domingo, 31 de agosto de 2008

Auto-consciência burocrática


Longe de examinar seus pressupostos filosóficos gerais, todas as suas questões até cresceram no chão de um determinado sistema filosófico, o materialismo histórico. Jaz uma mistificação, não só em suas respostas, mas já nas perguntas mesmas. Esta dependência para com o materialismo histórico é a razão pela qual nenhum desses críticos mais recentes sequer tentou uma crítica mais abrangente do sistema todo, por mais que cada um deles afirme estar além de Marx. A polêmica deles contra Marx e entre si mesmos se limita a cada um deles extrair um aspecto do sistema e voltá-lo tanto contra o sistema inteiro quanto contra os outros aspectos extraídos pelos outros.


(texto baseado em: Karl Marx, A Ideologia Alemã)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Krishnamurti


  • "Mas há aqueles que matam: matam por desporto, por divertimento, matam para obter lucro – por exemplo, a indústria da carne. São os mesmos que destroem a Terra, espalham gases venenosos, poluem o ar, as águas, e poluem-se uns aos outros. É o que estamos a fazer à Terra e a nós próprios. Viver sem causar sofrimento ou morte a outros significa não matar um ser humano nem qualquer animal, por desporto ou para sustento."

  • "A vida inteira, a partir do momento em que nascemos, é um processo de aprendizado."

  • "Se realmente entendemos o problema, a resposta virá dele, porque a resposta não está separada do problema."

  • "A verdadeira revolução não é revolução violenta, mas a que se realiza pelo cultivo da integração e da inteligência de entes humanos, os quais, pela influência de suas vidas, promoverão gradualmente radicais transformações na sociedade."

    ("A educação e o significado da vida pg 93.")

  • "Não há nada que conduza à verdade. Temos que navegar por mares sem roteiros para encontrá-la".

  • "A escolha é onde existe confusão. Para a mente que vê claramente, não há necessidade de escolha, há ação. Penso que muitos problemas resultam de dizer que somos livres para escolher, a escolha significa liberdade. Pelo contrário, eu diria que a escolha significa uma mente confusa e, por conseguinte, não livre."

    (Uma forma diferente de vida.)

  • "As idáias não são a verdade, a verdade é algo que deve ser testado diretamente, de momento a momento. Não é uma experiência desejada, que é pura sensação. Só quando somos capazes de transcender o feixe de idéias, que é o eu, que é a mente, que tem uma continuidade parcial ou integral; só quando somos capazes de ultrapassá-lo, quando o pensamento está em absoluto silêncio, só então existe um "estado de experimentar". Pode-se então saber o que é a verdade."

(este trecho foi obtido de : http://books.google.com/books?id=NhCt-CAlKq4C&pg=PA208&lpg=PA208&dq=%22As+id%C3%A9ias+n%C3%A3o+s%C3%A3o+a+verdade,+a+verdade+%C3%A9%22&source=web&ots=CTrKQDTf3q&sig=Mt5qg7_ekPb1HrReFBw9G0ihlY4&hl=pt-BR&sa=X&oi=book_result&resnum=1&ct=result#PPA8,M1

(A busca da felicidade.)

  • "Na sua forma atual, a religião é a própria antítese da verdade."

    (Uma forma diferente de vida.)

  • "Para compreender a verdade tem de ter uma mente muito precisa e clara, e não uma mente inteligente, mas capaz de ver sem distorção, uma mente aberta e inocente."



    Obtido em http://pt.wikiquote.org/wiki/Jiddu_Krishnamurti

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Entrevista com Régis Debray




“A escala dos valores é hoje a escala da renda”.


O jornal francês La Croix, publicou uma série de reportagens e entrevistas sobre os Dez Mandamentos das Escrituras Judaicas. Para comentar o décimo mandamento, “não desejar a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu asno: nem alguma coisa que pertença ao teu próximo” (Êxodo, 20,17), o jornal entrevistou Régis Debray, intelectual francês, ex-guerrilheiro, com Che Guevara, na Bolivia, e ex-ministro do governo Mitterand, socialista.

A entrevista com Régis Debray, escritor, aos cuidados de Bernard Gorce foi publicada pelo jornal La Croix, 08-08-2008.

Eis a entrevista.

A revista que você dirige, Medium, é dedicada neste mês ao “dinheiro patrão” (1). Nossa sociedade mudou a tal ponto que o dinheiro reina aí sobre tudo?

O dinheiro, até um período recente, era um meio. Agora é um fim em si. O servo tornou-se patrão. O número especial de Medium não dá um juízo moral sobre esta inversão, mas apresenta os vários aspectos do dossiê, para que cada um tire suas conclusões. O desenvolvimento e a riqueza eram outrora fundados sobre a produção de bens materiais. Por causa da ‘financeirização’ da economia, a produção é atualmente subordinada ao rendimento e à circulação monetária.

O dinheiro patrão não tem falta de servos...

Pela primeira vez na história de nossa civilização, o homem exemplar, o modelo a seguir, não é mais um homem desinteressado. O cavaleiro da Idade Média, o cavalheiro do século dezenove, o pároco a la Bernanos ou o militante político... Todos estes modelos de identificação haviam se mantido à distância do dinheiro. Desde quando estas figuras exemplares desapareceram, o índice de notoriedade se mensura unicamente ao nível de riqueza. O homem exemplar por excelência é agora o homem de negócios. Não o industrial, mas o comunicador que faz dinheiro na internet. A escala da renda é a escala dos valores de hoje.

Não deveríamos alegrar-nos com o fim de certa hipocrisia?

Nosso velho país católico era protegido por sua “verecúndia” neste campo. Que tinha pelo menos um mérito: o dinheiro não era um valor e o financeiro estava presente somente para gerenciar a administração. Mas, o dinheiro perdeu o seu pudor e se tornou o árbitro das elegâncias, das liberdades e das utilidades sociais. Vejo nisto o sinal de uma sociedade que caminha de pernas para o ar.

O reino do dinheiro patrão significa um declínio do cristianismo?

Não é preciso universalizar. Nos Estados Unidos existe um evangelismo da riqueza. Os protestantes são mais abertos do que os católicos sobre este argumento, mas também mais agnósticos, portanto na espera de sinais de eleição. Para os americanos, o dinheiro ganho é dinheiro doado por Deus. Junto a nós, ao invés, é considerado mais ou menos dinheiro roubado. É verdade que na França o refluxo do cristianismo, o seu destaque da sociedade, abre a porta a uma corrida desenfreada das mais absurdas.

Não será que a França esteja simplesmente se americanizando?

Pode-se fundar uma sociedade unicamente sobre o dinheiro. Os Estados Unidos construíram a identidade americana tanto sobre o lucro como sobre uma teologia do povo eleito. O moto sobre o dólar “In God we trust” [Em Deus nós confiamos] exprime uma dimensão escatológica que serve de substrato ao “enriquecei-vos”. O que há de terrível na americanização da Europa em geral e da França em particular é que nós importamos o bilhete verde, o culto do fiduciário, sem a fé em Deus, o materialismo sem o espiritual. Por isso se assiste à deslocalização do corpo social, à ampliação da disparidade entre ricos e pobres, à luta de cada categoria social pela manutenção dos próprios privilégios. Nós nos encontramos naquilo que o sociólogo Émile Durkheim chamava o estado de anomia, a ausência de regras coletivamente aceitas, a recusa de uma subordinação dos interesses particulares a um bem comum.

Uma sociedade pode liberar-se da lei e da autoridade moral?

A civilização implica uma repressão organizada da instintividade. A civilização é a felicidade domada, padronizada, sublimada. A recusa da liberação sem inibições das pulsões sádicas, egoístas, agressivas. Quando se estabelece como ideal a felicidade como satisfação maciça do ego, chega-se à ferocidade. Estaríamos errados se esquecêssemos que a civilização exige sempre um compromisso ou uma transação entre uma força vital, nossas pulsões, e a força inibidora de uma moral.

A moral é a arte de transformar um sofrimento em satisfação, uma punição em recompensa. A civilização republicana laica havia sublimado as pulsões com o amor pela pátria, o culto do interesse geral, a instrução na escola. Tudo isso desmorona. Entramos num processo de “contra-civilização”.

O senhor diz que o maio de 1968 tem sua parte de responsabilidade nesta evolução.

Os participantes de 68 quiseram fazer comunidades, mas sem regras. É impossível. O primeiro dos manuscritos de Qumran é a regra da comunidade. Maio de 68 significou, de positivo, a emancipação feminina e a da sociedade civil. Mas, de negativo, introduziu a lei do mais forte, a guerra de todos contra todos. Não se constrói a “civilização” sobre o “tudo do ego”, sobre a idéia de uma felicidade sinônimo de apagamento infinito das próprias vontades.

O que pode fundar uma moral comum?

É a grande pergunta do século vinte e um, à qual não se pode responder às pressas. O século que começa será aquele da tribalização, das minorias, dos separatismos. A questão será, portanto, de saber o que pode unir todas estas tribos, confederá-las. A tribalização é o preço político-cultural da globalização econômica. E no momento assistimos a um extraordinário movimento centrífugo. Todos os etnocentrismos, todos os comunitarismos ganham terreno. Vai-se em direção a uma nova Idade Média? Podemos perguntar-nos isso. Hoje, alguns se asseguram voltando-se à “religião civil” dos direitos do homem, mas eu não creio nisso. Mais ainda do que as outras religiões, ela conta com mais comunicadores do que praticantes, mais oradores do que pessoas agentes. Na falta de algo melhor ela se tornou, em todo o caso, hoje, o dogma comum das civilizações ocidentais.

O que lhe inspira o decálogo? Pode-se voltar à lei de Moisés como a uma espécie de matriz para uma moral comum?

Sim, na condição de não fazer disso um código tribal. “Não matar”, por certo, mas isto significava originariamente: “Não matar o teu coirmão na fé, o teu irmão de sangue”. A interpretação edulcorada, ecumênica do Decálogo, que foi no início uma espécie de deontologia interna, continua sendo um belo ideal, mas não esqueçais que após o “Não matar” de Êxodo 20, vem imediatamente a pena de morte para os sacrílegos e os sodomitas. A única máxima universal, de Confúcio à tradição judaico-cristã, é a lei da reciprocidade: não fazer aos outros aquilo que não quererias que fosse feito a ti.

O último mandamento diz respeito precisamente à proibição do desejo, da cobiça. Isso não está em contradição com a mensagem publicitária que exacerba o desejo de posse?

O dinheiro patrão só tem uma lei: o lucro máximo. Não lhe importa nada referente à moral. Cabe a nós guiar este cavalo selvagem que galopa sobre todos os cartazes publicitários. Opondo-lhe ao máximo o melhor.

Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16154

A religião, uma revolução silenciosa na China

Chineses participam de missa de Natal na catedral de Nantang, Pequim

Por: Frédéric Bobin

(Fonte: Le Monde - http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2008/08/20/ult580u3266.jhtm)



O crucifixo preto destaca-se sobre o branco da parede. Predomina na sala uma claridade intensa, como que irradiada pela luz que penetra através dos vidros deste apartamento empoleirado no topo de uma torre situada num conjunto habitacional de Pequim, não longe da vila olímpica. Atrás do seu púlpito improvisado, o pastor Li, segurando um livro de salmos, canta às bandeiras despregadas. Ao lado dele, uma adepta o acompanha no piano. Na sua frente, cerca de vinte crentes entoam, por sua vez, as louvações evangélicas. Eles estão sentados em cadeiras metálicas de encosto acolchoado. Em sua maioria, são trintões e quadragenários. Eles correspondem a perfis variados, entre os quais se misturam donas de casa, intelectuais de óculos, jovens mulheres antenadas trajando blusas regatas ou rapazes com cabelos cortados no estilo "ouriço".

Yu Jie está em pé, ligeiramente afastado da platéia. Ele está mergulhado no recolhimento. Este rapaz de tez pálida e rosto arredondado segura uma Bíblia entreaberta nas palmas das suas mãos. Ele a folheia quando o pastor prega "o amor de Deus". A sua discrição é enganadora: de fato, Yu Jie é uma personalidade de peso nesta igreja não-oficial que celebra o culto nesta tarde de domingo de julho. A igreja da Arca, que nasceu por obra de um grupo de orações organizado pela sua mulher, deve muito à sua abnegação, e também ao seu prestígio pessoal.

Yu Jie é o que costumam chamar de "dissidente". Um ensaísta liberal, admirador da democracia americana - e, a esse título, um inimigo declarado dos nacionalistas chineses mais extremistas -, ele é vigiado de muito perto pela Segurança de Estado, que, contudo, o deixa livre de restrições, controles ou limitações. Em decorrência de uma extensa reflexão política e espiritual, ele abraçou a fé cristã em 2003. Um expoente da vertente pequinesa das "igrejas em domicílio" - as quais são estruturas não-oficiais toleradas, mas que evoluem em meio a um contexto precário -, ele é atualmente um dos intelectuais protestantes mais destacados da capital. Junto com dois dos seus correligionários, ele foi até mesmo recebido em 2006 em Washington por George W. Bush, o que provocou o furor do regime chinês.




Fé e política intimamente ligadas
Yu Jie é apenas um exemplo entre tantos outros. Ele encarna uma pequena revolução silenciosa: no decorrer dos últimos anos, um número crescente de intelectuais liberais na China urbana vem aderindo ao protestantismo. Além de Yu Jie, os mais conhecidos são Wang Yi, Li Baiguang, Gao Zhisheng, Jiao Guobiao, Li Heping, Li Jinsong, Ai Xiaoming. Quase todos eles são professores e juristas envolvidos na defesa dos direitos cívicos. Eles representam a parte visível de um fenômeno mais amplo.

Após ter tomado conta das regiões rurais durante os anos 1980, o fervor religioso - entre outros, o da confissão cristã - vem conquistando espaços nas grandes cidades, em particular no âmbito de uma classe média à procura de valores espirituais como forma de reação ao materialismo dominante. As estatísticas oficiais menosprezam a real importância deste ressurgimento da fé. Segundo as estimativas mais confiáveis de alguns especialistas, a China contaria atualmente entre 40 e 50 milhões de protestantes, além de 10 a 12 milhões de católicos, ou seja, comunidades cristãs que representam cerca de 5% da população. Trata-se de uma parcela ainda muito minoritária, mas que está em processo de expansão.

No caso de Yu Jie, a fé e a política estão intimamente ligadas. Com 35 anos, ele é jovem demais para ter participado da primavera estudantil de 1989 na Praça Tiananmen. Mas o esmagamento, sob as lagartas dos tanques, do sonho democrático nunca parou de assombrá-lo. No decorrer da sua reflexão, a religião foi se impondo como um substituto para um ideal político inacessível. E no contexto desta busca, o cristianismo despontou com a mais sedutora das tentações. "Os valores liberais encontram a sua fonte no cristianismo", analisa. "A tradição chinesa não me satisfaz deste ponto de vista: não é possível encontrar referências à liberdade e aos direitos humanos no confucionismo"*.

Yu Jie leu muito, mergulhou na história da evangelização em terra chinesa, refletiu a respeito dos vínculos entre o cristianismo e a modernidade. Ele conseguiu dimensionar o papel do protestantismo na formação das elites reformistas na China, no início do século 20, a partir dos conhecimentos que ele encontrou, em particular, na obra de Sun Yat-sen (1866-1925), o fundador da República. "Quanto mais eu fui lendo, quanto mais fui descobrindo que a religião cristã havia contribuído para a modernização da sociedade chinesa antes da revolução de 1949", prossegue. "Ora, esta contribuição é totalmente ocultada pelos nossos manuais de história oficiais, que apresentam o cristianismo como o instrumento do imperialismo ocidental".

"Eu acabei alimentando um ódio pela sociedade"
Wang Guangze é um outro representante desses intelectuais neoprotestantes. Um jornalista dissidente, antigo funcionário do "Diário da Lei" e de "Reportagem Econômica do Século 21" - publicações das quais ele foi excluído por conta das suas opiniões democratas -, ele tem a mesma idade que Yu Jie. Da mesma forma que para este último, o trauma de Tiananmen exerceu um papel considerável em sua evolução espiritual. Em maio de 1989, ou seja, antes da repressão do movimento, ele era apenas um colegial na província do Henan, mas havia participado das manifestações de apoio que então haviam tomado conta como uma febre da juventude pelo país afora. A intervenção sangrenta dos tanques na Praça Tiananmen o deixou totalmente "desesperado".

"Eu estava tão desiludido", recorda-se, "que acabei alimentando um ódio pela sociedade, esta sociedade que se tornara a escrava do poder". Após ter concluído seus estudos de direito, ele procura curar-se dessa raiva. As tradições chinesas, como para Yu Jie, não lhe proporcionam o auxílio de que precisa. "O confucionismo se caracteriza por ser um pensamento da elite", critica Wang Guangze, "enquanto o budismo não aponta outra meta senão a de tornar-se um santo". Mas ele segue procurando, lendo, discutindo a respeito dos caminhos da salvação com os seus amigos. O que transforma o cristianismo numa revelação repentina para ele, explica, é a "noção de pecado". Nisso ele descobre - finalmente! - a chave que lhe permite livrar-se da sua execração para com o mundo. "Nós todos somos pecadores", diz. "Não existem pessoas mais nobres do que outras". "Foi assim que apazigüei a minha cólera contra o Partido Comunista", prossegue. "Os comunistas são pecadores assim como eu, mesmo se eles estão a serviço de um sistema que oprime".

Com isso, Wang Guangze torna-se então "tolerante", "moderado", e ele avalia ainda que "é preciso ajudar uns aos outros entre pecadores". Ele fundou uma associação que preconiza a "reconciliação" na China, inspirada no modelo sul-africano.

Fan Yafeng é outro que reencontrou a paz da alma graças a Deus. Um jurista na Academia das Ciências Sociais, ele tinha 20 anos em 1989. Ele havia viajado da sua província do Anhui para Pequim com o objetivo de acompanhar de muito perto a rebelião estudantil. "Depois da repressão, eu acabei ficando totalmente deprimido", recorda-se. "Ao longo de muitos anos, senti-me fraco, frágil, vazio". Ele tenta então aproximar-se do budismo, mas este não oferece respostas para as suas "interrogações a respeito do sentido da vida". No inverno de 1996, surge finalmente a revelação. Um amigo pastor que, por sua vez, havia passado do hinduismo para o protestantismo o convida para assistir ao culto de uma "igreja em domicílio". "Na ocasião, vi pessoas irradiando felicidade, pessoas muito simples, uma cabeleireira, uma empregada de uma companhia de seguros", recorda-se. "O rosto de todas elas estava iluminado". Alguns meses mais tarde, Fan Yafeng é batizado. Enquanto os eventos de 1989 haviam precipitado seus tormentos passados, hoje ele se nega, contudo, a politizar excessivamente sua descoberta da fé: "As nossas igrejas permitem salvar as almas, não a sociedade".

Nem todos os neoprotestantes de Pequim estão imbuídos de uma tão grande beatitude. Um homem de cabelos compridos com madeixas ruivas, Wang Wangwang, é um artista pintor e um célebre criador de cartazes muito requisitado pela vanguarda da capital. Ele converteu-se em 2004 porque, apesar dos seus sucessos e da sua boa situação financeira, ele sentia "um vazio espiritual". Quatro anos mais tarde, ele optou por tomar certa distância em relação ao culto. "Eu senti em mim", diz, "uma contradição, um conflito entre certos valores ocidentais vinculados ao cristianismo e os valores chineses dos quais sou portador". Desde então, ele vem se esforçando para "harmonizá-los" entre si. Wang Wangwang sublinha que ele acabou conseguindo alcançar uma "síntese satisfatória". Mas, o preço que ele teve de pagar para tanto foi um processo de desengajamento em relação à "igreja em domicílio" à qual ele havia aderido. Ele prefere "praticar" sozinho, em sua casa, no meio da mais completa bagunça dos seus quadros, nos quais o Cristo é visto disputando espaços com Mao Tse-Tung.

*Nota do tradutor - Confúcio (551 a.C. - 479 a.C.) é considerado como o primeiro "educador" da China; os seus ensinamentos deram origem a uma doutrina política e social.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

terça-feira, 19 de agosto de 2008

As três crises



Cada vez mais intensos, os solavancos das finanças mundiais podem provocar crise sistêmica, e depressão semelhante à de 1929. A esta derrocada estão entrelaçadas a escassez de alimentos e da alta dos combustíveis. Vivemos as conseqüências de 25 anos de neoliberalismo. Mas quando diremos basta?


Por: Ignacio Ramonet

Nunca havia acontecido antes. Pela primeira vez na história da economia moderna, três crises de grande amplitude – financeira, energética e alimentar – estão em conjunção, confluindo e combinando-se. Cada uma delas interage sobre as demais, agravando, de modo exponencial, a deterioração da economia real.

Por mais que as autoridades se esforcem em minimizar a gravidade do momento, o certo é que nos encontramos diante de um sismo econômico de magnitude inédita, cujos efeitos sociais, que mal começaram a se fazer sentir, explodirão nos próximos meses com toda a brutalidade. A numerologia não é uma ciência exata e o pior não costuma ser previsto, mas 2009 pode muito bem se parecer com o nefasto ano de 1929...

Como temíamos, a crise financeira continua aprofundando-se. Aos descalabros de prestigiosos bancos norte-americanos, como o Bear Stearns, o Merrill lynch e o gigante Citigroup, somou-se o recente desastre do lehman Brothers, quarto maior banco de negócios, que anunciou, em 9 de junho, um prejuízo trimestral de 2,8 bilhões de dólares. Como foi a primeira perda desde o lançamento de suas ações na Bolsa, em 1994, o resultado teve efeito de um terremoto financeiro, nos já violentamente traumatizados EUA.

A cada dia difundem-se notícias sobre novas quebras. Até agora, as entidades mais afetadas admitem prejuízos de quase 330 bilhões de dólares, e o Fundo Monetário Internacional estima que, para escapar da catástrofe, o sistema necessitará de cerca de 950 bilhões de dólares (o equivalente à metade do PIB do Brasil).

A crise começou nos Estados unidos, em agosto de 2007, com a desconfiança nas hipotecas de má qualidade (subprime) e propagou-se por todo o mundo. Sua capacidade de se transformar e se espraiar por meio da contaminação de complexos mecanismos financeiros faz com que se assemelhe a uma epidemia fulminante, impossível de controlar. As instituições bancárias já não emprestam dinheiro entre si. Todas desconfiam da saúde financeira de suas rivais.

Ao fugir dos mercados de ações e imóveis, os especuladores fazem apostas gigantescas em contratos para entrega futura de petróleo e alimentos. É a financeirização generalizada da produção capitalista
Apesar das injeções maciças de liquidez efetuadas pelos grandes bancos centrais, nunca se vira uma seca tão severa de dinheiro nos mercados. E agora o maior temor de alguns é uma crise sistêmica — ou seja, que o conjunto do sistema econômico mundial entre em colapso.

Da esfera financeira, o problema passou para o conjunto da atividade econômica. De um momento para outro, as economias dos países desenvolvidos sofreram um desaquecimento. A Europa encontra-se em franca desaceleração e os Estados Unidos estão à beira da recessão.

O setor imobiliário é onde melhor aparece a dureza desse ajuste. Durante o primeiro trimestre de 2008, o número de vendas de moradias na Espanha caiu 29%! Cerca de dois milhões de apartamentos e casas estão sem compradores. O preço das propriedades continua a desmoronar. O aumento dos juros hipotecários e os temores de uma recessão lançaram o setor numa espiral infernal, com ferozes efeitos em todas as frentes da imensa indústria da construção. Todas as empresas desses setores estão agora no olho do furacão. E assistem, impotentes, à destruição de dezenas de milhares de empregos.

Da crise financeira passamos à crise social. E políticas autoritárias voltaram a surgir. O Parlamento Europeu aprovou, em 18 de junho passado, a infame “diretiva retorno” [1]. Imediatamente, as autoridades espanholas declararam sua disposição em favorecer a saída da Espanha de um milhão de trabalhadores estrangeiros...

Em meio a essa situação de espanto, ocorre o terceiro choque do petróleo, com o preço do barril em torno de US$ 140. Um aumento irracional (há dez anos o barril custava menos de US$ 10) devido não apenas a uma demanda despropositada mas, especialmente, à ação de muitos especuladores, que apostam no aumento contínuo de um combustível em vias de extinção. Retirando-se da bolha imobiliária, que desinfla, os investidores alocam somas colossais em contratos para entrega futura de petróleo, o que pode levar o preço do barril a algo em torno de US$ 200. Ou seja: está ocorrendo uma “financeirizacão” do petróleo, com conseqüências como formidáveis aumentos de preços da gasolina, em muitos países, e a ira de pescadores, caminhoneiros, agricultores, taxistas e todos os profissionais mais afetados. Em muitos casos, eles exigem de seus governos ajudas, subsídios ou reduções dos impostos, com grandes manifestações e enfrentamentos.

Como se todo esse contexto não fosse bastante sombrio, a crise alimentar agravou-se repentinamente e chega para nos lembrar que o espectro da fome continua ameaçando quase um bilhão de pessoas. Em cerca de 40 países, a carência de alimentos provocou levantes e revoltas populares. A reunião de cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), foi incapaz, em 5 de junho, em Roma, de chegar a um consenso para retomar a produção de alimentos no mundo. Aqui também os especuladores, fugindo do desastre financeiro, têm parte de responsabilidade — porque apostam num preço elevado das futuras colheitas. Até mesmo a agricultura está se “financeirizando”.

Este é o saldo deplorável de 25 anos de neoliberalismo: três veneosas crises entrelaçadas. Já está na hora de os cidadãos gritarem: “Basta!”.




[1] "Europa se blinda ante los inmigrantes”, Sami Naïr, El País, Madri, 18 de junho de 2008.


Fonte: Le Monde Diplomatique (http://diplo.uol.com.br/2008-08,a2516)

Geni e o Zepelim

Uma vez criei aqui um marcador "vidas revolucionárias". Queria poder usar o mesmo marcador para vidas ficcionais; trata-se de Geni.
Acredito que isso tem a ver com o que conversamos ontem: Geni é mais inteira do que eu, mais feliz e mais rica...


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Geni e o Zepelim



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir


Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni


Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni


Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

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Comentários de jholland - em 19/08:

Permita-me fazer alguns comentários no próprio corpo da postagem, correndo o risco, talvez, de ser redundante.
Para mim, o tema central da discussão de ontem - o próprio ponto de partida para o Grupo de Estudos - é a imobilidade: como caracterizá-la, qual o seu alcance, como superá-la ?
S. Zizek tem um texto em que dialoga com a famosa frase cristã: "Perdoai-os Senhor, pois eles não sabem o que fazem". Para Zizek, não se trata mais de refletir sobre a ignorância - que nos leva à imobilidade - mas saber porque, sabendo de tudo, continuamos imóveis.
Isso me leva a dar o passo seguinte: creio que a imobilidade resulta de uma particularidade da Filosofia Ocidental - pois, tal como voce observou ontem, talvez todo o Ocidente esteja alicerçado em um grande equívoco. Qual é esse equívoco? A renúncia a uma cosmologia, associada à alienação de si mesmo.
Explico.
Se antes um certo equilíbrio resultava de uma cosmologia religiosa, o Iluminismo tratou de desmontar o edifício metafísico que sustentava essa cosmologia. (O processo, no entanto, foi lento, durou quase 2 séculos). A partir de meados do século XIX até meados do século XX, tivemos o período áureo da Política. Nesse período, a Utopia socialista conseguiu - bem ou mal - aproveitar os escombros dessa metafísica para mobilizar corações e mentes, tentou fundar uma espécie de cosmologia sem Deus (o sistema hegeliano-marxista é um exemplo disso, mas não o único). Entretanto, o que sobreveio a esse período - o fim da Política - não é propriamente uma ruptura, mas talvez uma continuidade desse movimento iniciado pelo Iluminismo. Em outras palavras, a filosofia ocidental, a postura do homem ocidental moderno, levou-o à crítica niilista, cujo resultante é a imobilidade.
Qual seria o cerne dessa postura ? Como disse acima, ela tem a ver com a conceitualização do próprio mundo, que elimina a possibilidade de nos relacionarmos e vermos a realidade como ela é. É o império do conceito e do simulacro. Volto, então a repetir o que já disse em outra ocasião: construímos uma auto-imagem, uma persona, e, através dela, pensamos ver o mundo, quando na verdade estamos apenas olhando no espelho. Essa é a razão pela qual, penso, a maioria esmagadora do mundo não se importa, assenta-se confortavelmente no sofá e espera apenas se distrair da melhor forma possível até que a morte lhes sobrevenha. Não há um sentido real de vida e do Outro.
Essa é a raiz da imobilidade.
Ainda que alcançemos postos importantes em uma burocracia qualquer, na esperança de "fazer o mínimo pelo outro", o que provavelmente ocorrerá é que, no processo cotidiano, seremos engolfados pelos jogos de poder, pelos jogos do ego, pelos jogos de linguagem, pelas seduções do consumo, do amor ou do sexo e, principalmente, pela premente necessidade de uto-preservação que essa auto-imagem nos impõe e que nos escraviza até quando sonhamos.
Não somos aquilo que pensamos ser; não somos a imagem que fazemos de nós mesmos e que tão ciosamente tentamos preservar. Para termos uma pequena idéia do que somos, devemos começar a observar o que fazemos. Isso nos dará apenas uma pequena avaliação, uma primeira aproximação, porém ela, por si mesma, já nos revela o quão distantes somos em relação àquilo que pensamos que somos.
Creio, então, que a questão volta a ser a ignorância, porém num registro mais profundo. Pois somos ignorantes de nós mesmos e, portanto, do Outro e do próprio Mundo. O que vemos - assim, como a definição de nossos prórpios problemas e prioridades - não advém de um conhecimento genuíno sobre nós e o Outro, mas apenas das interações com nosso espelho quebrado, nossa pobre auto-imagem.
Sobre esse assunto, ver por exemplo, a postagem no Metamorficus: http://metamorficus.blogspot.com/2008/08/conhece-te-ti-mesmo.html

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

VAMOS FAZER UM 68 ?



Por: Carlos Gerbase

(Novembro/99)



Li, algumas semanas atrás, um livro que envelheceu assustadoramente (em seguida explicarei o uso deste advérbio), chamado Um ensaio sobre a revolução sexual após Reich e Kinsey, de Daniel Guérin, um francês bissexual, que hoje teria 95 anos (tentei descobrir, via Internet, se ainda está vivo, mas não consegui). O livro (da Brasiliense, editado em 1980) chegou à minha casa emprestado pelo meu amigo Moa (ou Moah Cyr, como queiram), há uns dez anos, mas eu nunca tinha prestado atenção nele (apesar de nunca tê-lo devolvido; até para isso é preciso um certo interesse). Mas, depois de rodar Tolerância, atravesso um surto (que alguns poderão associar a uma adolescência tardia, quiçá doentia) de curiosidade sobre o tema (a sexualidade humana, suas regras, seus mistérios), que me levaram a esse Ensaio.., à releitura de O taoísmo do amor e do sexo (do chinês Jolan Chang) e à obra de José Ângelo Gaiarsa (de quem já li três livros, algo repetitivos, mas sempre incisivos e corajosos).



Mas vou voltar à vaca fria, ou seja, ao livro de Guérin. O dado mais importante: foi escrito em 1969, ainda sob o tremendo impacto dos acontecimentos de maio de 68 (e ainda quando os Beatles tocavam e gravavam juntos; quando o "amor livre" era uma prática, e não uma lembrança; quando havia uma oposição clara entre direita e esquerda, entre capitalismo e socialismo; quando o termo "pós-modernidade" não havia sido cunhado, pois a modernidade ainda parecia ser o melhor remédio contra o reacionarismo). Em 69, Guérin apontava para um grande número de manifestações sociais e mudanças comportamentais da juventude ocidental e profetizava que o final do nosso século assistiria a uma radical transformação das relações amorosas, com efeitos profundos na família nuclear e na sociedade.


Para fortalecer seu prognóstico, Guérin fornece ao leitor informações básicas sobre os trabalhos de Reich (de quem se proclama fã) e de Kinsey (a quem faz críticas, mas reconhece como pesquisador sério), além de recuperar algumas idéias básicas de Freud. Enfim, traça um bê-a-bá dos estudos sobre sexo no século 20, dentro de uma perspectiva "progressista", ou seja, a de que a humanidade está (ou estava) evoluindo para um estágio de maior tolerância sexual, em que as minorias seriam mais felizes, porque menos reprimidas (para Kinsey, a problemática do homossexualismo é muito representativa, ou muito mais representativa do que parece à maioria heterossexual). Mas a evolução alcançaria também a maioria da população ocidental, e seus reflexos já estariam evidentes na crescente liberalização dos meios de comunicação de massa, nos festivais de rock (onde rola de tudo), na literatura libertária, nas revistas "para adultos", na indústria da pornografia, etc.


É, na verdade, um livro desigual, com bons capítulos, que parecem escritos com cuidado e preocupação estética, e outros textos que mais parecem panfletos, curtos no conteúdo e pobres na forma. Mas, no todo, é um livro perfeito para marcar uma época, um período da humanidade em que o otimismo em relação ao sexo era crescente (otimismo entre os que gostam de sexo, é claro. E eu não sei se estes são a maioria; temo que não). Guérin escreve em 68, mas parece impaciente para ver o que profetiza acontecendo em 78, ou 88, ou 98. Então, a grande pergunta que precisamos fazer é: o que aconteceu com aquela semente de liberação, que parecia capaz de germinar à força, vencendo todas as formas reacionárias de conservadorismo sexual?


Uma das respostas possíveis é dada pelo próprio Guérin, que se intitula socialista-anarquista (para ele, o anarquismo é uma forma evoluída de socialismo). A revolução sexual, conforme vista em 68, só seria vencedora e determinante de um novo conjunto de relações inter-pessoais, se a revolução socialista também fosse, antes dela (ou junto com ela) igualmente vencedora e determinante de uma novo conjunto de relações econômicas e sociais. Em outras palavras, para trepar à vontade, só derrubando o capitalismo e a insuportável pressão da "posse" de bens materiais e espirituais. E quem fará a dupla revolução? Guérin afirma que "a revolução sexual, do mesmo modo que sua gêmea, a revolução social, é, antes de tudo, obra do povo".


E o tal "povo", em 68, parecia estar disposto a esta dupla revolução. Não quero discutir o que significa a palavra povo (espero, ansioso, o filme de Furtado/Assis Brasil a esse respeito), mas posso antecipar que o "povo", em 68, na visão de Guérin, era uma entidade bem concreta, que tomava universidades, atirava pedras na polícia, fazia greves de verdade (e não esses simulacros horrendos que fazemos hoje) e tirava a roupa para protestar (e não para aparecer na mídia). Para Guérin, os sinais da revolução sexual, em pleno curso, estavam nas ruas e nas camas: "A liberdade de cada um de nós de trepar à vontade é um dos últimos direitos, uma das últimas fantasias de que dispomos. Ela deve permanecer (perdoem-me essa comparação) um dos meios de defesa do homem, assim como o sindicalismo operário existente contra o patrão, individual ou coletivo, ou o conselho operário que age contra os carros blindados de uma pretensa "ditadura do proletariado".


Vejam como Guérin não está atrelado à burocracia soviética (aliás, o stalinismo foi tremendamente reacionário quanto ao sexo) e à esquerda mais tradicional. Guérin apenas diz (e que bom ouvi-lo dizer isso, depois de fazer Tolerância) que sexo e política são assuntos muito próximos. Para buscar a liberdade sexual, é preciso entender (e romper) as amarras sociais e políticas que a sociedade impõe a seus sócios. E isso não é fácil. É difícil. Parecia mais possível em 68. Mas as revoluções, por ele anunciadas com tanto otimismo, revelaram-se, no máximo, surtos românticos de liberdade num mundo predestinado à cadeia lógica do capitalismo universal e totalizante. Nessa cadeia, o sexo é produto importante, gera muito dinheiro e é até admitido (veja-se a publicidade) como impulso natural, saudável e "positivo" do ser humano, mas a sua prática está longe, muito longe , de ser livre. Em 99, estamos muito mais perto de 58 (ano em que eu não existia) do que de 68 (ano em que ouvi Beatles e Rolling Stones pela primeira vez). É triste, mas é verdade.


Neste final de século, em que há evidente falta de perspectivas políticas, em que assistimos a todo momento a esquerda brigando com ela mesma, em que a direita dança sozinha numa breguíssima, imensa e interminável festa da revista "Caras", a tal revolução sexual, que um dia Guérin previu com tanta convicção, virou, virou, virou... na verdade, não virou nada. Continuou sendo uma eterna promessa, que minha geração não soube (ou não conseguiu) tornar realidade. A AIDS tem pouco a ver com essa derrota. Quando ela estabeleceu, em meados dos anos 80, "O GRANDE MEDO" (que a mídia soube explorar com todo o reacionarismo possível e imaginável) as coisas já estavam definidas. A AIDS foi apenas a pá-de-cal.


A não-revolução sexual é a vitória de uma sociedade de classes, que se afirma como a única possível, e que, portanto, continuará validando, cada vez com mais força, suas grandes instituições: o casamento monogâmico e exclusivista, a família patriarcal, o sexo como força procriadora (e não libertária) e o direito de consumir "sexo" como um produto, como um bem à venda, e não o de vivê-lo como um direito básico do ser humano. O capitalismo, enquanto erotiza à última potência um cigarro, um desodorante, ou um creme dental, determina a forma esquemática com que devemos nos apaixonar por outro ser humano e viver essa paixão da forma mais previsível e menos erótica possível.


Gaiarsa ainda lembraria que vivemos a ilusão de querer, nos dias de hoje, segurança e felicidade ao mesmo tempo, o que é uma impossibilidade completa. Ou temos a segurança da família, as bênçãos da sociedade, o fluxo regulado e seguro de bens materiais e emocionais que o capitalismo nos proporciona (e temos que nos contentar com o capitalismo rastaqüera brasileiro), ou buscamos a felicidade, que (sempre segundo Gaiarsa) só pode ser alcançada com liberdade sexual. Como a revolução fracassou, essa liberdade, hoje, está fora da lei, e quem se atreve a buscá-la estará infringindo toda sorte de normas, escritas e não-escritas. Será criticado pelos familiares, censurado pelos amigos e estigmatizado como "imoral" e "tarado" por quase todos. Por esses motivos, a segurança é, hoje, muito mais popular que a felicidade. E, ao que parece, continuará sendo no próximo século. Ou não?





Fonte: Não (www.nao-til.com.br).


(Extraído de: http://www.rizoma.net/interna.php?id=178&secao=desbunde)

domingo, 17 de agosto de 2008

Tudo em que acreditamos nos aprisiona




Por Robert Anton Wilson

Deve ser óbvio para todos os leitores inteligentes (mas curiosamente não é óbvio para todos) que o meu ponto de viste neste livro é de agnosticismo. A palavra "agnóstico" aparece explicitamente no "Prólogo” e a atitude agnóstica é repetidamente mencionada no texto, mas muitas pessoas ainda pensam que eu “acredito” em algumas das metáforas e modelos aqui mencionados. Portanto quero esclarecer , como nunca antes o fiz, que:

Eu não acredito em nada.

Essa afirmação foi feita explicitamente por John Gribbin, editor de física da revista New Scientist, em um debate da BBC com Malcolm Muggeridge, e provocou incredulidade por parte da maioria dos espectadores. Parece ser uma ressaca da era medieval católica que leva a maioria das pessoas, até aquelas considerada,, "educadas”, a pensar que todos devem “acreditar" em alguma coisa ou outra: que se uma pessoa não é teísta, deve então ser uma ateísta dogmática: e se, uma pessoa pensa que o capitalismo não é perfeito, ela deve acreditar fervorosamente no socialis­mo; e se uma pessoa não tem uma fé cega em x, ela alternativamente deve ter uma fé cega em y ou no reverso de x.

Minha opinião é de que a crença é a Morte da inteligência. A partir do momento que alguém acredita em algum tipo de doutrina ou assume a certeza, ele pára de pensar a respeito do aspecto da existência. Quanto maior é a certeza assumida, menos é deixado para se pensar a respeito de um determinado assunto, e uma pessoa que tivesse certeza sobre tudo não teria nenhuma necessidade de pensar a respeito de qual­quer coisa e poderia ser considerada clinicamente morta de acordo com as normas médicas atuais, pois a ausência de atividade cerebral é consi­derada o fim da vida.

Minha atitude é idêntica à do Dr. Gribbin e à da maioria dos físicos de hoje, visto que ela é conhecida como "A Interpretação de Copenhaguen", pois foi formulada em Copenhaguen pelo Dr. Niels Bohr e seus colabora­dores, entre 1926-1928. Algumas vezes, A Interpretação de Copenhaguen é chamada de "agnosticismo modelo" e reza que qualquer plano utilizado para organizar nossa experiência no mundo é um modelo do mundo e não deve ser confundido com o próprio mundo. Alfred Korzybski, o semanticista, procurou popularizar essa física externa por intermédio do slogan: "O mapa não é o território". Alan Watts, um talentoso exegeta da filosofia oriental, reformulou-o mais vividamente como: "O cardápio não é a refeição".

A crença no sentido tradicional, ou convicção, ou dogma, resulta na grandiosa ilusão: "Meu modelo presente" — ou plano, ou mapa, ou túnel-realidade — "contém todo o universo e não precisará mais ser revisto". Em termos de história da ciência e do conhecimento em geral, para mim, isso parece absurdo e arrogante e fico sempre surpreso pelo fato de tantas, pessoas conseguirem viver com essa atitude medieval.

O Gatilho Cósmico trata de um processo de alteração cerebral deliberadamente induzida, pelo qual eu mesmo passei durante os anos de 1962 a 1976. Esse processo é chamado de "iniciação" ou "busca da visão” em muitas sociedades tradicionais e pode facilmente ser considerado, em terminologia moderna, como uma variedade perigosa de autopsicoterapia. Eu não o recomendo para todos e acho que consegui um número maior de bons resultados do que de ruins, visto que passei por duas variedades de psicoterapia clássica antes de começar minhas próprias aventuras e, por possuir um bom conhecimento de filosofia científica, eu não estava inclinado a "acreditar" literalmente em nenhuma impressionante Revelação.

Em resumo, o que aprendi de mais importante em minhas experiências é que "realidade é sempre plural e mutável".

Como a maior parte de O Gatilho Cósmico é dedicada à explicação e à ilustração dessa afirmação, e como já tentei explicá-la em outros livros e ainda encontro pessoas que leram tudo o que escrevi acerca do assunto e continuam não entendendo o que quero dizer, tentarei novamente neste novo "Prefácio" explicá-la UMA VEZ MAIS e talvez de forma mais clara que antes.

"Realidade" é: (a) um substantivo e (b) singular. Pensando no idioma português (e nos conhecidos idiomas indo-europeus), essa palavra nos pragrama subliminarmente a conceituar "realidade" como uma entidade de um só bloco, por exemplo, um arranha-céu de Nova Iorque, onde cada parte é tão somente outro espaço dentro do mesmo edifício. Esse programa lingüístico é tão dominante que a maioria das pessoas não pode "pensar" além de seus limites e, quando alguém tenta oferecer uma nova perspectiva, logo imagina que esse alguém esteja falando bobagem.

Saber que “realidade é um substantivo, algo sólido como um tijolo ou um taco de beisebol, deriva do fato evolutivo de que o nosso sistema normalmente organiza a dança energética dentro desses sólidos, provavelmente como avisos instantâneos de sobrevivência biológica. Entretanto, esses sólidos voltam por se dissolver em danças energéticas — processos ou verbos —, quer quando o sistema nervoso entra em sinergia mediante certa drogas, quer quando transmutado por exercícios xamânicos ou de yoga, quer recebendo a ajuda de instrumentos científicos. Tanto no misticismo quanto na Física, há uma concordância geral de que os sólidos são construídos pelo nosso sistema nervoso e de que “realidades” (plural) são mais bem descritas como sistemas ou conjunto de funções energéticas.

Robert Anton Wilson


Isso no que se refere à “realidade”como substantivo. O fato de saber que realidade é singular, como um jarro hermeticamente fechado, não se harmoniza com as descobertas científicas que, durante este século sugerem que “realidade” pode ser melhor considerada como fluindo e vagueando como um rio, ou interagindo como uma dança, ou evoluindo como a própria vida.

A maioria dos filósofos sabia, pelo menos desde os anos 500 a.C., que o mundo percebido não é “o mundo real”, mas uma construção criada por nós mesmos — nossa própria e particular obra de arte. A ciência moderna teve início quando Galileu demonstrou que a cor não é “parte integrante” dos objetos, mas é a “interação de nossos sentidos” com os objetos. Apesar desse conhecimento filosófico e científico da relatividade neurológica, mais claramente demonstrada pelos instrumentos cada vez mais modernos, devido à linguagem nós ainda pensamos que, atrás do universo que flui, vagueia, interage e evolui criado pela percepção, encontra-se uma sólida "realidade" forte c nitidamente delineada quanto uma barra de ferro.

A física quântica minou aquela "realidade" de barra de ferro, mos­trando que faz mais sentido falar das interações que realmente experimentamos de forma exclusivamente cientifica (nossas atividades no laboratório); e a psicologia da percepção minou a "realidade" platônica, mostrando que, se existisse, levaria a contradições desanimadoras se ten­tássemos explicar como realmente percebemos que um hipopótamo não é uma orquestra sinfônica.

As únicas "realidades" (plural) que realmente experimentamos e sobre as quais podemos falar significativamente são realidades percebidas, realidades experimentadas, realidades existenciais — realidades que nos envolvem como editores — e, para o observador, todas elas são relativas, flutuando, evoluindo, com capacidade de serem ampliadas e enriquecidas, movendo-se de uma baixa resolução para uma alta fidelidade e não se conformando juntas como peças de um quebra-cabeça em uma única Realidade, aquela com R maiúsculo. Ao contrário, projetam iluminação, uma sobre a outra, por contraste, como as pinturas em um grande museu ou os diferentes estilos sinfônicos de Haydn, Mozart, Beethoven e Mahler.
Alan Watts pode ter colocado isso da melhor forma: "O universo é um borrão gigante de Rorshach". Para isso, a ciência encontra um significado no século XVIII, outro no século XIX e um terceiro no século XX; cada artista encontra significados únicos em outros níveis de abstração; e cada homem e cada mulher encontram significados diferentes em momentos diferentes do dia, dependendo dos ambientes, interno e externo, em que se encontram.

Este livro trata do que eu denominei de alteração cerebral induzida e que o Dr. John Lilly intitula mais especificamente de "autoprogramação do biocomputador humano". Como psicólogo e romancista, basicamente me empenhei em saber quão rapidamente seria possível reorganizar a função cerebral de um primata normal domesticado e de inteligência média — o único sobre o qual eu poderia eticamente efetuar essa pesquisa arriscada — eu mesmo.

Tal como a maioria das pessoas que historicamente tentaram essa "autoprogramação", logo me encontrei em águas revoltas. Tornou-se seguramente óbvio que meus modelos e metáforas anteriores não poderiam ser responsabilizados pelo que eu estava experimentando. Portanto, tive de criar novos modelos e metáforas à medida que seguia adiante. Como eu estava lidando com assuntos fora de realidades consensuais, algumas de minhas metáforas são um tanto extraordinárias. Isso não me incomoda, pois sou tanto artista quanto psicólogo e também não me incomodo quando as pessoas interpretam essas metáforas ao pé da letra.

Peço-lhes, gentis leitores, que memorizem a citação de Aleister Crowley no início da "Parte I” e tornem a repeti-la caso, em algum momento, vocês comecem a pensar que estou lhes trazendo as mais recentes revelações teológicas da Central Cósmica.

O que minhas experiências demonstraram — o que tais experiências ao longo da história demonstraram — é simplesmente que nossos modelos de “realidade” são muito pequenos e ordenados, enquanto o universo da experiência é enorme e desordenado, e nenhum modelo pode jamais incluir toda a grande desordem percebida pela consciência não censurada.

(Continua... )

Do livro de Robert Anton Wilson, "O Gatilho Cósmico"

Mais sobre o autor em:



quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A DÚVIDA DA DÚVIDA


por VILÉM FLUSSER

A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, ser vista como "ceticismo", isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada, estimula o pensamento. Em dose excessiva, paralisa toda atividade mental. A dúvida, como exercício intelectual, proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa e, portanto, de todo o conhecimento sistemático. Em estado destilado, no entanto, mata toda a curiosidade e é o fim de todo o conhecimento.




O ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. Uma fé (uma "certeza") é o estado de espírito anterior à dúvida. Com efeito, a fé é o estado primordial do espírito. O espírito "ingênuo" e "inocente" crê. Ele tem "boa-fé". A dúvida acaba com a ingenuidade e inocência do espírito e, embora possa produzir uma fé nova e melhor, esta não mais será "boa". A ingenuidade e a inocência do espírito se dissolvem no ácido corrosivo da dúvida. O clima de autenticidade se perde irrevogavelmente. O processo é irreversível. As tentativas dos espíritos corroídos pela dúvida de reconquistar a autenticidade, a fé original, não passam de nostalgias frustradas. São tentativas de reconquistar o paraíso. As "certezas" originais, postas em dúvida, nunca mais serão certezas autênticas. A dúvida metodicamente aplicada produzirá, possivelmente, novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, mas essas novas certezas nunca serão autênticas. Conservarão sempre a marca da dúvida que lhes serviu de parteira.




A dúvida pode ser, portanto, concebida como uma procura de certeza que começa por destruir a certeza autêntica para produzir certeza inautêntica. A dúvida é absurda. Surge portanto a pergunta: "Por que duvido?". Essa pergunta é mais fundamental que a outra: "De que duvido?". Trata-se, com efeito, do último passo do método cartesiano, a saber: trata-se de duvidar da dúvida. Trata-se, em outras palavras, de duvidar da autenticidade da dúvida em si. A pergunta "por que duvido?" implica a outra: "Duvido mesmo?".




Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, parece não dar esse último passo. Aceita a dúvida como indubitável. A última certeza cartesiana, incorruptível pela dúvida, é, a saber: "Penso, portanto sou". Pode ser reformulada: "Duvido, portanto sou". A certeza cartesiana é portanto autêntica, no sentido de ser ingênua e inocente. É uma fé autêntica na dúvida. Essa fé caracteriza toda a Idade Moderna, essa idade cujos últimos instantes presenciamos. Essa fé é responsável pelo caráter científico e desesperadamente otimista da Idade Moderna, pelo seu ceticismo inacabado, ao qual falta dar o último passo. À fé na dúvida cabe, durante a Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus durante a Idade Média.




A dúvida da dúvida é um estado de espírito fugaz. Embora possa ser experimentado, não pode ser mantido. Ele é sua própria negação. Vibra, indeciso, entre o extremo "tudo pode ser duvidado, inclusive a dúvida", e o extremo "nada pode ser autenticamente duvidado". Com o fim de superar o absurdo da dúvida, leva esse absurdo ao quadrado. Oscilando, como oscila, entre o ceticismo radical (do qual duvida) e um positivismo ingênuo radicalíssimo (do qual igualmente duvida), não concede ao espírito um ponto de apoio para fixar-se.




Kant afirmava que o ceticismo é um lugar de descanso para a razão, embora não seja uma moradia. O mesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo ingênuo. A dúvida na dúvida impede esse descanso. O espírito tomado pela quintessência da dúvida está, em sua indecisão fundamental, numa situação de vaivém que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra apenas vagamente. O Sísifo de Camus é frustrado, em sua correria absurda, por aquilo dentro do qual corre. Daí o problema básico camusiano: "Por que não me mato?". O espírito tomado pela dúvida da dúvida é frustrado por si mesmo. O suicídio não resolve a sua situação, já que não duvida suficientemente do caráter duvidoso da vida eterna. Camus nutre ainda a fé na dúvida, embora essa fé periclite nele.




"Penso, portanto sou". Penso: sou uma corrente de pensamentos. Um pensamento segue o outro, portanto sou. Um pensamento segue o outro por quê? Porque o primeiro pensamento não basta a si mesmo se exige outro pensamento. Exige outro para certificar-se de si mesmo. Um pensamento segue outro porque o segundo duvida do primeiro e porque o primeiro duvida de si mesmo. Um pensamento segue o outro pelo caminho da dúvida. Sou uma corrente de pensamentos que duvidam. Duvido. Duvido, portanto sou. Duvido que duvido, portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto duvido que sou. Duvido que duvido, portanto sou, independentemente de qualquer duvidar. Assim se afigura, aproximadamente, o último passo da dúvida cartesiana. Estamos num beco sem saída. Estamos, com efeito, no beco que os antigos reservaram a Sísifo.




A mesma situação pode ser caracterizada por outra corrente de pensamentos: por que duvido? Porque sou. Duvido portanto que sou. Portanto duvido que duvido. É o mesmo beco visto de outro ângulo.




Esse é o lado teórico da dúvida radical. Tão teórico, com efeito, que até bem pouco tempo tem sido desprezado, com razão, como um jogo fútil de palavras. Tratava-se de um argumento pensável, mas não existencialmente visível ("erlebbar"). Era possível duvidar teoricamente da afirmativa "sou" e era possível duvidar teoricamente da afirmativa "duvido que sou", mas essas dúvidas não passavam de exercícios intelectuais intraduzíveis para o nível de vivência. Os poucos indivíduos que experimentaram vivencialmente a dúvida da dúvida, que autenticamente duvidaram das afirmativas "sou" e "duvido que sou", foram considerados loucos.A situação atual é diferente. A dúvida da dúvida se derrama, a partir do intelecto, em direção a todas as demais camadas da mente e ameaça solapar os últimos pontos de apoio do senso de realidade. É verdade que "senso de realidade" é uma expressão ambígua. Pode significar simplesmente "fé", pode significar "sanidade mental" e pode significar "capacidade de escolha". Entretanto o presente contexto prova que os três significados são fundamentalmente idênticos. A dúvida da dúvida ameaça destruir os últimos vestígios da fé, da sanidade e da liberdade, porque ameaça tornar o conceito "realidade" um conceito vazio, isto é, não vivível.




O esvaziamento do conceito "realidade" acompanha o progresso da dúvida e é, portanto, um processo histórico, se visto coletivamente, e um processo psicológico, se visto individualmente. Trata-se de uma intelectualização progressiva. O intelecto, isto é, aquilo que pensa -portanto aquilo que duvida-, invade as demais regiões mentais para articulá-las e as torna, por isso mesmo, duvidosas. O intelecto desautentica todas as demais regiões mentais, inclusive aquelas regiões dos sentidos que chamo, via de regra, de "realidade material". A dúvida da dúvida é a intelectualização do próprio intelecto; com ela, o intelecto reflui sobre si mesmo. Torna-se duvidoso para si mesmo, desautentica a si mesmo. A dúvida da dúvida é o suicídio do intelecto. A dúvida cartesiana, tal como foi praticada durante a Idade Moderna, portanto a dúvida incompleta, a dúvida limitada ao não-intelecto acompanhada de fé no intelecto, produziu uma civilização e uma mentalidade que deram refúgio, dentro do intelecto, à realidade.




Trata-se de uma civilização e de uma mentalidade idealistas. A dúvida completa, a dúvida da dúvida, a intelectualização do intelecto destroem esse refúgio e esvazia o conceito "realidade". As frases aparentemente contraditórias, entre as quais a dúvida da dúvida oscila, a saber, "tudo pode ser objeto de dúvida, inclusive a dúvida" e "nada pode ser autenticamente objeto de dúvida", se resolvem, nesse estágio do desenvolvimento intelectual, na frase: "Tudo é nada". O idealismo radical, a dúvida cartesiana radical, a intelectualização completa desembocam no niilismo.




Somos a primeira ou a segunda geração daqueles que experimentam o niilismo vivencialmente. Somos a primeira ou a segunda geração daqueles para os quais a dúvida da dúvida não é mais um passatempo teórico, mas uma situação existencial. Enfrentamos, nas palavras de Heidegger, "a clara noite do nada". Nesse sentido somos os produtos perfeitos e consequentes da Idade Moderna. Conosco a Idade Moderna alcançou a sua meta. Mas a dúvida da dúvida, o niilismo, é uma situação existencial insustentável. A perda total da fé, a loucura do nada todo-envolvente, a absurdidade de uma escolha dentro desse nada são situações insustentáveis. Nesse sentido, somos a superação da Idade Moderna: conosco a Idade Moderna se reduz ao absurdo.




Os sintomas dessa afirmativa abundam. O suicídio do intelecto, fruto de sua própria intelectualização, se manifesta em todos os terrenos. No campo da filosofia produz o existencialismo e o logicismo formal, duas abdicações do intelecto em favor de uma vivência bruta e inarticulada -portanto, o fim da filosofia. No campo da ciência pura produz a manipulação com conceitos conscientemente divorciados de toda realidade, tendendo a transformar a ciência pura em instância de proliferação de instrumentos conscientemente destinados a destruírem a humanidade e os seus próprios instrumentos (são portanto instrumentos destruidores e autodestrutivos). No campo da arte, produz a arte que significa a si mesma, portanto uma arte sem significado. No campo da "razão prática" produz um clima de oportunismo imediatista, um "carpe diem" tão individual quanto coletivo, acompanhado do esvaziamento de todos os valores.




Há, obviamente, reações contra esse progresso rumo ao nada. Essas reações são, entretanto, reacionárias, no sentido de tentarem fazer retroceder a roda do desenvolvimento. São desesperadas, porque tentam reencontrar a realidade dos níveis já esvaziados pelo intelecto em seu avanço. No campo da filosofia caracterizam-se pelo prefixo melhorativo "neo" (neokantianismo, neo-hegelianismo, neotomismo). No centro da ciência pura caracterizam-se pelo esforço de reformular as premissas da disciplina científica em bases mais modestas. No campo da ciência aplicada caracterizam-se por uma esperança já agora inautêntica em uma nova revolução industrial, capaz, esta sim, de produzir o paraíso terrestre. No campo da arte resultam naquele realismo patético chamado "socialista", que não chama a si mesmo de "neo-realista" por pura questão de pudor.




No campo da "razão prática" assistimos a tentativas de uma ressurreição das religiões tradicionais: pululam as seitas de religiões inventadas "ad hoc" ou buscadas em regiões geográfica ou historicamente distantes. No campo da política e da economia ressurgem inautenticamente conceitos esvaziados e superados há muito, como, por exemplo, o conceito medieval de "soberania". Busca-se a realidade, já agora completamente inautêntica, no conceito do "sangue" (nazismo) ou da "liberdade de empreendimento" (neoliberalismo), conceitos esses emprestados de hipotéticas épocas passadas. Todas essas reações são condenadas ao malogro. Querem ressuscitar fés mortas ou inautênticas "ab initio".




Embora seja o niilismo uma situação existencial insustentável, precisa ser tomado como ponto de partida para toda tentativa de superação. A inautenticidade das reações acima esboçadas reside na sua ignorância (autêntica ou fingida) da situação atual da filosofia, da ciência pura e aplicada, da arte, do indivíduo dentro da sociedade e da sociedade perante o indivíduo. Reside na ignorância do problema fundamental: em todos esses terrenos, já agora altamente intelectualizados, a dúvida desalojou a fé e perdeu o senso da realidade. Essa situação deve ser aceita como um fato, embora talvez não ainda como um fato totalmente consumado. Resíduos de fé podem ser encontrados em todos esses terrenos, menos no campo da filosofia, mais no campo da sociedade, mas resíduos condenados. Não é a partir deles que sairemos da situação absurda do niilismo, mas a partir do próprio niilismo, se é que sairemos. Trata-se, em outras palavras, da tentativa de encontrar um novo senso de realidade. O presente trabalho é uma contribuição modesta para essa busca no campo da filosofia.




Trecho do ensaio "A Dúvida" (Relume Dumará), do filósofo tcheco Vilém Flusser (1920-1991).
Do site da Folha de São Paulo
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0512199913.htm

Extraído do Blog Holosgaia, que adicionou a seguinte observação:

Uma pequena observação: existe uma diferença entre duvidar e deixar em aberto, assim como entre mente projetiva e mente receptiva.
Célia
Fonte: http://www.holosgaia.blogspot.com/

sábado, 2 de agosto de 2008

Fascismo avança sobre a Internet






O projeto sobre crimes na internet.


Uma ameaça aos direitos civis


"Quem destravar o celular (que se encaixa na definição do projeto de "dispositivo de comunicação") para utilizá-lo por outra operadora estará sujeito a pena de um a três anos de prisão. A mesma penalidade sofrerá quem, fazendo uso do direito de acesso a conteúdos em domínio público, destravar um CD ou DVD", escrevem Oona Castro, integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP e Sérgio Amadeu da Silveira, professor do mestrado da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 02-08-2008. Segundo os autores, '"ao legislar sobre os crimes de internet, nossos senadores perderam a oportunidade de enfatizar o interesse público. Poderiam ter proibido o cruzamento de bancos de dados e a troca de informações privadas de usuários por empresas (como fez a União Européia) ou impedido a constituição de travas que bloqueiam o acesso legal a conteúdos".

Eis o artigo.

Na madrugada de 9 de julho, o Senado aprovou o substitutivo do senador Eduardo Azeredo ao projeto de lei 89/03, que tipifica os crimes digitais. Preocupado em punir atividades ilegais na internet, o projeto possui artigos dúbios e se mostrou incapaz de dar soluções técnicas que impeçam o abuso na sua aplicação, a invasão de privacidade e a violação de direitos civis.

Especialistas apresentaram várias críticas ao projeto, mas as soluções propostas não resolveram os problemas. Um deles é o fato de o projeto ser "over-inclusive", ou seja, cria-se um filtro muito mais rigoroso do que o necessário, criminalizando práticas legítimas. Outro problema são as definições de conceitos -algumas ambíguas, outras amplas demais e outras simplesmente inexistentes -, dando espaço para aplicações arbitrárias da lei, mesmo que essa não seja a intenção do legislador.

Em alguns casos, dá-se a combinação desses dois problemas. O artigo 2º, por exemplo, ao alterar o Código Penal, transforma em crime todo acesso não autorizado a redes de computadores, sistemas informatizados e dispositivos de comunicação protegidos por expressa restrição de acesso, seja a restrição legal ou não.

Dessa forma, quem destravar o celular (que se encaixa na definição do projeto de "dispositivo de comunicação") para utilizá-lo por outra operadora estará sujeito a pena de um a três anos de prisão. A mesma penalidade sofrerá quem, fazendo uso do direito de acesso a conteúdos em domínio público, destravar um CD ou DVD.

Empresas poderão limitar acessos permitidos pela Lei de Direitos Autorais ou pelo Código de Defesa do Consumidor, transformando travas tecnológicas em instrumentos acima da legislação. Trata-se da criminalização de ações triviais dos usuários.

Já o artigo 22 cria para os provedores de acesso à internet a obrigação de repassar sigilosamente para as autoridades denúncias que tenham recebido que contenham indícios da prática de crime. Obriga também o registro e o arquivamento de todos os acessos dos usuários por três anos.

Iniciativas de inclusão digital, receosas por serem responsabilizadas por crimes, podem passar a restringir o acesso de usuários ou até banir redes sem fio.

Mesmo condicionando o fornecimento das informações ao poder público a decisão judicial, o projeto ignora a precariedade da proteção aos dados e o fato de o Brasil ter baixa tradição de respeito à privacidade, com estimados 400 mil grampos telefônicos e venda de dados sigilosos da Receita Federal por camelôs.

Sem conseguir impedir que verdadeiros criminosos se furtem aos controles propostos com medidas simples, como servidores no exterior, o projeto abre a possibilidade de vazamentos de dados de usuários comuns.

O substitutivo atende fundamentalmente a interesses de bancos que têm sofrido prejuízos com fraudes pela internet e a reivindicações da indústria de direito autoral dos Estados Unidos, que exige a criminalização da quebra de travas tecnológicas.

Publicamente, a justificativa mais usada pelos defensores do projeto foi o combate à pedofilia - de fato, um problema seriíssimo. Porém, na mesma madrugada em que o PLC 89 foi votado, os senadores aprovaram outro projeto, proposto pela CPI da Pedofilia, com apoio de entidades da sociedade civil, que trata dessa questão.

Ao legislar sobre os crimes de internet, nossos senadores perderam a oportunidade de enfatizar o interesse público. Poderiam ter proibido o cruzamento de bancos de dados e a troca de informações privadas de usuários por empresas (como fez a União Européia) ou impedido a constituição de travas que bloqueiam o acesso legal a conteúdos. Na contramão, desencorajam políticas desejáveis e legitimam a violação da privacidade e o cerceamento de direitos.

Com o retorno do projeto à Câmara dos Deputados, nossos representantes terão a oportunidade de rejeitá-lo integralmente ou, ao menos, suprimir os artigos que atacam frontalmente os direitos dos cidadãos.






sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A cultura do medo: quando o moralismo substitui a política


O 'j'acuse' do filósofo Alain Badiou

(entrevista com Alain Badiou)


Pequenos livros suscitam por vezes grandes clamores. Isso sucedeu na França com um panfleto intitulado Sarkozy: de que coisa é o nome? (Cronopio, 130 pp,), cujas densas páginas contêm uma crítica sem concessões sobre o sarkozysmo, mas também uma reflexão adstringente sobre a crise da democracia e sobre as possíveis formas do antagonismo político hoje. O autor é Alain Badiou, filósofo muito conhecido na França, professor da École Normale Supérieure de Paris, cujos livros permanecem em geral confinados na faixa restrita dos adeptos ao trabalho. Desta vez, no entanto, cúmplice da conjuntura política, suas teses radicais conheceram um vasto sucesso e suscitaram inumeráveis discussões, demonstrando que o binômio filosofia e política ainda pode ser produtivo. “A filosofia jamais me impediu de ser um militante, e até por diversas vezes denunciei a fuga dos intelectuais da vida política”, explica o estudioso autor de numerosos ensaios. Segundo Badiou: “Naturalmente, os filósofos não criam os conflitos sociais ou as revoltas políticas, mas com o seu trabalho específico contribuem para relacionar situações particulares com reflexões mais gerais sobre o homem, a liberdade, a igualdade, as tradições políticas, a diversidade das culturas. Neste sentido, eu me considero um intelectual que intervém politicamente”. A reportagem e a entrevista é do jornal La Repubblica, 28-07-2008.

Eis a entrevista.

Trata-se de interpretar o mundo para fornecer instrumentos ao corpo social?

O filósofo contribui para a leitura do mundo, mas na prática ajuda a orientar as batalhas particulares por processos mais gerais. O exemplo clássico é o de Marx, cuja cultura era filosófica. De um lado, ele mantinha as revoltas dos operários parisienses, do outro elaborava uma visão do desenvolvimento da história, em cujo interior integrava estas batalhas particulares.

Alain Badiou


Para Sartre as palavras são armas. Está de acordo com isso?

Certamente. Em política, a questão das palavras e de como se nomeiam as coisas é sempre um problema essencial. As palavras sempre fazem parte da política, também quando seu uso parece perfeitamente inocente. Há diversos anos, por exemplo, ao invés de falarmos de capitalismo, falamos de economia de mercado. Parece uma coisa de somenos, mas assim se remove a validade negativa que no passado era associada à palavra capitalismo. “Economia de mercado” é uma expressão menos forte, mais aceitável.

No livro sobre Sarkozy você denuncia que a moral se substitui à política. O que quer dizer?

É um processo em curso desde fins dos anos setenta. Pouco a pouco, renunciamos à elaboração de uma crítica política da história e da sociedade, deixando sempre mais espaço à crítica moral. O juízo fundado sobre as categorias do mal e do bem substituiu a análise política. Mas, esta é uma visão moralista e religiosa da realidade, não uma visão política. Além disso, a substituição da política pela moral, em fim de contas, está sempre a serviço das relações de força existentes, dado que, além do juízo moral, não se põe nada em discussão. Por isso, a substituição generalizada da política pela política consolidou o capitalismo global hoje dominante.

Colocar a política no centro da reflexão intelectual significa para você combater o “Petainismo transcendental” da França. O que entende com esta expressão?

A eleição de Sarkozy é o símbolo mais evidente de uma situação que ameaça perigosamente a tradição crítica e progressista da França. Tal ameaça é o resultado de uma tendência de fundo que, com a eleição de Sarkozy, ultrapassou um limiar simbólico. Não digo que Sarkozy seja como Pétain, mas somente que seu sucesso eleitoral representa a vitória de uma corrente reacionária, presente há muito tempo na França. O nosso país é, de fato, a nação dos direitos do homem e da revolução, mas também o país de uma forma de reação, cujos traços eram particularmente visíveis nos anos de Pétain. Traços que hoje retornam, embora adaptados ao contexto contemporâneo”.

Quais seriam?

Acima de tudo, a idéia de uma crise moral da qual convém recompor-se. Além disso, a designação de um grupo social perigoso que deve ser vigiado e controlado: para Pétain eram os judeus, para Sarkozy são os imigrantes que vivem nas periferias. Outro elemento importante é a vontade de erradicar a herança de um acontecimento passado, percebido como fortemente negativo: para Pétain era a experiência da frente popular, para Sarkozy a herança de 68. Por último, conta também a sensação de estar em atraso com respeito aos mais importantes modelos estrangeiros: para Pétain eram os grandes estados fascistas dos anos trinta, enquanto para Sarkozy o modelo a seguir é o do capitalismo anglo-saxão. Todos estes elementos se combinam com um sentimento de decadência nacional, ao qual se torna necessário reagir com força e sem incertezas.

Será o medo o combustível que alimenta estas formas de reação?

Sim. Há diversos anos, a maior parte da população francesa é dominada pelo medo. Medo do desemprego, da globalização, das tensões internacionais, da Europa, dos imigrantes, dos jovens, etc. São medos que nascem da incerteza ante o futuro. A França tem um grande passado, foi uma potência imperial e militar. Hoje, no entanto, tudo isso está para trás. Os franceses não sabem mais o que esperar do futuro, não sabem se poderão conservar os seus privilégios e se continuarão a ter um papel internacional. Sua subjetividade política, ao invés de ser criativa, é dominada pelo medo e pelo fechamento sobre si mesma. Conseqüentemente, as idéias políticas que vencem são idéias reacionárias.

Partindo da situação francesa, você sublinha os limites das democracias de sufrágio universal, recordando que não se pode julgar um princípio independentemente daquilo que produz. È mesmo assim?

A questão da democracia não pode ser reduzida à simples questão do sufrágio universal. Hitler subiu ao poder graças a eleições democráticas, pelo que a democracia é capaz do melhor, como do pior. Além do sufrágio universal, a democracia existe quando um povo é mobilizado em torno de uma política. O mundo atual não é mais aquele do século dezenove, as estruturas econômicas e sociais mudaram radicalmente. Com muita freqüência se tornam uma cobertura para um poder oligárquico, constituído por potentados econômicos e midiáticos que são os verdadeiros donos da sociedade. Diante desta situação, devemos saber inventar novas formas de participação democrática, num contexto em que o problema fundamental é o do controle dos meios de comunicação e, mais ainda, dos meios de produção. Se não conseguirmos resolver o problema, as democracias ocidentais continuarão a enfraquecer-se.



Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=15602