terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O FIB (FELICIDADE INTERNA BRUTA) É MAIS IMPORTANTE QUE O PIB


COMO EXPORTAR FELICIDADE

Texto e fotos: Haroldo Castro

Um pequeno reino no Himalaia ensina
ao mundo como ser feliz

"A Felicidade Interna Bruta é mais importante do que o PIB. Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica." Jigme Singye, rei do Butão, em entrevista ao Financial Times


Uma nação encravada na Cordilheira do Himalaia está revolucionando alguns conceitos básicos da vida humana. Ao criar um novo índice para medir a qualidade de vida de seus habitantes, o Butão oferece uma receita inovadora para nosso mun­do de hoje, demasiadamente ancora­do em aspectos materiais.

Tudo começou com Jigme Singye Wangchuck, que substituiu seu pai como o rei do Butão, em 1972. Ele ti­nha apenas 17 anos de idade. Sua co­roação, dois anos mais tarde, marcou o fim do isolamento do pequeno pais (menor que o Estado do Rio de Janei­ro), escondido nas montanhas. De fato, até então, nenhum es­trangeiro tinha autori­zação para entrar no reino, a não ser quan­do convidado pela fa­mília real. A partir de 1974, o paraíso proi­bido começou a abrir as portas ao mundo.

Nos 34 anos de rei­nado, o desafio do rei Jigme Singye Wang­chuck foi o de equili­brar o desenvolvimen­to econômico com os valores culturais e espirituais da nação. Em 1987, respondendo a um repórter do jornal britânico Financial Times sobre a razão de o desenvolvimento no Butão caminhar a passos tão lentos, o rei teria respondido que "a Felicidade
Interna Bruta é mais importante do que o Produto Interno Bruto". E teria arrematado: "Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica."

0 conceito de o bem-estar do indivíduo não estar obrigatoriamente relacionado com bens materiais passou a percorrer o mundo e chamou a atenção de estudiosos. Afinal, o índice Produto Interno Bruto (PIB), usado por todas as nações do planeta, sempre foi considerado limitado. 0 PIB é apenas uma fórmula que determina a quantidade total da produção e do consumo de serviços e bens por meio de transações econômicas. Pouco importa se a riqueza foi originada de guerras, prostituição e devastação da natureza ou é o resultado de um trabalho honesto e uma atividade sustentável.

Se algum bem é conservado e não é consumido, essa operação não é registrada no PIB, pois esta não gera um valor específico. Por exemplo, uma floresta mantida in­tacta não entra no cálculo do índice, enquanto o conserto de um veículo aci­dentado (que pode até ter provocado vítimas fatais) é contabilizado. O PIB não consegue medir o trabalho volun­tário e chega a ampliar a discrimina­ção contra as atividades não-remune­radas, cujas motivações estejam acima do ganho financeiro.

"As medidas do PIB não medem a degradação do meio ambiente, o esgotamento dos recursos naturais nem o agudo declínio na qualidade de vida dos cidadãos. Acho que, em todos os espectros políticos, existe o reconhe­cimento dessas deficiências e a con­vicção que é importante desenvolver medidas mais adequadas", afirma jo­seph Stiglitz, economista reconhecido com o Prêmio Nobel 2001 de Econo­mia. Stiglitz foi convidado pelo presi­dente francês, Nicolas Sarkozy, para desenvolver um novo sistema de cál­culo econômico que possa incluir fa­tores de qualidade de vida.

As palavras de um rei (adorado por seus súditos) sobre a importância da felicidade foram levadas a sério pelos butaneses. Era preciso colocar em prá­tica o desejo real e o índice Felicida­de Interna Bruta (FIB) devia ser sis­tematizado. Em 1998, o conselho de ministros estabeleceu o Centro de Es­tudos do Butão, o qual passou a orga­nizar as informações sobre a FIB. O conceito também foi incluído nos Pla­nos Qüinqüenais e foi definido que a FIB deveria se apoiar em quatro pila­res: desenvolvimento socioeconômico sustentável e eqüitativo, conservação ambiental, promoção do patrimônio cultural e boa governança.

Enquanto isso, ao redor do mundo, um número crescente de economis­tas, cientistas sociais e empresários buscava outras medidas e indicadores que levassem em consideração não apenas o fluxo de dinheiro (como no caso do PIB), mas também a saúde, a cultura, o tempo livre dos indivíduos, a conservação da natureza e outros fatores não-econômicos.

Vários índices começaram a apare­cer na década de 90. O primeiro pas­so foi dado com o estabelecimento do índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen­to (PNUD), o IDH, além de incluir a renda per capita de um país, dá desta­que à expectativa de vida dos habitan­tes, ao grau de alfabetização e às rea­lizações educacionais.

Já o Indicador de Progresso Genuí­no (IPG) introduz em seus cálculos os fatores negativos criados pela socie­dade, os quais não são contabilizados pelo PIB. Por exemplo, a implantação de uma fábrica representa — indiscuti­velmente — um aumento no PIB de uma região. Mas se os benefícios tra­zidos pela nova empresa também vie­rem acompanhados por uma degrada­ção da saúde, da cultura e do bem-estar da comunidade, o resultado fi­nal pode ser zerado, anulando os be­nefícios econômicos trazidos. Segun­do os seguidores do IPG, existem vá­rios custos não-econômicos que de­vem ser incluídos, como o de uso dos recursos naturais, de perda dos ecos-sistemas, de poluição (sonora, do ar e da água), de criminalidade e, até mes­mo, de dissolução de famílias.

Outra tentativa de medir o bem-es­tar da sociedade, ainda menos ortodoxa, é o índice do Planeta Feliz (IPF), criado pela Fundação New Economics, um think-tank (usina de idéias) britâ­nico. Um dos componentes mais im­portantes do IPF é a eficiência ecoló­gica de uma nação e de seus indiví­duos. A idéia não é identificar o país "mais feliz" do planeta, mas sublinhar que é possível atingir altos índices de bem-estar e viver plenamente sem con­sumir excessivamente ou desgastar os recursos naturais.

Medir valores subjetivos, como a fe­licidade, é uma tarefa complicada, pois cada pessoa a compreende de forma distinta. Para alguns cientistas, a men­te funciona apenas como um aparelho que responde a estímulos externos. A felicidade, nesse caso, é percebida como uma conseqüência direta dos prazeres sensoriais registrados pela mente. Como estes são passageiros, a ênfase na busca de estímulos mate­riais é cada vez maior.
Já a filosofia budista aponta para ou­tra fonte de felicidade, aquela que tem origem em estímulos internos. E o es­tado em que o indivíduo vivencia o "ser", ao contrário de reagir apenas aos estímulos externos. A ciência compor­tamental comprovou que, de fato, a mente pode ser treinada por meio de práticas específicas (como a meditação) para promover estados duradouros de serenidade e contentamento. Quando a felicidade é compreendida dessa ma­neira, a busca desenfreada pelas sen­sações externas e o conseqüente con­sumo insustentável dos recursos natu­rais podem ser reduzidos consideravel­mente, promovendo uma economia mais saudável.

Segundo Karma Ura, presidente do Centro de Estudos do Butão, uma auto­ridade na pesquisa da FIB em seu país, a felicidade deve ser "um bem público, já que todos os seres humanos alme­jam alcançá-la". Ele acrescenta que "a busca da felicidade não pode ser deixada exclusivamente a cargo de esforços privados. Se o planejamento do governo e as condições macroeconômicas da nação forem adversos à felicidade, esse planejamento fracassará como meta co­letiva. Os governos precisam criar con­dições que conduzam à felicidade".

O primeiro-ministro do Butão, Jigmi Thinley, em discurso na Assembléia Ge­ral da ONU em setembro, explicou por que seu país instituiu a FIB. “É respon­sabilidade do Estado criar um ambiente que permita aos cidadãos buscar a feli­cidade." Ele considera que o ser huma­no deve ser visto de uma forma holísti­ca. "O bem-estar material é apenas um componente e este não assegura que os cidadãos estejam em paz com o am­biente e em harmonia entre eles."

Contando com o apoio incondicio­nal do monarca, a FIB passou a ser um elemento estratégico da política de planejamento do Butão e criou-se uma coleção de novos indicadores socioam­bientais. Um questionário com 1.300 perguntas foi elaborado e uma amos­tra da população respondeu ao teste. A pesquisa incluía as mais variadas perguntas, como quantas horas o in­divíduo dormia à noite ou quanto tem­po passava com amigos e parentes.

A convite do PNUD, Michael Pen­nock, diretor do Observatório para Saúde Pública em Vancouver, Canadá, passou três meses no Butão em 2006 para desenvolver um questionário mais "internacional" sobre a busca da felicidade. "O questionário butanês era muito longo, eram necessárias seis horas para ser respondido. Fui ao Bu­tão para criar uma versão menor, mais concisa, que pudesse ser respondida em 20 ou 30 minutos. Usamos apenas 100 variáveis para indicar os níveis de satisfação de um indivíduo no seu co­tidiano", diz Penncock.

Os pilares da FIB no Butão foram "ocidentalizados" e passaram a ter nove dimensões. Além das quatro ini­ciais — bom padrão de vida, boa governança, proteção ambiental e pro­moção da cultura — foram adicionados outros cinco itens: educação de quali­dade, boa saúde, vitalidade comunitá­ria, gestão equilibrada do tempo e bem-estar psicológico.

-Foi preciso dar pesos diferentes para cada área, em cada país. Para
países mais pobres, enfatizamos as ne­cessidades materiais. No Butão, um peso maior foi conferido ao aspecto cultural — o que não acontece no Canadá, uma nação multicultural por na­tureza", explica Penncock.
O conceito da FIB já chegou ao Bra­sil. No final de outubro, o butanês Kar­ma Ura se reuniu em São Paulo com empresários interessados em susten­tabilidade, deu palestras na Unicamp e na USP e participou da I Conferên­cia Brasileira sobre a FIB. Apesar de ter estranhado o clima quente e úmi­do, Ura adorou o calor humano brasi­leiro. "Tenho certeza de que o concei­to da Felicidade Interna Bruta vai ser bem aceito no Brasil. Vocês sabem o que é ser feliz."

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista.
Ele é o fundador do Clube de Viajologia e já documentou 138 países.


haroldo@viajologia.com.br

www.viajologia.com.br


Revista Planeta JANEIRO 2009




Extraído do Blog HolosGaia


Viveiros de Castro fala sobre Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss


Leia entrevista com Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


CAIO LIUDVIK

colaboração para a Folha de S.Paulo




Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa, em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem" (ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural. Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses do mundo global.


Folha - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?


Eduardo Viveiros de Castro -
Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.


Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?


Viveiros de Castro -
Todas. "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de Durkheim.


"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história humana.


"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.


Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de Lince", 1991) são o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.


Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.


A partir das "Mitológicas", a obra de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar --sem mais.


Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da América pelos europeus.

Eduardo Viveiros de Castro

Folha - Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro" teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?


Viveiros de Castro -
Os dois primeiros livros de antropologia que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa Lima dava na PUC-RJ na época.


Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito características, que não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.


A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido" (volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.


Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na efervescência cultural da época, a época da tropicália e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte, do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito: uma matemática rabelaisiana. Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica, de Rabelais e Descartes.


Folha - Hoje é possível considerar a antropologia estrutural, em algum sentido, ultrapassada?


Viveiros de Castro -
Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas (ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.


Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.


Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.


Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou a ser explorada em toda a sua complexidade.



O estruturalismo está muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra lévi-straussiana --simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos (e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já ia dizer, ultrapassados) --aproxima-se de seu fim.


Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar --como dizia Leach, de "repensar"-- o estruturalismo.


Lévi-Strauss, que completou 100 anos em 2008,
em foto de 2005

Folha - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças --mais do que nas semelhanças-- entre as culturas. E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer: erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma vontade de elucidar os traços universais da "mente humana", negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?


Viveiros de Castro -
Leach era um piadista, um caso curioso de enfant terrible vitalício da antropologia britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.


(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não misturemos as estações).

Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à liderança intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.


Quanto a isso de erudição monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades culturais --tal coisa não existe.


A distinção entre antropologias francesa e britânica não se reduz a --nem sequer passa por-- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.


Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.


A oposição entre universal e particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.


Folha - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção, literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?


Viveiros de Castro -
As críticas de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são irrelevantes.


Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês Lévi-Strauss.


Parece coisa de inveja da excelência alheia.


"Tristes Trópicos" não é um livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz --que não é nada má, diga-se de passagem-- por um único capítulo de "Tristes Trópicos".

Geertz



Folha - Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?


Viveiros de Castro -
As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente: que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.


E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções à tradição intelectual dos povos que não tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.


(Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 25/11/2008)

Extraído do Blog Epifenomenologia