sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Como foi a grande invasão




David Alandete


Os alarmes se acenderam na sede do Google em Mountain View, Califórnia, no início deste mês. Os engenheiros encarregados da segurança das redes da empresa tinham encontrado um vírus troiano. Mais um. Este, no entanto, era diferente dos outros. Havia se alojado nos servidores durante dias, trabalhando silenciosa e incansavelmente. Os espiões tiveram acesso à informação muito valiosa da companhia e à informação relativa às contas de vários usuários do Gmail, o serviço de correio eletrônico do Google.

O troiano, batizado de Hydraq, tinha penetrado nos servidores do Google de uma forma já quase rotineira: um link anexado a um e-mail. Essa mensagem foi recebida por apenas alguns funcionários, mas tratava-se de um grupo muito seleto, que tinha acesso a redes valiosas para a empresa. Os hackers sabiam perfeitamente quem estavam atacando e que portas queriam forçar para entrar no Google e roubar a informação secretamente.

Os espiões tinham enviado mensagens verossímeis, com assuntos e textos semelhantes aos que esses funcionários teriam recebido em um dia normal de trabalho, segundo comprovaram posteriormente empresas de segurança online como Symantec e McAfee. Depois, através de uma falha no Internet Explorer da Microsoft, os hackers teriam causado uma profunda brecha no Google. Quando um troiano desse tipo se instala no computador ou servidor, pode assumir o controle dele; pode acionar e apagar programas, criar privilégios, permitir acessos e, sobretudo, pode enviar informação para seus donos a milhares de quilômetros, à vontade.

Para os engenheiros do Google, o principal era saber para onde o Hydraq tinha enviado aquela informação. Os engenheiros determinaram que se comunicava com servidores de comando e controle que a empresa rastreou imediatamente, seis endereços com nomes como yahooo.8866.org ou ftp2.homeunix.com. Todos eles estão localizados em Taiwan. A grande maioria, cinco, era propriedade da empresa local Era Digital Media.

O que o Google descobriu naqueles servidores era preocupante. O ataque não tinha sido dirigido só à empresa da máquina de buscas mais famosa do mundo. Havia outras 33 companhias atacadas. Muitas delas vitais para a segurança dos EUA, como a empresa química Dow Chemical ou a produtora dos caças B-2 Spirit, Northrop Grumman, contratada pelo Pentágono.

A pedido de Washington, o governo de Taiwan investigou o assunto e chegou à conclusão de que esses endereços eram só uma rota de ataque. Os hackers os haviam ocupado e usado para canalizar a invasão. "Esses endereços IP e os servidores dos quais partiu o ataque e se enviaram aquelas mensagens eletrônicas, todos foram usados no passado por hackers associados ao governo chinês ou por agências que dependem diretamente dele", explica um investigador que trabalha para uma empresa de segurança que presta serviços para outras firmas atacadas e prefere se manter no anonimato. "Isto dá uma ideia de que o ataque veio do governo ou de gente associada ao governo chinês."

O Google informou às outras empresas e ao governo de Washington, alertando sobre o que poderia ser o maior caso de espionagem industrial e estratégica da história. No Departamento de Estado houve certo nervosismo, suficiente para que sua titular, Hillary Clinton, emitisse um comunicado e anunciasse, dias depois, o envio de uma nota de protesto diplomático a Pequim. No Pentágono, entretanto, poucos estranharam: suas agências de inteligência já tinham descoberto em abril do ano passado uma série de ataques semelhantes, que deixaram um rastro de troianos e códigos maliciosos na rede elétrica dos EUA, procedentes da Rússia e principalmente da China.

Aquele ataque foi descoberto semanas e até meses depois de os espiões terem se infiltrado nas redes. O dano já estava feito. Se tivessem desejado, os espiões poderiam ter desligado a eletricidade de regiões inteiras dos EUA, por exemplo. A secretária de Segurança Nacional, Janet Napolitano, disse que se sabia "há algum tempo" desse tipo de infiltração, mas recomendava que o país "ficasse alerta". A China, através de seu Ministério das Relações Exteriores, afirmou que não havia se infiltrado em nenhuma rede pública americana.

Desde os anos da Guerra Fria e das sofisticadas operações de espionagem realizadas por agentes secretos, os procedimentos podem ter mudado drasticamente. "Assim poderia estar sendo feita a espionagem do futuro", explica Rob Knake, analista de ciber-segurança no Conselho de Relações Internacionais de Washington.

"O governo chinês tem todas as capacidades necessárias para armar uma operação dessa escala, disso não há dúvida, embora por enquanto tudo sejam suposições. E tem os recursos humanos e a disciplina necessária para executá-lo, algo que uma organização privada não poderia fazer. Isso demonstra como se pode estar efetuando a espionagem entre nações. Trata-se de operações realizadas através da rede, com muito pouco custo para os que as fazem, e, se derem certo, elevados benefícios."

Na delicada ordem mundial cibernética, a China supera os EUA: sua comunidade de internautas atingiu 380 milhões de pessoas, contra pouco mais de 220 milhões nos EUA, segundo a consultoria Nielsen Online. Além disso, "na China existe uma população abundante de jovens que são muito dedicados à causa do governo", explica Cheng Li, diretor do Comitê Nacional de Relações entre China e EUA e analista do Instituto de Pesquisas Brookings de Washington. "Não podemos dizer que sejam maioria. Mas existem, e são jovens com elevados conhecimentos de informática e com sentimentos indubitavelmente nacionalistas. E para alguns deles uma operação assim seria um triunfo, uma medalha."

Aí está o grande debate: se a operação foi algo cometido por alguns hackers vagamente associados ao governo, como um atentado em rede inspirado pelo fervor patriótico, ou se a mão do governo de Pequim se encontrava efetivamente por trás da operação. A reação da diplomacia americana parece indicar o segundo, pois Washington chegou a anunciar o envio de um protesto diplomático a Pequim.

Em um discurso em Washington na quinta-feira passada, Hillary Clinton deixou claro que os EUA não vão tolerar outro ataque dessas características, com duras advertências: "Quanto ao terrorismo de determinados Estados e seus associados, estes devem saber que os EUA protegerão suas redes, e aqueles que interromperem o livre fluxo de informação para nossa sociedade e para qualquer outra são considerados um risco para a economia, para o governo e para a sociedade civil".

O tipo de informação que os espiões obtiveram parece confirmar que por trás de seu ataque havia algo mais que um simples roubo de dados comerciais. O próprio vice-presidente executivo e chefe do departamento jurídico do Google, David Drummond, telefonou para a ativista tibetana Tenzin Seldon, estudante na Universidade Stanford, para avisá-la de que sua conta do Gmail tinha sido infiltrada. Levaram seu computador portátil. Procuraram troianos, alguma brecha do exterior e não encontraram nada. Os espiões tinham acessado seu correio através de informação armazenada nos servidores do Google.

Segundo um relatório feito no ano passado pela Northrop Grumman para a Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China, esse é o tipo de informação que o governo de Pequim procura: "As categorias de informação roubada não têm qualquer valor monetário, como números de cartões de crédito ou informação sobre contas bancárias, que são objeto de organizações cibercriminosas. Informação técnica de engenharia de defesa, informação relativa aos exércitos ou documentos de análise política dos governos não são material facilmente vendável pelos cibercriminosos, a não ser que haja um comprador que seja um Estado-nação".

Ao intuir que haveria uma motivação política por trás do ataque, a direção do Google organizou um ato conjunto de desafio ao governo chinês. Pediu às outras empresas que dessem a entender que estavam fartas, que exigissem novas regras do jogo. Mas as negociações não tiveram êxito. As outras empresas -não só Dow Chemical ou Northrop Grumman, mas também a empresa de segurança online Symantec, o Yahoo ou a Adobe- preferiram continuar fazendo negócios na China como sempre, sem irritar o governo.

A própria natureza das empresas afetadas explica por que o Google reagiu desse modo e as outras não. Segundo Ed Stroz, um ex-agente do FBI que agora é codiretor da prestigiosa empresa de segurança digital Stroz Friedberg, "essas empresas têm uma segurança fortíssima. Estamos falando, em alguns casos, de firmas de segurança que trabalham ou trabalharam para o Pentágono. Não têm só uma rede. Normalmente essas empresas contam com diversas redes que não estão conectadas entre si, para salvaguardar a informação".

As empresas deixam vazios entre suas redes para evitar roubo de informação. "Duvido que os hackers tenham chegado ao coração da informação de muitas dessas companhias. Mas o caso é outro se a empresa afetada se dedica a prover serviços aos usuários. Uma empresa concentrada em buscas ou em correio eletrônico como o Google deve ter mais informação em seus servidores gerais. Para elas, a interconexão e a rapidez são vitais. Foi assim que se chegou a obter dados sobre as contas de ativistas, e daí a reação do Google", acrescenta Stroz.

Um dos temores do Google é que os hackers tenham contado com ajuda interna. Ao saber do ataque, a empresa começou a investigar seus funcionários na China. "Minha impressão é que as empresas que localizam sua pesquisa e desenvolvimento na China e empregam cidadãos chineses para trabalhar em seu software provavelmente melhoraram a capacidade de infiltração em informática dos serviços de inteligência e segurança chineses", explica Larry Wortzel, um dos mais reputados especialistas em relações sino-americanas e membro da Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China.

Afinal, esses são os riscos associados a entrar no maior mercado de Internet do mundo. As empresas ocidentais que buscam um benefício sabem a que se submetem: um mercado opaco, duras normas de censura e a possibilidade de vazamentos e ataques. Para o Google é um preço alto demais. Outras, como Microsoft e Yahoo, decidiram continuar jogando.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Capitalismo oligárquico & crise ecológica



"Pela primeira vez, a humanidade se encontra com o limite dos recursos naturais''


Hervé Kempf, jornalista do Le Monde, acaba de publicar seu segundo livro – Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo – sobre a devastação dos recursos naturais. Expõe que, para desenhar políticas ecológicas, é preciso priorizar valores opostos aos que regem o ordenamento econômico e social do mundo.

A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada pelo jornal Página/12, 11-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Com uma grande capacidade pedagógica e sem jamais cair na histeria anticapitalista ou na denúncia incendiária embebida em outras ideologias, Kempf apresenta uma evidência perante a qual o ser humano fecha os olhos: a humanidade se dirige para sua perda levada por um modelo político e econômico que terminou por contaminar e esgotar a essência mesma da vida. Como sobreviver a semelhante cataclismo? De uma só maneira, diz Kempf: rompendo as amarras que nos ligam ao capitalismo. Kempf demonstra que o capitalismo atual, enredado pela corrupção, a gula, a cegueira e o apetite especulativo de seus operadores é o responsável pela crise ecológica que ameaça a existência de nossa aventura humana. O único remédio é, diz Kempf, romper sua lógica, restaurar e inventar outros valores antes que um cataclismo nos engula. Hoje, o sistema capitalista nem sequer é capaz de garantir a sobrevivência das ge rações futuras. Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo sairá na Argentina no primeiro semestre deste ano sempre nas impecáveis e indispensáveis edições de Livros do Zorzal.

Eis a entrevista.

No seu livro anterior, Como os ricos destroem o planeta, o senhor expôs um aspecto do saque de nosso planeta. Nesta segunda obra, o senhor formula, ao mesmo tempo, uma denúncia implacável sobre os estragos causados pelo sistema ao planeta e propõe uma metodologia para atenuar a crise do meio ambiente.

Estamos ao mesmo tempo em uma situação de crise ecológica extremamente importante, com uma dimensão histórica nunca vista antes, e em um sistema econômico que não muda apesar de todos os indicadores ecológicos estarem no vermelho. A classe dirigente, que eu chamo oligarquia, escolheu não tomar as medidas necessárias para atenuar a crise ecológica porque quer manter seus privilégios, seu poder e suas riquezas exorbitantes. A oligarquia sabe perfeitamente que, para ir para uma política ecológica, seria preciso colocar em dúvida suas vantagens. Para a filosofia capitalista, todas as relações sociais estão garantidas unicamente pelo intercâmbio de mercadorias. Para sair dessa situação e voltar a uma política ecológica e de justiça social, é preciso trabalhar os valores de cooperação, de solidariedade, de bem comum, de interesse geral.

Há assim dois cataclismos simultâneos: o esgotamento do sistema econômico e o esgotamento dos recursos naturais e as mudanças do clima. Ambos poderiam acabar num enfrentamento.

Já estamos constatando esse enfrentamento. A oligarquia mantém um modelo cultural de hiperconsumo que divulga para o conjunto da sociedade através da televisão, a propaganda, os filmes. Esse modelo tem que mudar, mas está tão arraigado na maneira de viver da oligarquia com sua enorme acumulação de riquezas que esta se opõe a essas mudanças. Um milionário nunca aceitará andar de bicicleta porque seu modelo, seu poder, seu prestígio, é o carro caro. Se queremos atenuar a crise ecológica, este é o modelo que devemos romper. É necessário reduzir o consumo material e o consumo de energia. Estamos então em pleno confronto entre a ecologia e a justiça, por um lado, e, pelo outro, uma representação do mundo totalmente inadaptada aos desafios de nossa época.

Por acaso a defesa do meio ambiente, tudo o que está ligado ao clima, não pode chegar a se converter em uma nova forma de plataforma política mas já não marcada pela ideologia?

Sem dúvida que sim, ainda mais que estamos em uma situação histórica que nos impõe essa plataforma. A crise ecológica que estamos vivendo é um momento histórico. É a primeira vez que a humanidade se depara com os limites dos recursos naturais. Até agora, a natureza nos parecia inesgotável, e isso permitiu a aventura humana. Mas há uma geração compreendemos que chegamos num limite, entendemos que a natureza pode se esgotar e que a humanidade, a civilização, deve estabelecer um novo laço com seu meio ambiente, com a natureza, a biosfera. O momento é a tal ponto histórico que em um curto prazo, 20 ou 30 anos, este é o tema que dominará todas as questões políticas. Esse é o elemento-chave de toda política que, sem ideologias, busca definir um pós-capitalismo ecológico e social. Em menos de duas décadas, devemos mudar nossa sociedade para enfrentar o desafio do muro ecológico ao que a cultura humana está confrontada. Somos obrigados a realizar uma mutação cultural, não só na forma de conceber a sociedade, isto é, o desprendimento dessa cultura capitalista que se voltou mortífera, mas também na maneira em que interrogamos a cultura ocidental e essa dicotomia existente entre natureza e cultura. Passamos para outro momento histórico.

Mas hoje temos uma condição de paradoxo geral: estamos num sistema capitalista ultra-individualista e competitivo ao mesmo tempo em que vivemos numa sociedade de coletivização da informação e de contato através da Internet.

A Internet e a comunicação direta entre indivíduos não têm ainda o suficiente contrapeso. O poder capitalista não só controla os fluxos financeiros ou o poder econômico, também controla os meios de comunicação, e isso impede que exista uma verdadeira expressão da crítica social ou a difusão de visões alternativas. A Internet é, por enquanto, um canal de segurança através da qual a crítica social e a crítica ecológica, que agora começam a andar juntas, começam a ter canais de informação independentes. No entanto, por enquanto, essa utilidade é muito menos potente. As capacidades de informação alternativas da Internet ou dos livros e revistas são ainda frágeis frente aos meios dominantes, especialmente a televisão, que está nas mãos da oligarquia e que imprime na sociedade uma visão controlada, dirigida e convencional das coisas.

O senhor assinala também os limites da ilusão tecnológica. O senhor demonstra como a oligarquia nos faz acreditar que a tecnologia vai resolver todos os nossos problemas e como e por que se trata de uma mera ilusão destinada a perpetrar o sistema.

O sistema capitalista quer crer que vamos resolver os problemas, em particular o do aquecimento global, recorrendo aos agrocombustíveis, à energia nuclear, à energia eólica e a outras diversas tecnologias. É certo que essas tecnologias podem ter um papel, mas de nenhuma maneira estão à altura do desafio que nos coloca o aquecimento do planeta. E não é possível que seja assim porque, por um lado, o prazo e a dificuldade para levá-las à prática requerem muito tempo para assumir as transformações necessárias. As mudanças climáticas se produzem agora a uma velocidade muito alta e, daqui a uns dez anos, já temos que haver mudado de rumo. Por outra parte, todas essas técnicas, se bem que algumas têm efeitos favoráveis, também têm efeitos secundários muito prejudiciais que não podemos ignorar. É óbvio que é necessário seguir investigando novas tecnologias, mas não podemos colocar a tecnologia no centro das ações que devem empreender nossas socieda des. Essencialmente, para prevenir o agravamento da crise ecológica é preciso reduzir o consumo material e o consumo de energia. Essa é a solução mais direta. Mas essa mudança profunda de orientação de nossas sociedades só se fará se o esforço for compartilhado de maneira equitativa, e isso passa pela redução das desigualdades. Ninguém aceitará mudar seu modo de vida se ao mesmo tempo seguimos vendo milionários com Mercedes enormes, navios gigantescos e aviões privados. Esclareço que reduzir o consumo material e de energia quer dizer que vamos substituir, reorientar nossa riqueza coletiva.

O senhor diz a respeito que o futuro não está na tecnologia, mas no formato de uma nova relação social.

A questão que está no centro de nossas sociedades consiste em saber como os indivíduos pensam de si mesmos e como pensam dos demais. Por isso, devemos sair desta visão individualista e competitiva, dessa visão do crescimento indefinido. A briga se joga na cultura: trata-se de saber o que é que define uma consciência comum.

O senhor se burla com muita pertinência desse discurso de proteção do meio ambiente que tende a fazer de cada indivíduo um militante ecologista sempre e quando este fizer certos gestos – dividir o lixo, por exemplo– individuais. O senhor define esse método também como um engano da oligarquia.

Sim, há um discurso que diz “se cada um de nós fizer um esforço” isso resolverá as coisas. Não. Sem dúvida que consumir menos água e andar menos de carro ajuda, mas esse enfoque individualista não resolve nada. Por quê? Porque, no fundo, há uma questão política: se eu decido circular de bicicleta, mas o governo e as grandes empresas decidem construir novas estradas, de nada adiantará que eu circule de bicicleta. Além disso, dizer às pessoas que são elas que farão avançar as coisas com pequenas ações individuais equivale a permanecer no esquema individualista, que é o do capitalismo. Não resolveremos nada com soluções individualistas, mas mediante uma combinação coletiva e com atos coletivos.

Para o senhor existe um laço primordial entre a crise ecológica e a liberdade, por isso ressalta que é importante salvar a liberdade contra a tentação autoritária do capitalismo.

No curso de sua história, o capitalismo esteve associado à liberdade, à democracia. Inclusive, no período da Guerra Fria, o capitalismo estava associado ao mundo livre e à democracia na sua luta contra a União Soviética. Mas depois do desaparecimento da URSS, o capitalismo perdeu seu inimigo. Agora começamos a notar, no pensamento da oligarquia, uma negação da democracia e um abandono da ideia segundo a qual a democracia é algo positivo. Estamos em um período onde os capitalistas não estão de acordo com a democracia. Ao contrário, consideram que a democracia é, para eles, algo perigoso porque, evidentemente, uma sociedade democrática põe em dúvida o poder e, consequentemente, colocará em perigo a oligarquia. Tivemos um exemplo disso com a administração de George Bush. As democracias dos países do Norte, os Estados Unidos e a Europa, estão cada vez mais doentes, mais debilitadas.

Em que plano se inscreve a ecologia nesta crise da democracia?

As tensões ecológicas estão se agravando cada vez mais e, ao mesmo tempo, a oligarquia persiste em querer manter uma ordem social baseado na desigualdade. A tentação de recorrer a meios cada vez mais policiais é cada vez maior: vigiar a população, os opositores, ter arquivos imensos, mandar muita gente à prisão, para mudar, restringindo-os, os textos de lei relativos às liberdades individuais e de expressão. Se a sociedade não se acorda e não conseguimos que antecipem nossas ideias sobre a justiça social para fazer frente à crise ecológica, a oligarquia, enfrentada ao perigo ecológico, cairá na tentação de utilizar meios mais e mais autoritários.

Isso foi o que vimos ao vivo na conferência sobre o clima que aconteceu em Copenhague. A polícia reprimiu a tempo os representantes das ONG convidadas pela mesma ONU. Talvez Copenhague não tenha sido uma visão de nosso futuro?

Absolutamente, é assim. Em Copenhague, promoveu-se, além disso, uma convergência entre o movimento ecologista e os militantes antiglobalização, movimento baseado nos valores de justiça social. Isso quer dizer que agora a questão da mudança climática se coloca em termos políticos. O segundo, houve muitas manifestações, frequentemente muito alegres, imaginativas e não violentas, que foram reprimidas de maneira tão sutil quanto perigosa. Em Copenhague, vimos a experimentação de uma condição de ditadura suave que a oligarquia está aplicando. Copenhague foi uma entrevista importante porque ali se afirmou algo essencial: a contra-sociedade se manifestou ali de maneira mundial.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Incertezas sobre a 'web' 2.0





"A atual crise econômica (global, financeira e de confiança) colocou sob suspeita a rentabilidade das redes sociais de modo que, provavelmente, encontramo-nos perante a segunda borbulha, o segundo cybercrash da era Internet", escreve José Maria Álvarez Monzoncillo, catedrático de Comunicação Audiovisual na Universidade Rey Juan Carlos, em artigo publicado pelo jornal El País, 08-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Eis o artigo.

Depois de superada a crise da web 1.0 representada pela quebra das companhias pontocom no início do presente século, a web evoluiu para outro modelo menos voltado para o negócio e comércio eletrônico. Esta nova etapa, conhecida como web 2.0 ou redes sociais, baseia-se mais na comunicação entre pessoas e comunidades (many to many frente ao one to one). Nesta etapa, havia esperança de que as empresas de Internet alcançassem sua rentabilidade graças à publicidade e ao tráfego gerado. Isto fez com que os grandes nomes da Internet tomassem atitude frente ao fenômeno das redes sociais buscando novas sinergias (Google-YouTube, My Space-News Corporation, Facebook-Microsoft etc.) ou se introduzissem no negócio dos buscadores (Microsoft-Yah oo).

Simultaneamente, a web evoluiu de forma natural, otimizando as pesquisas. Já não só indexavam páginas web, mas levavam em conta o contexto e o significado (web 3.0 o web semântica). Esta lógica evolução da web obedece a seu design e a sua arquitetura iniciais: compartilhar (sua origem universitário) e deslocar e sobrepor (sua origem militar). Desta maneira, as duas formas de fazer se contrapõem: comunidades virtuais frente a pessoas, blogs versus home pages, directories versus tagging, portals versus RSS, pages views versus cost per click, adversiting versus word of mouth etc. É Netscape frente a Google, e, como con sequencia da lógica do negócio, e na atualidade, de todos contra Google.

Mas a atual crise econômica (global, financeira e de confiança) colocou sob suspeita a rentabilidade das redes sociais de modo que, provavelmente, encontramo-nos perante a segunda borbulha, o segundo cybercrash da era Internet. Parecia que a crise econômica não iria afetar Silycom Valley, mas já se observa certo movimento na falha de São Francisco. Em 2008, as redes sociais foram saudadas como antídoto para as empresas tecnológicas, mas hoje parece que o futuro está mais no lítio que no silício. A Nasdaq se desequilibrou como o resto dos setores, e os investimentos em start-ups ficaram escassos. Os mais de 1.200 milhões de pessoas conectadas em redes sociais não conseguiram ainda que YouTube, Facebook ou Tuenti sejam rentáveis. Somente My Space conta com um modelo de benefícios porque está ligado ao tráfego no telefone cel ular. Enquanto isso, os meios de comunicação estão tentando se adaptar à competência que representa a Internet, sem conseguir resultados importantes.

Mas, na atualidade, a publicidade está em crise, e também deixou de investir na Internet. O cost per mil foi reduzido no último ano em torno de 40%. As pequenas e médias empresas não conseguem entender a Internet. Os anúncios em redes sociais não são atrativos para as grandes companhias, pois não é uma publicidade contextual ao aparecer com outros vídeos, fotos ou links com mensagens contraditórias, e, em alguns casos, negativos para sua estratégia de marca. Os internautas tampouco parecem que sejam tão participativos e ativos na Internet. A regra 90-9-1 criada por Jacob Nielsen parece que se cumpre em todas as comunidades criadas: 90% são audiência, mas não geram conteúdos; 9% são editores ao modificar e opinar sobre o que outros geram, e somente 1% são criadores. Os milhões de blogs são verdadeiros monólogos, sem capacidade de influência e sem que suas opiniões cheguem a ninguém. A escada gerada por Forrester, s egmentando de acordo com os diferentes níveis de participação na rede, tampouco parece se cumprir (creators, critics, joiners, spectators, collectors e inactives). As redes sociais evoluirão para o marketing, desenvolvendo novas produtividades e rompendo a lógica pela qual surgiram.

A verdadeira revolução não vem da mão das redes sociais, e sim da aplicação assassina de maior êxito na Internet: os portais P2P. Ou do desfrute online de todo tipo de conteúdos, maquiados por novos intermediários. Um modelo que consiste em intercambiar arquivos gratuitos que outros fizeram trabalhando e investindo seu dinheiro. Até agora, o mercado tem dois lados que se equilibram: os que pagam e os que não. O dia em que se generalizar a escala planetária a gratuidade se acabará a informação contrastada, os bons filmes, séries e música. Estas surgem de um esforço que não se pode traduzir mais que em rendas de trabalho e em benefícios empresariais.

A sociedade amateur, a free culture de Lessing ou a free economics de Anderson são um sonho impossível, que está se convertendo numa nova religião com excessiva ideologia. Os conteúdos financiados somente pela publicidade e os autogerados pelos usuários sem lucro não podem substituir o conjunto dos meios de comunicação e as indústrias do entretenimento ao minguar drasticamente seus recursos. Se abrirá claramente uma brecha entre conteúdos low cost e premium. Assim como agora, uns pagarão a publicidade e outros diretamente os usuários-consumidores. Enquanto isso, a web 2.0 não dá benefícios, e já se fala da web 3.0. Outros põem o prefixo 2.0 em tudo porque está na moda, esperando que caiam as nozes sem balançar a nogueira.


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Robôs para suprir a falta de seres humanos



Na maioria dos filmes norte-americanos de ficção-científica, os robôs costumam representar certo perigo para a humanidade, em alguns inclusive chegam a governar o planeta Terra acima dos seres humanos. Por outro lado, em filmes e na manga japonesa os robôs costumam ser criaturas amáveis, empáticas e com sentimentos. São seres benévolos e inclusive heróicos. Por exemplo, em algumas séries de desenho animado, os robôs ajudam a humanidade a salvar o nosso planeta das ameaças de extraterrestres. A maioria dos japoneses gosta da ideia de uma sociedade na qual os robôs tomem cada vez mais protagonismo auxiliando-os na vida diária.

A reportagem é de Héctor García e está publicada no jornal espanhol El País, 24-12-2009. A tradução é do Cepat.

Há uma previsão de que a população do Japão passe dos atuais 127 milhões de habitantes para 103 milhões, em 2050. Esta previsão é otimista quanto às taxas de natalidade e de imigração. Trata-se de uma diminuição de população sem precedentes na história da humanidade e que já está afetando a economia do país.

Atualmente, o Japão é o país com maior população de robôs do mundo. Em todo o planeta há 1.000.056 robôs industriais em funcionamento, de acordo com o censo realizado pela Federação Internacional da Robótica. Quase a terça parte destes robôs, 298.000 unidades, está no Japão, 166.000 nos Estados Unidos, Canadá e México, e 336.000 na Europa. O mercado da robótica industrial representou em 2008 mais de 9 bilhões de euros, e 79% deste mercado é controlado por corporações japonesas, sendo a maior delas a Kawasaki, mais conhecida no Ocidente por suas motos que por seus robôs.

Anos atrás se debatia o problema que poderia supor que os robôs tirassem trabalho dos seres humanos, o que aumentaria as taxas de desemprego. No Japão, o irônico é que a falta de seres humanos está fazendo necessário que os robôs os substituam sem afetar minimamente a taxa de desemprego. Os robôs se converteram em parte da mão-de-obra do país. A Toyota é a empresa do mundo que mais robôs industriais tem em funcionamento e é também a empresa que os utiliza com maior eficiência. As linhas de produção da Toyota são as mais rápidas do mundo; seus robôs podem construir um carro em horas sem nenhuma intervenção humana.

Outro tipo de robô que está começando a suprir a falta de pessoas são os robôs de serviço. O Japão enfrenta uma grande falta de enfermeiros e enfermeiras. Uma consequência do envelhecimento da população é que cada vez há mais pessoas que ingressam em hospitais e centros geriátricos. A falta de jovens que possam trabalhar assistindo a anciãos se resolve com robôs capazes de ajudar uma pessoa a se levantar da cama e acompanhá-la até o banheiro ou fritar-lhe um ovo.

Defesa, resgate, segurança e logística, são outros setores nos quais os robôs de serviço vão cobrando protagonismo. Já há vários casos em que os robôs foram os heróis de um resgate, sobretudo em casos de terremotos.

Entre robôs industriais, robôs de serviço e robôs domésticos se calcula que há uma população ativa de mais de cinco milhões de robôs no Japão. Para o final da próxima década as estimativas dizem que serão mais de 30 milhões. Os robôs estão cada vez mais presentes em nossa vida diária, não só no Japão, mas em todo o mundo. Estão aqui para facilitar a nossa vida e, de forma indireta, estão mudando as regras do jogo na sociedade e na economia, assim como o fizeram os computadores na segunda metade do século XX.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Os passageiros estão nus





No futuro, quando se quiser viajar, primeiro será preciso ficar nu. É uma moda nova. Ela chegou nos EUA, mas a Europa a está adotando com estardalhaço. Holanda, depois Grã-Bretanha e França em seguida. O rebuliço todo foi motivado por um jovem nigeriano que tentou explodir um avião na rota de Amsterdã para Detroit, mas fracassou.

O comentário é de Gilles Lapouge, jornalista francês, e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 09-01-2010.

Para um atentado frustrado, ele até que funcionou. Temerosas, autoridades instalaram em aeroportos aparelhos complexos capazes de ver através das roupas e o nigeriano conseguiu obrigar uma legião de homens e mulheres a se despir diante de um funcionário de aeroporto.

A roupa - isso é, o pudor, a intimidade - é uma das marcas da condição humana. A quase totalidade das civilizações considera a nudez um tabu. É por isso que, quando europeus enfiaram seus narizes na América e na África, duas coisas os chocaram: primeiro, que aqueles "selvagens comiam uns aos outros" e, depois, que estavam todos nus.

Cientistas e teólogos inicialmente opinaram que aquela gente nua não era humana. Foi preciso que o papa escrevesse uma bula para decretar que é possível estar completamente nu e, mesmo assim, ser homem ou mulher.

É preciso que o pânico das sociedades seja grande ante a ameaça dos terroristas para que esse tabu tão antigo, tão maciço, se desfaça.

As resistências são grandes, é verdade. Estudam-se novos scanners que terão a delicadeza de queimar logo em seguida as imagens. Enfim, será dada aos viajantes a possibilidade de recusar o scanner, com a condição de aceitarem se submeter à "apalpação". A escolha é sua!

Podem-se imaginar os diálogos no aeroporto: "Minha senhora, o que prefere? Se mostrar inteiramente nua ou ser apalpada?" Tudo isso porque um nigeriano não conseguiu detonar uma bomba.

Ninguém subestima o terrorismo. Mas não será entrar no jogo do terror dar uma resposta tão gigantesca?

sábado, 16 de janeiro de 2010

Apocalipse do corpo





"O escâner nos aeroportos ampliará a já desrespeitosa indecência da esfregação em busca de objetos de metal nos passageiros", afirma José de Souza Martins, sociólogo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 10-01-2010.

Eis o artigo.

A adoção de escâneres de corpo inteiro nos aeroportos, a começar da Inglaterra, escandaliza o que resta de consciência pudica neste mundo. É violação de privacidade e de direitos individuais, ainda que em nome da presumível segurança de todos. A reação da sociedade inglesa ao escaneamento de crianças nos aeroportos é bem indicativa da ilegalidade do procedimento. A saída já anunciada é mudar a lei que inibe o voeyurismo policial.

Aeroporto é outro mundo, que nada tem a ver com a nossa vidinha cotidiana, ainda demarcada pelas inocências do repetitivo. E não se trata apenas da repressão à imigração ilegal, ao tráfico de drogas ou ao terrorismo. Aeroportos são lugares de imensos desencontros culturais. Do mesmo modo que arquitetura de aeroporto é mais ou menos igual no mundo inteiro, a mentalidade de quem nele trabalha é idêntica em todas as partes, apesar das diferenças de nacionalidade e de língua. Embora pelos aeroportos passe, justamente, a imensa variedade da condição humana, a enorme diversidade cultural e social que na prática questiona essa uniformidade redutiva e repressiva. De modo que, mesmo que um país decida não adotar o escâner que viola a intimidade das pessoas, como a Espanha, que se manifestou nesse sentido, a mesma cultura repressiva, da qual o escâner é mero desdobramento, já se instalou na microssociedade de seus aeroportos, como o de Barajas, em Madrid. Ali apenas continuarão a ser usados os métodos da devassa consentida porque compulsória. Ou o passageiro se sujeita ou fica em casa.

Foi insólito o que no mesmo aeroporto se passou com um casal de primos meus, ambos descendentes de espanhóis imigrados para o Brasil há quase cem anos. Minha prima, já avó, é neta de avós espanhóis, que desembarcaram em Santos, em 1913, imigrantes pobres, com passagem paga pelo governo de São Paulo. Ficaram na Hospedaria dos Imigrantes até que a requisição de mão de obra de um fazendeiro de café, de Bragança Paulista, lhes decidisse o destino.

Minha prima e o marido, pequenos sitiantes, trabalhadores de roça, com cerca de 70 anos de idade, decidiram juntar as pequenas sobras da economia de uma vida e fazer curta viagem à Espanha mítica e ancestral. Passaportes nas mãos, passagens e algum dinheiro no bolso, desembarcaram em Madri para fazer a conexão para Málaga. Gente simples, educada na severa cultura caipira, com forte sotaque, conhecem apenas umas poucas palavras da língua espanhola, a única herança que lhes restou dos avós.

Não deu outra: não passaram pelo crivo visual do policial fardado que neles viu candidatos certos à devolução imediata, suspeitíssimos. Prostituição não era, em face da idade evidente. Tráfico, só por inocência. Trabalho clandestino, as marcas do desgaste físico não sugeriam. Aqueles dois eram um mistério não catalogado no manual de suspeições visuais da polícia do aeroporto. Eles, no entanto, ficaram felizes com a interpelação severa do policial carrancudo e a ela se sujeitaram com prazer e mesmo alegria. Achavam que o governo espanhol os recebia e lhes fazia a inquirição para obter evidências de que eram gente boa, como são. Era um exame de admissão e de caráter, ao fim do qual, tinham certeza, receberiam a aprovação do governo da pátria de seus avós, que, se estivessem vivos, deles se orgulhariam. Mais do que temer o interrogatório, ansiavam por ele.

Tão inocentes, que ainda quiseram tirar, sorridentes, fotografias com o policial enquanto ele fazia as perguntas. "Quanto dinheiro vocês trouxeram?" Levavam o que lhes pareceu suficiente à luz de sua modesta e rústica concepção de economia. Os dois trabalhavam desde quando eram crianças e passaram a vida no cabo do guatambu, como se diz na roça, puxando enxada em duras e longas jornadas de trabalho. Naquelas toscas economias da viagem ao paraíso estava resumida essa vida penosa, de muito suor e lágrimas.

Mais fotografias, encantados com o imenso respeito que viam no meganha que estava ali para mandá-los de volta e não para recebê-los. "Qual o nome e o endereço do hotel em que vão ficar?" "Não, moço, não vamos ficar em hotel, não. Nós temos família aqui." Iam ficar numa aldeia, na casa de uma parenta que não conheciam e com a qual trocavam correspondência. Ela os incitara à viagem, dizendo-lhes que podiam ficar em sua casa. Mais fotografias, sorrindo e agora passando o braço por cima do ombro do policial, como se ele também fosse parente. "E quanto tempo pretendem ficar na Espanha?", perguntou, ainda em busca de pretexto para mandá-los de volta. "Ah, moço, não é muito tempo não. Temos que voltar logo porque deixamos as vacas e a roça aos cuidados dos filhos." Últimas fotos e o policial se deu por vencido. Puderam, então, ver um pequeno canto da terra-mãe ancestral e matar a estranha saudade de quem nunca lá estivera.

A adoção do escâner da devassa corporal não superará essa cultura da repressão e da desconfiança nem desencontros como esse. Embora, de fato, tudo indique que a adoção do escâner de corpo inteiro represente um progresso em relação à barbárie aeroportuária que se expressa na grosseria e na arbitrariedade dos chamados oficiais de imigração em muitos países, como a Itália e a França. De fato, escaneados já são os passageiros com instrumentos comparativamente rústicos e com o olhar racista dos insensíveis à humanidade do outro. O escâner de corpo apenas ampliará o nível da desrespeitosa indecência que há na esfregação daquele aparelhinho que tenta localizar objetos de metal escondidos sob a roupa dos passageiros, mesmo no meio das pernas. Bispos, padres e freiras, sisudos judeus ortodoxos, resguardadas muçulmanas de véu ou de burka, solenes bispos e padres ortodoxos terão sua intimidade devassada e suas vergonhas acessadas. Chegamos ao fim do s tempos, os da violação visual dos corpos de cidadãos de pudica consciência, mesmo os revestidos das interdições do sagrado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Edgar Morin: Elogio da metamorfose



Artigo de Edgar Morin


“A verdadeira esperança sabe que não tem certeza. É a esperança não no melhor dos mundos, mas em um mundo melhor. A origem está diante de nós, disse Heidegger. A metamorfose seria efetivamente uma nova origem”, escreve o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, em artigo publicado no jornal francês Le Monde, 9-01-2010. A tradução é do Cepat.

Edgar Morin nasceu em 1921, é diretor de pesquisa emérito no CNRS, presidente da Agência Europeia para a Cultura (Unesco) e presidente da Associação para o Pensamento Complexo. Em 2009, publicou Edwige, l’inseparable (Fayard) [‘Edwige, a inseparável’, dedicado à sua esposa morta]. Ler também, La Pensée Tourbillonnaire - Introduction à la pensée d’Edgar Morin, de Jean Tellez (éditions Germina). (“O pensamento turbulento. Introdução ao pensamento de Edgar Morin”).

Segue o artigo.

Quando um sistema é incapaz de tratar os seus problemas vitais, se degrada ou se desintegra ou então é capaz de suscitar um meta-sistema capaz de lidar com seus problemas: ele se metamorfoseia. O sistema Terra é incapaz de se organizar para resolver seus problemas críticos: perigos nucleares que se agravam com a expansão e, talvez, a privatização das armas atômicas; degradação da biosfera; economia mundial sem verdadeira regulação; retorno da fome; conflitos étnico-político-religiosos que tendem a se desenvolver em guerras de civilização.

O aumento e a aceleração destes processos podem ser considerados como o desencadeamento de um poderoso feedback negativo, um processo pelo qual um sistema se desintegra irremediavelmente.

A desintegração é provável. O improvável, mas possível é a metamorfose. O que é uma metamorfose? Nós vemos inúmeros exemplos no reino animal. A lagarta que se fecha num casulo começa um processo ao mesmo tempo de destruição e de autoreconstrução, como uma organização e uma forma de borboleta, diferente da lagarta, permanecendo a mesma. O nascimento da vida pode ser concebido como a metamorfose de uma organização físico-química, que, tendo chegado a um ponto de saturação, cria a meta-organização viva que, embora tendo os mesmos aspectos físico-químicos, produz novas qualidades.

A formação das sociedades históricas – no Oriente Médio, na Índia, na China, no México, no Peru – constitui uma metamorfose a partir de um conjunto de antigas sociedades de caçadores-coletores, que produziu as cidades, o Estado, as classes sociais, a especialização do trabalho, as grandes religiões, a arquitetura, as artes, a literatura e a filosofia. E também as piores coisas: a guerra e a escravidão. A partir do século XXI se coloca o problema da metamorfose das sociedades históricas em uma sociedade-mundo de um novo tipo, que englobará a ONU, sem suprimi-la. Porque a continuação da história, isto é, das guerras, por parte dos Estados com armas de destruição em massa, leva à destruição da humanidade. Ainda que, para Fukuyama, sejam as capacidades criativas da evolução humana que se esgotaram com a democracia representativa e a economia liberal, devemos pensar que, ao contrário, é a história que se esgota e não as habilidades criativas da humanidade.

A ideia de metamorfose, mais rica do que a ideia de revolução, guarda a radicalidade transformadora, mas a liga à conservação (da vida, do patrimônio cultural). Para ir rumo à metamorfose, como mudar de caminho? Mas se parece possível corrigir alguns males, é impossível romper a lógica técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre. No entanto, a História humana mudou muitas vezes de caminho. Tudo recomeça por uma inovação, uma nova mensagem desviante, marginal, pequena, muitas vezes invisível para os contemporâneos. Assim começaram as grandes religiões: budismo, cristianismo, islamismo. O capitalismo se desenvolveu parasitando as sociedades feudais para finalmente decolar e, com a ajuda de monarquias, desintegrá-las.

A ciência moderna formou-se a partir de algumas mentes desviantes dispersas, Galileu, Bacon, Descartes, e então criou suas redes e associações, se introduziu nas universidades no século XIX, e depois, no século XX nas economias e nos Estados para se tornar um dos quatro poderosos motores da nave espacial Terra. O socialismo nasceu de algumas mentes autodidatas e marginalizadas no século XIX para se tornar uma formidável força histórica no século XX. Hoje, tudo tem que ser repensado. Tudo deve recomeçar.

Com efeito, tudo começou, mas sem que se soubesse. Estamos no estágio de começos, modestos, invisíveis, marginais, dispersos. Porque já existe, em todos os continentes, uma efervescência criativa, uma multiplicidade de iniciativas locais, em conformidade com a revitalização econômica, ou social, ou política, ou cognitiva, ou educacional ou ética, ou da reforma da vida.

Estas iniciativas estão isoladas, nenhuma administração as leva em conta, nenhum partido toma conhecimento delas. Mas elas são o viveiro do futuro. Trata-se de reconhecê-las, inventariá-las, cotejá-las, catalogá-las, combiná-los e de conjugá-las em uma pluralidade de caminhos reformadores. São estes caminhos múltiplos que podem, através de um desenvolvimento conjunto, se combinar para formar o novo caminho que nos levaria em direção à metamorfose ainda invisível e inconcebível. Para desenvolver formas que vão desembocar no Caminho, é preciso identificar alternativas limitadas, que limitam o mundo do conhecimento e do pensamento hegemônicos. Assim, é preciso ao mesmo tempo globalizar e desmundializar, crescer e diminuir, desenvolver e envolver.

A orientação mundialização/desmundialização significa que, se é preciso multiplicar os processos de comunicação e de planetarização culturais, é preciso que se constitua uma consciência da Terra-Pátria, mas também é preciso promover, de maneira desmundializante, a alimentação de proximidade, os artesanatos locais, as lojas locais, a jardinagem suburbana, as comunidades locais e regionais.

A orientação “crescimento/decrescimento” significa que precisamos aumentar os serviços, as energias verdes, os transportes públicos, a economia plural capaz de incluir a economia social e solidária, o desenvolvimento da humanização das megacidades, a pecuária orgânica, mas diminuir as intoxicações consumistas, a alimentação industrializada, a produção de objetos descartáveis e não consertáveis, o tráfego de automóvel, o tráfego de caminhões (em benefício do transporte ferroviário).

A orientação desenvolvimento/envolvimento significa que o objetivo não é mais fundamentalmente o desenvolvimento de bens materiais, da eficiência, da rentabilidade, do cálculo; é também o retorno de cada um às necessidades interiores, o grande retorno à vida interior e ao primado da compreensão do outro, do amor e da amizade.

Já não basta mais apenas denunciar. Precisamos propor. Não basta apelar à urgência. É preciso saber também começar a definir os caminhos que levarão ao Caminho. É para isso que estamos tentando contribuir. Quais são as razões para ter esperança? Podemos formular cinco princípios de esperança.

1. O surgimento do improvável. Assim, por duas vezes a vitoriosa resistência da pequena Atenas à formidável força dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável e permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Igualmente inesperado foi o congelamento da ofensiva alemã diante de Moscou, no outono de 1941, e depois a contra-ofensiva vitoriosa de Jukov que começou em 5 de dezembro e, depois, no dia 8 de dezembro com o ataque a Pearl Harbor, que marcou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

2. As virtudes geradoras/criadoras inerentes à humanidade. Assim como existem em qualquer organismo humano adulto células-tronco dotadas de habilidades polivalentes (totipotentes) próprias às células embrionárias, mas inativas, existem em cada ser humano, em cada sociedade humana, virtudes regeneradoras, geradoras e criativas em estado dormente ou inibidas.

3. As virtudes da crise. Ao mesmo tempo que forças regressivas e desintegradoras, as forças criadoras despertam na crise planetária da humanidade.

4. Com o que se combinam as virtudes do perigo: “Aí onde cresce o perigo cresce também o que salva”. A chance suprema é inseparável do risco supremo.

5. A aspiração multimilenar da humanidade à harmonia (paraíso, depois utopias, depois ideologias libertárias/socialistas/comunistas, depois aspirações e revoltas juvenis dos anos 1960). Esta aspiração renasce no formigueiro de iniciativas múltiplas e dispersas que alimentarão o caminho da reforma, consagradas a se unirem ao novo caminho.

A esperança estava morta. As gerações mais velhas estão decepcionadas com falsas esperanças. As gerações mais jovens se desconsolam com o fato de que não haja mais causas como a nossa resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a nossa causa trazia em si o seu contrário. Como disse Vasily Grossman de Stalingrado, a maior vitória da humanidade foi ao mesmo tempo a sua maior derrota, desde que o totalitarismo stalinista saiu vitorioso. A vitória das democracias restabeleceu no mesmo ato seu colonialismo. Hoje, a causa é inequivocamente sublime: trata-se de salvar a humanidade.

A verdadeira esperança sabe que não tem certeza. É a esperança não no melhor dos mundos, mas em um mundo melhor. A origem está diante de nós, disse Heidegger. A metamorfose seria efetivamente uma nova origem.



Fonte:

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=28829

sábado, 9 de janeiro de 2010

A cruzada contra o aquecimento global



Por: Ladislau Dowbor



Não há dúvidas sobre o aquecimento global, nem sobre o peso das atividades humanas na sua geração. No entanto, depois de dois anos de uma gigantesca campanha de mídia, envolvendo também a criação de ONGs fajutas e de movimentos aparentemente “grass-root”, portanto “espontâneas e comunitárias”, e sobre tudo listagens de cientístas “céticos” visando dar impressão de “quantidade”, temos resultados, e para os grupos do petróleo, do carvão e semelhantes, terá valido a pena. Segundo The Economist, a proporção de americanos que achavam existir evidências sólidas de aumento das temperaturas globais caiu de 71% em abril de 2008 para 57% em outubro de 2009.(in Carta Capital, 16/12/2009, p. 48)

O estudo de James Hoggan não é sobre o clima, mas sobre comunicação, e consiste essencialmente em mapear como a campanha foi montada e como hoje funciona. A articulação é poderosa, envolvendo instituições conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros, muitos republicanos e a direita religiosa.

Os grandes grupos corporativos aparecem mais discretamente, com exceção da ExxonMobil que inundou com dinheiro o mercado de consultoria e de comunicação. Este “inundou”, naturalmente, é um conceito relativo: são centenas de milhões de dólares, mas New Scientist lembra que “as empresas de petróleo têm vastos lucros. Só a ExxonMobil lucrou US$45 bilhões em 2008. Num mundo sano, certamente encontrariamos uma maneira de desviar um pouco deste dinheiro para resolver os problemas que o próprio petróleo está gerando. A questão é: estamos vivendo num mundo sano?” (NS, 5/12/2010, p. 5) Não custa lembrar que estas empresas não “produzem” petróleo, e sim extraem e comercializam um bem herdado da natureza, e que está acabando.

Em termos de personagens, encontraremos os das causas conservadoras e muitos personagens “flexíveis”, como Frank Luntz, Christopher Walker, Fred Singer, Patrick Michaels, Arthur Robinson, Steven Milloy, Benny Peiser e numerosos outros, além da eterna estrela do “contra”, o dinamarquês Lomborg, que graças à sua disponibilidade anti-clima ganha financiamentos para incessantes palestras.

Profissionais das relações públicas (sim, o nome é este) estão sempre presentes. Hoggan, o autor deste estudo, é um profissional de relações públicas, e conhece profundamente como funciona a indústria da construção e da destruição das reputações de pessoas ou de causas. Isto o levou a fazer o presente levantamento detalhado de como se estrutura, com o impressionante poder das tecnologias modernas de comunicação, a manipulação da opinião pública. Independentemente da causa, no caso o drama do aquecimento global, o que é muito interessante no livro é entender esta indústria da desinformação.

Naomi Oreskes organizou uma meta-pesquisa, com o buscador “mudança climática global”, e limitada a artigos revistos por pares (peer review). Encontrou 928 artigos, nenhum colocando dúvidas sobre a realidade do processo climático. Nos jornais, no entanto, comentando a pesquisa, 53% dos artigos, buscaram ouvir “os dois lados”, e colocaram de maneira equilibrada opiniões de contestadores. Zero porcento de artigos científicos contestadores sobre o processo climático em si, mas nos jornais aparecia como “um tema em discussão”. O que era o objetivo. O tema está em discussão, afirmam gravemente os grandes grupos geradores do aquecimento (não diretamente, sempre através de listas de livre inscrição), portanto o assunto “é controverso”. Os “céticos” passam a se apresentar não como contestadores do fenômeno, mas como os que têm uma visão equilibrada, sem extremismos, portanto acreditam que talvez haja um problema, mas temos de ser ponderados, e adiar decisões.

No caso de Naomi Oreskes, é curioso, pois um Dr. Benny Peiser, professor de educação física (esporte mesmo, não física), realizou uma pesquisa sobre “mudança climática” (e não “mudança climática global”) e apresentou uma lista não de 928 artigos, mas de mais de 12 mil. Portanto, os 928 representariam apenas uma pequena parcela das opiniões. Os jornais, devidamente estimulados (a Fox em particular, naturalmente), fizeram alarde. Faltava demonstrar que os 12 mil tinham opinião contrária. Pressionado por revistas científicas que se recusavam a publicar o seu artigo, Peiser conseguiu localizar 34 artigos “que rejeitam ou duvidam da visão de que as atividades humanas são a principal causa do aquecimento observado nos últimos 50 anos”. Pressionado ainda para mostrar os artigos e os argumentos científicos em artigos “peer reviewed”, Peiser finalmente chegou a um artigo científico de contestação. Não era revisto por pares, e foi publicado na American Association of Petroleum Geologists. (102)

Tudo isto, evidentemente, amplamente divulgado, em particular por redes de institutos empresariais conservadores, utilizando em parte os mesmos grupos de relações públicas utilizados nas campanhas de caça-voto dos republicanos, e apoiados nas tecnologias de ampla divulgação como youtube. O resultado de tudo? Frente a tanta celeuma, os grupos interessados puderam passar a dar entrevistas “equilibradas”, pois estaria claro que “há controvérsias”. Que era o único objetivo da campanha. Não de negar o inegável, mas de dar a entender que as pessoas comedidas, equilibradas, não vão fazer nada, e muito menos pressionar os agentes do aquecimento global.

O livro é muito instrutivo para quem lida com comunicação, com teoria dos lobbies, com manipulação política. O próprio Hoggan menciona como é cansativo, a cada vez que aparece um cientista de peso mencionado no grupo “cético”, fazer circular a carta de denegação do cientista, ou destrinchar uma lista de milhares de “opositores” para ver se há no meio alguém que realmente tenha feito alguma pesquisa sobre a única coisa finalmente relevante, que não é a “opinião”, e sim dados científicos novos que provem algo diferente. E depois tentar fazer circular a informação de que a “notícia” afinal não era notícia, isto numa mídia onde as corporações financiam a publicidade.

Uma pérola entre os argumentos, e uma das mais utilizadas: “Como podem os cientistas dizer que podem prever o clima dentro de 50 anos se não são capazes de prever a chuva de amanhã”. Como se meteorologia e estudos climáticos fossem da mesma área. Um britânico pode não saber se vai nevar amanhã, mas sabe perfeitamente prever que vai chegar o inverno e o frio correspondente, e não hesita em comprar um casaco. Mas o argumento pega, e se apoia numa fragilidade que é de todos nós: se nos dão um argumento que confirma a opinião que já estávamos propensos a ter, qualquer estribo vale.

O estudo bem poderia ser traduzido e utilizado para os nosso próprios problemas, como por exemplo o peso da bancada ruralista na opinião pública, ou as campanhas orquestradas pela Febraban, ou ainda a campanha contra a proibição de armas de fogo individuais, estribadas no “direito de se defender”, e até na “liberdade”. Nos Estados Unidos, temos precedentes interessantes e igualmente desastrosos tanto no caso das armas, como na batalha das grandes empresas de saúde privada aliadas com o “Big Pharma” para tentar travar o direito de acesso à serviços de saúde, sem falar das gigantescas campanhas das empresas de cigarros. O último livro de Robert Reich, aliás, Supercapitalim, também trata desta apropriação dos processos políticos pelas corporações. O filme O Informante mostra como isto se deu com a indústria do cigarro, enquanto The Corporation, (resenhado aqui), explicita o mecanismo de maneira ampla. Marcia Angell fez um excelente estudo dos procedimentos equivalentes na indústria farmacêutica (em português, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos). A própria desinformação se transformou numa indústria. É a indústria da opinião pública.

No caso da mudança climática, como qualificar a dimensão ética do que constitui uma clara compra de opiniões? Ou os ataques impressionantes das empresas de advocacia das corporações, que processam qualquer pessoa que ouse sugerir que uma opinião poderia envolver não a verdade mas interesses corporativos? O liberalismo tem uma concepção curiosa da liberdade. (L.Dowbor)



Fonte:

http://dowbor.org/resenhas_det.asp?itemId=3434e126-013c-4f95-9262-b95b38220409


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Contratos secretos da Monsanto são revelados





Contratos confidenciais que detalham as práticas de negócios da Monsanto Co. revelam como a maior desenvolvedora de sementes do mundo está pressionando competidores, controlando companhias menores de sementes e protegendo seu domínio sobre o mercado multibilionário de sementes geneticamente modificadas.

A reportagem é de Chirstopher Loenard, publicada pela Associated Press e pelo sítio The Atlanta Journal-Constitution, 14-12-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Com os genes patenteados da Monsanto inseridos em cerca de 95% de toda a soja e de 80% de todo o milho produzid o nos EUA, a companhia também está usando seu amplo alcance para controlar a habilidade de novas empresas biotécnicas de obter uma grande distribuição de seus produtos, de acordo com uma investigação de diversos acordos de licenciamento da Monsanto e dezenas de entrevistas com participantes da indústria das sementes e com especialistas em direito e em agricultura.

A queda da competição no negócio de sementes poderia levar a uma elevação de preços que atingiriam a mesa de todas as famílias. É por isso que os flocos de milho que você come no café-da-manhã, o refrigerante que você bebe no almoço e o molho de carne que você janta provavelmente foram produzidos a partir de sementes que cresceram com os genes patenteados da Monsanto.

Os métodos da Monsanto são explicados em detalhe em uma série de acordos de licenciamento comercial confidenciais obtidos pela Associated Press. Os contratos, de 30 pági nas, incluem termos básicos para a venda de sementes manipuladas resistentes ao herbicida Roundup da Monsanto, junto com acordos suplementares mais curtos, que se referem às novas características da Monsanto ou a outras emendas de contratos.

A companhia usou os acordos para difundir sua tecnologia – dando a cerca de 200 companhias menores o direitos de inserir genes da Monsanto em suas variedades separadas de pés de milho e de soja. Mas, segundo a investigação da AP, o acesso aos genes da Monsanto vem com um custo e uma grande quantidade de outros anexos pendentes.

Por exemplo, uma cláusula de um contrato proíbe que empresas independentes cultivem plantas que contenham tanto os genes da Monsanto e os genes de qualquer um de seus concorrentes, a menos que a Monsanto tenha lhes dado uma permissão p révia por escrito – dando à Monsanto a possibilidade de efetivamente trancar a porta para que seus concorrentes insiram suas características patenteadas na vasta parcela das sementes norte-americanas que já contêm genes da Monsanto.

As estratégias de negócio e os acordos de licenciamento da Monsanto estão sendo investigadas pelo Departamento de Justiça dos EUA e por pelo menos dois procuradores gerais do Estado, que estão tentando determinar se essas práticas violam as leis antitruste dos EUA. As práticas também estão no centro de processos antitruste civis contra a Monsanto apresentados por seus concorrentes, incluindo um processo de 2004 apresentado pela Syngenta AG, que foi decidido por meio de um acordo, e uma litigação em curso pedida neste verão pela DuPont em resposta à ação judicial da Monsanto.

A gigante da agricultura com sede no subúrbio de St. Louis di sse que não fez nada errado.

"Nós acreditamos que não haja qualquer mérito para alegações sobre nossos acordos de licenciamento ou seus termos", disse o porta-voz da Monsanto, Lee Quarles. Ele disse que não poderia comentar sobre cláusulas específicas dos acordos, porque eles são confidenciais e estão sujeitos a uma litigação em curso.

"Nossa atitude com relação ao licenciamento a muitas companhias é pró-competição e permitiu que literalmente centenas de empresas de sementes, incluindo todos os nossos principais concorrentes diretos, oferecessem milhares de novos produtos para sementes aos agricultores", disse.

O benefício da tecnologia da Monsanto para os fazendeiros é inegável, mas alguns de seus principais concorrentes diretos e empresas de sementes menores afirmam que a companhia está usando táticas repressivas para promover o seu controle.

"Acreditamos agora que a Monsanto tem controle sobre algo como 90% das sementes transgênicas. Esse nível de controle é quase inegável", disse Neil Harl, economista agrícola da Iowa State University, que estudou a indústria das sementes durante décadas. "O resultado disso é que está se intensificando o controle da Monsanto e tornando-lhes possível o aumento de seus preços a longo prazo. E temos visto isso acontecer durante os últimos cinco anos, e o fim não está ao alcance dos olhos".

Aumento dos preços

Questiona-se quanto poder uma única empresa pode ter sobre as sementes, o fundamento do suprimento de alimentos do mundo. Sem uma competição forte, a Monsanto pode elevar o preço de suas sementes o quanto quiser, o que, por sua vez, pode elevar o custo de tudo, desde a ração animal até o pão branco e os biscoitos.

O preço das sementes já está aumentando. A Monsanto aumentou o preços de algumas sementes de milho no ano passado em 25%, com 7% adicionais de aumento planejados para as sementes de milho em 2010. As sementes de soja da marca Monsanto subiram 28% no último ano e ficarão estáveis ou aumentarão 6% em 2010, disse a porta-voz da empresa, Kelli Powers.

O grande uso de acordos de licenciamento pela Monsanto colocou as suas características biotécnicas entre as tecnologias mais ampla e rapidamente adotadas na história da agricultura. Nestes dias, quando os agricultor es compram fardos de sementes com marcas obscuras como AgVenture ou M-Pride Genetics, eles estão pagando por produtos de licença da Monsanto.

Uma das inúmeras cláusulas nos acordos de licenciamento é a proibição de misturar genes – ou "amontoar", na gíria industrial –, o que aumenta o poder da Monsanto.

Uma cláusula contratual provavelmente ajudou a Monsanto a comprar 24 empresas de sementes independentes em todo o Cinturão Agrícola [Estados do Meio Oeste dos EUA como Iowa, Kansas, Minnesota, Nebraska, Dakota do Norte e do Sul] ao longo dos últimos anos: esse acordo sobre as sementes de milho afirma que, se uma empresa menor muda de proprietário, seu inventário com as características da Monsanto "deve ser destruído imediatamente".

No entanto, Quarles disse que não sabia desse acordo mais antigo, obtido pela AP, mas disse que, "da forma como eu entendo", a Monsanto inclui cláusulas em todos os seus contratos que permitem que as empresas vendam seu inventário se o proprietário mudar, em vez de forçá-las a destruir o inventário imediatamente.

Outra cláusula de contratos do início da década – referentes a descontos – também ajuda a explicar o rápido crescimento da Monsanto ao ampliar os novos produtos.

Um contrato dava a uma empresa de sementes independente grandes descontos se a companhia assegurasse que os produtos da Monsanto atingissem 70% do total do seu inventário de sementes de milho. Em sua ação judicial de 2004, a Syngenta chamou os descontos como uma parte da "campanha de terra arrasada" da Monsanto para manter as novas características da Syngenta fora do mercado.

Quarles disse que os descontos foram usados para atrair as empresas de sementes a divulgar produtos da Monsanto quando a tecnologia era nova e os agricultores ainda não a haviam usado. Agora que os produtos estão bem difundidos, a Monsanto não deu continuidade aos descontos, disse ele.

Os contratos da Monsanto revistos pela AP proíbem que as empresas de sementes discutam termos, e a Monsanto tem o direito de cancelar acordos e destruir os inventários de um negócio se as cláusulas de confidencialidade são violadas.

Thomas Terral, diretor geral da Terral Seed, em Louisiana, disse que recentemente rejeitou um contrato da Monsanto porque colocava muitas restrições ao seu negócio. Mas Terral recusou apresentar o contrato não firmado à AP ou mesmo discutir seus conteúdos porque ele tinha medo de q ue a Monsanto o retaliasse e cancelasse o resto de seus acordos.

"Eu estaria tão envolvido com o que seria capaz de fazer que basicamente eu não teria valor nenhum para qualquer outra pessoa", disse ele. "A única pessoa à qual eu teria valor seria a Monsanto e continuaria pagando milhões para eles em taxas".

Os proprietários de empresas de sementes independentes poderiam renunciar a seus contratos com a Monsanto e retornar às vendas de sementes convencionais, mas disseram que isso poderia ser financeiramente desastroso. O gene Roundup Ready da Monsanto se tornou o padrão industrial ao longo da última década, e as pequenas empresas temem a perda de consumidores se renunciarem a ele. Também poderia levar anos de cultivos e investimentos para misturar os genes da Monsanto em uma linha de produtos de uma companhia de sementes, por isso renunciar aos genes poderia ser muito custoso.

A Monsanto reconhece que os advogados do Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) estão procurando documentos e entrevistando empregados da empresa sobre suas práticas de mercado o DOJ não quis comentar.

Um representante do procurador-geral de Iowa, Tom Miller, disse que o escritório está examinando possíveis violações antitruste. Além disso, duas fontes íntimas à investigação no Texas disseram que o escritório do procurador-geral do Estado, Greg Abbott, estão investigando as mesmas questões. Os Estados têm a autoridade de fazer valer as leis antitruste federais, e os procuradores-gerais muitas vezes estão envolvidos nesses casos.

O presidente e diretor-executivo da Monsanto, Hugh Grant, disse aos analistas de investimentos durante uma conferência que os aumentos de preços se justificam por causa do estímulo de produtividade que os agricultores tiveram com as sementes da companhia. Os agricultores e os p roprietários de empresas de sementes concordam que a tecnologia da Monsanto impulsionou os rendimentos e os lucros, economizando o tempo que eles antes gastavam eliminando as pragas e o dinheiro que gastavam com pesticidas.

Mas os recentes aumentos de preços ainda têm sido duros para engolir nas fazendas.

"É como se eu tivesse sido atingido por um mal tempo e tivesse tido um rendimento pobre. Isso apenas significa que eu ganhei menos no fim das contas", disse Markus Reinke, produtor de milho e soja perto de Concordia, Missouri, que assumiu a fazenda de sua família em 1965. "Eles podem cobrar porque podem fazer isso e prosseguir normalmente. Nós, agricultores, só nos queixamos, balançamos nossas cabeças e seguimos em frente com isso".

Qualquer caso do Departamento de Justiça contra a Monsanto poderia dar origem a um novo patamar ao equilibrar um direito da empresa de controlar seus p rodutos patenteados ao mesmo tempo em que protege o direito à competição livre e aberta, disse Kevin Arquit, ex-diretor da Federal Trade Commission Competition Bureau e atual procurador antitruste com a empresa Simpson Thacher&Bartlett LLP, em Nova York.

"Há questões muito interessantes e não apenas para as empresas, mas para o Departamento de Justiça", disse Arquit. "Eles estão em uma área em que há incerteza na lei e há implicações sobre o bem-estar do consumidor e sobre as políticas governamentais independentemente do resultado".

Outras empresas de sementes seguiram a liderança da Monsanto incluindo cláusulas restritivas em seus acordos de licenciamento, mas seus produtos penetraram apenas em segmentos menores do mercado de sementes dos EUA. O gene Roundup Ready da Monsanto, por outro lado, está em um conjunto tão amplo de sementes que seus acordos de licenciame nto podem ter um efeito massivo nas leis do mercado.

O crescimento do gigante

A Monsanto era apenas um concorrente de um nicho específico nos negócios de sementes há 12 anos. Ela chegou ao topo graças à inovação de seus cientistas e ao agressivo uso da lei de patentes por seus procuradores.

Primeiro, veio a ciência, quando a Monsanto, em 1996, introduziu a primeira variedade comercial de sementes geneticamente modificadas de soja do mundo. As plantas Roundup Ready era resistentes ao herbicida, permitindo que os agricultores passassem Roundup quando quisessem, em vez de terem que esperar até que a soja tivesse crescido o suficiente para suportar o produto químico.

A companhia logo colocou à disposição outras sementes transgênicas, como os pés de milho que produziam um pesticida natural para afugentar insetos. Mesmo que a Monsanto tivesse produtos que eram um sucesso de venda, ela ainda não tinha um ponto de apoio em uma indústria de sementes feita de centenas de empresas que abasteciam os agricultores.

Foi aí que entraram as inovações legais, quando a Monsanto se tornou uma das primeiras a patentear amplamente seus genes e a conquistar o direito de controlar estritamente como deviam ser usados. Esse controle permitiu-se difundir sua tecnologia por meio de acordos de licenciamento, ao mesmo tempo em que formava o mercado ao redor deles.

Ainda na década de 70, universidades públicas desenvolveram novas variedades para as sementes de milho e de soja que faziam com que crescessem de forma resistente e resistissem às pestes. As empresas de sementes pequenas obtinham as variedades a preço baixo e podiam misturá-las a sementes de espécies superiores sem restrições. Mas os acordos deram à Monsanto o controle sobre a mistura de múltiplas variedades biotécnicas de sementes.

As restrições atingiam até pesquisadores financiados pelos contribuintes.

Roger Boerma, pr ofessor pesquisador da Universidade da Georgia, está desenvolvendo variedades especializadas de sementes de soja que crescem bem nos Estados do sudeste norte-americano, mas sua pesquisa atual está presa por essas restrições da Monsanto e de seus competidores.

"Tornou uma fase da nossa vida incrivelmente desafiador e difícil", disse Boerma.

As regras também podem restringir a pesquisa. Boerma parou uma pesquisa sobre uma linha de novas plantas de soja que continham uma característica de um competidor da Monsanto quanto ele soube que a característica era inefetiva a menos que pudesse ser misturado ao gene Roundup Ready da Monsanto.

Boerma disse que ele nem pensou em pedir permissão da Monsanto para misturar suas características com a variedade do competidor.

"Eu acho que a mistura da tecnologia de características deles com a tecnologia de características de outra companhia provavelmente seria um sério pr oblema para eles", disse.

Ao mesmo tempo, os direitos de patente da Monsanto dão-lhe a autoridade para dizer até que ponto as empresas são independentes para usar suas características, disse Quarles.

"Tenham em mente que, como o desenvolvedor de propriedade intelectual, é nosso direito determinar quem irá obter os direitos sobre nossa tecnologia e para qual objetivo", disse.

"Se as empresas de sementes independentes estão perdendo sua licença e têm que destruir suas sementes, elas não vão ter nada, com efeito, para vender", disse Boies. "Isso requer que elas destruam coisas – destruam coisas que pagaram – se se tornarem competitivas. Esse é exatamente o tipo de restrição sobre escolhas competitivas que as leis antitruste proíbem".

Alguns donos de empresas de semente independentes disseram se sentem crescentemente prejudicados com o fortalecimento da liderança da Monsanto na indústria.

"Eles têm o capital, têm os recursos, são donos de muitas empresas e estão comprando mais. Nós somos uma cidade do interior, eles são a Wall Street", disse Bill Cook, co-proprietário da empresa de sementes M-Pride Genetics, em Garden City, Missouri, que também não quis discutir ou fornecer os acordos. "É muito difícil competir nesse ambiente contra empresas como a Monsanto".

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A ilusão tecnológica: segurança ou liberdade?



"Há quem defenda que os body scanner são o instrumento mais seguro para prevenir o terrorismo. Não é a primeira vez que a ênfase tecnológica agita os políticos, distorcendo a realidade e sugerindo soluções que podem se revelar perigosas e ineficazes."

Publicamos aqui o artigo de Stefano Rodotà, jurista e político italiano, professor de direito na Universidade "La Sapienza" e ex-chefe do Conselho das Agências Europeias de Proteção de Informação, em artigo para o jornal La Repubblica, 06-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Segurança ou liberdade? Esse antigo dilema continua nos acompanhando e torna-se mais urgente quando terrorismo e criminalidade se tornam mais agressivos. E depois do 11 de setembro, o imperativo da segurança tornou-se dominante, até apagar quase toda outra referência. Esse espírito voltou nestes dias, nas reações nem sempre ordenadas que acompanharam o atentado fracassado a um avião em voo rumo aos Estados Unidos. Devemos nos resignar a uma contínua erosão dos direitos, a um lento declínio dos princípios da democracia?

Em tempos difíceis, também é necessário que a política mantenha a cabeça fria, não ceda às emoções, nem à tentação de crer que a resposta ao terrorismo deve, por força, levar a limitações das liberdades. Um pequeno exercício de memória pode nos ajudar.

No dia seguinte ao sanguinário atentado à estação de Atocha, o rei Juan Carlos destacou a necessidade de manter firmes os princípios do Estado de direito. E a Rainha Elizabeth, depois do atentado ao metrô de Londres, disse que os terroristas "não mudarão o nosso modo de viver". Essa fidelidade democrática retorna nas palavras da ministra do Interior norte-americana, Janet Napolitano: "Temos um inimigo determinado, mas não podemos selar os Estados Unidos. Este não é o nosso país. Estes não são os nossos valores". É assim marcado um limite que, na democracia, não pode ser ultrapassado, sob pena da própria perda de democraticidade do sistema que se quer proteger.

Hoje, a atenção está toda concentrada sobre os body scanners, sobre esses instrumentos penetrantes de controle que, nascidos ao serviço da medicina, permitem "ler" o corpo das pessoas, revelando cada detalhe seu, portanto também qualquer objeto que se encontre sobre elas. Uma nova varinha mágica? Pareceria que sim, julgando-se pelo menos as declarações de quem defendeu que os body scanners são o instrumento mais seguro para prevenir o terrorismo. Não é a primeira vez que a ênfase tecnológica agita os políticos, distorcendo a realidade e sugerindo soluções que podem se revelar perigosas e ineficazes.

A distorção se tornou evidente com o fato de que a discussão se polarizou quase exclusivamente sobre o instrumento técnico, colocando em segundo plano o aspecto mais preocupante do episódio: a falência dos controles norte-americanos mais do que a ineficiência do aeroporto de Amsterdã. As autoridades norte-americanas estavam em posse das informações referentes ao terrorista, sabiam que ele embarcaria naquele voo e não foram capazes de cruzar esses dados que permitiriam impedir a partida dessa pessoa. Uma responsabilidade primária da inteligência, não da tecnologia. Um fracasso administrativo, antes que técnico.

Destaco esse ponto porque a transferência para a tecnologia está se tornando um perigoso desvio, ao qual a política se abandona para evitar questões difíceis. Nestes dias, considerando, dentre outras coisas, também o enorme custo de uma instalação generalizada de body scanners, o acento está sendo colocado justamente sobre a necessidade primária de potencializar os aparatos de inteligência. Também por uma razão banal. Admitindo-se que os instrumentos tecnológicos consigam tornar os voos seguros, nem por isso os terroristas abandonarão os seus projetos.

Os casos da Espanha e da Grã-Bretanha, lembrados antes, colocam em evidência como o terrorismo recorre a modalidades diversas, adapta-se à mudança das situações. A luta contra o terrorismo, portanto, requer, antes de tudo, políticas adequadas, fundadas sobretudo no conhecimento e na prevenção. E da prevenção também faz parte o conjunto das políticas com relação aos países dos quais se pensa que os terroristas podem partir. Parece sim errada a medida apressada tomada pelo governo norte-americano, que indicou 14 países cujos cidadãos serão submetidos a controles particulares. Foram imediatas as reações, que destacaram o risco de transformar em "suspeitos" todos os cidadãos desses países, alimentando justamente a reação antiamericana.

Nesse quadro, a questão dos body scanners deve ser analisada a partir de três pontos de vista: eficiência, sustentabilidade, respeito à privacidade (que já é uma palavra inadequada, já que em casos como esse são a dignidade e a liberdade das pessoas que estão em risco). Sabemos que esses instrumentos não são capazes de localizar objetos escondidos nas "cavidades" do corpo, e já se prevê sim que os terroristas possam usar as técnicas já experimentadas pelos traficantes de drogas. O investimento econômico é muito oneroso, também por causa do número de body scanners que deveriam ser instalados para evitar que os tempos dos controles se tornem insustentáveis. E o que dizer do "striptease virtual" ao qual as pessoas seriam assujeitadas?

Exatamente esse risco está há meses no centro da atenção da Comissão Europeia, que consultou as autoridades europeias e a Agência dos Direitos Fundamentais, recebendo respostas muito críticas, que evidenciam a necessidade de uma série de garantias: uso desses instrumentos só no respeito dos princípios de necessidade e de proporcionalidade e com base a disposições específicas da lei; possibilidade de recusa a se submeter ao body scanner, aceitando controles manuais; adoção de tecnologias que reduzam a figura do passageiro, tornando invisíveis suas características sexuais e os eventuais defeitos físicos, localizando só eventuais objetos; separação entre o pessoal que vê fisicamente a pessoa e quem efetua o controle; apagamento das imagens recolhidas.

Oportunamente, o Enac, a entidade que regula tecnicamente os voos, avisou que pedirá a Bruxelas indicações sobre as características dos novos instrumentos. Mas não estamos diante de uma simples questão técnica: da União Europeia, deveriam vir principalmente indicações relativas à compatibilidade dessas medidas com a Carta dos Direitos Fundamentais, que começa afirmando justamente a inviolabilidade da dignidade da pessoa.

Não é uma advertência retórica. Não é aceitável a lenta erosão de liberdades e de direitos, a imunização da sociedade diante de medidas não liberais. Analisando no jornal The Guardian a falência dos controles norte-americanos, Gary Young destacou oportunamente que a estratégia de Bush contra o terrorismo teve como efeito não uma maior proteção dos cidadãos, mas o incremento do medo, explorado para aumentar controles sociais e a militarização, para ganhar consenso. É um diagnóstico que pode valer para todos.