sábado, 30 de novembro de 2013

O hiperconsumismo do capitalismo global está nos matando

 
            
 
Sem apontar falsas esperanças, Klein valoriza o trabalho de muitos grupos ambientalistas, especialmente na Europa, os quais convocam os Estados Unidos a que não tratem de “ajeitar” seu sistema falido de emissões de carbono, “mas que de fato o abandone e comece a pensar em deter as emissões no país”.
A reportagem é de SurySur, publicada por Carta Maior, 23-09-2013.

Além de ser uma autora e analista de renomado prestígio, Naomi Klein é, sobretudo, uma repórter. Em uma entrevista concedida a Alternet, a autora se referiu às investigações que realizou durante os últimos anos a respeito dos Big Green, as organizações ecologistas que formam parte do problema que desejam evitar e cujo relatório será dado a conhecer (em forma de filme e de livro) em 2014.
Para Klein, se tratou de uma “progressão natural” o passar de escrever sobre a capitalização do desastre em ‘The Shock Doctrine’ a escrever sobre a mudança climática: “Globalizamos completamente um insustentável modelo econômico de hiperconsumismo. Agora se dissemina exitosamente pelo mundo e está nos matando.”
Acontece que, segundo Klein, os grupos que deveriam servir como um contrapeso ao abuso corporativo e à cegueira governamental em assuntos sobre o meio ambiente estão reproduzindo as mesmas práticas elitistas dos grupos de poder. Além disso, não parece ser que, depois de uma década de vigiar muito de perto a mudança climática, tais grupos tenham conseguido fazer alguma diferença:
“Não só as emissões [de contaminantes] aumentaram, mas temos um montão de estafas para apontar… Acho que é uma questão importante o porquê os ‘grupos verdes’ decidiram desestimar a ciência em suas conclusões lógicas”, pois analistas como Kevin Anderson eAlice Bows “andaram dizendo, ao menos durante uma década, que chegar à redução de emissões que necessitamos no mundo desenvolvido não é compatível com o crescimento econômico.”
As verdadeiras causas da contaminação não se resolvem fazendo que as pessoas comprem somente coisas orgânicas ou “verdes”, mas atendendo ao modelo ao qual o capitalismo global nos marginalizou e a como podemos detê-lo. Parte da solução para Klein é que “se o movimento ambientalista decidiu lutar, deveriam deixar de lado seu status de elite”, coisa que não se permitiram. “Acho que isso é grande parte da razão pela qual as emissões estão como estão.”
Mas nem tudo está perdido. Sem apontar falsas esperanças, Klein valoriza o trabalho de muitos grupos ambientalistas, especialmente na Europa, os quais convocam os Estados Unidos a que não tratem de “ajeitar” seu sistema falido de emissões de carbono, “mas que de fato o abandone e comece a pensar em deter as emissões no país, em lugar de continuar com esta fraude. Penso que é o momento em que nos encontramos agora. Não temos mais tempo a perder com estas fraudes que são muito astutas, mas que não funcionam.”
     
 




quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O governo dos EUA tenta nos assustar

          

“O governo dos EUA tenta nos assustar”, afirma Gleen Greenwald

 
Os drones, a luta contra o terrorismo, a nefasta herança da administração do ex-presidente norte americano George Busch, as zonas obscuras da administração de Barack Obama e a espionagem globalizada montada pelos Estados Unidos a partir do dispositivo Prisma. Glenn Greenwald (foto) conhece esses temas com o rigor e a paixão que o conferem seu compromisso e uma trajetória profissional que vai muito além do caso das revelações do ex-agente da CIA e da NSA Edward Snowden. Gleen Greenwald é o segundo ator central desta trama de espionagem, é este o jornalista que, mês após mês, destila em The Guardian o conteúdo do enorme dossiê que Edward Snowden o entregou em Hong Kong antes de se refugiar na Rússia. Snowden não o elogiou por acaso, Greenwald é um reputado autor de investigações que sacudiu o sistema político norte-americano e o converteu em um dos 50 comentaristas mais influentes dos Estados Unidos.
 
Quem conhece seu nome através de Snowden e a tentacular espionagem de Prisma, ignora a sólida trajetória que o respalda. Advogado de profissão, em 2005, Greenwald deixou sua carreira de representante de bancos e de grandes empresas e se lançou em defesa dos direitos cívicos, as liberdades públicas e as investigações de muita importância. Nesse mesmo ano, um caso de espionagem por parte da NAS revelado pelo The New York Times, o impulsionou através de seu blog How Would a Patriot Act, que logo se transformaria em um livro, How Would a Patriot Act? Defending American Values from President. No ano seguinte, este ativista rigoroso publicou um livro feroz sobre a espantosa herança da administração Bush, A Tragic Legacy: How a Good VS. Evil Mentality Destroyed the Bus h Presidency. Em 2008, seguiu outro livro sobre os mitos e hipocrisias dos republicanos, Great American Hypocrites: Toppling the Big Myths of Republican Politic, e em 2012, outra obra culminante sobre a forma em que a lei é utilizada para destruir a igualdade e proteger o poder: With Liberty and Justice for Some: How the Law Is Used to Destroy Equality na Protect the Powerful.
Entre livro e livro, Greenwald realizou as investigações explosivas sobre WikiLeaks, Julian Assange, e o soldado Bradley Manning, o militar que entregou a Assange os arquivos secretos. Premiado várias vezes por seu trabalho, Glenn Greenwald define o jornalismo de uma maneira militante: “Para mim, o jornalismo são duas coisas: investigar fatos sobre as atividades das pessoas que estão no poder e estabelecer limites”.
 
Este é o homem a quem, em maio deste ano - logo após The Washington Post ter recusado publicá-los, Edward Snowden entregou os documentos da abismal espionagem estruturada pela NSA através do dispositivo Prisma com a colaboração das empresas privadas como Google, Facebook, Yahoo!, Microsoft e tantas coisas. Glenn Greenwald vive no Brasil há muitos anos, foi detido e interrogado em Londres durante muitas horas em virtude de uma lei antiterrorista. Ambos sabem que suas conversas e seus gestos são cuidadosamente vigiados. Adaptaram-se a essa vida sem renunciar a continuidade do seu trabalho de denuncia.
 
Nesta entrevista exclusiva, realizada no Rio de Janeiro pelo jornal Página/12, Glenn Greenwald revela aspectos inéditos sobre Edward Snowden, conta as dificuldades da sua vida e traz um pouco mais sobre o pano de fundo acerca da nova indústria norte-americana: espiar a cada cidadão do mundo.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada no jornal Página/12, 29-09-2013. A tradução é do Cepat.
 
Eis a entrevista.
 
Os Estados Unidos argumentam que a espionagem planetária aponta para a luta contra o terrorismo. Todavia, a leitura dos documentos que Snowden entregou a você não traz este fato.
 
Se olharmos para os últimos 30 anos e, sobretudo desde os atentados de 11 de setembro, há uma ideia que os norte-americanos querem aplicar: utilizar o terrorismo mundial para que as pessoas tenham medo e assim possam agir de “mãos livres”. Essa é uma desculpa para torturar, sequestrar e prender. Agora estão utilizando a mesma desculpa para espionar. Os documentos sobre a maneira através da qual os Estados Unidos espionam e seus objetivos, pouco tem a ver com o terrorismo. Têm muito a ver com a economia, as empresas, os governos e estão destinados a entender como funcionam estes governos e estas empresas. A ideia central da espionagem é essa: controlar a informação para aumentar o poder dos Estados Unidos ao redor do mundo. Nos arquivos da NSA há documentos sobre o terrorismo, mas não são a maioria. O gasto de milhões de dólares para colecionar toda esta informação contra o terro rismo é uma piada. Espionar a Petrobras, a Al Jazeera e a OEA; esses objetivos nada tem a ver com o terrorismo. O governo está tratando de convencer as pessoas de que se deve renunciar a sua liberdade em troca de mais segurança, trata de assustar e em fazer crer que sacrificar a liberdade é algo necessário para estar a salvo e protegido das ameaças que vem de fora.
 
O passo dado por Edward Snowden ao fornecer os documentos sobre a maneira que Washington espiava ao planeta inteiro é surpreendente. Como se explica que alguém tão jovem, que formava parte do aparato da inteligência, opte por esse caminho?
 
Há exemplos na história em que as pessoas sacrificavam seus próprios interesses para acabar com as injustiças. As razões pelas quais atuam assim são complicadas, complexas. Neste caso, há duas coisas importantes: uma é que Snowden valoriza o ser humano e os direitos. Snowden tinha as coisas claras: ou continuar com este sistema, perpetuar este mundo destruindo a privacidade de centena de milhares de pessoas no planeta, ou, melhor, romper o silêncio e atuar contra estes abusos. Creio que Snowden comprovou que se houvesse seguido permitindo a existência deste sistema não poderia continuar vivendo com a consciência tranquila o resto da vida. Ter a dor, a vergonha, o remorso e o arrependimento como sentimento para o resto de seus dias lhe dava medo. Era muito grave para guardá-los em sua consciência. Viu que não havia muitas opções e que deveria tomar pa rtido. Outro ponto importante é que Snowden tem 30 anos, sua geração cresceu com a Internet como uma parte central de suas vidas. As pessoas um pouco mais velhas não se dão conta da importância da Internet para a existência dessas pessoas. Snowden me disse que a Internet ofereceu a sua geração todo tipo de ideias, campos de exploração, contatos com outras pessoas no mundo e uma capacidade de entendimento até então inéditos. Então decidiu protegê-lo. Não queria viver em um mundo em que tudo isso desapareceria, e onde as pessoas não pudessem mais usar a internet.
 
Mas Snowden foi, contudo, um homem do sistema.
 
Sim, mas era muito jovem quando começou. Tinha 21 anos. Com o passar do tempo foi mudando seus pontos de vista sobre o governo dos Estados Unidos, a NSA, a CIA. Snowden mudou de forma gradual, progressiva. Começou a se dar conta de que essas instituições que pretendiam fazer o bem não estavam fazemos o bem, mas sim o mal. Snowden me disse que, a partir de 2008 e 2009, já pensava em converter-se em um filtrador de documentos. Como muitas outras pessoas do mundo, Snowden também pensou que a eleição de Barack Obama iria conduzir à atenuação dos abusos. Confiava nisso. Pensou que Obama reverteria o processo, que seria diferente e melhor, mas se deu conta de que não era assim. Essa foi uma das razões. Tomou consciência de que Obama não consertaria nada, ao contrário, Obama seguiu perpetuando o império norte-americano.
 
O poder dos Estados Unidos é praticamente ilimitado, devido ao controle das tecnologias da informação. Muitos pensam que, de alguma maneira, Obama é pior que Bush.
 
É difícil de dizer que Obama é pior que Bush. Não faz falta que Obama diga “Espiemos mais”. Obviamente, Obama tem uma parte de responsabilidade no crescimento deste sistema de espionagem. Obama continuou com as mesmas políticas de antes, mas mudou o simbolismo e a imagem. Creio que o escândalo que provocou a filtração destes documentos transformou a visão que as pessoas tinham de Barack Obama. Snowden e eu passamos muito tempo em Hong Kong falando sobre o que iria ocorrer com as revelações. Não podíamos calcular as consequências. Tínhamos consciência da importância, mas pensávamos que poderia haver uma reação apática. Mas desde que se publicou a primeira história o interesse segue crescendo. Isto está se convertendo em um obstáculo para os governos que seguem abusando de s eu poder, atuando em segredo. Mas há indivíduos como Snowden, como o soldado Bradley Manning, ou entes como WikiLeaks, que agem sobre a luz da informação. Julian Assange é um herói pelo trabalho que realizou com a WikiLeaks. Em muitos sentidos, foi ele quem tornou isto possível, foi Assange quem concebeu a ideia segundo a qual, na era digital, era muito difícil para os governos proteger seus segredos sem destruir outras privacidades. Essa é a razão pela qual o governo dos EUA está em guerra contra as pessoas que fazem isto: querem assustar outros indivíduos que estão planejando fazer o mesmo no futuro. Eu me apoiei na coragem de Snowden para publicar esses documentos. Edward Snowden é hoje uma das pessoas mais procuradas do mundo, é provável também que passe os seus próximos 30 anos na prisão.  O feito de Snowden é uma das coisas mais admiráveis que eu vi alguém fazer em nome da justiça.
 
Os governos da Argentina, do Brasil, assim como em outros Estados no mundo, estão pressionando para romper o cerco da espionagem e o controle quase absoluto que os Estados Unidos têm sobre a Internet. Qual é, para você, a solução?
 
Eu acredito que a solução seria criar um lobby entre os países, que eles se unam para pensar em como construir novas plataformas para a Internet que não permitam que um país domine completamente as comunicações. O problema encontra-se também no fato de que os países começam a ter mais controle sobre a Internet, e isso pode fazer com que caiam na tentação de fazer o mesmo que os Estados Unidos: tentar monitorar e utilizar a Internet como forma de controle. Há uma consciência real de que a Argentina e o Brasil estão construindo uma Internet própria, o mesmo que a União Europeia, algo que até agora só havia sido feito pela China. Mas este risco está na possibilidade de que estes governos imitem os Estados Unidos: criar seus próprios sistemas não para permitir a privacidade de seus cidadãos, mas para comprometê-la. Isso é um perigo. É importante ter a garantia de que o controle que ostenta os Estados Unidos sobre as comunicações não termine em uma transferência a outros poderes. Li um documento no diário The New York Times em que se mostrava o imenso poder e influência que os EUA têm graças à detenção do controle dos serviços da Internet. De fato, os Estados Unidos inventaram a Internet. Muitos países se deram conta de que não seriam capazes de garantir sua confidencialidade se seguirem usando sistemas que se apoiem em servidores norte-americanos.
 
     




quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Admirável mundo novo animal

          
 


"Quanto mais se pesquisa a existência dos animais – especialmente aves e mamíferos -, mais se conclui que entre eles e nós há apenas diferenças de grau, e não de qualidade. Ambos temos consciência, inteligência, intencionalidade, inventividade, capacidade de improvisação e habilidade no uso de símbolos para a comunicação:

 ao que parece, os animais não-humanos fazem uso de tais capacidades de forma menos complexa que os humanos, e essa é toda a diferença". O comentário é de Renzo Taddei, doutor em antropologia pela Universidade de Columbia e professor da Universidade Federal de São Paulo em artigo publicado no Canal Ibase, 29-10-2013.
 

Segundo ele, "os protocolos de ética em pesquisa com sujeitos humanos foram desenvolvidos após a constatação dos horrores da experimentação médica nazista em judeus. Parece-me inevitável que, em algumas décadas, venhamos a pensar na experimentação com sujeitos-animais em laboratórios com o mesmo sentimento de indignação e horror".
Eis o artigo.
Se avaliada pela repercussão que obteve na imprensa, a libertação dos 178 beagles do Instituto Royal foi um marco histórico. Nem na época do debate sobre a regulamentação do uso de células-tronco tanta gente graduada veio a público defender suas práticas profissionais. O tema está na capa das principais revistas semanais do país. A análise dos argumentos apresentados na defesa do uso de animais como cobaias de laboratório é, no entanto, desanimadora. E o é porque expõe o quanto nossos cientistas estão despreparados para avaliar, de forma ampla, as implicações étic as e morais do que fazem.
Vejamos: no debate aprendemos que há pesquisas para as quais as alternativas ao uso de animais não são adequadas. Aprendemos que muitas das doenças que são hoje de fácil tratamento não o seriam sem os testes feitos em animais; desta forma, muitas vidas humanas foram salvas. (Exemplificando como a razão pode sucumbir à emoção – até mesmo entre os mais aguerridos racionalistas -, um pesquisador da Fiocruz chegou ao desatino de afirmar que os “animais experimentais são grandes responsáveis pela sobrevivência da raça humana no planeta”). Adicionalmente, o fato de cientistas importantes do passado, comoAlbert Sabin, Carlos Chagas ou Louis Pasteur, terem usado animais como cobaias de laboratório em suas pesquisas mostra que os cientistas, por sua contribuição à humanidade, não podem ser tratados como criminosos. Ainda pior que isso tudo, se o Brasil proibir testes com animais, a ciência brasileira perderá autonomia e competitividade, porque dependerá de resultados de pesquisas feitas em outros países para o seu avanço.
Além do mais, há que se levar o animal em consideração: é consenso entre cientistas de que os animais de laboratório não devem sofrer. Providências foram tomadas nesse sentido, como a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal, e da obrigatoriedade das instituições terem cada uma sua Comissão de Ética no Uso de Animais, com assento para representante de sociedades protetoras de animais legalmente constituídas. E, finalmente, os “próprios animais” são beneficiados, em razão de como as experiências de laboratório supostamente contribuem com o desenvolvimento da ciência veterinária.
De forma geral, o que temos aí resumido é o seguinte: os animais são coisas, e devem ser usados como tais; ou os animais não são coisas, mas infelizmente devem ser usados como tais. Há algo maior que se impõe (e sobre a qual falarei mais adiante), de forma determinante, de modo que se os animais são ou não são coisas, isso é um detalhe menor, que os cientistas logo aprendem a desprezar em seu treinamento profissional.
A ideia de que os animais são coisas é antiga: Aristóteles, em seu livro Política, escrito há dois mil e trezentos anos, afirmou que os animais não são capazes de uso da linguagem e, por essa razão, não são capazes de uma existência ética. Sendo assim, conclui o filósofo, os animais foram criados para servir os humanos. Ideia semelhante está no Gênesis bíblico: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a t erra” (Gênesis 1:26).
Santo Agostinho e São Tomás de Aquino reafirmam a desconexão entre os animais e Deus. (São Francisco é, na história cristã, claramente um ponto fora da curva). A ideia chegou aos nossos dias praticamente intacta. O Catecismo Católico afirma, em seu parágrafo 2415, que “Os animais, tal como as plantas e os seres inanimados, são naturalmente destinados ao bem comum da humanidade, passada, presente e futura”. A ciência renascentista, através de Descartes e outros autores, fundou o humanismo que a caracteriza sobre essa distinção entre humanos e animais, exacerbando-a: o animal (supostamente) irracional passa a ser entendido como a antítese do humano (supostamente) racional. O tratamento de animais como coisas pela ciência contemporânea tem, desta forma, raízes históricas antigas.
Ocorre, no entanto, que essa ideia se contrapõe à existência cotidiana da maioria da humanidade, em todas as épocas. Em sociedades e culturas não-ocidentais, é comum que se atribua alguma forma de consciência e personalidade “humana” aos animais. Nas sociedades ocidentais, quem tem animal de estimação sabe que estes têm muito mais do que a simples capacidade de sentir dor: são capazes de fazer planos; de interagir entre si e com humanos em tarefas complexas, tomando decisões autônomas; integram-se na ecologia emocional das famílias humanas de forma significativa, construindo maneiras inteligentes de comunicar suas emoções. (Isso sem mencionar como animais humanizados são onipresentes em nosso imaginário cultural, dos desenhos animados infantis aos símbolos de times de futebol, de personagens do folclore popular a blockbuster s hollywoodianos).
De fato, o contraste entre essa percepção cotidiana e o que sugerem os pensamentos teológico e teórico mencionados acima faz parecer que há racionalização em excesso em tais argumentos. E onde há racionalização demais, ao invés de uma descrição do mundo, o mais provável é que haja uma tentativa de controle da realidade. Ou seja, trata-se mais de um discurso político, que tenta estabilizar relações desiguais de poder, do que qualquer outra coisa (nada de novo, aqui, para as ciências sociais ou para a filosofia da ciência).
É da própria atividade científica, no entanto, que vêm as evidências mais contundentes de que os animais são muito mais do que seres sencientes. No dia 7 de julho de 2012, um grupo de neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e cientistas da neurocomputação, reunidos na Universidade de Cambridge, produziu o documento intitulado Manifesto de Cambridge sobre a Consciência, onde se afirma o seguinte: “a ausência de neocortex não parece impedir um organismo de experimentar estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não-humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos necessários para a geração de estados conscientes, aliados à capacidade de exibir comportamento inte ncional. Consequentemente, as evidências indicam que os humanos não são únicos em possuir substratos neurológicos que geram consciência.
Animais não-humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, como os polvos, também possuem tais substratos neurológicos” (tradução livre). O manifesto foi assinado em jantar que contou com a presença de Stephen Hawking. Phillip Low, um dos neurocientistas que redigiu o manifesto, disse em entrevista à revista Veja (edição 2278, 18 jul. 2012): “É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabí amos”.
Outro grupo de pesquisas com resultados problemáticos para a manutenção de mamíferos em laboratórios vem das ciências que estudam a vida social dos animais, em seus ambientes selvagens. Animais são seres sociais; alguns, como os estudos em primatologia nos mostram, têm sua vida social pautada por dinâmicas políticas complexas, onde os indivíduos não apenas entendem suas relações de parentesco de forma sofisticada, mas também ocupam postos específicos em hierarquias sociais que podem ter quatro níveis de diferenciação. Estudos da Universidade de Princeton com babuínos mostraram que fêmeas são capazes de induzir uma ruptura política no bando, o que resulta na formação de um novo grupo social. Há muitos outros animais que vivem em sociedades hierárquicas complexas, como os elefantes, por exemplo. Cães, gatos, coelhos e rat os são também, naturalmente, animais sociais, ainda que a complexidade de seus grupos não seja equiparável ao que se vê entre babuínos e elefantes.
Além disso tudo, está amplamente documentado que muitos primatas são capazes de inventar soluções tecnológicas para seus problemas cotidianos – criando ferramentas para quebrar cascas de sementes, por exemplo – e de transmitir o que foi inventado aos demais membros dos grupos; inclusive aos filhotes. Tecnicamente, isso significa que possuem cultura, isto é, vida simbólica. As baleias mudam o “estilo” de seu canto de um ano para o outro, sem que isso tenha causas estritamente biológicas. Segundo o filósofo e músico Bernd M. Scherer, não há como explicar a razão pela qual o canto de um pássaro seja estruturado pela repetição de uma sequência de sons de 1 ou 2 segundos, enquanto outros pássaros cantam em sequências muito mais longas, usando apenas as ideias de marcação de território e atração de fêmeas. Scherer, atra vés de suas pesquisas (que incluem a interação musical, em estilo jazzístico, com pássaros e baleias), está convencido de que há uma dimensão estética presente no canto dos pássaros. Ele afirma, também, que grande parte dos pássaros precisa aprender a cantar, e não nasce com o canto completamente pré-definido geneticamente.
Não há razão para pensar que isso tudo não se aplique também às vacas, porcos e galinhas.Annie Potts, da Universidade de Canterbury, descreve no livro Animals and Society, deMargo DeMello (2012), sua observação da amizade de duas galinhas, Buffy Mecki, no santuário de galinhas mantido pela pesquisadora. Em determinado momento, Buffy adoeceu, e sua saúde det eriorou-se a ponto de ela não poder mais sair de debaixo de um arbusto. Sua amiga Mecki manteve-se sentada ao seu lado, a despeito de toda a atividade das demais galinhas do santuário, bicando-a suavemente ao redor da face e em suas costas, enquanto emitia sons suaves. Quando Buffy finalmente morreu, Mecki retirou-se para dentro do galinheiro, e por determinado período recusou-se a comer e a acompanhar as outras galinhas em suas atividades. As galinhas são susceptíveis ao luto, conclui Potts.
Quanto mais se pesquisa a existência dos animais – especialmente aves e mamíferos -, mais se conclui que entre eles e nós há apenas diferenças de grau, e não de qualidade. Ambos temos consciência, inteligência, intencionalidade, inventividade, capacidade de improvisação e habilidade no uso de símbolos para a comunicação; ao que parece, os animais não-humanos fazem uso de tais capacidades de forma menos complexa que os humanos, e essa é toda a diferença.
Vivemos o momento da descoberta de um admirável mundo novo animal. Nosso mundo tem muito mais subjetividades do que imaginávamos; talvez devêssemos parar de procurar inteligência em outros planetas e começar a olhar mais cuidadosamente ao nosso redor. O problema é que, quando o fazemos, o que vemos não é agradável. Se os animais têm a capacidade de serem sujeitos de suas próprias vidas, como apontam as evidências, ao impedir que o façam os humanos incorrem em ações, no mínimo, eticamente condenáveis.
Voltemos aos argumentos de defesa do uso de animais em laboratórios, citados no início desse texto. A maior parte das razões listadas se funda em razões utilitárias: “assim é mais eficaz; se fizermos de outra forma, perderemos eficiência”. Não se pode fundamentar uma discussão ética sobre pressupostos utilitaristas. Se assim não o fosse, seria aceitável matar um indivíduo saudável para salvar (através da doação de seus órgãos, por exemplo) outros cinco indivíduos doentes. O que boa parte dos cientistas não consegue enxergar é que se trata de um problema que não se resume à dimensão da técnica; trata-se de uma questão política (no sentido filosófico do termo, ou seja, que diz respeito ao problema existencial de seres vivos que coexistem em conflito de interesses).
Mas há outro elemento a pautar, silenciosamente, a lógica da produção científica: a competitividade mercadológica. Na academia, isso se manifesta através do produtivismo exacerbado, onde qualquer alteração metodológica que implique em redução de eficiência no ritmo de pesquisas e publicações encontra resistência. Em laboratórios privados, além da pressa imposta pela concorrência, há a pressão pela redução dos custos de pesquisa. É preciso avançar, a todo custo. Essa percepção do ritmo das coisas parece “natural”, mas não o é: os argumentos falam da colocação em risco das pesquisas que levarão à cura da AIDS ou da criação da vacina para a dengue, como se essas coisas já pré-existissem em algum lugar, e o seu tempo de “descoberta” fosse definido. Isso é uma ficção: não apenas científica, mas também política. As coisas não pré-existem, e o ritmo das coisas não tem nada de “natural”. O tempo é parte da política: é a sociedade quem deve escolher em qual ritmo deve seguir, e é absolutamente legítimo reduzir o ritmo dos avanços técnico-científicos, se as implicações morais para tais avanços forem inaceitáveis.
De todos os cientistas que se pronunciaram nos últimos dias, foi Sidarta Ribeiro, noEstadão do último domingo, o único que colocou, abertamente, o problema de os animais não serem coisas. Mas, para desânimo do leitor, e decepção dos que o admiram, como eu, suas conclusões caíram na vala comum do simplismo burocrático: o problema se resolveu com a criação do aparato burocrático de regulamentação do uso de animais, já mencionado anteriormente, no início desse texto. Ora, se os animais são seres dotados de intencionalidade, inteligência e afeto, e se a plenitude da sua existência depende de vida social complexa, a simples manutenção do seu organismo vivo e (supostament e) sem dor é suficiente para fazer com que eles “não sofram”? Sidarta coloca, de forma acertada, que é preciso atentar para o fato de que coisas muito piores ocorrem na indústria da carne, e também em muitas áreas da existência humana. Mas erra ao criar a impressão de que uma coisa existe em contraposição à outra (algo como “lutem pela humanização dos humanos desumanizados e deixem a ciência em paz”). Todas elas são parte do mesmo problema: a negação do direito a ser sujeito da própria vida. Uma atitude ética coerente implica a não diferenciação de espécie, considerando todos aqueles que efetivamente podem ser sujeitos da própria vida. O resto é escravidão, de animais humanos e não humanos.
Os protocolos de ética em pesquisa com sujeitos humanos foram desenvolvidos após a constatação dos horrores da experimentação médica nazista em judeus. Parece-me inevitável que, em algumas décadas, venhamos a pensar na experimentação com sujeitos-animais em laboratórios com o mesmo sentimento de indignação e horror.
 
 
     




      

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Mudanças no clima do Brasil até 2100

O clima no Brasil nas próximas décadas deverá ser mais quente – com aumento gradativo e variável da temperatura média em todas as regiões do país entre 1 ºC e 6 ºC até 2100, em comparação à registrada no fim do século 20.
 
A reportagem é de Elton Alisson, com a colaboração de Claudia Izique e Noêmia Lopes, publicada pela Agência FAPESP e reproduzida pelo sítio Instituto Carbono Brasil, 17-09-2013.
 
No mesmo período, também deverá diminuir significativamente a ocorrência de chuvas em grande parte das regiões central, Norte e Nordeste do país. Nas regiões Sul e Sudeste, por outro lado, haverá um aumento do número de precipitações.
 
As conclusões são do primeiro Relatório de Avaliação Nacional (RAN1) do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), cujo sumário executivo foi divulgado nesta segunda-feira (09/08), durante a 1ª Conferência Nacional de Mudanças Climáticas Globais (Conclima).
 
Organizado pela FAPESP e promovido com a Rede Brasileira de Pesquisa e Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC), o evento ocorreu no Espaço Apas, em São Paulo.
 
De acordo com o relatório, tendo em vista que as mudanças climáticas e os impactos sobre as populações e os setores econômicos nos próximos anos não serão idênticos em todo o país, o Brasil precisa levar em conta as diferenças regionais no desenvolvimento de ações de adaptação e mitigação e de políticas agrícolas, de geração de energia e de abastecimento hídrico para essas diferentes regiões.
 
Dividido em três partes, o Relatório 1 – em fase final de elaboração – apresenta projeções regionalizadas das mudanças climáticas que deverão ocorrer nos seis diferentes biomas do Brasil até 2100, e indica quais são seus impactos estimados e as possíveis formas de mitigá-los.
 
As projeções foram feitas com base em revisões de estudos realizados entre 2007 e início de 2013 por 345 pesquisadores de diversas áreas, integrantes do PBMC, e em resultados científicos de modelagem climática global e regional.
 
“O Relatório está sendo preparado nos mesmos moldes dos relatórios publicados pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas [IPCC, na sigla em inglês], que não realiza pesquisa, mas avalia os estudos já publicados”, disse José Marengo, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador do encontro.
 
“Depois de muito trabalho e interação, chegamos aos resultados principais dos três grupos de trabalho [Bases científicas das mudanças climáticas; Impactos, vulnerabilidades e adaptação; e Mitigação das mudanças climáticas]”, ressaltou.
 
Principais conclusões
 
Uma das conclusões do relatório é de que os eventos extremos de secas e estiagens prolongadas, principalmente nos biomas da Amazônia, Cerrado e Caatinga, devem aumentar e essas mudanças devem se acentuar a partir da metade e no fim do século 21.
 
A temperatura na Amazônia deverá aumentar progressivamente de 1 ºC a 1,5 ºC até 2040 – com diminuição de 25% a 30% no volume de chuvas –, entre 3 ºC e 3,5 ºC no período de 2041 a 2070 – com redução de 40% a 45% na ocorrência de chuvas –, e entre 5 ºC a 6 ºC entre 2071 a 2100.
 
Enquanto as modificações do clima associadas às mudanças globais podem comprometer o bioma em longo prazo, a questão atual do desmatamento decorrente das intensas atividades de uso da terra representa uma ameaça mais imediata para a Amazônia, ponderam os autores do relatório.
 
Os pesquisadores ressaltam que estudos observacionais e de modelagem numérica sugerem que, caso o desmatamento alcance 40% na região no futuro, haverá uma mudança drástica no padrão do ciclo hidrológico, com redução de 40% na chuva durante os meses de julho a novembro – o que prolongaria a duração da estação seca e provocaria o aquecimento superficial do bioma em até 4 ºC.
 
Dessa forma, as mudanças regionais decorrentes do efeito do desmatamento se somariam às provenientes das mudanças globais e constituíram condições propícias para a savanização da Amazônia – problema que tende a ser mais crítico na região oriental, ressaltam os pesquisadores.
 
“As projeções permitirão analisar melhor esse problema de savanização da Amazônia, que, na verdade, percebemos que poderá ocorrer em determinados pontos da floresta, e não no bioma como um todo, conforme previam alguns estudos”, destacou Tércio Ambrizzi, um dos autores coordenadores do sumário executivo do grupo de trabalho sobre a base científica das mudanças climáticas.
 
A temperatura da Caatinga também deverá aumentar entre 0,5 ºC e 1 ºC e as chuvas no bioma diminuirão entre 10% e 20% até 2040. Entre 2041 e 2070 o clima da região deverá ficar de 1,5 ºC a 2,5 ºC mais quente e o padrão de chuva diminuir entre 25% e 35%. Até o final do século, a temperatura do bioma deverá aumentar progressivamente entre 3,5 ºC e 4,5 ºC  e a ocorrência de chuva diminuir entre 40% e 50%. Tais mudanças podem desencadear o processo de desertificação do bioma.   
 
Por sua vez, a temperatura no Cerrado deverá aumentar entre 5 ºC e 5,5 ºC e as chuvas diminuirão entre 35% e 45% no bioma até 2100. No Pantanal, o aquecimento da temperatura deverá ser de 3,5ºC a 4,5ºC até o final do século, com diminuição acentuada dos padrões de chuva no bioma – com queda de 35% a 45%.    
     
Já no caso da Mata Atlântica, como o bioma abrange áreas desde a região Sul do país, passando pelo Sudeste e chegando até o Nordeste, as projeções apontam dois regimes distintos de mudanças climáticas.
 
Na porção Nordeste deve ocorrer um aumento relativamente baixo na temperatura – entre 0,5 ºC e 1 ºC – e decréscimo nos níveis de precipitação (chuva) em torno de 10% até 2040. Entre 2041 e 2070, o aquecimento do clima da região deverá ser de 2 ºC a 3 ºC, com diminuição pluviométrica entre 20% e 25%. Já para o final do século – entre 2071 e 2100 –, estimam-se condições de aquecimento intenso – com aumento de 3 ºC a 4 ºC na temperatura – e diminuição de 30% a 35% na ocorrência de chuvas.    
     
Nas porções Sul e Sudeste as projeções indicam aumento relativamente baixo de temperatura entre 0,5 ºC e 1 ºC até 2040, com aumento de 5% a 10% no número de chuva. Entre 2041 e 2070 deverão ser mantidas as tendências de aumento gradual de 1,5 ºC a 2 ºC na temperatura e de 15% a 20% de chuvas.  
 
Tais tendências devem se acentuar ainda mais no final do século, quando o clima deverá ficar entre 2,5 ºC e 3 ºC mais quente e entre 25% e 30% mais chuvoso. 
        
Por fim, para o Pampa, as projeções indicam que até 2040 o clima da região será entre 5% e 10% mais chuvoso e até 1 ºC mais quente. Já entre 2041 e 2070, a temperatura do bioma deverá aumentar entre 1 ºC e 1,5 ºC  e haverá uma intensificação das chuvas entre 15% e 20%. As projeções para o clima da região no período entre 2071 e 2100 são mais agravantes, com aumento de temperatura de 2,5 ºC a 3 ºC e ocorrência de chuvas entre 35% e 40% acima do normal.    
              
“O que se observa, de forma geral, é que nas regiões Norte e Nordeste do Brasil a tendência é de um aumento de temperatura e de diminuição das chuvas ao longo do século”, resumiuAmbrizzi.       
 
“Já nas regiões mais ao Sul essa tendência se inverte: há uma tendência tanto de aumento da temperatura – ainda que não intenso – e de precipitação”, comparou.
 
Impactos e adaptação
 
As mudanças nos padrões de precipitação nas diferentes regiões do país, causadas pelas mudanças climáticas, deverão ter impactos diretos na agricultura, na geração e distribuição de energia e nos recursos hídricos das regiões, uma vez que a água deve se tornar mais rara nas regiões Norte e Nordeste e mais abundante no Sul e Sudeste, alertam os pesquisadores.
 
Por isso, será preciso desenvolver ações de adaptação e mitigação específicas e rever decisões de investimento, como a construção de hidrelétricas nas regiões leste da Amazônia, onde os rios poderão ter redução da vazão da ordem de até 20%, ressalvaram os pesquisadores.
 
“Essas variações de impactos mostram que qualquer tipo de estratégia planejada para geração de energia no leste da Amazônia está ameaçada, porque há uma série de fragilidades”, disse Eduardo Assad, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
 
“Dará para contar com água. Mas até quando e onde encontrar água nessas regiões são incógnitas”, disse o pesquisador, que é um dos coordenadores do Grupo de Trabalho 2 do relatório, sobre Impactos, vulnerabilidades e adaptação.
 
De acordo com Assad, é muito caro realizar ações de adaptação às mudanças climáticas no Brasil em razão das fragilidades que o país apresenta tanto em termos naturais – com grandes variações de paisagens – como socioeconômicas.
 
“A maior parte da população brasileira – principalmente a que habita as regiões costeiras do país – está vulnerável aos impactos das mudanças climáticas. Resolver isso não será algo muito fácil”, estimou.
 
Entre os setores econômicos do país, segundo Assad, a agricultura é um dos poucos que vêm se adiantando para se adaptar aos impactos das mudanças climáticas.
 
“Já estamos trabalhando com condições de adaptação há mais de oito anos. É possível desenvolver cultivares tolerantes a temperaturas elevadas ou à deficiência hídrica [dos solos], disse Assad.
 
O pesquisador também ressaltou que os grupos populacionais com piores condições de renda, educação e moradia sofrerão mais intensamente os impactos das mudanças climáticas no país. “Teremos que tomar decisões rápidas para evitar que tragédias aconteçam.”
 
Mitigação
 
Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB), e uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho 3, sobre Mitigação das Mudanças Climáticas, apresentou uma síntese de estudos e pesquisas sobre o tema, identificando lacunas do conhecimento e direcionamentos futuros em um cenário de aquecimento global.
 
Bustamante apontou que a redução das taxas de desmatamento entre 2005 e 2010 – de 2,03 bilhões de toneladas de CO2 equivalente para 1,25 bilhão de toneladas – já tiveram efeitos positivos na redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) decorrentes do uso da terra.
 
“As emissões decorrentes da geração de energia e da agricultura, no entanto, aumentaram em termos absolutos e relativos, indicando mudanças no perfil das emissões brasileiras”, disse.
 
Mantidas as políticas atuais, a previsão é de que as emissões decorrentes dos setores de energia e de transportes aumentem 97% até 2030. Será preciso mais eficiência energética, mais inovação tecnológica e políticas de incentivo ao uso de energia renovável para reverter esse quadro.
 
Na área de transporte, as recomendações vão desde a transformação de um modal – fortemente baseado no transporte rodoviário – e o uso de combustíveis tecnológicos. “É preciso transferir do individual para o coletivo, investindo, por exemplo, em sistemas aquaviários e em veículos elétricos e híbridos”, ressaltou Bustamante.
 
O novo perfil das emissões de GEE revela uma participação crescente do metano – de origem animal – e do óxido nitroso – relacionado ao uso de fertilizantes. “Apesar desses resultados, a agricultura avançou no desenvolvimento de estratégias de mitigação e adaptação”, ponderou.
 
Para a indústria, responsável por 4% das emissões de GEE, a lista de recomendações para a mitigação passa pela reciclagem, pela utilização de biomassa renovável, pela cogeração de energia, entre outros.
 
As estratégias de mitigação das mudanças climáticas exigem, ainda, uma revisão do planejamento urbano de forma a garantir a sustentabilidade também das edificações de forma a controlar, por exemplo, o consumo da madeira e garantir maior eficiência energética na construção civil.
 
Informação para a sociedade
 
Os pesquisadores participantes da redação do relatório destacaram que, entre as virtudes do documento, está a de reunir dados de estudos científicos realizados ao longo dos últimos anos no Brasil que estavam dispersos e disponibilizar à sociedade e aos tomadores de decisão informações técnico-científicas críveis capazes de auxiliar no desenvolvimento de estratégias de adaptação e mitigação para os possíveis impactos das mudanças climáticas.  
 
“Nós, cientistas, temos o desafio de conseguir traduzir a seriedade e a gravidade do momento e as oportunidades que as mudanças climáticas globais encerram para a sociedade. Sabemos que a inação representa a ação menos inteligente que a sociedade pode tomar”, disse Paulo Nobre, coordenador da Rede Clima.
 
Por sua vez, Celso Lafer, presidente da FAPESP, destacou, na abertura do evento, que a Fundação tem interesse especial nas pesquisas sobre mudanças climáticas, expresso no Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), mantido pela instituição.
 
“Uma das preocupações básicas da FAPESP é pesquisar e averiguar o impacto das mudanças climáticas globais naquilo que afeta as especificidades do Brasil e do Estado de São Paulo”, afirmou.
 
Também participaram da abertura do evento Bruno Covas, secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programa de Pesquisa e Desenvolvimento (Seped) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e Paulo Artaxo, membro da coordenação do PFPMCG.
 
Carlos Nobre ressaltou que o relatório será a principal fonte de informações que orientará o Plano Nacional de Mudanças Climáticas que, no momento, está em revisão.
 
“É muito importante que os resultados desse estudo orientem os trabalhos em Brasília e em várias partes do Brasil, em um momento crítico de reorientar a política nacional, que tem de ir na direção de tornar a economia, a sociedade e o ambiente mais resilientes às inevitáveis mudanças climáticas que estão por vir”, afirmou.
 
Segundo ele, o Brasil já sinalizou compromisso com a mitigação, materializado na Política Nacional de Mudanças Climáticas e que prevê redução de 10% e 15% das emissões entre 2010 e 2020, respectivamente, relativamente a 2005.
 
“São Paulo lançou, em 2009, um programa ambicioso, de redução de 20% das emissões, já que a questão da mudança no uso da terra não é uma questão tão importante no Estado, mas sim o avanço tecnológico na geração de energia e em processos produtivos. O Brasil é o único país em desenvolvimento com metas voluntárias para redução de emissões”. 
 
  
Ele ressaltou, entretanto, que “a adaptação ficou desassistida". "Não é só mitigar; é preciso também se adaptar às mudanças climáticas. As três redes de pesquisa – Clima, INCT eFAPESP – avançam na adaptação, que é o guia para o desenvolvimento sustentável.”