sábado, 29 de março de 2014

Eventos climáticos extremos

Tempo bom

 
"O fato é que, gostando ou não, a frequência, intensidade e simultaneidade de eventos climáticos extremos vêm aumentando década após década mundialmente e no Brasil. E é justamente o despreparo para tal nova conjuntura do sistema climático global que nos aponta o relatório do pesquisador inglês sir Nicholas Stern como a maior e mais premente ameaça relacionada às mudanças ambientais globais", escreve Paulo Nobre, climatologista e Marcelo Seluchi, pesquisador titular do Centro Monitoramento de Alerta de Desastres Naturais, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 25-03-2014.
Eis o artigo.
Dias de céu azul, sol forte e temperatura elevada são comumente percebidos como "tempo bom", pelo menos em locais onde a chuva é abundante. Será?
Experiência rara, o Sudeste do Brasil experimentou nesse verão de 2014 período de estiagem prolongado e calor extremo, gerando uma das mais severas anomalias climáticas registrada na região desde o início dos registros instrumentais, em meados do século passado.
Esta se deveu ao estabelecimento de uma intensa, persistente e anômala área de alta pressão atmosférica nos altos níveis da atmosfera sobre o oceano Atlântico, nas proximidades da região Sudeste.
O ar mais "pesado" inibiu o levantamento do ar desde a superfície, necessário para a formação das nuvens de chuva. Assim, o descenso do ar mais denso desde os altos níveis da atmosfera ocasionou a dissipação da nebulosidade e o aumento da insolação solar, que por sua vez provocou um aumento progressivo das temperaturas.

Ocorre que esse tipo de situação é uma feição climatológica de inverno, quando observamos os dias característicos de céu azul, mas nos quais o sol se encontra baixo no horizonte resultando em impacto moderado na temperatura. Já no caso presente, a circulação típica de inverno encontrou o sol a pino, resultando em excesso de radiação solar à superfície e pouca chuva.
Mas não estamos sós. Ingleses experimentam inundações generalizadas. Norte-americanos enfrentam ondas de frio polar. Australianos convivem com intensa onda de calor; ao mesmo tempo! Coincidência, diriam uns. Orquestração da natureza contra os abusos humanos em relação ao planeta, diriam outros.
O fato é que, gostando ou não, a frequência, intensidade e simultaneidade de eventos climáticos extremos vêm aumentando década após década mundialmente e no Brasil. E é justamente o despreparo para tal nova conjuntura do sistema climático global que nos aponta o relatório do pesquisador inglês sir Nicholas Stern como a maior e mais premente ameaça relacionada às mudanças ambientais globais.
No passado não muito distante, poderíamos encolher os ombros, escondendo-nos na desculpa de que "nós não sabíamos". Hoje, não mais. Sabemos que as alterações da composição atmosférica induzidas pelo consumo de combustíveis fósseis e desflorestamento tropical em grande escala são em parte responsáveis pelo aumento de eventos climáticos extremos.
Sabemos também que tais eventos, como os desse verão, constituem somente o tira-gosto de uma nova realidade do clima que se avizinha. Ao mesmo tempo, também aprendemos a partir de pesquisas minuciosas das relações entre as florestas tropicais do Brasil e a atmosfera que as árvores fazem parte do processo de geração de chuva, contribuindo para a estabilização do clima.
Assim, enquanto não podemos impedir os grandes movimentos da atmosfera global, como esse que ocasionou o longo período de estiagem sobre o Sudeste do Brasil, podemos e devemos manter os maciços florestais remanescentes não somente na Amazônia, mas também e principalmente os cinturões verdes ao redor das megacidades brasileiras. Com isso, não estaremos imunes aos extremos climáticos futuros, mas teremos contribuído para atenuar seus efeitos em nossas cidades.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro

A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida”.
Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro
Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra aproxima-se do apocalipse. Talvez daqui a 50 anos nem faça sentido falar em Brasil, como Estado-nação. Entretanto, há que resistir ao avanço do capitalismo. As redes sociais são uma nova hipótese de insurreição. Presente, passado e futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros.

Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.

Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem olha.

Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem sucedida — e publicada nesse domingo pelo jornal português O Público, 16-03-2014, Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.

Eis a entrevista.

Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?

É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá acontecer.

Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?

Revolta popular durante a Copa.

E isso significa o quê, exatamente?

Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.

Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.

São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que aCopa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil.
O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai fazer muito bem à imagem do Brasil.
Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.

Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?

Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.
O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.
Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de fenômenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.

Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa na rua.

As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a movimentação popular é o estado, com a sua reação desproporcional. OMovimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reação policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.

Mais volátil.

Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma tática de proteção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos, tem uma certa tática de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil tático claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o fato de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.
Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é, mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava como... [sinal de longínquo].

Porque se passava lá nos morros.

Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro]Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.

Vinte e cinco policiais foram indiciados.

Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.

Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?

Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização popular.
Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata.
Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco.

Como um DNA, algo que não acabou.

Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário.
E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de junho, por exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram completamente diferentes, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.
Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?

Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.
A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares. Compare com aArgentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos militares envolvidos na tortura?  Porque os militares não deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.

Com o aniversário do golpe militar.

Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.

Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.

Não creio.

O atual regime não é uma democracia?

O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi permitida pelos militares. ALei da Anistia foi imposta tal qual pelo governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram anistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.

Pela esquerda.

Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.

Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?

O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo atual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o fato de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.

Ou seja, que não vai ser afetado pelo aquecimento global, etc.

É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos Estados Unidos, em países muito grandes. A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil, hoje, é um ator maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas “sweetshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe operária numa classe operária americana.

E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.

Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.

Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?

Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.

Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.

Ou seja, é um país conservador, reacionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reação: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele.
Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil. E em relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso: ecológicas, geográficas.

Uma espécie de terceira via do mundo?

É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes.
Lembremos que houve um projeto explícito no Brasil, e que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projeto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma raça inferior.

Havia que lavar o sangue.

É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...

A Holanda.

Exato. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes, a irem para a Amazônia.
Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, noRio Grande do Sul. Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano.
Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projeto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reacionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reacionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.

O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.

O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse efetivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.

E o matadouro.

O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para construir um novo estilo de civilização.

O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]

É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo fato de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples fato de que estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.

É um pré-apocalipse?

Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas atômicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.
No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.

Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].

Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez não.

Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?

De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?
É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928...

Mas que foi revivendo, anos 60, agora.

O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispor. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado.
Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.

Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?

Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O maior ato de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao capitalismo.

Uma nova forma de guerrilha?

Que não é nececessariamente violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema eletrônico. Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do mundo inteiro.
Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas, culturais, econômicas do planeta que passam pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância.
É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação atual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de ação física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida, agora, não só de maneira classicamente econômica mas no contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.

Não há desfecho.

Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses “alemães”? Sou um ativista das redes, de fato. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.
 

quinta-feira, 20 de março de 2014

O Facebook perderá 80% de seu público

diz estudo da universidade de Princeton

Em três anos, o Facebook perderá 80% de seus atuais usuários. A previsão não é de uma adivinho de um espaço noturno de televisão. É de dois pesquisadores do departamento de Mecânica e Engenharia Espacial da prestigiosauniversidade de Princeton.
A reportagem é de Javier Martín, publicada no jornal El Pais, 23-01-2014.
John Cannarella e Joshua A. Spechler, autores do estudo, não baseiam suas conclusões em pesquisas de tráfego ao uso dos tradicionais medidores, senão na dinâmica de expansão e desaparecimento de doenças infecciosas, como a gripe. Para isso, empregaram a atual ferramenta de GoogleTrends para prever, por exemplo, a expansão da gripe pelo mundo.
O Modelo epidemiológico na dinâmica das redes sociais, título do ensaio, trata de explicar e de prever o rápido crescimento das redes sociais, bem como sua não menos rápida queda, para isso toma como modelo mais sintomático -por ter completado esse ciclo- a rede MySpace que, no início do século era a indiscutível líder mundial para cair no ostracismo em um par de anos.
Segundo sua analogia Gripe-rede socialFacebook alcançou seu pico em 2012 e a partir de então teve uma queda, concretamente de 20% em dezembro de 2013. E para justificá-lo baseiam-se nas buscas através de Google, buscador maioritário no mundo. Seguindo seus paralelismos de curvas de crescimento e queda, os dois pesquisadores estimam que entre 2015 e 2017 o Facebook perderá 80% de seus atuais usuários, que são pouco mais de 1,1 bilhão, isto é que só teria cerca de 230 milhões de usuários.
Não são os primeiros que preveem a queda do Facebook, entre outras coisas porque a experiência assim o diz, mas sim os que a quantificam em tempo e dados, e além disso em uma cifra tão exorbitantes. Sem ir mais longe, há alguns dias o GlobalWebIndex assinalou que no último trimestre o Facebook perdia 3% de usuários, embora lhe tirou importância.
O mesmo Facebook reconheceu uma queda de visitas entre os mais jovens pelo que tenta os recrutar através de serviços que eles empregam, como foi o caso do Instagram, que comprou, ou a rede SnapChat de auto-eliminação de mensagens em segundos, por quem ofereceu 3 bilhões de dólares (7 bilhões de reais), sem sucesso.
O estudo de John Cannarella e Joshua A. Spechler tem, no entanto, o defeito de se basear nas buscas do Facebookatravés de Google, quando já a metade das visitas a esta rede social se realizam desde aparelhos móveis com sua aplicação. Em qualquer caso, bastará esperar o final do ano para comprovar se a rede social cairá esses 20% ou um pouco mais para comprovar esses 80% de perda de audiência.

domingo, 16 de março de 2014

Andar de bicicleta é uma decisão política

 Entrevista com Chris Carlsson

Em 1992, Chris Carlsson se juntou a alguns amigos para andar de bicicleta na Market Street, a principal rua de São Francisco, nos Estados Unidos. Eles ocuparam a via e se tornaram o próprio trânsito no lugar dos carros que a ocupavam. Com aquele ato, eles começaram o movimento conhecido como massa crítica, que se espalhou para o mundo inteiro. No Brasil, ele é conhecido principalmente como bicicletada, quando diversas pessoas tomam uma via importante da cidade sem lideranças e trajetos impostos, assim comoCarlsson fez há vinte anos.
A entrevista é de Piero Locatelli, publicada na revista Carta Capital, 19-02-2014.
Carlsson conversou com a CartaCapital em visita a São Paulo nesta semana. Ele está no Brasil para participar do III Fórum Mundial da Bicicleta, em Curitiba, e lançar o seu livroNowtopia – Iniciativas que estão construindo o futuro hoje (Tomo Editorial). No livro, ele defende que o ciclismo, hortas comunitárias e a cultura do “faça você mesmo” contribuem para formar uma sociedade que supere o capitalismo. Com uma abordagem marxista,Carlsson acredita que estas atitudes podem ajudar a classe trabalhadora a se emancipar do trabalho assalariado e ter uma vida melhor e mais saudável.
Eis a entrevista.
O senhor fez parte do começo da massa crítica há vinte anos em São Francisco. Hoje, há grupos como este em todo o mundo, o número de ciclistas urbanos tem aumentado e grandes cidades têm políticas públicas voltadas para a bicicleta. O senhor imaginava o desdobramento que a massa crítica teria?
Não imaginava. Nós começamos com uma comunidade de amigos, porque não havia tantas bicicletas assim em São Francisco. A primeira massa crítica que fizemos tinha cinquenta pessoas. Nós subimos a rua principal da cidade, viramos à esquerda e entramos em um bar. Só isso, foi uma coisa bem simples. Mas deste ato surgiu uma bola de neve, e a massa crítica se tornou um fenômeno global que mudou cidades em todo o mundo, incluindo São Paulo.
Por que o senhor acha que o movimento se espalhou desta forma?
O entendimento mais óbvio é a partir do slogan “isso já estava na cabeça de todos”. Assim que você diz a um ciclista: “em outra cidade eles encheram a rua de bicicletas e voltaram para casa”, o primeiro pensamento dele será: “nossa, vamos fazer isso aqui!” Na lógica de ser tratado como um cidadão de segunda categoria nas ruas, a resposta do ciclista só poder ser feita por meio de uma ação coletiva, com ocupação e reabilitação das ruas.
Não há algo como uma organização central de massas críticas e bicicletadas. Cada movimento se organiza e manifesta de formas diferentes, e ambos os termos são guarda-chuvas para diversos movimentos. Como você acha que a ideia de massa crítica é utilizada pelas pessoas que a organizam?
O uso diferente acontece. As pessoas chamam alguns protestos de massa crítica quando vão a um protesto de bicicleta, mas isso não é a massa crítica: é um protesto de bicicletas. Mas eu não me importo, o conceito não é meu e as pessoas fazem o que quiserem dele.Para mim, a massa crítica é um evento sem outras razões. Ela não é instrumentalizada, você não a usa para atingir outra coisa. Mas naquele espaço você pode começar a fazer outras coisas.
É como uma incubadora de ovos aonde eles vão chocando. Tudo que você pode pensar já começou numa massa crítica: novas campanhas, grupos políticos, amizades, negócios, famílias, e por aí vai. A melhor coisa é que a massa crítica deu a todo um setor da população a chance de achar outra maneira de fazer política.
Você vê a bicicleta como uma ferramenta anticapitalista. Porém, ela ganhou espaço em propagandas e é um objeto de consumo. Em cidades como Londres, São Paulo e São Francisco, os bancos administram as bicicletas chamadas de “públicas”. Diante dessa absorção dela por empresas, a bicicleta ainda pode ser uma ferramenta de transformação contra o capitalismo?
Só a bicicleta não é suficiente. A bicicleta, por si só, não é interessante. Ela é um meio de transporte e um produto industrial. A história dela também é a história da escravidão na Amazônia e no Congo, em busca de borracha para fazer bicicletas para o hemisfério norte. Já a história contemporânea da bicicleta no século XX é a da resposta a automobilização das cidades, e isso pode ser uma resposta para fazer algo diferente na cidade.
A bicicleta é um meio de transporte em seu senso literal. Ela ajuda as pessoas a chegarem do ponto A ao ponto B, e isso é uma simples realidade apolítica. Mas a pessoa pode decidir se vai de trem, carro, ônibus, andando, pulando ou voando ao ponto B. E existe política nessa decisão.
Então o real transporte que a bicicleta pode fazer politicamente é levar você para outra maneira de viver. E isso não acontece automaticamente. Isso necessita um contexto e um pensamento político. A bicicleta é um objeto em que você pode despejar sentido, como você coloca um líquido em um copo. E o sentido vem das nossas cabeças, das nossas decisões. Se não colocarmos o sentido político nela, ela é só um objeto chato, perfeitamente compatível com o capitalismo.
Além disso, você pode ter uma sociedade capitalista baseada em bicicletas. O problema é que a sociedade capitalista é baseada no crescimento, e não vai crescer tão rapidamente porque não estão desperdiçando tantas coisas quanto com carros. Então as bicicletas são um passo atrás na lógica capitalista, mas não um passo completo.
E você acha que a maioria dos ciclistas preenche a bicicleta com este sentido anticapitalista?
A maioria não. Mas uma coisa interessante que pode acontecer é que, pedalando na massa crítica, as pessoas conversem com outros ciclistas que fazem política, ou que estiveram pensando sobre isso. Porém, isso não acontece sempre. Há ciclistas organizados em torno de lojas de departamento, e até pela polícia. Quando a bicicleta está em um processo mais aberto, como a massa crítica, ela tem mais chances de ser parte de um processo de mudança social e pessoal.
Seu livro trata de exemplos norte-americanos de ciclistas, hortas comunitárias e outras formas de ativismo. No Brasil, apesar da maior parte dos ciclistas estarem em cidades menores e nas periferias das metrópoles, o ativismo é atrelado a pessoas de bairros mais ricos. O mesmo acontece com a permacultura em São Paulo, por exemplo. As experiências citadas no livro podem ajudar as pessoas menos favorecidas de uma sociedade desigual como a brasileira?
Algumas pessoas estão tão desesperadas para manter sua sobrevivência que passam cada minuto da sua vida trabalhando, e não têm tempo para fazer mais nada. Isso pode significar sair da periferia de São Paulo e deslocar-se 60 quilômetros por dia. Trabalhar 14 horas, ficar quatro no trânsito, dormir seis horas e começar tudo isso de novo. É uma vida muito difícil, próxima à escravidão. Nós, que não vivemos assim, temos muita dificuldade de entender.
Porém, essas pessoas podem decidir fazer uma parte dessa jornada de bicicleta, decidir trocar o que fazem. Elas ainda têm livre-arbítrio. Elas podem tentar plantar comida perto da sua casa, e com isso depender menos de fazer dinheiro. Um pouco, não muito, é claro. Elas também podem cooperar com seus vizinhos, pois eu acredito que as sociedades pobres têm mais solidariedade que nós, que é uma chave para a sua sobrevivência.
Sempre há uma margem para reduzir a necessidade de dinheiro e aumentar a relação com o bem comum. Todo mundo, em qualquer situação, pode fazê-lo se decidir isso.
O senhor fala que os sindicatos são formas de organização obsoletas para os trabalhadores. Qual é o papel das organizações de trabalhadores dentro da sua ideia de mudança?
O problema que eu tenho com os sindicatos é que eles desistiram de questionar o que fazemos há muito tempo. Eles não se importam, eles só querem trabalho. Fazer estradas horríveis, construir prédios em todos os cantos, colocar cimento na nossa terra, o que for. Por que estamos fazendo este trabalho estúpido? Trabalhando em bancos, companhias de seguro, fazendo coisas que vão quebrar em seis meses.
Nós fazemos muitas coisas estúpidas, e os sindicatos não se importam com isso. Não é parte da lógica em que eles foram fundados. A lógica é só ganhar mais dinheiro para os trabalhadores, e defendê-los em seu próprio trabalho. Eles deveriam começar a pensar em como vivemos, os problemas que enfrentamos e quais o trabalho que deveriam ser feitos para solucionar este problema.
O senhor defende em seu livro que toda atitude é política, e cita mudanças vinda das mãos ou da organização dos cidadãos, sem interferência do Estado. Qual o papel da política institucional nestas mudanças?
As instituições políticas, os governos e as agências que eles mantêm mostram pouca adaptabilidade na história que vimos até hoje. Aacho que estamos vivendo em um período em que você vai mudar isso.
A repressão que vimos no Brasil em junho do ano passado é um bom exemplo disso, de como o Estado não consegue responder às pessoas se unindo de forma horizontal e indo às ruas. Nós vimos isso também na Turquia, na Espanha, na Grécia e no Egito. E em todas houve uma grande repressão do Estado. Então ele está muito preso nas suas formas antigas, e não mostra uma capacidade de se adaptar.
Certo, mas então se uma revolução vier, o que isso significa? Eu acho que poderiam surgir instituições que ajudariam as pessoas a cuidar das coisas, de baixo. Uma democracia efetiva, não somente votar para pessoas no Estado. Uma democracia que permita as pessoas decidirem como gastamos os recursos, como vamos prover água e eletricidade, como trabalhamos e para o quê.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Os potenciais dos programas antipobreza


Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP nas áreas de economia e administração e consultor de várias agências das Nações Unidas, em artigo publicado por Carta Maior, 17-02-2014.
Demos os primeiros passos e já falam em esgotamento do modelo, muitos com a esperança que se esgote, e com as vistas postas nas eleições. A comprovação estaria no “pibinho”. Tirou-se 36 milhões de pessoas da miséria, ampliou-se um pouco a profundidade do mercado consumidor, e agora teríamos de buscar outros caminhos. Na realidade não há esgotamento, e os potenciais do desenvolvimento decente e sustentável continuam centrados na redução da miséria, na inclusão produtiva, na elevação da massa salarial e dos direitos sociais.
Entre 1991 e 2010 o aumento da renda familiar per capita medido pelo IDH nos 5.565 municípios do país, esforço conjunto das Nações UnidasIPEAFJP e IBGE, foi de 346 reais. Isto representa muito para os mais pobres, mil reais por mês para uma família de três pessoas, mas é suficiente? O estudo também mostra que neste período tivemos no Brasil um ganho médio de 9 anos de expectativa de vida, passando de 65 para 74 anos, o que representa um resultado espetacular em tão curto período. Mas outros países estão acima de 80 anos.

A educação foi a que mais avançou, com o IDHM (Indicador de Desenvolvimento Humano Municipal) passando do trágico 0,28 em 1991 para 0,64 em 2010. Foi o maior avanço em termos de ritmo, mas ainda é o que é o nosso pior indicador, pelo trágico que era o ponto de partida. Neste indicador de educação, um componente é que a população de 18 a 20 anos com ensino médio completo passou de 13% para 41%, um gigantesco avanço, mas também um imenso atraso a recuperar.
Os dados aí estão, o Brasil acordou mesmo, e está avançando a passos largos, mas ainda está a anos luz das necessidades para um país minimamente equilibrado, para uma vida digna no andar de baixo, e um luxo menos espalhafatoso no andar de cima. Não há dúvida de que a injeção de recursos na base da sociedade foi essencial para este despertar, pois a partir de um certo nível de falta de recursos a pobreza se transforma também em falta de oportunidade, na chamada armadilha da pobreza. Esta armadilha está sendo rompida.
O entusiasmo inicial de quem olha apenas para o PIB, que chegou a dar um salto muito expressivo, é míope, por olhar essencialmente para o consumo imediato e de fortes repercussões no mercado, com a compra, por exemplo, da linha branca e de carros. Uma família ter geladeira significa que a comida que pode ser guardada, que o remédio não estraga. O carro não é o problema que se proclama – parece até divertido os mais aquinhoados acharem um acinte pobre ter carro - pois o problema está na ausência de transporte público para os deslocamentos de milhões se dirigindo para basicamente os mesmos destinos nos mesmos horários em transporte individual. O uso do carro para deslocamentos familiares diversificados não é a questão central, e sim a insuficiente presença do sistema público de transporte de massa.
É este segmento de expansão do acesso ao básico que está diminuindo. Na análise daPNAD de 2012 sobre a posse de bens duráveis, “Em 98,7% dos domicílios particulares permanentes investigados em 2012 havia fogão. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, os percentuais dos que tinham esse bem superou 99%. Nas Regiões Norte e Nordeste essas proporções foram, respectivamente, de 97,3% e 97,5%. A pesquisa confirmou o avanço na posse de alguns bens duráveis de 2011 para 2012, tais como: geladeira (de 95,8% para 96,7%); máquina de lavar roupa (de 51,0% para 55,0%) e televisão (de 96,9% para 97,2%).(...) Em 2012, os percentuais de domicílios em que ao menos um morador possuía carro ou motocicleta para uso pessoal foram de 42,4% (26,7 milhões de unidades) e 20,0% (12,6 milhões de unidades), respectivamente.” (PNAD 2012, IBGE, p. 72)
Esta inclusão pelos bens duráveis deve sem dúvida continuar, pois não se concebe um domicílio sem geladeira, e muito menos sem luz, que era uma dimensão trágica de milhões de pessoas antes do Luz para Todos. Mas o impacto desta linha de atividades deve tornar-se menor, pelo nível alcançado. O importante aqui, é que conforme avança o nível de renda e a sociedade passa a ter acesso ao essencial, gera-se uma diversificação de demanda. Não é o volume de atividades que diminui, tanto assim que temos o menor desemprego da história, mas a sua composição que se desloca.
As pessoas passam a ter necessidade de melhorar o entorno da casa, em particular com saneamento, urbanização decente, infraestruturas de bairro, o conjunto das coisas que não se resolvem por consumo individual, e sim por consumo coletivo. Uma família não resolve sozinha a questão do esgoto ou dos alagamentos. E consumo coletivo exige políticas públicas. Um sistema de esgoto instalado gera muito bem-estar nas famílias, coisa que não é medida pelo PIB, e inclusive pode diminuí-lo ao reduzir as doenças e hospitalizações. Calcula-se que um real investido em saneamento reduz em 4 reais os gastos com saúde.

Economizar dinheiro racionaliza a composição dos nossos gastos, mas não aumenta o PIB. Aliás o que aumenta o PIB é jogar pneus e fogões velhos nos rios e córregos, pois isto obriga a contratar empresas para o desassoreamento, o que “ativa” a economia. Além do tamanho do PIB, aliás perfeitamente razoável na conjuntura (2,3%), temos de olhar para a qualidade do PIB.
As áreas como saúde e educação tornaram-se eixos muito mais importantes do gasto das famílias. Grande parte deste esforço passa sob forma de consumo coletivo através de serviços públicos – é o imposto convertido em renda familiar de forma indireta – e não tem impactos imediatos de aumento do PIB. O investimento que fazemos na educação dos jovens hoje é essencial, mas irá se reverter em melhor produtividade sistêmica dentro de dez ou quinze anos, quando este jovem se tornar mais produtivo.
As grandes infraestruturas que são objeto hoje de importantes investimentos têm características semelhantes. Uma ferrovia que reduz o custo tonelada-quilómetro do transporte de produtos representa hoje um sacrifício, mas amanhã significará maior produtividade e aumento do PIB. Investimentos também mobilizam recursos e aumentam o PIB, mas ainda sem os impactos de dinamização do conjunto de atividades produtivas de uma região que rompe o seu isolamento. É preparar o amanhã.
Para muitos, é estranho ver pleno emprego e forte avanço da qualidade de vida das famílias, frente a um PIB relativamente menor. Mas não há paradoxo, apenas uma mudança da composição inter-setorial das nossas atividades. A atividade econômica é muito mais do que shopping, linha branca e automóvel. Quanto mais avança a sociedade, maior é a proporção de consumo de bens imateriais como educação, saúde e cultura, e maior é a presença das atividades públicas. Sai simplesmente mais barato ter sistemas universais e gratuitos, e a universalização é essencial para a redução das desigualdades.
O Brasil está mudando, e rapidamente. Olhar com lentes antigas não ajuda. Está aumentando a dimensão das políticas sociais no conjunto das atividades econômicas do país, a economia criativa e o conhecimento em geral estão passando a ocupar o centro das atividades, infraestruturas integradoras estão redesenhando as relações entre os territórios. Não basta olhar para a linha branca e o Bolsa Família. O perfil de consumo está mudando. A convergência do aumento dos salários, da expansão da previdência, de inúmeros programas como PronafPronatec, ProuniTerritórios da Cidadania – são cerca de 150 programas de inclusão ao todo – está gerando uma nova realidade. Frente às necessidades, é muito pouco. Frente ao passado, é um despertar, e o caminho da inclusão, como vetor de dinamização do desenvolvimento, continua central

quarta-feira, 12 de março de 2014

Nossos governos estão se tornando oligárquicos


O lançamento de La Haine de la démocratie (O Ódio da Democracia), em 2005, foi um acontecimento. De início, porque o filósofo Jacques Rancière lança um ataque eloquente contra a oligarquia e contra as elites do poder. Em seguida, em função da tomada do partido delas pelas pulsões antidemocráticas dos intelectuais, seu desgosto pela plebe. Quer se trate de Alain Finkielkraut fustigando o caráter inculto dos consumidores contemporâneos, ou de Philipe Muray, debochando do homo festivus, de Jean-Claude Milner, condenando os pecados mortais da Europa democrática, do italiano Giorgio Agamben, comparando nossas democracias a regimes totalitários, os representantes da elite intelectual, lembrava Rancière, não estão dispostos a confiar no povo, nas massas que julgam ignorantes e perigosas.
A entrevista foi publicada pela revista Philosophie Magazine e reproduzida pelo portal Carta Maior, 13-02-2014. A tradução é de Louisa Antônia León.
Em 2007, quando em campanha presidencial, Ségolène Royal propôs a criação de juris populares e defendeu o conceito de “democracia participativa”. Para explicar a escolha ao Partido Socialista, reivindicava a influência do trabalho de Jacques Rancière (La Haine de la démocratie). Mas o principal interessado rapidamente cortou essa tentativa de apropriação. Sua posição com efeito estava muito distante do programa de Ségolène Royal, pois, para ele, a democracia não pode ser uma oferta eleitoral: trata-se, ao contrário, de um escândalo.
Em entrevista à revista Philosophie MagazineRancière fala sobre a democracia e os adversários que ela encontra para sua efetivação no mundo contemporâneo.
Eis a entrevista.
Temos a tendência de pensar que há democracia quando o governo é eleito por maioria dos votos. Você fornece uma definição completamente diferente da democracia, a qual é representada como um excesso. O que isso significa?
Os conceitos da política não nascem da classificação das diversas formas de governo. Eles nascem da própria política. Lembremos que, na origem, a palavra “democracia” é uma injúria. Na Grécia, tratava-se como “democrata” aquele que queria o poder do povo, quer dizer, da canalha. Não há uma definição, mas uma constelação de significações em torno da palavra democracia, que tem todas este ponto comum: o escândalo. O sorteio, e não o voto majoritário, tornou-se o símbolo dela. A ordem natural queria que o poder estivesse ao alcance dos indivíduos mais fortes, mais ricos, mais sábios ou mais capazes... Mas a democracia ou o “poder do povo” impõe esta verdade paradoxal: para que haja política, e não somente dominação, é preciso pressupor um poder que não se identifique a qualquer competência exercida sobre os outros, sejam quem for. Não se está numa democracia simplesmente porque o povo está representado por deputados, ou governado pelos presidentes eleitos, mas quando existem formas de afirmação desse poder das pessoas que são autônomas em relação às instituições do Estado.
Para você, o regime no qual vivemos hoje na França é um “Estado de direito oligárquico”. Qual o sentido dessa expressão?
Nosso sistema repousa sobre uma dupla legitimidade. De um lado, há um Estado de direito, com um certo número de constrangimentos jurídicos que limitam as prerrogativas do poder e protegem os cidadãos. Mas nossos governos são oligárquicos: abrigam os políticos profissionais, cada vez mais ligados ao mundo da finança. Eles se apoiam na visão dos experts que navegam pelo mundo dos negócios, dos governos e da universidade, cujo papel na desregulamentação liberal e na especulação financeira nos EUA o demonstrou, exemplarmente. O poder de todos é monopolizado por uma pequena minoria que se auto-reproduz. Esse sistema reduz a ação democrática ao processo eleitoral, quer dizer, às escolhas entre os políticos que são desde o início designados por essa minoria, em seu interior. A eleição é duas coisas em uma: ela é a forma de reprodução da oligarquia governante. E ela é a visibilidade do poder de todos, ainda presente, mas num sistema como o nosso, onde tudo repousa na eleição, todos os cinco anos de um chefe supremo. E sem dúvida é preferível ter soberanos eleitos pela minoria mais forte do que ter gente que está lá pela força armada ou sob o comando de um partido único. Além disso, o sufrágio universal às vezes burla os cálculos dos experts e dos estrategistas.
Como na época da rejeição, pelo referendo de 2005, do projeto da Constituição Europeia... Em O Ódio da Democracia, você diz que era edificante escutar as elites de então recriando o escândalo que representava, aos seus olhos, o “não” da população. Mas se se organizasse um referendo que resultasse na interdição da construção de mineradoras, ou da burca, ou no retorno da pena de morte, não estaria você, como representante da elite intelectual, entre os primeiros a se indignar?
Vamos distinguir as coisas. O problema da burca foi introduzido no debate pela elite; não se viu as pessoas na rua molestando as mulheres de burca. Muitos dos temas ditos populistas – a islamofobia, o racismo, a segurança – não vêm de baixo, mas do alto. A gestão da insegurança é uma forma de autolegitimação do poder oligárquico, e a islamofobia foi alimentada pelos intelectuais. No que concerne ao referendo sobre a Constituição europeia, nossos dirigentes cometeram um erro em relação à lógica governamental: eles deram aos eleitores o texto a ser lido. As pessoas votaram depois de terem discutido um texto que todos tiveram tempo de ler e de julgar; não se tratava de enunciar uma opinião, como os cidadãos suíços o fizeram, em relação às mineradoras... Em todo caso, a democracia é a ação comum em nome de um poder de pensamento que pertence a todos. Não se pode reduzi-la à escolha entre opiniões contrárias. O referendo não é, para mim, um modelo. Ele ganha sentido em situações em que há uma decisão a ser tomada sobre orientações coletivas claramente enunciadas. Em toda parte, onde se gera fantasma, pode-se chegar ao pior.
Quando o resultado de um referendo lhe agrada, é uma escolha esclarecida. Quando o desaponta, é o resultado de uma manipulação. Isso não é um pouco cômodo? O excesso democrático não pode, ele também, levar a uma exclusão das minorias, ao desencadeamento das pulsões?
A diferença não é apenas de resultados. Ela está no tipo de povo a que a questão se destina: trata-se do povo étnico, definido por uma identidade a preservar, ou de um povo político, que não existe senão sob a supressão de suas identidades? A democracia não afirma a bondade original do povo, mas diferença ela mesma entre duas ideias de povo. O excesso democrático não é portanto o contágio dos movimentos da massa. Ao longo do tempo, esses movimentos estão em regressão em nossas sociedades ocidentais. Não houve caça aos muçulmanos após o 11 de setembro. Nossos partidos da extrema direita dirigem opiniões de eleitores, não paixões populares de massa. E a História nos mostra que, mais do que grandes horrores, os piores massacres sempre foram planejados pelas oligarquias no poder, das dragonadas aos campos [de concentração] e aos genocídios. O partido-Estado Nazi, com a solução final, mostrou uma eficácia no crime que as manifestações populares e os pogroms espontâneos ao longo dos séculos precedentes jamais alcançaram.
Hoje, vários filósofos (Finkielkraut, Milner, Agamben…) criticam vivamente a democracia. Não é estranho ver se espalhar um forte sentimento antidemocrático dentre os filósofos ?
Eu não vejo paradoxo. Não existe um grupo de pessoas que seriam “os filósofos” e que teriam por missão defender a democracia. Atribui-se erradamente aos intelectuais uma vocação de resistência à opinião dominante. O desenvolvimento do antidemocratismo entre eles acompanha naturalmente o fortalecimento do poder das oligarquias e o crescimento das desigualdades. Desde que o sistema soviético afundou, aqueles que criticavam o totalitarismo em novem da democracia e os que criticavam a democracia como ilusão, que escondia a exploração capitalista, tendem a se pôr de acordo sobre uma visão sociológica da democracia. Esta chegou ao poder dos indivíduos consumidores da sociedade de massa, e opôs a essas massas ávidas e ignorantes a razão esclarecida das elites.
Sob o efeito da globalização econômica e da hegemonia crescente da China, a democracia poderia desaparecer?
A democracia como ideia do poder de todos pode desaparecer sob uma forma suave, dissolver-se nas oligarquias temperadas que conhecemos no ocidente. Muitos dos elementos estão reunidos para tanto: a pressão crescente do governo econômico mundial, a redução da cena política à disputa pela escolha do dirigente supremo, a tendência a criminalizar os movimentos sociais, a reduzir as greves e manifestações a rituais estritamente regulamentados, e a rejeitar a contestação das formas dominantes, como sabotagem ou terrorismo, o consenso antidemocrático crescente. Ao mesmo tempo, nossas oligarquias não precisam de um partido único, sob o modelo chinês, para fazer o sistema funcionar. Os meios de supressão suave podem chegar a resultados globalmente comparáveis aos que o comunismo da China “liberalizada”, por sua parte, obterá. O que pode se opor a isso é somente uma força de pensamento e de ação autônomas, em relação às agendas estatais.