terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Divida pública consome metade do orçamento

Dívida pública consome metade do orçamento

“Vemos a utilização do instrumento do endividamento público às avessas”, denuncia Maria Lucia Fattorelli. Ex auditora fiscal da Receita Federal e presidente do Unafisco Sindical(Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), Fattorelli adverte que, se o instrumento de endividamento do Estado seria para completar suas receitas, o que acontece é exatamente o oposto: o pagamento da dívida tem tirado dos cofres públicos anualmente quase metade de seu orçamento. Em 2011 a dívida pública absorveu R$708 bilhões, o equivalente a 45% do orçamento da União e em 2012, a previsão orçamentária calcula que tenha sido em torno de 48%. A dívida, paga por todos os cidadãos brasileiros, já supera o valor de R$3 trilhões.< /span>
Da onde surgiu essa dívida? A quem ela está sendo paga? O que o povo brasileiro ganha com isso? Por que ela não para de crescer? Maria Lucia Fattorelli, formada em administração e ciências contábeis, ajuda a responder essas e outras questões. Desde 2000, ela integra o movimento Auditoria Cidadã, que investiga a dívida brasileira e pressiona pela realização de uma auditoria oficial, prevista na Constituição Federal mas nunca realizada. O movimento acaba de lançar um livro de estudos, “A dívida pública em debate”, com o objetivo de popularizar a discussão a respeito do tema, que, para eles, “é o nó que amarra o Brasil”.
Maria Lucia prestou assessoria técnica à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2010 e participou da auditoria oficial da dívida do Equador, que foi concluída em 2008. Com o resultado desse trabalho, que apontou diversas irregularidades, o presidente Rafael Correa propôs aos credores pagar 30% do valor previsto para resgatar todos os títulos.
Fattorelli aponta que o processo de endividamento foi bastante similar em todos os países latino-americanos e suspeita que boa parte da dívida brasileira, que surgiu nos anos 1970, foi simplesmente para financiar a ditadura militar. E mais: salienta a necessidade de investigar se, como aconteceu no Equador, a dívida brasileira não tenha prescrito em 1992 e simplesmente sido ressuscitada pelo governo em conjunto com integrantes do setor financeiro.
“Existe um sistema da dívida”, ressalta: “Esse sistema atua no modelo político, econômico, no sistema legal e na grande imprensa”. “Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia”, constata. “É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONUnos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano”.
A entrevista é de Gabriela Moncau e publicada na revista Caros Amigos.
Eis a entrevista.
A dívida pública brasileira já supera R$3 trilhões?
Se somarmos a dívida interna, que está em R$2 trilhões e 637 bilhões, e a dívida externa, que está em U$422 bilhões, superamos os R$3 trilhões.
Você já chegou a dizer que é melhor falar em dívida pública de maneira geral do que em dívida externa ou interna. Por quê?
Um livro de economia diz que dívida interna é a aquela contraída junto aos residentes no país. Se olharmos na página do tesouro nacional, os dealers são um conjunto de 12 instituições que tem o privilégio de comprar dívida em primeira mão, logo que o tesouro nacional lança os títulos. Estão lá o Citibank, o JP Morgan, o Barclays, o Deutsche Bank, o Royal Bank of Scotland, e por aí afora. Como se pode chamar dívida interna uma dívida que vai direto para a mão de bancos estrangeiros? Por isso dizemos que o mais correto é falar em dívida do setor público. Não existe nacionalidade para o dinheiro. Temos que continuar usando a classificação interna e externa porque na contabilidade pública está dessa forma, mas é preciso considerar o conjunto, a dívida é pública.
Qual a origem da dívida?
Se formos puxar o fio da meada, o Brasil já nasceu endividado. Quando tivemos nossa independência decretada, tivemos que assumir uma dívida que Portugal tinha contraído com a Inglaterra. Mas para pegar esse último ciclo, que é o mesmo que perdura até hoje, ele começou na década de 1970, durante a ditadura militar. Começa num período de total falta de transparência, a parte que aparecia era a do tal “milagre econômico”. Assumimos uma série de empréstimos externos para construir hidrelétricas, siderúrgicas, vários investimentos de infraestrutura.
Só que durante a CPI da dívida buscamos a explicação para a origem dessa dívida. E os contratos desses investimentos explicam menos de 20% dos gastos com a dívida daquela época. E os outros 80%? Fica uma suspeita: será que esse montante, ou pelo menos boa parte dele, foram compromissos assumidos simplesmente para financiar o próprio processo de ditadura militar? Estamos inclusive preparando para um contato com a Comissão da Verdade para incluir em seus trabalhos a investigação sobre o financiamento da ditadura. Quem bancou todos aqueles agentes internacionais que ficavam aqui? Quem bancou aquela estrutura de espionagem, todas as viagens? A maior parte dessa dívida foi junto a bancos privados internacionais. Não foi dívida, por exemplo, com o FMI [Fundo Monetário Internacional], como muitos brasileiros pensam.
Inclusive no governo Lula houve propaganda de que o Brasil pagou tudo o que devia para o FMI e a ideia de que portanto estaríamos livres de dívida externa.
Pois é. Isso aí surtiu o efeito político no imaginário dos brasileiros de que dívida externa é sempre com o FMI. E isso nunca foi fato. Todo o endividamento da década de 1970 foi principalmente com esses bancos privados internacionais, que estavam com excesso de liquidez. Ou seja: tinham um volume muito grande de moeda disponível. Por quê? No dia 15 de agosto de 1971, um domingo, o presidente Nixon simplesmente comunicou que não existiria mais a paridade do dólar com o ouro. Isso permitiu que os EUA ligassem a maquininha e imprimissem qualquer quantidade de dólar que quisessem. A essas alturas, 30 anos depois de Bretton Woods, o mundo inteiro já tinha absorvido o dólar como moeda de trocas internacionais.
Isso causou um excesso de liquidez em poder dos bancos. Esses bancos vieram principalmente aos países da América Latina e ofereceram empréstimos a taxas muito atraentes, em torno de 5%, no máximo 6% ao ano. Esses mesmos bancos privados comandavam o FED [Federal Reserve Bank], que é o Banco Central norte-americano. Ele tem cara de instituição pública, mas o conselho executivo é composto por 10 ou 12 bancos privados, aqueles mesmos que eram os credores. Por volta de 1979 essas taxas começaram a se elevar e chegaram a 20,5% ao ano. Em 1981 já ficou difícil de pagar e em 1982 começou pelo México, seguiu pela Argentina, Brasil, Peru, todos; entraram em crise.
Tem vários princípios de direito internacional que amparam uma revisão caso as condições pactuadas sejam transformadas. Muitos outros princípios foram desrespeitados, como o de conflito de interesse: eram os mesmos bancos credores que comandavam as instituições que determinavam a variação da taxa. Mas nenhum país nunca levantou essas questões, isso que é gravíssimo.
E o que aconteceu no momento da crise, nos anos 1980?
Nesse momento que vem o FMI, para oferecer um empréstimo que garantisse o pagamento imediato daquele período. Mas para garantir esse crédito, o FMI exigiu que cada país fizesse acordos, transferindo as dívidas com esses brancos privados internacionais para o Banco Central (BC).
Tanto as dívidas do setor público quanto do setor privado foram transferidas a cargo do Banco Central. E o mais grave: esse dinheiro que o BC assinou como devedor nunca veio para o Brasil. Por exemplo, as empresas A, B, C do setor público e as empresas X, Y, Z do setor privado tinham dívidas com bancos internacionais. O Banco Central assumiu papel de devedor mas essas empresas já tinham recebido o dinheiro que pegaram emprestado. Ele passou a ser devedor mas não recebeu esse dinheiro, ele só assumiu o ônus da dívida. Isso é muito importante porque é um indício da completa ilegitimidade dessa dívida. Como é que você tem uma dívida, que foi a transformação de outra dívida que você nem tem prova dela, e mais, como é que o BC assume uma dívida da qual ele nunca recebeu dinheiro? E nós é que temos que pagar?
Por que desde então esse valor não para de crescer?
Por causa das condições extremamente onerosas que foram impostas nesses acordos. A gente paga um pedaço dos juros, e outro pedaço é incorporado ao capital. Então foi virando uma bola de neve.
Na década de 1980 várias comissões do Congresso Nacional discutiram isso. Uma comissão em 1983 que teve um relatório brilhante, apontou verdadeiros crimes. Não deu em nada. Teve outra comissão em 1987, no Senado, o relator foi o Fernando Henrique Cardoso. Não deu em nada. Porém, como resultado de todo esse debate a respeito da dívida, entrou na Constituição Federal, em 1988, a necessidade de fazer uma auditoria da dívida. E logo depois foi formada uma comissão para fazê-la. Só que essa comissão enfrentou gravíssimos problemas políticos e quase não conseguiu trabalhar. O relatório foi do falecido senador Severo Gomes que fez uma breve análise jurídica dos acordos da década de 1980, que ele considerou nulas de pleno direito, cláusulas abusivas. Acho que todo brasileiro deveria ler o relatório dele, é um relatório curto q ue está disponível na página na internet da Auditoria Cidadã.
É um documento que tem um parágrafo que eu sei quase de cor: “Esses acordos colocam o Brasil de joelhos sem brios poupados, inerme e inerte, imolado à irresponsabilidade dos que negociaram em nosso nome e à cupidez de seus credores. Renúncia de soberania talvez nós tenhamos tido algumas, mas uma renúncia declarada à soberania do país é a primeira vez que consta de um documento, faz dele talvez o mais triste da história política do país”. Mais uma vez não deu em nada e a Constituição não foi cumprida. E a dívida crescendo.
Existe a suspeita de que essa dívida já tenha prescrito?
Sim, temos uma suspeita de que em 1992 essa dívida passou por um processo de prescrição. Porque todos esses acordos da década de 1980 foram firmados em Nova Iorque e a lei regente desses acordos era a lei de Nova Iorque. Segundo essas leis, as dívidas prescrevem em seis anos. Então, se eu tenho uma dívida com você e interrompo o pagamento, você tem seis anos para me acionar. Seja administrativamente, seja judicialmente. Se você não fez nada, dali a seis anos a dívida morreu, prescreveu. Isso está previsto na lei norte-americana, chama estatuto de limitações. Se uma parcela deixa de ser paga, isso provoca a antecipação do vencimento de toda a dívida.
Em 1986, houve uma interrupção de pagamento de juros daqueles acordos. A partir desse momento começou a contar o prazo de prescrição. Passaram-se seis anos e não houve nenhuma exigência para que o Brasil efetuasse esse pagamento. O BC não foi compelido por nenhuma ação administrativa ou judicial a efetuar o pagamento. Então temos a suspeita de que em 1992 a dívida prescreveu.
Por que um governo optaria por ressuscitar uma dívida já prescrita?
Aí que está. Entra mega corrupção, mensalão é grão de areia perto disso aí, e uma série de outras coisas. Por que temos uma suspeita tão forte que isso tenha acontecido no Brasil? Vários documentos que tivemos acesso no CPI da dívida mencionam um contrato de renúncia que nunca apareceu. Mas em 1992 houve uma forte pressão no Senado para aprovar uma resolução que autorizasse uma negociação no exterior. Uma negociação de mais de 60 bilhões de dólares. A pressão para aprovar isso foi tão forte que esse documento saiu do Ministério da Fazenda para o Senado e em poucos dias foi aprovado, nesse mesmo dia já saiu parecer da Procuradoria da Fazenda, foi tudo muito ágil.
Quem participou dessa comissão que fez essa renegociação em 1992? Foi um contrato feito no Canadá, que nunca apareceu. Um grupo de várias pessoas do Ministério da Fazenda e do Banco Central participou, mas três nomes de destaque, que na época não tinham cargo, eram tipo consultores do setor financeiro: Armínio Fraga, Pedro Malan e Murilo Portugal. Essa negociação feita em 1992 permitiu que toda essa dívida com bancos privados, proveniente desses questionáveis acordos da década de 1980, fosse transformada em títulos, em papéis de dívida negociáveis no setor financeiro, os tais bônus brady. Essa transformação se concretizou em 1994, período em que, com a eleição do Fernando Henrique Cardoso, o Pedro Malan virou Ministro da Fazenda, o Murilo Portugal virou presidente do tesouro e o Armínio Fraga, presidente do Banco Central . Entendeu?
Essa conversão foi tão absurda que ela foi feita em Luxemburgo, um paraíso fiscal, porque nenhuma bolsa de valores regular aceitaria uma conversão desse tipo. Foi uma conversão direta, não foram títulos que o Brasil ofereceu ao mercado e recebeu dinheiro em troca. Mais uma vez, nenhum centavo entrou no país. Foi uma troca direta: de papel por papel. E pagando juros, pagando taxas, pagando comissões, pagando encargos... Por isso a dívida cresce sem parar. Simplesmente se assume uma dívida, sem que o dinheiro entre.
É um endividamento sem nenhuma contrapartida?
Sem contrapartida! Em 1994, converteu em bônus brady, provavelmente ressuscitaram uma dívida morta – que fique registrado que é uma suposição que temos, não encontramos ainda documento que comprove. Temos indícios por conta da menção a um contrato de renúncia em outros documentos e o paralelo que fazemos com o Equador. Porque todo o processo foi idêntico: a dívida da década de 1970, os acordos da dívida nas mesmas datas, a entrada do FMI em 1983, as exigências do FMI, o brady, tudo igual.
Aqui no Brasil esses bônus brady resultantes dessa conversão foram acatados como moeda na compra das nossas empresas submetidas ao processo de privatizações. Então, além de assumir uma dívida absurda porque dinheiro nunca entrou, as nossas empresas ainda foram trocadas por esses papéis de dívida. E quando esses papéis de dívida externa entram no tesouro, o que o tesouro fez? Trocou essa dívida por dívida interna. E aí começa a bola de neve da dívida interna a partir de 1994.
Veio o plano real, com taxas de juros interna altíssimas. Uma das táticas do plano real foi liberar totalmente as importações para que o produto importado chegasse aqui bem baratinho e forçasse as indústrias nacionais a baixar o preço, muitas até quebraram. Só que aquela avalanche de importados tinha que ser paga. E como ser paga se o Brasil não produz dólar? O país abriu para o investimento do estrangeiro na compra de títulos da dívida interna, que paga os maiores juros do mundo. Tudo isso para controlar a inflação. A dívida interna começou a dobrar a cada mês. Então veja bem: dívida externa emitida para pagar dívida anterior e dívida interna para sustentar o plano real.
Com tudo isso, eu pergunto: qual o benefício para a nação? Pois essa dívida é paga por nós tanto com base nos elevados tributos embutidos em tudo que consumimos como nos demais impostos (de renda, de casa, de carro, etc). E cadê os serviços públicos a que temos direito? Como está a educação, a saúde, o transporte? Uma dívida tem que ter alguma contrapartida que justifique todo esse esforço dos cidadãos para pagá-la.
A própria ideia de endividamento público, na teoria, é para completar as receitas do Estado. Pelo jeito o que acontece é o contrário, os recursos do Estado são só retirados.
Exatamente. É a utilização do instrumento do endividamento público às avessas. Endividamento deveria servir para aportar recursos à nação. Aí sim se justifica. Não, o endividamento público se transformou num mecanismo de transferência dos recursos públicos para o setor financeiro privado. A isso cunhamos um termo: existe um sistema da dívida.
Isso é um sistema, tem princípio, meio e fim. Aqui no Brasil, quais as principais metas atualmente? Não são de bem estar social, de pleno emprego, etc. As metas do nosso modelo econômico são superávit primário, metas de inflação. Quem se beneficia? O sistema da dívida.
Para operar, o sistema da dívida interfere no modelo político. O poder econômico é que elege a maior parte dos representantes que estão lá na Câmara, no Senado, nas Assembleias Legislativas. Quem financia as campanhas de quem vence as eleições? Principalmente bancos e grandes corporações que tem um pézinho no setor financeiro. Ao eleger, é claro que vão exigir uma postura na votação das leis, nas medidas, nas licitações. Para operar, esse sistema garante um aparato de membros do Legislativo e do Executivo que está na mão deles.
Isso é tão forte que agora na Europa, com a crise, posso dar exemplo. Na Grécia, o primeiro-ministro anterior, o Papandreou, resolveu fazer um plebiscito sobre aceitar os empréstimos da troika em troca das medidas de austeridade. No dia que comentou sobre esse plebiscito, ele foi obrigado a renunciar. E quem entrou no lugar dele? Um tecnocrata do Goldman Sachs [Lucas Papademos]. Isso escancara como atua o poder econômico no âmbito político.
O sistema da dívida garante também um aparato legal que privilegia seu pagamento em detrimento de todos os outros gastos sociais. Aqui no Brasil para isso foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal. É claro que todo mundo quer que o setor público tenha responsabilidade fiscal, agora se você for ler essa lei, você vê que ela privilegia o pagamento da dívida sobre todos os outros pagamentos. Vamos supor que diante de uma calamidade no Estado o governador escolha não pagar a dívida naquele mês, para atender as vítimas da tal tragédia. Ele não tem essa opção. Se fizer isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal aplica o Código Penal, criminaliza o gestor público que não priorizar o pagamento da dívida. Isso tudo é modus operandi do sistema da dívida. E é assim no mundo inteiro.
Também houve durante o governo Lula medidas provisórias privilegiando o pagamento da dívida?
Em 2008, com a desculpa da crise. A medida provisória (MP) dizia que toda a sobra no orçamento de qualquer rubrica que não for gasto durante o ano, no final do ano pode passar o rodo e pagar a dívida. Por que não tem uma norma assim para a educação? Tudo o que não for gasto, reverte no fim do ano para a educação. Existe uma norma assim para a dívida. Foi a MP 435 e depois a MP 450.
O poder econômico opera também na grande mídia. A grande imprensa não publicou nem uma linha sobre a CPI da dívida. A maioria da população não fica sabendo. Então o poder econômico atua principalmente no modelo econômico, político, no sistema legal e na grande imprensa. Não é peixe pequeno, não. Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia. É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONU nos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano.
Quais foram as principais constatações da CPI?
O primeiro mérito dessa CPI é o fato de ter sido resultado da luta social. Segundo, a CPI permitiu o acesso a muitos documentos que nós brasileiros nunca tivemos acesso. As constatações mais importantes foram essas, como o fato de 80% da origem da dívida não ter sido explicada, mais de 90% da dívida ser com bancos privados internacionais, que o FMI nunca foi nosso principal credor.
Que engodo foi o povo achar que quando a dívida com o FMI foi paga, não havia mais dívida. A dívida com o FMI sempre teve dois preços: o financeiro e o político. O preço financeiro sempre foi muito baixinho. Quando o Lula pagou era 4% de juros ao ano. O FMI faz isso porque o preço político é muito alto. Ele exige simplesmente acesso a todas as informações que ele quiser, a tempo e a hora, e vincula essa ajuda econômica ao direito de indicar como vai ser a política adotada pelo país, e monitorar tais medidas. Então o que o Lula fez? Pagou a dívida financeira de 4% antecipadamente – e diga-se de passagem, para pagar a dívida com o FMI foram emitidos títulos da dívida interna, que na época pagavam juros de 19,3%. Então não pagamos a dívida. Ela meramente mudou de mãos, deixamos de dever ao FMI para dever aos detentores dos títulos da dívida interna.
Então financeiramente foi um dano. E politicamente: no dia do pagamento ao FMI, o Palocci, que era ministro da Fazenda, publicou na página do Ministério uma declaração formal. Uma carta dizendo que o pagamento não significava a desvinculação ao inciso tal do estatuto do FMI, ou seja, todo o direito do FMI de monitorar a economia, ter acesso aos dados, etc., prevalecia.
A partir de 2005, o tesouro nacional começou a resgatar antecipadamente títulos da dívida externa, e pagando ágil. É inacreditável, pagar uma conta antes do vencimento e ao invés de pedir desconto, paga ágil.
Por que o tesouro nacional pagou antecipadamente?
Conseguimos aprovar requerimento na CPI para perguntar por quê. O que explica isso é o fato da dívida brasileira estar sendo regida pelo Benchmark. É uma marcação de mercado. E um dos itens desse bendito Benchmark é a satisfação do investidor. Então, o Brasil emitiu títulos da dívida externa em dólar, quando o dólar valia R$4. Depois o dólar caiu para R$1,50. O investidor que comprou esses títulos ficou frustrado. Então o Brasil resgatou com ágil, para manter a satisfação do investidor. Tem condição? Isso foi uma das importantes descobertas da CPI.
Outra importante descoberta: como são definidas as taxas de juros Selic. São definidas pelo Banco Central não com base em fórmula matemática ou qualquer processo científico, mas com base em reuniões realizadas com especialistas do mercado financeiro que vão lá dizer a indicação do patamar em que as taxas de juros deveriam estar para não significar um risco inflacionário. Um tremendo conflito de interesses, porque quem se beneficia das taxas de juros? Por isso no início da crise que as taxas começaram a subir loucamente, você pensa “Peraí. Em período de recessão, de desaceleração, para que subir juros? Qual o risco de inflação? Não tem nenhuma lógica”. E não tem nenhuma lógica mesmo, o mercado financeiro queria compensar no tesouro perdas nas operações de risco que estavam fazendo. É inacreditável.
Em relação à crise econômica mundial, você acha que existe chance de o Brasil seguir o mesmo caminho dos países europeus que estão quebrando? Existe uma sensação geral de que a crise não nos afetou, não nos afetará. O que você espera para 2013?
A crise já está aqui. Está aqui desde a década de 1980 e de certa forma, a gente vem se acostumando com todos esses planos de ajuste, essas medidas de privilégio da dívida em detrimento ao social, com todo esse desrespeito profundo ao cidadão que está financiando o Estado sem o devido retorno.
Agora, esse último aspecto da crise que estourou em 2008 nos Estados Unidos e se transferiu para a Europa, tem fundamento principalmente na extrema financeirização mundial. O que é isso? Os bancos passaram a criar papéis a partir da década de 1990. Simplesmente criar os chamados derivativos, que são meras apostas. E passaram a comercializar esses derivativos no mundo inteiro, não tem limite. Isso entrou em colapso quando a ganância foi grande demais, a especulação do mercado imobiliário norte-americano grande demais, houve uma interrupção nessa corrente e caiu tudo, igual um dominó.
Por que o Brasil não foi atingido no primeiríssimo momento por essa crise específica? Porque aqui no Brasil as regras, inclusive do funcionamento do mercado financeiro, não permitiam esse tipo de negociação. Além disso, no mercado financeiro mundial se bancos do nível do Citibank, do Barclays, do Chase, do Bank of America, etc., estavam oferecendo derivativos, quem ia comprar derivativo dos bancos brasileiros? Então os bancos brasileiros não estavam dependurados nessa onda dos derivativos, que foi a causa da crise lá fora.
Por isso essa onda não nos atingiu tanto no primeiro momento, mas atingiu. E atingiu inclusive empresas brasileiras como a Sadia, a Aracruz, que tinham feito investimentos de alto risco nesses derivativos e foram salvas pelo BNDES, o Luciano Coutinho confessa isso no livro dele. Bilhões de reais foram repassados pelo BNDES a essas empresas. Além dessas empresas que foram salvas, houve queda de arrecadação, fuga de capitais e uma série de medidas com a desculpa da crise, inclusive aquelas MPs que eu mencionei.
Bom, o que nos provoca desespero? A partir daí, começaram a fazer modificações legais para permitir que os bancos brasileiros atuem com derivativos e começamos a criar fundos financeiros para absorver derivativos.
É repetir o mesmo processo que aconteceu nos EUA?
Isso, é abrir os braços e pedir “crise, venha para nós”. Isso aí provocou um impacto direto no oferecimento de crédito, porque essas operações geram uma lucratividade tão grande – pensa bem, é vender papel do nada – que com tantos recursos os bancos oferecem crédito. Está todo mundo endividado, os próprios bancos estão empurrando crédito na sociedade.
Eu não tenho dúvida de que pode piorar muito. Mas acho que vão deixar para estourar depois da copa e dos jogos olímpicos, para dizer que foi a dívida desses mega eventos. Mas já estamos em recessão. Olha o crescimento do PIB. Com muito boa vontade chegou a 1%. O que existe é muita propaganda. Como é que o país está muito bem? Com esse estado de violência, com essa decadência na saúde pública, na educação? Está bem para quem?

A arte é um casamento entre o ideal e o real

Artigo de Camille Paglia



As fés são vastos sistemas de símbolos que falam sobre nós. É daí que as artes visuais devem recomeçar, evitando o kitsch.

A opinião é da escritora norte-americana Camille Paglia, ex-professora da University of the Arts in Philadelphia. O texto que segue é um trecho da introdução de seu livro Glittering Images: A Journey Through Art from Egypt to Star Wars. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 20-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A arte é um casamento entre o ideal e o real. A criação artística é um ramo do artesanato. Os artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com a sua empolada retórica autorreferencial. A arte usa os sentidos e fala aos sentidos. Afunda as suas raízes no mundo físico tangível.

O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, por isso, é incompetente para iluminar qualquer forma artística fora da literatura. O discurso sobre a arte deve se aproximar dela e descrevê-la nos seus próprios termos. É preciso encontrar um delicado equilíbrio entre o mundo visível e o invisível. Quem subordina a arte à agenda política contemporânea é tão culpado por literalismo rígido e por propaganda quanto um pregador vitoria no ou um burocrata stalinista qualquer.

Uma das razões da atual marginalização das belas artes é que os artistas se voltam muito frequentemente a outros artistas e perderam o contato com as pessoas comuns, das quais desprezam e zombam os gostos e os valores. A maior parte dos artistas norte-americanos são progressistas que têm um contato mínimo, senão nulo, com quem pensa diferente deles. O progressismo militante antiestablishment e defensor da liberdade de expressão dos anos 1960 (com a qual eu me identifico fortemente) transformou-se no utópico mundo ideal da classe dos profissionais afluentes, com os seus vagos impulsos filantrópicos e uma estranha passividade com relação a governo pomposo e autoritário.

Uma ortodoxia monolítica abandonou os artistas em um gueto de opiniões óbvias e os cortou fora das ideias novas. Nada é mais banal do que o dogma progress ista, segundo o qual um valor chocante automaticamente confere importância a uma obra de arte. A última vez que isso foi verdade foi, talvez, no fim dos anos 1970, com as fotografias homoeróticas e sadomasoquistas de Robert Mapplethorpe. Mas a cultura seguiu em frente. No século XXI, buscamos o significado, não a sua subversão.

Os conservadores também, por sua vez, pecaram contra a cultura. Apesar dos seus toques de trombeta por um retorno da educação ao cânone ocidental, eles se comportaram como filisteus provincianos com relação às artes visuais. Embora haja muitos críticos de arte sofisticados entre os conservadores urbanos, o impulso do movimento conservador norte-americano se alimentou sobretudo com as regiões agrárias onde prospera o cristianismo evangélico. O protestantismo tem uma história de iconoclastia: durante a Reforma no norte da Europa, as estátuas das igreja s e os vitrais coloridos foram sistematicamente destruídos por serem idólatras. Com relação ao catolicismo romano, tão rico em arte, o protestantismo norte-americano tradicional é visualmente pobre. As suas imagens de Jesus como Bom Pastor são muitas vezes artisticamente tão fracas que beiram o kitsch.

A maior parte dos conservadores atua em um clima que é indiferente ou hostil com relação à arte. Os principais escritores e críticos conservadores parecem cegos diante da intrincada interconexão entre arte e política na antiga Grécia que inventou a democracia. O nu, baseado no estudo científico da anatomia, foi o grande símbolo do individualismo ocidental que os gregos nos deixaram de herança, mas os conservadores cristãos nunca permitiriam exibir nas escolas públicas os heroicos nus da arte ocidental. O puritanismo norte-americano hesita na suspeita conservadora de que há uma feitiçaria na beleza.

Por outro lado, uma quantidade enorme da melhor arte ocidental foi intensamente religiosa, e os progressistas, que queriam que os presépios fossem tirados das praças, objetariam, por sua vez, contra a instrução doutrinal necessária para apresentar a iconografia cristã na escola pública. Por isso, a educação artística foi obstaculizada nos Estados Unidos, vítima do fogo cruzado da política.

Embora eu seja ateia, respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas de símbolos que contêm uma verdade profunda sobre a existência humana. Embora em seu nome se tenham cometido males, a religião tem sido uma força enorme de civilização na história do mundo. Zombar da religião é algo pueril, sintomático de uma imaginação atrofiada. Porém, essa posição cínica tornou-se de rigor no mundo artístico, um motivo a mais para a banal s uperficialidade de grande parte da arte contemporânea à qual não restou nenhuma grande ideia.