicas do Brasil?

O Brasil perdeu todas as suas possibilidades de saber se os votos são contados corretamente. Acredito também que no Brasil alguém pode descobrir os votos dos outros à distância. As urnas emitem radiação eletromagnética, que pode ser usada para ver o que está sendo mostrado na tela. Há maneiras de ver em quem se vota, e isso é muito perigoso.

Por que os governos querem saber tudo sobre as pessoas?

Porque assim o governo pode pegar qualquer delator. O governo não quer que nós saibamos o que acontece. Os Estados Unidos já mostraram que estão dispostos a caçar e condenar delatores, a qualquer custo. O monitoramento que temos nos Estados Unidos, hoje, é incompatível com os direitos humanos.

Como vê o uso dessas ferramentas para organizar protestos contra governos?

É irônico, dado o quão horrível é o Facebook. O Facebook é uma ferramenta monstruosa de monitoramento. Eu imploro para que você não use. Eu nunca usei.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

''Há uma crise de legitimidade do atual sistema político'', diz Castells


O que há no mundo, como mostram há tempos os protestos de rua, "é uma crise de legitimidade do atual sistema político", adverte o sociólogo espanhol Manuel Castells. "É uma rejeição aos partidos e o clamor por transparência e participação", acrescenta. Estudioso, desde os anos 1990, da cultura digital e de seu impacto na sociedade, Castellsafirma que "a democracia atual deixou de ser democrática, segundo a maioria dos cidadãos do mundo". Nesta entrevista, desde Barcelona, onde vive, ele avisa: "Cabe às instituições encontrar novas formas de democracia, porque as que temos já estão esgotadas".



A entrevista é de Gabriel Manzano e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 09-07-2013.



Eis a entrevista.



Pela rápida mobilização do governo e do Congresso, o sr. vê nos protestos do Brasil um êxito maior que em outros países?



Sim, e isso se deve ao caráter mais democrático da presidente Dilma, embora essa abertura às demandas populares não se verifique também na classe política - incluindo a maioria do PT. Mas é claro que os movimentos não vão acreditar nessa abertura até verem resultados concretos nas políticas sociais e na reforma política.



A ausência, nesses atos, de movimentos tradicionais, como CUT, MST, UNE e os sem teto, indica que esses grupos, e mesmo os sindicatos, estão perdendo espaço na sociedade em rede?



Os novos movimentos sociais dispõem de autonomia de organização, debate e mobilização. As entidades burocratizadas, com uma cúpula profissional que negocia em nome dos filiados, estão tão ameaçadas quanto os partidos políticos.



Como descreveria o impacto dessas redes, em especial na democracia contemporânea?



Elas apontam para uma crise de legitimidade do atual sistema político, organizado na partidocracia, na política midiática e na dominação da política pelo dinheiro, legal e ilegalmente. Analisei todo esse processo em meu livro Comunicação e Poder (não lançado ainda no Brasil). Em todos os casos, em diferentes contextos e condições econômicas, o que há de comum é a rejeição aos partidos e o clamor por transparência e participação. Os cidadãos lembram aos políticos que o governo não é deles, mas dos cidadãos que os elegem e pagam. Agora cabe às instituições encontrar novas formas de democracia, porque as que temos estão esgotadas no mundo inteiro.



Mas os protestos organizados em rede têm limites. Não oferecem interlocutores e as demandas são muito amplas. Como superar essa contradição?



Não é uma contradição. Eles rechaçam a gestão dos governos por entender - provavelmente com razão - que a gestão dos políticos é em beneficio próprio, não para os cidadãos. Eles criticam a corrupção, a arrogância, a falta de transparência e de participação. A essa rejeição cabe às instituições responder com diálogo e propostas de mudança. Não se trata de negociar com uma cúpula, mas de responder às demandas do movimento. O que é seguro é que a democracia atual deixou de ser democrática, segundo a maioria dos cidadãos em todo o mundo, e que sua recuperação terá de ocorrer a partir dos movimentos autônomos surgidos na rede. O maior perigo para a democracia é a atual classe política.









quarta-feira, 24 de julho de 2013

Drones no jardim de sua casa

Com Drones no jardim de sua casa?
Há governos vendo como regular isso

Que o céu observe nossos comportamentos não é mais só uma questão de fé. Pequenos veículos aéreos não tripulados (drones) equipados com instrumentos de vigilância de grande precisão sobrevoam não só alguns cenários de zonas de conflito, mas também a vida civil cotidiana de muitos cidadãos. O diretor do FBI, Robert Mueller, reconheceu em 19 de junho passado diante do Congresso americano que sua agência já os utiliza em tarefas de investigação no espaço aéreo nacional. "Muito esporadicamente", explicou. Mas, depois das recentes revelações sobre os maciços e indiscriminados registros de comunicações praticados pela espionagem americana e autorizados pelos juízes locais, a explicação deMueller não é totalmente tranquilizadora.



A reportagem é de Andrea Rizzi, publicada pelo jornal El Pais e reproduzida pelo Portal Uol, 05-07-13.



Desenvolvidos pela indústria de defesa para fins militares, esses aparelhos não tripulados têm aplicações civis que se revelam extraordinariamente úteis, tanto para órgãos públicos quanto para privados. Equipamentos de diversas dimensões e características podem desempenhar com grande eficácia tarefas de detecção precoce de incêndios, vigilância e cuidado de terrenos agrícolas (necessidades de irrigação, lançamento de fertilizantes ou inseticidas, etc.), inspeção da segurança de infraestruturas como petróleo e gasodutos, controle de fronteiras, missões científicas, transporte de mercadorias ou cobertura de assuntos de interesse da mídia.



A companhia ferroviária alemã Deutsche Bahn anunciou recentemente sua intenção de utilizar helicópteros não tripulados e equipados com câmeras de radiação infravermelha para defender os trens dos grafiteiros e do vandalismo. As possibilidades são realmente infinitas e permitem economizar custos e inclusive vidas humanas.



Mas entre os cenários que se abrem também estão novas e preocupantes oportunidades de vigilância. Esses aparelhos podem ser muito pequenos, muito precisos e muito baratos, e com isso poderiam ser utilizados de maneira maciça e quase sem ser percebidos. Alguns modelos pesam menos de um quilo e custam poucos milhares de euros. Quer dizer que não só estão ao alcance de administrações públicas ou exércitos, mas também de um bom número de potenciais compradores particulares.



Por enquanto, o uso desses aparelhos por parte de usuários privados não está regulamentado na maioria dos países ocidentais. Em geral só é autorizado o uso por parte de determinadas autoridades públicas. Ou, como no caso alemão, se permite um uso privado muito restrito, substancialmente para aparelhos de tamanho reduzido, que voem em baixa altitude e à vista do operador. Na Espanha, na falta de um marco legal específico, as autoridades do setor não emitiram qualquer certificação de aeronavegabilidade para esses aparelhos, que portanto não podem voar legalmente.



Mas existe uma intensa pressão da indústria do setor e dos potenciais beneficiários para que seu uso seja liberado. Nos EUA, por exemplo, o Congresso exigiu que as autoridades aéreas determinem as regras dessa liberalização para setembro de 2015. Na Espanha o governo também prepara um esboço de decreto sobre a matéria.



Em substância, são dois os aspectos que precisam regulamentar: o código de conduta que discipline como esses aparelhos podem utilizar o espaço aéreo; e os requerimentos a fabricantes, operadores, empresas de manutenção, etc., para garantir a segurança dos mesmos.



Na era da vigilância total em que entramos de forma cada vez mais evidente, essa nova frente desperta sérias preocupações. Nos EUA, especialmente, o assunto causou um intenso debate. Eric Schmidt, presidente-executivo do Google, pediu que se proíba o uso privado desses aparelhos mediante tratados internacionais, alegando que podem representar um grande risco para a privacidade e a segurança.



Já em 2011 a União Americana de Liberdades Civis (ACLU na sigla em inglês) publicou um relatório intitulado "Protegendo a intimidade da vigilância aérea", no qual pedia que o Congresso adotasse normas muito precisas para reduzir os riscos de abusos por parte das autoridades.

Catherine Crump, uma das advogadas da organização e coautora do estudo, explica em conversa por telefone que a "preocupação básica [da ACLU] é que os dr ones não se transformem em um instrumento de vigilância total". "É preciso criar um marco jurídico", prossegue Crump, "pelo qual as forças de segurança possam fazer voar esses aparelhos só de forma pontual, quando houver uma determinada suspeita, quando permitam encontrar provas ou deter um crime específico. Deve-se evitar que a polícia possa lançá-los sem uma boa razão. Seria uma violação da privacidade. Além disso, embora o uso por parte das autoridades seja nossa preocupação principal, também é preciso estar conscientes de que se for permitido o uso para particulares também poderão abusar dos aparelhos", argumenta.



Nos EUA se viu recentemente como os juízes não hesitaram em autorizar registros de comunicações maciços e indiscriminados. Quem garante que não ocorra o mesmo com os drones? É necessária uma legislação específica?



Mario Mairena, responsável por relações governamentais da Associação Internacional para Aparelhos Aéreos Não Tripulados (AUVSI na sigla em inglês), afirma que não. Em conversa telefônica dos EUA, ele apresenta o ponto de vista do setor: "Somos, é claro, a favor do respeito absoluto à privacidade. Quem a viola tem que responder. Mas cremos que em geral a legislação vigente representa uma garantia suficiente.



Simplesmente será preciso aplicá-la a esses casos. Por outro lado, há muita confusão a respeito. Os aviões não tripulados não representam por si sós uma revolução na tecnologia da vigilância. Esses sistemas tecnologicamente sofisticados já são usados em aparelhos tripulados. A única diferença é que o operador está em terra", diz.



Os críticos indicam, entretanto, que as dimensões e os custos reduzidos dos drones podem facilitar muito a tarefa de vigilância em relação aos tripulados - e portanto os riscos. Em relação à idoneidade dos princípios gerais da legislação vigente, Crump afirma que não são uma garantia suficiente. "Nos EUA, por exemplo, ainda não se aplicou a esse setor a Quarta Emenda [da Constituição, que protege o cidadão diante de pesquisas ou registros arbitrários]. Não sabemos como se fará, e cremos que é arriscado confiar todo o assunto a que se consolide uma interpretação jurisprudencial adequada. É mais prudente definir a proteção especificamente pela via legislativa", afirma Crump.



No âmbito privado, há setores em que as possíveis aplicações desses aparelhos são claramente benéficas. Entre eles está o dos meios de comunicação, que poderiam baratear os custos de algumas coberturas noticiosas, hoje realizadas com a ajuda de helicópteros. Pequenos aparelhos não tripulados ampliariam notavelmente a capacidade de acesso a zonas especialmente perigosas (conflitos bélicos, desastres naturais, etc.). Os direitos à informação e à intimidade estão claramente estipulados nas legislações dos países desenvolvidos, e com isso é mais provável que as normas nesse âmbito sejam estendidas às coberturas realizadas com esses equipamentos.



O que preocupa a ACLU é sobretudo que haja abusos por parte de órgãos governamentais. Segundo Crump, a regulamentação no setor privado "tem sérias complicações". "A liberdade dos jornalistas de fotografar ou gravar em lugares públicos está justificadamente estabelecida, e é difícil conjugar normas que evitem violações da intimidade no uso de aparelhos aéreos não tripulados com a liberdade de imprensa", diz.



Pelo menos por enquanto, o uso de drones continua não regulamentado na grande maioria dos países desenvolvidos. Francisco Gayá, presidente da Flightech, uma companhia espanhola que trabalha no setor, espera com grande interesse que finalmente seja regulamentada a matéria para poder dar um impulso decisivo no uso desses aparelhos. "Já chegou o verão e com ele infelizmente voltarão os incêndios", indica Gayá. "E mais uma vez temos um modelo muito apto para realizar tarefas anti-incêndios, mas não se poderá utilizá-lo porque só temos uma certificação para uso experimental. Estamos há mais de seis anos nisso!", lamenta. Juan Ayanz, diretor de comunicação da Flightech, explica que a Espanha, à espera da aprovação do decreto real, se encontra atualmente em um "limbo legal". Os pedidos deste jornal ao Ministério de Fomento e à Agência Espanhola de Segurança Aérea para falar sobre o assunto não foram atendidos.



Quem defende a regulamentação insiste no uso benéfico que está sendo feito desses aparelhos em alguns países. Na outra margem se colocam os que veem sobretudo perigos. Na audiência em que o diretor do FBI admitiu que sua agência já utiliza aviões não tripulados em território nacional, a senadora democrata Dianne Feinstein, uma das vozes mais respeitadas desse órgão, declarou que "a maior ameaça à privacidade dos americanos são os drones e seu uso, e as muito poucas regulamentações que disciplinam seu uso hoje". No intenso debate sobre privacidade e segurança que hoje em dia agita as grandes potências, os drones deverão desempenhar um papel essencial.





segunda-feira, 22 de julho de 2013

Somos todos vigiados

Ignacio Ramonet:

 
Snowden, Manning e Assange são defensores da liberdade de expressão, lutam em favor da democracia e dos interesses de todos os cidadãos do planeta. Hoje são assediados e perseguidos pelo “Grande Irmão” norte-americano. Por que os três heróis do nosso tempo assumiram correr semelhante riscos, que podem custar a sua própria vida? A pergunta é deIgnacio Ramonet, ex-diretor do Le Monde Diplomatique em artigo plublicado p ela agênciaCarta Maior, 07-07-2013.
Eis o artigo.

Nós já temíamos (Nota 1). Tanto a literatura (1984, de George Orwell), como o cinema (Minority Report, de Steven Spielberg) haviam avisado: com o progresso da tecnologia da comunicação, todos acabaríamos por ser vigiados. Presumimos que essa violação de nossa privacidade seria exercida por um Estado neototalitário. Aí nos equivocamos. Porque as revelações inéditas do ex-agente Edward Snowden sobre a vigilância orwelliana acusam dir etamente os Estados Unidos, país considerado como “pátria da liberdade”. Aparentemente, desde a promulgação, em 2001, da lei Patriot Act (Nota 2), isso ficou no passado. O próprio presidente Barack Obama acaba de admitir: “Não se pode ter 100% de segurança e 100% de privacidade”. Bem-vindos, portanto à era do “Grande Irmão”…

O que revelou Snowden? Este antigo assistente técnico da CIA, de 29 anos, que trabalhava para uma empresa privada – a Booz Allen Hamilton (Nota 3) – subcontratada pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, sua sigla em inglês), revelou aos jornais The Guardian e Washington Post a existência de programas secretos que tornam o governo dos E stados Unidos capaz de vigiar a comunicação de milhões de cidadãos.

Um primeiro programa entrou em operação em 2006. Consiste em espiar todas as chamadas telefônicas feitas pela companhia Verizon, dentro dos Estados Unidos, e as que se fazem de lá para o exterior. Outro programa, chamado PRISM, foi posto em marcha em 2008. Coleta todos os dados enviados pela internet (e-mails, fotos, vídeos, chats, redes sociais, cartões de crédito), por (em princípio…) estrangeiros que moram fora do território norte-americano. Ambos os programas foram aprovados em segredo pelo Congresso norte-americano, que teria sido, segundo Barack Obama, “constantemente informado� �� sobre o seu desenvolvimento.

Sobre a dimensão da incrível violação dos nossos direitos civis e das nossas comunicações, a imprensa deu detalhes escabrosos. Em 5 de junho, por exemplo, o Guardian publicou a ordem emitida pela Tribunal de Supervisão de Inteligência Externa que exigia à companhia telefônica Verizon entregar à NSA os registos de milhões de chamada dos seus clientes. O mandato não autoriza, aparentemente, saber o conteúdo das comunicações, nem os titulares dos números de telefone, mas permite o controle da duração e o destino dessas chamadas. No dia seguinte, o Guardian e o Washington Post revelaram a realidade do programa secreto de vigilância PRISM, que autoriza a NSA e o FBI acesso aos servidores das nove principais empresas da internet (com a notável exceção do Twitter): Microsoft, Yahoo, Gogle, Facebook (Nota 4), PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple.

Por meio dessa violação, o governo dos EUA pode aceder a arquivos, áudios, vídeos, e-mails e fotografias de usuários dessas plataformas. O PRISM converteu-se, desse modo, na ferramenta mais útil da NSA para fornecer relatórios diários ao presidente Obama. Em 7 de junho, os mesmo jornais publicaram uma diretiva da Casa Branca que ordenava às suas agências (NSA, CIA, FBI) estabelecer uma lista de possíveis países suscetíveis de serem “ciberatacados” por Washington. E em 8 de junho, o Guardian rev elou a existência de outro programa, que permite à NSA classificar os dados recolhidos na rede. Esta prática, orientada à ciberespionagem no exterior, permitiu compilar – só em março – cerca de 3 bilhões de dados de computador nos Estados Unidos…

Nas últimas semanas, ambos os jornais conseguiram revelar, sempre graças a Edward Snowden, novos programas de ciberespionagem e vigilância da comunicação em países no resto do mundo. Edward Snowden explica que “a NSA construiu uma infraestrutura que lhe permite interceptar praticamente qualquer tipo de comunicação. Com esta técnica, a maioria das comunicações humanas são armazenadas para servir em algum momento a um objetivo determinado”.

A NSA, cujo quartel-general fica em Fort Meade (Maryland), é a mais importante e mais desconhecida agência de informações norte-americana. É tão secreta que a maioria dos norte-americanos ignora a sua existência. Controla a maior parte do orçamento destinado aos serviços de informações e produz mais de cinquenta toneladas de material por dia. É ela – e não a CIA – a proprietária e operadora da maior parte do sistema de coleta de dados dos serviços secretos dos EUA. Desde uma rede mundial de satélites até as dezenas de postos de escuta, milhares de computadores e as florestas de ante nas localizadas nas colinas de West Virginia. Uma das suas especialidades é espiar os espiões — ou seja, os serviços secretos de todas as potências, amigas e inimigas. Durante a guerra das Malvinas (1982), por exemplo, a NSA decifrou o código secreto dos serviços de espionagem argentinos, o que lhe permitiu transmitir aos britânicos informações cruciais sobre as forças argentinas.

O vasto sistema da NSA pode captar discretamente qualquer e-mail, qualquer consulta de internet ou telefonema internacional. O conjunto total da comunicação interceptada e decifrada pela NSA constitui a principal fonte de informação clandestina do governo dos EUA.

A NSA colabora estreitamente com o misterioso sistema Echelon. Criado em segredo, depois da Segunda Guerra Mundial, por cinco potências anglo-saxônicas — Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia (os “cinco olhos”), o Echelon é um sistemaorwelliano de vigilância global que se estende por todo o mundo, monitoriza os satélites usados para transmitir a maioria dos telefonemas, comunicação na internet, e-mails, redes sociais etc. O Echelon é capaz de capturar até dois milhões de conv ersas por minuto. A sua missão clandestina é a espionagem de governos, partidos políticos, organizações e empresas. Seis bases espalhadas pelo mundo recolhem informações e desviam de forma indiscriminada enormes quantidades de comunicação. Em seguida, os super-computadores da NSA classificam este material, por meio da introdução de palavras-chaves em vários idiomas.

Em torno do Echelon, os serviços de espionagem dos EUA e do Reino Unido estabeleceram uma larga colaboração secreta. E agora sabemos, graças às novas revelações de Edward Snowden, que a espionagem britânica também intercepta clandestinamente cabos de fibra ótica, o que lhe permitiu espionar as comunicações das delegações presentes na reunião de cúpula do G-20, em Londres, em abril de 2009. Sem distinguir entre amigos e inimigos (Nota 5).

Por meio do programa Tempora, os serviços britânicos não hesitam em armazenar enormes quantidades de informação obtidas ilegalmente. Por exemplo, em 2012, manejaram cerca de 600 milhões de “conexões telefônicas” por dia e puseram sob escuta, em perfeita ilegalidade, mais de 200 cabos… Cada cabo transporta 10 gigabites (Nota 6) por segundo. Em teoria, poderia processar 21 petabytes (Nota 7) por dia; equivalente a toda a informação da Biblioteca Britânica, enviada 192 vezes ao dia.

O serviços de espionagem constatam que a internet já tem mais de 2.000 milhões de utilizadores no mundo e que quase mil milhões utiliza o Facebook de forma habitual. Por isso, fixaram como objetivo, transgredindo leis e princípios éticos, controlar tudo o que circula na internet. E estão a conseguir: “Estamos a começar a dominar a internet”, confessou um espião inglês, “e a nossa capacidade atual é bastante impressionante”. Para melhorar ainda mais esse conhecimento sobre a internet, o Quartel-Geral de Comunicações do Governo [Government Communications Headquarters, ou GCHQ, a agência de espionagem britânica] lançou recentemente novos programas: Mastering The Internet (MTI) sobre como dominar a Internet, e Programa de Modernização da Intercetação [Interception Modernisation Programme] para uma exploração orwelliana das telecomunicações globais. SegundoEdward Snowden, Londres e Washington já acumulam, diariamente, uma quantidade astronômica de dados, interceptados clandestinamente através das redes mundiais de fibra ótica. Ambos países dispõem de um total de 550 especialistas para analisar essa titânica informação.

Com a ajuda da NSA, a GCHQ aproveita-se de que grande parte dos cabos de fibra ótica por onde trafegam as telecomunicações planetárias passam pelo Reino Unido. Este fluxo é interceptado com programas sofisticados de informática. Em síntese, milhões de telefonemas, mensagens eletrônicas e dados sobre visitas na internet são armazenados sem que os cidadãos saibam, a pretexto de reforçar a segurança e combater o terrorismo e o crime organizado.

Washington e Londres colocaram em marcha o plano orwelliano do “Grande Irmão”, com capacidade de saber tudo que fazemos e dizemos nas nossas comunicações. E quando o presidente Obama menciona a suposta “legitimidade” de tais práticas de violação de privacidade, está a defender o injustificável. Além disso, há de se lembrar que, por interceptarem informação sobre perigosos grupos terroristas com base na Flórida – ou seja, uma missão que, segundo a lógica do presidente Obama seria “perfeitamente legitima” — cinco cubanos foram detidos em 1998 e condenados (Nota 8) pela Justiça dos EUA a largas e imerecidas penas de prisão (Nota 9).

O presidente Barack Obama está a abusar do seu poder e a diminuir a liberdade de todos os cidadãos do mundo. “Eu não quero viver numa sociedade que permite este tipo de ação”, protestou Edward Snowden, quando decidiu fazer as suas revelações. Divulgou os fatos e, não por acaso, exatamente quando começou o julgamento do soldado Bradley Manning, acusado de promover a fuga de segredos da Wikileaks, organização internacional que divulga informações secretas de fontes anônimas. Enquanto isso, o ciber ativista Julian Assange está refugiado há um ano na Embaixada do Equador em Londres… Snowden, Manning e Assange são defensores da liberdade de expressão, lutam em favor da democracia e dos interesses de todos os cidadãos do planeta. Hoje são assediados e perseguidos pelo “Grande Irmão” norte-americano (Nota 10).

Por que os três heróis do nosso tempo assumiram correr semelhante riscos, que podem custar a sua própria vida? Edward Snowden, obrigado a pedir asilo político no Equador e em vinte países, responde: “Quando se dá conta de que o mundo que ajudou a criar será pior para as próximas gerações, e que os poderes desta arquitetura de opressão se estendem, você entende que é preciso aceitar qualquer risco. Sem se preocupar com as consequências”.

Notas:

1 - Ver, de Ignacio Ramonet, “Vigilância absoluta”, na Biblioteca Diplô, agosto de 2003.

2 - Proposta pelo presidente George W. Bush e adotada no contexto emocional que se seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001, a lei “Patriot Act” autoriza controles que interferem com a vida privada, suprimem o sigilo da correspondência e liberdade de informação. Não requer a permissão para escutas telefónicas. E os investigadores podem aceder a informações pessoais dos cidadãos sem mandado.

3 - Em 2012, a empresa faturou 1.300 milhões para “missões de assistência de informação.”

4 - Recentemente, soube-se que Max Kelly, chefe de segurança no Facebook, encarregado de proteger as informações pessoais dos usuários da rede social contra ataques externos, deixou a empresa em 2010 e foi contratado… pela NSA.

5 - Espiar diplomatas estrangeiros é legal no Reino Unido: protegido por uma lei aprovada pelos conservadores britânicos, em 1994, que coloca o interesse económico nacional acima da diplomacia.

6 - O byte é uma unidade de informação em computação. Um gigabyte é uma unidade de armazenamento cujo símbolo é GB, igual a mil milhões de bytes, o equivalentes a uma van repleta de páginas de texto.

7 - Um petabyte (PT) é igual a um quatrilhão de bytes — ou um milhão de gigabyte.

8 - A missão dos cinco Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e René González, era infiltrar-se e observar o processo de grupos de exilados cubanos para evitar atos de terrorismo contra Cuba. Porém o juiz condenou eles à prisão perpétua, disse a Amnistia Internacional num comunicado que “durante o julgamento não mostrou qualquer prova de que os acusados tinham informações classificadas realmente tratado ou transmitida.”

9 - Ler de Fernando Morais, Os últimos soldados da guerra fria, Companhia das Letras.

10 - Edward Snowden corre o risco de ser condenado a trinta anos de prisão após ter sido formalmente acusado pelo governo dos EUA de “espionagem”, “roubo” e “uso ilegal de propriedade do governo.”



quinta-feira, 18 de julho de 2013

Quem atribui sentido ao que acontece em nossa volta?

Quem atribui sentido ao que acontece em nossa volta?

José Luiz Quadros de Magalhães, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

O filosofo esloveno Slavoj Zîzek nos alerta para o enorme poder que tem aqueles que podem construir o significado das palavras e dos fatos, e, lógico, chegar até um numero expressivo (gigantesco) de pessoas. Este é o papel da grande mídia: todo o tempo, este poder, concentrado nas mãos de poucos grupos econômicos, procura mostrar às pessoas, o significado do que ocorre, o significado de palavras (como democracia, direitos humanos, desenvolvimento), atribuindo sentidos e condicionando a percepção de um grande numero de pessoas sobre o que acontece no mundo. Enfim, a grande mídia pretende construir o nosso senso comum, mas, felizmente o seu poder tem limites, e hoje, as redes sociais e a mídia alternativa cuida de evitar o poder total sobre nossas compreensões. Não sejamos, entretanto, inocentes.

Tudo é muito bem controlado, cada vez mais. Os espaços alternativos são estreitamente vigiados, e hoje, as grandes empresas, que financiam parte do poder (em em alguns casos todo ele), podem saber tudo sobre nós. Com o aumento do dinheiro de plástico (cartões de débito e de crédito) as empresas e o estado podem saber o que fazemos, os filmes que assistimos, os livros que lemos, o que comemos e bebemos, quando e onde. Não é ficção, é real e de conhecimento de todos, que prestam um pouco de atenção no mundo.

Quero falar sobre as manifestações públicas que tomaram as ruas de diversas cidades do Brasil, da luta pela atribuição de sentidos pela mídia e pelo poder econômico, assim como por nós, todos, que participamos e que percebemos sua complexidade e diversidade, marcado, entretanto, por um sentimento comum: um enorme mal-estar com o que estamos vivendo pelo mundo afora. Há um mal-estar que não vai passar com o atendimento de nenhuma reivindicação pontual, e isto pode ser perigoso se não entendido. Precisamos pensar sobre o nosso mal-estar. Sobre o que há de comum no mal-estar de cada um, nas grandes cidades e nas pequenas; nos que praticam violência e aqueles que recusam a violência; na esquerda e na direita; entre jovens e não tão jovens; entre todos, o que há em comum neste mal-estar? Um processo de psicanálise coletiva, um encontro com nossa história (talvez, melhor, estória), a busca do recalcado, do encoberto, do que realmente está nos matando mas não somos capazes de entender, perceber, ou, muitas vezes, não temos coragem de dizer, as vezes mesmo de pensar, talvez porque fomos proibidos de pensar determinados pensamentos.

O movimento começa com uma reivindicação pontual: a luta pela redução dos valores daspassagens de ônibus. Em uma cidade (em muitas cidades) onde as pessoas que trabalham são obrigadas a permanecer em ônibus durante horas, em um transito infernal, em uma sociedade com quase nenhuma solidariedade, muita competição e egoísmo, a vida pode ser um inferno. É claro que a passagem não é o problema, e o atendimento a esta reivindicação não irá atenuar o mal estar. Outras e outras reivindicações virão, mas a razão do mal-estar não será contemplada.

Como o mal-estar não passará, sem desocultar os seus reais motivos, outras reivindicações surgem, entre genéricas e especificas, as manifestações começam a revindicar a rejeição de emenda constitucional que retira poderes do Ministério Público; a crítica a grande mídia; melhoria na educação e saúde; e mais várias outras bandeiras que representam um incomodo imediato, de fácil identificação. Seria a ideia de "investimento" da psicanálise: o "investimento" em um incomodo aparente irá sempre ocultar o que realmente causa o mal-estar, que permanecerá encoberto até o momento em que tivermos coragem de investigar, descobrir e enfrentar o que está oculto em um lugar seguro, desconhecido. Estamos proibidos de pensar no que está oculto e nos mata sem sabermos.

A discussão e a luta por estas demandas imediatas, e a constatação recorrente de que o problema efetivamente não está ali, ameaça os interesses e a estabilidade de um sistema socioeconômico que se sustenta no ocultamento de suas reais razões. Daí, a reação dos que se beneficiam deste sistema. A indefinição e a pluralidade de pautas e reivindicações e a incapacidade de percepção da real causa do mal-estar, facilita o trabalho da reação.

O movimento difuso permite as infiltrações, não só de pessoas, mas principalmente de ideias, bandeiras, demandas. Começa a ação determinada de resignificação das manifestações, especialmente na cabeça daqueles, que insatisfeitos, manifestam, mas não sabem muito bem porque. Estas pessoas viram massa de manobra. A insatisfação difusa se expressa em uma raiva sem direção. Esta direção pode ser dada por quem tiver maior capacidade de fazê-lo. Massa de manobra, e não apenas, pois os que se recusam a ser utilizados como tal, não terão suas imagens mostradas na TV.

Estratégias antigas, fascistas, são reutilizadas: a divisão da população entre amigos e inimigos; a negação da diversidade, dos partidos políticos e a defesa da unidade fundada no nacionalismo (nazismo); de outro lado a simplificação do complexo quadro, na nomeação do inimigo e sua caracterização como não pessoa: vândalos ou mesmo terroristas. As pessoas são reduzidas e julgadas por um nome coletivo que lhes exclui a humanidade.

A questão é que precisamos descobrir este mal-estar, que desencadeou o processo, para evitar o seu uso por quem tem o poder para fazê-lo, e, para isto, no lugar de simplesmente apoiar isto ou aquilo, precisamos fazer as perguntas e buscar com coragem as respostas:

- A questão não é apenas condenar policiais infiltrados que incentivam a violência mas porque isto ainda é feito e porque ainda encontramos pessoas capazes de fazer isto.

- A questão não é apenas condenar o ativista de extrema-direita que queima e quebra, agride e odeia, mas saber o porquê de tanto ódio e porque este ódio ganhou esta direção.

- A questão não é apenas denunciar as práticas autoritárias, ilegais e inconstitucionais das policias do Rio, Minas e São Paulo (e outras mais), mas entender porque estas práticas ainda existem mesmo após 25 anos do fim da ditadura empresarial-militar que atrasou este país.

- A questão não é apenas constatar mas entender porque, em Minas Gerais, a polícia que deveria proteger o cidadão no seu direito de se expressar (um direito constitucional), agride e proíbe o exercício de direitos constitucionais, sabendo que esta violência só irá gerar manifestações mais violentas.

- A questão não é perceber tudo isto, mas entender porque, ainda hoje, pessoas são capazes de agir contra elas mesmas, contra os interesses de pessoas que ela ama, contra os interesses de pessoas que vivem como elas e que vem dos mesmos lugares, defendendo interesses que não são os seus, e pior são contra os seus.

- A questão não apenas perceber, mas entender porque que as pessoas, embora tenham mais capacidade de consumo hoje do que no passado, continuam infelizes, mergulhadas em um mal-estar crescente.

Se não formos capazes de entender os porquês (estes e muitos outros), dificilmente sairemos das armadilhas que o poder constrói para evitar que consigamos construir uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. A democracia é apenas tolerada por aqueles que têm privilégios a proteger. Toda vez que tentamos e tentarmos romper com estes privilégios, a democracia será rompida, com o apoio de muitos dos oprimidos. Precisamos entender como se reproduzem os "cães de guarda" do sistema. Aqueles que defendem os interesses que são contra eles mesmos.

O processo que se iniciou não tem volta. Não sabemos os resultados mas podemos influenciar nele. Fazemos parte deste processo. Mesmo que as manifestações diminuam, a insatisfação revelada continuará latente e se manifestará diariamente de várias formas (aliás como já vinha ocorrendo sem que as pessoas dessem o devido valor a estas manifestações). Podem dizer que mal-estar sempre haverá, mas não estou dizendo de qualquer mal-estar, estou me referindo a um mal-estar que Freud já chamara atenção: há um mal-estar na civilização ocidental, o sistema moderno está acabando e o que as pessoas colocaram no lugar não está claro, mas há sinais e tentativas de alternativas pelo mundo a fora e entre nós.

O sistema jurídico que construímos não resolve os problemas, não resolve os conflitos. O sistema jurídico que construímos foi criado para conservar e reagir às mudanças não permitidas. A "democracia" majoritária fundada na ideia da vitória de um melhor argumento afasta os argumentos derrotados, oculta a diversidade e condena o derrotado ao ocultamento. O problema é que esta "democracia" não funciona sobre conflitos de argumentos uma vez que a busca da vitória de seu projeto, ideia, partido, interesse, argumento, não permite que se escute os argumentos dos outros. Não se escuta o outro para aprender com o outro e construir novos argumentos. O que ocorre é que quando escuto o outro, escuto com a finalidade de destruir o argumento do outro.

Entretanto, o problema é que, nem mesmo isto ocorre. O parlamento se transformou em um mercado, em um espaço de negociações para realização de desejos variados e não para discussão de argumentos racionais. A "democracia" majoritária funciona sob a lógica do "roma locuta, causa finita", ou seja, quando o império fala a controvérsia acaba. E acaba não pela construção de um consenso, mas pela força do império, o que significa que o conflito, a causa continua latente. A maioria disse, a minoria acata, questão superada.

Superada? Claro que não. Superada no processo legislativo, no processo eleitoral, mas não no processo social, nos conflitos reais de poder e interesse. A mesma lógica se aplica ao judiciário. Os conflitos são levados até o judiciário, as partes argumentam, petição inicial, contestação, recurso, razões, contrarrazões, toda a lógica de desenvolvimento do processo judicial impede o consenso, incentiva a competição. Ao final, o "império" (o estado, o juiz) "diz" e, logo, a "causa" acabou. Acabou? Claro que não, o conflito permanece latente, as pessoas insatisfeitas, vencedores e vencidos não se satisfazem, mas para o processo judicial o conflito acabou, entretanto, na realidade não, ele permanece latente para explodir de insatisfação um dia. Da mesma forma esta sociedade emocional e não reflexiva, superficial, lida com seus problemas e incômodos. Se aumenta a criminalidade, no lugar de buscar entender as razões são bu scadas simplesmente punições, como se a vida do nomeado "adolescente infrator" já não fosse uma punição constante. No lugar de enfrentar o problema para solucioná-lo, não, o que ocorre é aumentar o conflito com mais punição. Este mecanismo, esta postura se alastra: não pensamos em entender o conflito, em solucioná-lo, mas, atacá-lo, incentivando o conflito, aumentando o mal-estar.

A compreensão do mal-estar pode nos levar a inversão da proposta: "Causa locuta, Roma finita". Mas para isto precisamos entender o mal-estar e a partir de então construir uma causa comum. Isto é urgente.

AS 10 ESTRATÉGIAS DE MANIPULAÇÃO PELA MÍDIA - CHOMSKY



O lingüista estadunidense Noam Chomsky elaborou a lista das “10 estratégias de manipulação” através da mídia:

1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO.

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes.
A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ci� �ncia, da economia, da psicolo gia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')”.


2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.

Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de lei s de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.


3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.


4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- DIRIGIR-S E AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA I DADE.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê?

“Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.


6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIO NAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada as classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossíveis para o alcance das classes inferiores (ver ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.


8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto…


9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!


10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente bre cha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

sábado, 13 de julho de 2013

No altar do progresso, direita e esquerda se unem no sacrifício dos povos indígenas



Sumário:

Governo democrático popular repete os militares: “O índio não pode deter o desenvolvimento”

Ameaças aos povos indígenas vêm do Estado e do agronegócio

Escalada da tensão. Como resolver a questão indígena?

Indígenas são vítimas de preconceito e discriminação

Indígenas são o movimento social mais ativo da atualidade

Quem está com os indígenas?

Garantias da Constituição Federal

Eis a análise.


Governo democrático popular repete os militares: “O índio não pode deter o desenvolvimento”



Diante dos acontecimentos das últimas semanas envolvendo os povos indígenas, o sociólogoIvo Lesbaupin levanta uma inquietante questão: "Qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de 1964?".



O professor da UFRJ e assessor dos movimentos sociais lembra que os militares nos anos 1970 imbuídos de uma concepção desenvolvimentista – Brasil Grande – passaram por cima dos povos indígenas que ousaram resistir. “O índio não pode deter o desenvolvimento”, dizia em 1971 o general do exército Bandeira de Mello, na época presidente da FUNAI.



A confirmação da fala do general está vindo agora à tona com o caso do extermínio de dois mil índios waimiri-atroari e de fatos relatados no Relatório Figueiredo. Ambos os casos são amostras das atrocidades cometidas pelos militares no período da ditadura contra os índios.< /span>



Passaram-se 50 anos do início da ditadura militar, porém, a concepção desenvolvimentista que veem os índios como um estorvo, um empecilho e um obstáculo permanece intacta. Como afirma Roberto Liebgott do Cimi-RS em entrevista exclusiva à revista IHU On-Linedesta semana, “os conceitos de entraves e obstáculos foram amplamente utilizados no período da ditadura militar pelos governos autoritários, quando se pretendia abrir estradas ou construir barragens em terras que habitavam comunidades e povos indígenas. O argumento dos ditadores, era de que os interesses da nação não poderiam s er atrapalhados pelos índios, por isso eles precisavam ser removidos".



"Fazendo um paralelo, diz Liebgott, com os discursos recentes de autoridades públicas, especialmente da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, constata-se que a concepção que se tem dos povos indígenas em nosso país (em um governo 'democrático e popular') é o mesmo dos governos da ditadura militar. Disse a nobre ministra: ‘Não podemos negar que há grupos que usam os nomes dos índios e são apegados a crenças irrealistas, que levam a contestar e tentar impedir obras essenciais ao desenvolvimento do país, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte. O governo não pode concordar com propostas irrealistas que ameaçam ferir a nossa soberania e comprometer o nosso desenvolvimento’”.



O dirigente do Cimi lembra que “não raras vezes o ex-presidente Lula, em discursos inflamados pela defesa das grandes obras, disse que os direitos dos índios, quilombolas e ambientais eram penduricalhos. Essa é a concepção que o governo brasileiro tem dos povos indígenas”.



Antes o governo ditatorial, os militares, os generais, majores e coronéis das Forças Armadas como Sebastião Curió que não titubeavam em afastar o “obstáculo”- os povos indígenas – com o uso da manu militari. Hoje, o PT, o PCdoB, o PMDB e seus aliados. Antes, os generais Costa e Silva, Médici, Geisel, o uso da Lei de Segurança Nacional, as forças políticas em torno da Arena – a direita. Hoje, Dilma Rousseff, o PT, ministros de Estado progressistas – a esquerda.



A afirmação do general do exército em 1970 de que “o índio não pode deter o desenvolvimento” é hoje reafirmada pelas lideranças de um governo que se autodenomina democrático-popular, como destaca Roberto Liebgott. Ainda mais espantoso, entre os porta-vozes que insinuam que os índios são um “obstáculo” muitos são de lideranças no interior do PT que se posicionam à esquerda no debate interno do Partido, como o ministro da justiça José Eduardo Cardozo e o governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro ou ainda de ministros como Gilberto Carvalho e Gleisi Hoffmann, o primeiro ligado anos atrás aos movimentos da Teologia da Libertação como a Pastoral Operária, e a segunda, promessa de modernização do Partido dos Trabalhadores.



As forças autoritárias, retrógradas, conservadoras e portadoras da ideia de que o índio tinha que ser “emancipado” da sua terra e assimilado pela sociedade produtivista de ontem é reproduzida pelas forças políticas de hoje que se afirmam progressistas. “A história parece estar se repetindo, o que está em questão tanto na época da ditadura quanto hoje é a concepção de desenvolvimento (...) Hidrelétricas, mineradoras, agronegócio, desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo versus direitos dos povos indígenas: qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de 1964”? pergunta Ivo Lesbaupin.



Diz ele: “Foi o governo Lula que ressuscitou um projeto do tempo da ditadura, a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. “Este projeto, diz o sociólogo, iniciado em 1975, foi interrompido em 1989, em razão da resistência dos povos indígenas. O Banco Mundial, que financiaria a construção, desistiu da obra. Somente se voltou a ouvir falar neste projeto quase vinte anos depois, no primeiro mandato do governo Lula”.



Segundo Lesbaupin, o projeto foi remodelado e empurrado goela abaixo daqueles que resistiram a ele, mesmo depois da promessa de que isso não aconteceria. Ivo Lesbaupin lembra que “houve inúmeras tentativas de povos indígenas, de movimentos sociais, de setores da Igreja católica, inclusive do bispo local, D. Erwin Kräutler, de demover o governo deste projeto”. De nada adiantou. O mesmo modus operandi retorna agora com o projeto docomplexo hidrelétrico no Tapajós.



Repete-se o desrespeito aos direitos dos povos indígenas. O governo na sua obsessão crescimentista, para usar um conceito surgido nos debates da 5ª Semana Social Brasileira, enquadra o Ibama, a Funai, e não ouve as graves denúncias do Ministério Público Federal. Ainda mais, “rasga” reiteradamente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que determina a consulta prévia às populações tradicionais afetadas por empreendimentos em seus territórios.



Os indígenas impactados de maneira definitiva pelos projetos de usinas hidrelétricas na Amazônia nunca foram consultados previamente, da forma definida pela Constituição brasileira e pela Convenção 169. Por esse motivo, o governo brasileiro responde a três processos judiciais, movidos pelo Ministério Público Federal no Pará e no Mato Grosso.



Ameaças aos povos indígenas vêm do Estado e do agronegócio



O sofrimento e a ameaça de desterritorialização a que estão submetidos os povos indígenas não se resumem, entretanto, aos grandes projetos. Faz parte da vida cotidiana de muitas comunidades indígenas a queima de barracos, intimidações, destruição de plantações, sequestros e assassinatos seguidos até mesmo do desaparecimento de corpos de lideranças indígenas. É o que se tem visto, particularmente no Mato Grosso do Sul, palco recente do cruel assassinato do cacique Nisio Gomes e do assassinato dias atrás do terenaOsiel Gabriel.



Aqui a ponta de lança da sombra da morte sobre os indígenas é do agronegócio que conta muitas vezes com a omissão, a conivência ou até mesmo a participação do braço armado do Estado. Segundo o missionário Egon Heck, “o que se está fazendo com os povos e direitos indígenas neste país, só teve precedentes, na década de sessenta e setenta, com um processo de genocídio programado e planejado pela ditadura militar e interesses econômicos ávidos por assaltar os recursos naturais das terras indígenas”.



Passadas décadas, pouco ou quase nada mudou. A direita e a esquerda se encontram na mesma vertente desenvolvimentista e continuam sacrificando os povos indígenas no “altar do progresso”. Tristemente constata-se que nos oito anos de governo do ex-presidente Lula e nos dois primeiros da presidente Dilma Rousseff, 560 índios foram assassinados no Brasil — média de 56 por ano. Os dados são do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.



Antes o modelo imposto pela ditadura, pela dominação direta e bruta. Agora pela buscagramsciana da hegemonia, do consenso que joga e se vale do imaginário comum e simplista, até mesmo entre setores esclarecidos na academia, de que os índios estão atrapalhando o desenvolvimento do país. Basta ver o silêncio de figuras de proa da intelectualidade da esquerda brasileira que em seus blogs, sites e colunas se calam sobre o acontecimento mais importante da conjuntura brasileira nas últimas semanas: o ataque virulento às conquistas conseguidas pelos povos indígenas às duras penas na Constituinte de 1988.



Ontem, os militares aliavam-se aos interesses das mineradoras, dos fazendeiros, das multinacionais que tinham interesse na exploração de “territórios” ricos em jazidas. Hoje, a esquerda se junta aos seus novos aliados, o agronegócio.



Sintomática, a fala da líder maior do agronegócio brasileiro Kátia Abreu. Questionada sobre o que mudou na relação com o governo de Dilma Rousseff, a líder do agronegócio ga¬rante que não foi ela: “Meu ponto de vista não mu¬dou em nada. Os governos anteriores não tinham uma compreensão tão aberta da agrope¬cuária brasileira como a presidente Dilma tem demonstrado”, diz a senadora, para completar que quem mudou foi o governo do PT – “o que me aproxima da presi denta Dilma é a concordância de ideias”, disse a senadora.



A presidente da Confederação Nacional da Agricultura – CNA faz questão de destacar que a sua aproximação com a presidente não se deu no campo político-ideológico, e sim no campo das ideias na defesa do agronegócio brasileiro. Afirma que considera Dilma uma petista diferente: “Não só eu como um grande segmento do país, não identifica a presidente Dilma como petista na sua essência, ela é quase uma mandatária suprapartidária, que defende os interesses do país de forma racional conversando com todos os segmentos”, diz a senadora, que afirma ter muitas semelhanças com a pres idente da República.



A opção brasileira por um modelo altamente dependente da exploração de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas e minerais para exportação [soja, etanol, pecuária, minérios...] associado aos grandes projetos de matriz energética ancoradas nas grandes hidrelétricas tornaram os povos indígenas uma ameaça ao Estado brasileiro.



É nesse contexto que devem ser compreendidos os acontecimentos dos últimos meses, entre eles: a Operação Tapajós na qual o governo se valeu de recursos sórdidos como infiltração de agentes policiais nas comunidades indígenas e a ocupação do seu territórios – fatos que lembram os anos da ditadura.



É também nesse contexto que se explicam os conflitos em torno da ocupação do canteiro de Belo Monte.



Mas as ações anti-indígenas não ficam por aí. De todos os lados é pesada a artilharia contra os povos indígenas, ora partindo dos ruralistas (PEC 215, PEC 38, PEC 237, Projeto de Lei 1610) e ora do governo (Portaria 303, Decreto nº 7.957/13, Portaria Interministerial 419/11).



Escalada da tensão. Como resolver a questão indígena?



É a partir do modelo, das opções do governo que se compreende o gigantesco retrocesso no marco regulatório da demarcação das terras indígenas encabeçado pela ministra da Casa Civil a mando de Dilma Rousseff. “Com tal medida fica evidente a responsabilidade da ministra Gleisi Hoffmann pela radicalização da tens ão no Mato Grosso do Sul e que atinge também outros povos de outros Estados. O governo erra ao escolher lidar com o problema pelo caminho da protelação e do desmonte constitucional das funções da Funai”, afirma carta aberta endereçada à presidente Dilma Rousseff assinada por defensores dos Direitos Humanos.



Segundo análise do Cimi, “o governo Federal dá mostras cada vez mais evidentes que não entende e que não está disposto a entender os povos indígenas brasileiros”. A organização destaca que “o governo Dilma aprofundou o processo de retração de demarcações das terras indígenas”. O Cimi comenta que “a presidente Dilma ainda não recebeu os povos indígenas para qualquer conversa ao longo destes mais de dois anos de mandato. No entanto, somente no mês de maio, a presidenta reservou tempo em sua agenda para ao menos cinco encontros com representantes dos ruralistas, inimigos históricos dos povos indígenas”.



O assassinato do terena Osiel Gabriel é resultante da escalada da tensão promovida pelo agronegócio com a conivência do governo federal. Essa tensão tende a crescer. Os ruralistasanunciam para os próximos dias atos em todo o país e afirmam que poderão ocorrer "novos e dramáticos confrontos de consequências imprevisíveis".



No Mato Grosso do Sul, os ruralistas não admitem nenhuma demarcação. Um dos porta-vozes dos fazendeiros na região, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT) diz que “o governo não tem o direito de transformar o Brasil em uma nação indígena. Principalmente em uma área que é um cinturão agrícola. Não dá para ser uma grande reserva indígena e ao mesmo tempo uma potência agrícola", afirma o parlamentar.



O que o parlamentar não conta é que o território, hoje de posse do agronegócio, já foi território dos povos indígenas: “Com o final da Guerra do Paraguai (final do século XIX), houve a anexação de áreas que não integravam o território brasileiro. Para garantir a soberania do país na região, a União fomentou a vinda de colonos para o então estado de Mato Grosso, propagando a riqueza do solo e a certeza de um pedaço de terra aos colonizadores”, afirma o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul.



Essas terras, diz o MPF do MS “ocupadas por comunidades indígenas, foram tituladas em sua grande maioria pelo Estado de Mato Grosso e, em alguns casos, pela União a particulares, via de regra de modo oneroso, e os índios que moravam nessas áreas foram confinados em reservas indígenas, criadas no século XX, sem respeitar as diferenças étnicas e grupais”.



A mesma história é contada pelo antropólogo Levi Marques-Pereira da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD em entrevista à IHU On-Line.



Tomando como referência a fazenda Buriti, palco do conflito que resultou na morte de Oziel Gabriel, o antropólogo comenta que “a partir da última década do século XIX se inicia o processo de ocupação das terras até então ocupadas pelos Terena na região de Buriti. A titulação das terras se estende até as primeiras décadas do século XX, mas a expulsão dos Terena foi gradativa, se prolongando pelo menos até a década de 1970. Em muitos casos os próprios Terena foram incorporados nos trabalhos de formação de fazendas sobre os seus territórios, já que essa se tornava a única alternativa, além de constituir uma estratégia para permanecerem em seus territórios”.



A modernização do campo, a partir da década de 1970, explica Levi Marques-Pereira, impôs a “retirada total das famílias, obrigadas a se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares, constituída como reserva em 1926”. Somente mais de 70 anos depois, em 2001, a Funai reconheceu o direito dos Terena de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. “A partir de então a região tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando para que o governo conclua o processo de regularização de suas terr as de ocupação tradicional”, menciona.



Para ele, “o vínculo dos Terena de Buriti com a terra que reivindicam é histórico e cultural”. Na opinião do antropólogo, “o Estado deve assumir o ônus de ter titulado terras indígenas em nome de particulares, deve reconhecer seu erro e ressarcir tanto os indígenas como os atuais proprietários”. Portanto, as terras que os ruralistas reivindicam como suas, foram na verdade roubadas dos povos indígenas.



Semelhante opinião tem o Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul para quem “os conflitos fundiários em Mato Grosso do Sul são históricos e resultam de uma série de ações e omissões do Estado brasileiro”. Segundo o MPF, “para se entender a tensão do campo, é preciso antes analisar a história de ocupação do estado, que resultou no esbulho de comunidades indígenas de seus t erritórios tradicionais e na concessão de títulos públicos a particulares”.



Para o MPF, a solução para o conflito seria a reparação do dano causado aos fazendeiros pela titulação errônea de terras indígenas: “Por mais que a sugestão possa vir a beneficiar os produtores rurais, objetiva tornar mais célere as demarcações de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, permitindo o retorno dos índios às suas terras tradicionais e, em consequência, a manutenção de sua cultura, usos, costumes e tradições”.



O procurador da República Emerson Kalif Siqueira diz que “falta vontade política para solucionar a questão indígena no estado. São muitas as propostas para minimizar a tensão fundiária, mas a postura da União - de apenas receber um lado do conflito e de ignorar que grande parte da situação decorre principalmente da titulação errônea de terras, a cargo da administração pública como um todo -, só tem agravado a situação, chegando ao ponto de batalhas judiciais perdurarem durante anos e de casos de violência se tornarem frequentes no estado”.< /p>



O Procurador é duro com o governo: “Não se trata a questão indígena como caso de polícia. Se forem necessárias horas ou dias de conversa e negociação, que se explique, enfatize, converse, negocie. O que não se pode é deixar que a inapetência da polícia – que não tem experiência em conflitos rurais - transforme populações tradicionais em alvo de violência”, afirma ele.



A forma como será resolvida a questão indígena no Brasil “dará o tamanho da régua que apontará a medida da evolução democrática de nossa sociedade”, afirmam em cartaativistas ligados à defesa dos direitos humanos.



Indígenas são vítimas de preconceito e discriminação



Os indígenas são vítimas ainda para além do Estado brasileiro e do agronegócio. Sofrem dos mesmos preconceitos de outras minorias/maiorias. Nas cidades, são encontrados vendendo artesanato, quando, para muitos, deveriam estar procurando um emprego. Considerados vagabundos, esmoleiros e sujos, são cobertos pela capa da discriminação. Causam repugnância e enfeiam as cidades. Para a maioria da população, são “invisíveis”, embora estejam à vista de todos. As manifestações de resistência que presenciamos são, certamente, uma maneira de dizer que eles existem e quere m ser respeitados em seus direitos fundamentais.



Para a maioria da população, ainda, sua presença e atuação representam um estorvo da ordem social. O mundo seria melhor se não existissem. São, para retomar e resignificar uma expressão cunhada pelo recentemente falecido sociólogo francês Robert Castel, “os inúteis do mundo”: não produzem e são contrários aos grandes projetos de desenvolvimento econômico.



Neste contexto, é ilustrativo recordar o que já disse um antropólogo francês Pierre Clastres, que morreu muito jovem, mas que conheceu várias etnias brasileiras, entre elas a dos guaranis. “Um dos livros de Clastres, escreve Washington Novaes, trata exatamente dessa etnia - e do que ele designava como ‘sociedade contra o Estado’. Esse é o título de outra obra sua, onde mostra que nós, não índios, nos habituamos a descrevê-los não pelo que têm, e sim pelo que não têm - não usam roupas, não detêm nossas tecnologias, não vivem como brancos”.



“Com isso - prossegue ainda Washington Novaes - nos esquecemos do que têm e pode ser muito importante:



1) a não delegação de poder (o chefe não dá ordens; é o conhecedor da história e da cultura, o grande mediador de conflitos, mas não dá ordens - até porque seria recebido com espanto);



2) a autossuficiência no nível pessoal (um índio, na força de sua cultura, sabe fazer sua casa, plantar sua roça, colher, fazer seus instrumentos de trabalho e adorno, sua rede, conhece as plantas nativas úteis, etc., não precisa de ninguém para nada); e



3) o privilégio de conviver com a informação aberta, ninguém dela se apropria para transformar em instrumento político ou econômico.”



Uma cultura, um “outro” que, cinco séculos depois, continua a representar uma ameaça. E por se estruturarem como uma sociedade contra o Estado, os guaranis tornam-se indesejáveis para a nossa sociedade e o Estado hegemônicos. Sem eles, no entanto, estariam escancaradas todas as portas para a saciedade insaciável da vontade de poder do grande capital e do agronegócio. Na sua existência e resistência plasma-se uma reserva moral, antropológica e econômica; um outro modelo de desenvolvimento, social e ambientalmente menos impactante, é possível.



Indígenas são o movimento social mais ativo da atualidade



Ironia da história, os indígenas, que pareciam quase extintos, renascem das cinzas, como uma fênix. Ao longo da história do Brasil (ao menos na mais recente, aquela que coincide com o processo de industrialização e modernização de nosso país), nunca foram considerados um movimento social de transformação. Segundo a concepção hegemônica, a transformação social vinha do mundo urbano (especialmente do movimento operário) e se fazia na esteira da lógica da racionalidade ocidental europeia.



Nas últimas décadas, têm dados sinais de grande vitalidade e originalidade. Desde os anos 1990, quando emergiram na Selva Lacandona, no México, com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), contra a globalização, os povos indígenas têm mostrado que estão vivos em toda a América Latina. São protagonistas de primeira linha na Bolívia, Equador e Brasil; têm protagonismo também no Chile, Peru e, com menos intensidade, na Argentina.



O protagonismo dos indígenas no continente latino-americano tem sido objeto de diversas análises, que tiveram a preocupação de auscultar as novidades e contribuições deste movimento, na perspectiva de vislumbrar elementos para a construção de um outro modelo de desenvolvimento econômico e social, plural, sustentável, igualitário e justo. A pergunta de fundo é esta: que apelos o movimento indígena faz a uma esquerda social? A questão indígena cabe nos atuais projetos de esquerda?



Os focos de tensões envolvendo indígenas encontram-se neste momento na Região Sul, no Mato Grosso do Sul e no Pará (Belo Monte). No começo deste mês, comunidades indígenas organizaram ocupações em fazendas em Mato Grosso do Sul, bloquearam rodovias no Rio Grande do Sul e ocuparam a sede do PT em Curitiba. No Pará, ocuparam o canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu.



Quem está com os indígenas?



O conflito indígena tem praticamente as dimensões do Brasil. Atualmente, as demarcações de terras indígenas estão provocando conflitos em 212 áreas do país. Além desses, aFunai tem mais 339 pedidos de demarcação parados na mesa de seus técnicos e que ainda não passaram sequer pela análise inicial. Isso para dimensionar, minimamente, a questão. A título de exemplo, no Paraná, são 7 as ares sob risco de conflito entre índios e ruralistas; e noRio Grande do Sul, 17. Mas, como o movimento social e eclesial tem se posicionado em relação aos últimos acontecimentos envolvendo indígenas em diversas partes do Brasil?



De modo geral, e timidamente, o movimento social tem se manifestado. No começo de março, organizações nacionais e internacionais publicaram manifesto em apoio e defesa dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Cerca de 90 entidades, manifestam “que é obrigação da nação brasileira, tanto governo, como sociedade civil, a defesa intransigente do direito à vida, a integridade física e mental, da liberdade e da segurança pessoal dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, entendendo que qualquer forma de violência física ou mental contra qualquer membr o dessas comunidades devem ser exemplarmente punidos”. Trata-se da referência à morte do indígena Kaiowá Denilson Barbosa, de 15 anos, morador da aldeia Tey'ikue, que foi encontrado morto em 17 de fevereiro, no município de Caarapó (MS). Ao mesmo tempo, “apoiam incondicionalmente a defesa da posse das terras tradicionais pelos povos indígenas, bem como, apoiam as demarcações das terras indígenas e do amplo acesso desses povos aos recursos nelas existentes, única forma de colocar fim às violações de direitos e à violência contra que vem sendo imposta a esses povos, sendo urgente que o Estado Brasileiro, através do Governo Federal assuma as obrigações constitucionais de respeitar, proteger e garant ir a vida e os direitos humanos dos povos indígenas”.



Outro manifesto é dos movimentos sociais, entidades e organismos de defesa dos direitos humanos de Mato Grosso do Sul. Lançado no começo deste mês, os signatários manifestam “irrestrita e incondicional solidariedade com o Povo Terena”, condenam e repudiam os fatos acontecidos na Terra Indígena Buriti e responsabilizam pelos mesmos o Governo do Estado do MS, o Poder Judiciário, o Estado Brasileiro e o Governo Federal. Al� �m disso, exigem a imediata libertação dos 18 indígenas que estão presos na Policia Federal.



Também a CUT e a Via Campesina se manifestaram. De modo geral, as manifestações têm sido relativamente tímidas e bem polidas, para não ferir sensibilidades. E isso com a intenção de poder dizer: “Bem, nós nos manifestamos”. Ao mesmo tempo, transparece a preocupação de não se indispor abertamente com o governo.



Um grupo de cinco ativistas ligados à defesa dos direitos humanos e indígenas está circulando na internet uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff, que critica o governo federal e, em particular, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Assinam Dalmo Dallari,Gilberto Azanha, Marcelo Zelic, Anivaldo Padilha e Roberto Monte. O texto condena o plano do governo de incluir órgãos ligados ao setor agrícola, como a Embrapa, na análise das demarcações de terras indígenas, considerando-o responsável pelo acirramento dos conflitos entre índios e produtores rurais, em especial no Mato Grosso do Sul.



Mais incisiva tem sido a posição apresentada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Uma reunião entre o governo e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB) deixou claras as opiniões divergentes de ambos sobre o papel da Funai. A ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, afirmou que o órgão não deve ser o único responsável pela demarcação de terras indígenas; já o secretário-geral da CNBB, d. Leonardo Steiner, disse esperar que a fundação não tenha suas funções esvaziadas. Dom Leonardo ressaltou que a CNBB sempre foi contra a suspensão das demarcações, como aconteceu nas últimas semanas no Paraná e Rio Grande do Sul, por ordem expressa da ministra Gleisi.



O secretário-geral da CNBB pediu para a ministra que o Poder Executivo marcasse uma reunião e ouvisse os povos indígenas. Durante a coletiva, Gleisi Hoffmann afirmou que atenderá ao pedido e que as negociações sobre o processo de demarcação serão feitas até o fim do semestre.



A visita de Gleisi Hoffmann à CNBB deve ser compreendida no escopo de uma tentativa de pedir ao secretário-geral para que ele “acalme” o CIMI.



O CIMI – Conselho Indigenista Missionário, ligado à CNBB, que é justamente a grande voz da sociedade civil neste momento: decidido, firme, forte, contundente, sem peias... Após completar 40 anos em 2012, este organismo continua mais vivo do que nunca. Não sofreu os desgastes do tempo. Pelo contrário, à medida que outros movimentos sociais e eclesiais e entidades entraram em crise, o CIMI foi mantendo sua capacidade de fazer a defesa dos povos indígenas, seja durante a ditadura militar, seja em tempos de democracia política. Convém ressaltar que o CIMI não é uma entidade de indígenas – estes têm seus fóruns próprios e autônomos –, mas de assessoria à luta indígena, o que a diferencia, por exemplo, das pastorais sociais.



Em nota divulgada no começo de junho, o CIMI diz que “o governo Dilma aprofundou o processo de retração de demarcações das terras indígenas. É o governo que menos demarca terras indígenas desde a ditadura militar. O governo também tomou medidas administrativas lesivas aos direitos dos povos”. Em outra passagem a nota diz: “partindo de um pressuposto equivocado, o governo adota e anuncia medidas equivocadas para tentar resolver os conflitos por ele criados”.



Em seguida, o CIMI elenca quatro pontos para tentar solucionar verdadeiramente os conflitos envolvendo povos indígenas e o agronegócio: “a) destravar os processos de demarcação, tanto no campo administrativo, quanto no campo judicial; b) ouvir os povos indígenas; c) revogar os próprios instrumentos de ataque aos povos, tais como, as portarias 419/2011 e 303/2012 e o Decreto 7957/2013; d) mobilizar sua ampla base de apoio no Congresso a fim de que se evite os retrocessos almejados pelos ruralistas quanto aos direitos dos povos”.



Em maio passado, foi a vez da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul –ARPINSUL manifestar-se contra as medidas do governo: “É absurdo submeter à Embrapa, uma empresa de pesquisa do governo, a avaliação dos processos demarcatórios das terras indígenas. Isto é no mínimo um ato nefasto, na medida em que coloca por terra o trabalho sério de técnicos do próprio governo, para desavergonhadamente privilegiar o agronegócio!”. Em outra passagem a nota diz também: “A falha não é da Funai, a falha se deve ao conjunto de decisões equivocadas que o Estado Brasileiro tem tomado em relação aos Povos Indígenas, que agora são colocados publicamente como os inimigos do governo e do agronegócio e consequentemente do desenvolvimento”.



Garantias da Constituição Federal



No contexto deste conflito, alguns analistas retomam o que é uma conquista dos indígenas e seus defensores – e que foi incorporada à Constituição de 1988. Trata-se do artigo 231. “A aplicação do artigo 231 da Constituição resultaria no reconhecimento de terras indígenas em extensão suficiente para garantir a reprodução física e cultural de seus ocupantes. Já há e ainda haverá situações em que sua aplicação não será suficiente para prover terras em extensão mínima que garanta a sobrevivência e a reprodução cultural de grupos específicos. Não faz sentido desprover de direitos as pessoas que dispõem de títulos legítimos e às quais não se pode atribuir responsabilidades por políticas impostas aos índios no passado pela União ou pelos estados”, escreve Márcio Santilli.





Washington Novaes, por sua vez, diz que “precisamos relembrar o parecer do respeitado constitucionalista José Afonso da Silva no processo em que o STF reconheceu os direitos dos índios ianomâmis a suas terras em Roraima. Catedrático de universidades, assessor deMário Covas na Constituinte de 1988, secretário de Segurança Pública em São Pa ulo, o professor José Afonso liquidou a questão ao demonstrar que o reconhecimento dos indígenas a terras por eles ocupadas imemorialmente vem da legislação de Portugal, desde 1640”.



Prossegue Novaes: “Foi mantido pela legislação do século seguinte, chegou à nossa primeira Constituição, foi preservado nas de 1934, 1967 e 1988 - nesta, com o reconhecimento de que a demarcação de suas terras é um ato ‘meramente declaratório’, antecedido pelo ‘direito originário’ que está no artigo 231. ‘A demarcação’, diz o parecer, ‘não cria nem extingue direitos, reconhece apenas a situação de fato e o direito consequente’. E sendo assim, ‘a localização e extensão da terra indígena não é determinada segundo critérios de oportunidade e conveniência do poder público, porque o critério que define a localização e a extensão das terras é o da ocupação tradicional, ou seja, a demarcação tem de coincidir, precisa mente, com as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, definidas cientificamente por via antropológica’. E isso, conclui ele, não ameaça a soberania nacional nem a atuação das Forças Armadas”.



É preciso recordar que há 25 anos, a questão indígena tinha uma penetrabilidade social bem maior que tem hoje. Hoje, lutam com suas próprias forças. A ocupação do canteiro de Belo Monte, por exemplo, mostra o poder de mobilização que eles têm hoje. Não é qualquer movimento social que consegue parar hoje uma obra gigantesca como essa. Igualmente simbólica é a ida a Brasília para conversar com o Ministro Gilberto Carvalho. Não aceitaram que a conversa se restringisse a uma comissão de represen tantes – prática comum entre o movimento sindical e social – dos Munduruku. Obrigaram o governo a ceder também neste quesito, fazendo com que disponibilizasse dois aviões para levar cerca de 140 índios para Brasília. Não foram apenas homens, mas mulheres e crianças. Foram recebidos em audiência e saíram insatis feitos com as propostas do governo.