terça-feira, 6 de novembro de 2007

ENTREVISTA C/ GIORGIO AGAMBEN

Revista do Departamento de Psicologia. UFF
Print ISSN 0104-8023
Rev. Dep. Psicol.,UFF vol.18 no.1 Niterói Jan./June 2006

Entrevista com Giorgio Agamben





Entrevistadora: Flavia CostaI





Flavia Costa: Na introdução de Homo Sacer I, você afirma que havia concebido inicialmente o livro como uma resposta à "sangrenta mistificação de uma nova ordem planetária" (e que em seu desenvolvimento se viu diante de problemas, como o da sacralidade da vida, que não estavam no plano inicial). Como se conforma a partir de então seu projeto intelectual?

GIORGIO AGAMBEN: Quando comecei a trabalhar em Homo Sacer, soube que estava abrindo um canteiro que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia jamais ser levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado certamente em um só livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo Sacer é importante. Depois da publicação do livro, freqüentemente me acusam de oferecer ali conclusões pessimistas, quando na realidade deveria ter ficado claro desde o princípio que se tratava somente de um primeiro volume, no qual expunha uma série de premissas e não de conclusões. Talvez tenha chegado o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ele se apresenta agora em minha mente. Ao primeiro volume (O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995), seguirá um segundo, que terá a forma de uma série de investigações genealógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais. O livro Estado de exceção (publicado em 2003) não é senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por evidentes razões de atualidade e de urgência, pareceu-me que devia antecipar em um volume à parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a seqüência da série, e o algarismo I no frontispício indicam que se trata unicamente da primeira parte de um livro maior, que compreenderá um tipo de arqueologia da biopolítica sob a forma de diversos estudos sobre a guerra civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o conceito de vida (zoé) que estavam já nos fundamentos de Homo Sacer I. O terceiro volume, que contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de 1998 com o título Ciò che resta di Auschwitz. L'Archivio e il testimone. No entanto, talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa aparecerá sob sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é extremamente difícil individualizar um âmbito de investigação adequado, senão que tenho a impressão de que a cada passo o terreno desaparece debaixo dos meus pés. Posso dizer unicamente que no centro desse quarto livro estarão os conceitos de forma-de-vida e de uso, e que o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação da biopolítica em uma nova política.

F. C.: Você integra um grupo não muito extenso de pesquisadores europeus que têm realizado uma leitura atenta de autores como Martin Heidegger e Carl Schmitt, e a tem incluído no marco de um pensamento - por assim dizer - emancipatório. Como foi se articulando em sua bibliografia intelectual a leitura desses autores?

G. A.: Os dois autores que você cita tiveram em minha vida um peso diferente. O encontro com Heidegger foi relativamente cedo, e ele inclusive foi determinante em minha formação depois dos seminários de Lê Thor, em 1966 e em 1968. Mais ou menos nos mesmos anos durante os quais eu lia Walter Benjamin, leitura que talvez me serviu de antídoto ante o pensamento de Heidegger. Estava em questão o conceito mesmo de filosofia, o modo pelo qual deveria responder à pergunta, prática e teórica ao mesmo tempo: que é a filosofia? O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (creio que é evidente para qualquer um que não seja estúpido nem tenha má-fé, ou, como acontece freqüentemente, as duas coisas juntas) que, se queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu deveria medir-me. Como com um inimigo, antes de tudo - mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão.

F. C.: A recepção de sua obra tem sido polêmica em alguns países, sobretudo na Alemanha. Talvez um dos momentos mais provocadores de seu trabalho seja quando rastreia e expõe a matriz comum (a "íntima solidariedade") entre democracia e totalitarismo. Como você comenta isso?

G. A.: Na perspectiva arqueológica, que é a de minha pesquisa, as antinomias (por exemplo, a da democracia versus totalitarismo) não desaparecem, mas perdem seu caráter substancial e se transformam em campos de tensões polares, entre as quais é possível encontrar uma via de saída. Não se trata, então, de distinguir o que é bom do que é mal em Heidegger ou em Schmitt. Deixemos isto aos bem pensantes. O problema, sobretudo, é que se não se compreende o que se põe em jogo no fascismo, não se chega a observar sequer o sentido da democracia.

F. C.: O que você entende por arqueologia? Que lugar ocupa em seu método de trabalho?

G. A.: Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e A se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. Um paradigma (o termo em grego quer dizer simplesmente "exemplo") é um fenômeno particular que, enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático mais vasto. Nesse sentido, o panóptico em Foucault e o duplo corpo do rei em Kantorowicz são paradigmas que abrem um novo horizonte para a investigação histórica, subtraindo-a aos contextos metonímicos cronológicos (França, o século XVIII). No mesmo sentido, em meu trabalho, lancei mão constantemente dos paradigmas: o homo sacer não é somente uma figura obscura do direito romano arcaico, senão também a cifra para compreender a biopolítica contemporânea. O mesmo pode ser dito do "muçulmano" em Auschwitz e do estado de exceção.

F. C.: No livro, você historiciza o processo - acelerado depois da Primeira Guerra Mundial - segundo o qual o estado de exceção se transforma em regra; o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Como você chega a esta idéia?

G. A.: Para mim tratava-se, sobretudo, de compreender a profunda transformação que se havia produzido na constituição material, isto é, na vida política das assim chamadas democracias nas quais vivemos. Está claro que nenhuma das categorias fundamentais da tradição democrática manteve seu sentido, sobre isso não podemos estar iludidos. Em Estado de exceção tentei indagar essa transformação de um ponto de vista do direito; perguntei-me o que significa viver em um estado de exceção permanente. Creio que os dois campos de investigação que Foucault deixou de lado, o direito e a teologia, são extremamente importantes para compreender nossa situação presente. Em todo caso, é nesses dois âmbitos que tenho trabalhado nesses últimos anos.

F. C.: Por que você considera fundamental uma teoria geral do estado de exceção: uma teoria do vazio do direito que, contudo, o funda? Imagina uma práxis para essa teoria?

G. A.: Algumas vezes foi dito que em cada livro há algo assim com um centro que permanece escondido; e que é para aproximar-se, para encontrar e - às vezes - para evitar esse centro que se escreve esse livro. Se tivesse de dizer qual é, no caso do Estado de exceção, esse núcleo problemático, diria que está na relação entre anomia e direito, que no curso da pesquisa apareceu como a estrutura constitutiva da ordem jurídica. Um dos objetivos do livro era precisamente a tentativa de abordar e analisar essa dupla natureza do direito, essa ambigüidade constitutiva da ordem jurídica pela qual esta parece estar sempre fora e dentro de si mesma, simultaneamente vida e norma, fato e direito. O estado de exceção é o lugar no qual essa ambigüidade vem à luz e, simultaneamente, o dispositivo que deveria manter unidos os dois elementos contraditórios do sistema jurídico. Ele é, nesse sentido, aquilo que funda o nexo entre violência e direito e, ao mesmo tempo, no ponto em que se torna "efetivo", aquilo que rompe com esse nexo. E para responder à segunda parte de sua pergunta, diria que a ruptura do nexo entre violência e direito abre duas perspectivas à imaginação (a imaginação é naturalmente já uma práxis): a primeira é a de uma ação humana sem nenhuma relação com o direito, a violência revolucionária de Benjamin ou um "uso" das coisas e dos corpos que não tenha nunca a forma de um direito; a segunda é a de um direito sem nenhuma relação com a vida - o direito não aplicado, mas somente estudado, do qual Benjamin dizia que é a porta da justiça.

F. C.: Você afirma que não há um retorno possível do estado de exceção em que vivemos imersos para o estado de direito. Que a tarefa que nos ocupa é, em todo caso, a de denunciar a ficção da articulação entre violência e direito, entre vida e norma, para abrir ali a cesura, o campo da política. Contudo, não nos devemos também uma teoria, não tanto do "poder constituinte" como da "instituição política", quer dizer, uma teoria sobre a "práxis articulatória" que inclua a politicidade do vivente como um elemento central?

G. A.: Precisamente porque se trata de romper o nexo entre violência e direito, o problema aqui é que devemos superar a falsa alternativa entre poder constituinte e poder constituído, entre a violência que instala o direito e a violência que o conserva. Porém, precisamente por isso me parece que não se trata tanto de "instituir" e de "articular", como de destruir e desarticular. Em geral, em nossa cultura o homem tem sido pensado sempre com a articulação e a conjunção dos princípios opostos: uma alma e um corpo, a linguagem e a vida, nesse caso um elemento político e um elemento vivente. Devemos, ao contrário, aprender a pensar o homem como aquele que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação.

F. C.: A dinâmica de como desinstalar o instituído sem instituir ao mesmo tempo uma nova instituição remete certamente à idéia de revolução permanente. Pergunto-lhe não pelo "o que fazer?", mas sim até onde crê que é possível e desejável orientar-se na tentativa de pensar uma política "completamente nova"?

G. A.: Diria que o problema da revolução permanente é o de uma potência que não se desenvolve nunca em ato, e, ao contrário, sobrevive a ele e nele. Creio que seria extremamente importante chegar a pensar de um modo novo a relação entre a potência e o ato, o possível e o real. Não é o possível que exige ser realizado, mas é a realidade que exige tornar-se possível. Pensamento, práxis e imaginação (três coisas que jamais deveriam ser separadas) convergem nesse desafio comum: tornar possível a vida.

F. C.: No primeiro capítulo - de O Estado de exceção - você assinala que, em que pese a crescente conversão das democracias parlamentares em governamentais, e o aumento do "decisionismo" do poder executivo, os cidadãos ocidentais não registram essas mudanças e crêem seguir vivendo em democracias. Você tem uma hipótese sobre por que isso acontece? Caberia enfocar esse tema com base em uma teoria sobre a sujeição voluntária ao poder disciplinar (aquilo que Legendre chama "o modo em que o poder se faz amar")?

G. A.: O problema da sujeição voluntária coincide com aqueles processos de subjetivação sobre os quais trabalhava Foucault. Foucault mostrou, parece-me, que cada subjetivação implica a inserção em uma rede de relações de poder, nesse sentido uma microfísica do poder. Eu penso que tão interessantes como os processos de subjetivação são os processos de dessubjetivação. Se nós aplicamos também aqui a transformação das dicotomias em bipolaridades, poderemos dizer que o sujeito apresenta-se como um campo de forças percorrido por duas tensões que se opõem: uma que vai até a subjetivação e outra que procede em direção oposta. O sujeito não é outra coisa que o resto, a não-consciência desses dois processos. Está claro que serão as considerações estratégicas aquelas que decidirão, a cada momento, sobre qual pólo fazer a alavanca para desativar as relações de poder, de que modo fazer jogar a dessubjetivação contra a subjetivação e vice-versa. Letal é, por outro lado, toda política das identidades, ainda que se trate da identidade do contestatário e a do dissidente.

F. C.: Você afirma que "vida nua" e "norma" não são coisas preexistentes à máquina biopolítica, são um produto de sua articulação. Você poderia explicar isto? Porque é mais simples compreender que o direito foi "inventado", mas custa mais se desembaraçar da idéia de que os seres humanos somos, em algum sentido, "existências nuas", que pouco a pouco vamos aprovisionando-nos de nossas roupagens: língua, normas, hábitos...

G. A.: Aquilo que chamo vida nua é uma produção específica do poder e não um dado natural. Enquanto nos movimentarmos no espaço e retrocedermos no tempo, jamais encontraremos - nem sequer as condições mais primitivas - um homem sem linguagem e sem cultura. Nem sequer a criança é vida nua: ao contrário, vive em uma espécie de corte bizantina na qual cada ato está sempre já revestido de suas formas cerimoniais. Podemos, por outro lado, produzir artificialmente condições nas quais algo assim como uma vida nua se separa de seu contexto: o muçulmano em Auschwitz, a pessoa em estado de coma etc. É no sentido que eu dizia antes que é mais interessante indagar como se produz a desarticulação real do humano do que especular sobre como foi produzida uma articulação que, pelo o que sabemos, é um mitologema. O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o "muçulmano" em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero.

F. C.: Em Homo sacer I você diz: "O corpo técnico do Ocidente já não pode superar-se em outro corpo técnico ou integralmente político [...]. Antes será preciso fazer do próprio corpo biopolítico, da vida nua mesma, o lugar no qual se constitui e assenta uma forma de vida vertida integralmente nessa vida nua. Um bios que seja somente sua zoé". Como você analisa as ilusões de "superar" o corpo biológico (e biopolítico) num corpo técnico?

G. A.: A frase que você citou sobre um bios que é somente sua zoé é para mim o selo e a empresa do que resta pensar. Todos os problemas, incluído o da técnica, deverão ser reinscritos na perspectiva de uma vida inseparável de sua forma. No fundo, a vida fisiológica não é outra coisa que uma técnica esquecida, um saber tão antigo que já perdemos toda memória dele. Uma apropriação da técnica não poderá ser feita sem um re-pensamento preliminar do corpo biopolítico do Ocidente.

F. C.: Nos últimos anos, muitas das energias do pensamento sobre a resistência e a emancipação se concentraram em desenvolver uma teoria da defecção, do êxodo (por exemplo, penso em Toni Negri e Michael Hardt, Paolo Virno, Albert Hirschmann). Quer dizer, diante da expansão totalitária em escala global, parece haver uma aposta na negatividade, no silêncio e no exit. Qual a sua opinião sobre isto?

G. A.: Para dizer a verdade, não estou muito convencido de que o êxodo seja hoje um paradigma verdadeiramente praticável. O sentido desse paradigma é, por outro lado, solidário do paradigma do Império, com o qual forma sistema. A analogia com a história da relação entre vida monástica e o Império Romano nos primeiros séculos da era cristã é iluminadora. Também nessa época, fizeram frente a um poder global centralizado formas de êxodo organizado que deram vida às grandes ordens conventuais. A analogia com a situação descrita em um livro recente que teve muita sorte é evidente. Inclusive, às vezes, penso que Negri e Hardt têm perfeito equivalente em Eusebio Cesarea, o teólogo da corte de Constantino (que Overbeck definia ironicamente como o friser da peruca teológica do imperador). Eusebio é o primeiro cristão a teorizar sobre a superioridade do único poder imperial sobre o poder das diversas pessoas e nações. Ao único Deus nos céus corresponde um único império sobre a terra. A história das relações entre Igreja e Império Romano é uma mescla e uma alternância de êxodo e alianças, de rivalidade e negociatas. Contudo, a cidade celeste de Agostinho ainda é peregrina, quer dizer, está no êxodo mesmo quando está em seu próprio terreno. Não creio que tenha sentido aplicar hoje o mesmo modelo. O êxodo da vida monástica fundava-se de fato sobre uma radical heterogeneidade da forma de vida cristã e sobre uma sólida fé comum, apesar disso, não alcançou ser verdadeiramente antagonista. Hoje, o problema é que uma forma de vida verdadeiramente heterogênea não existe, ao menos nos países do capitalismo avançado. Nas condições presentes, o êxodo pode assumir somente formas subalternas e não é uma causalidade se termina pedindo ao inimigo imperial que lhe pague um salário. Está claro que uma vida separada de sua forma, uma vida que se deixa subjetivar como vida nua não estará em condições de construir uma alternativa ao império. O que não significa que não seja possível trazer do êxodo modelos e reflexões. Penso, por exemplo, nos conceitos franciscanos de uso e de forma de vida, que são ainda hoje extremamente interessantes.





Tradução de Susana Scramim
I Tradutora de Estado de excepción. Buenos Aires: Editorial Adriana Hidalgo, 2004.

O homem, as máquinas e o futuro

Entrevista com João Camillo Penna.
(João Camillo Penna é graduado e especialista em Letras Modernas, pela Universidade de Paris, onde também realizou o mestrado na mesma área. Doutorou-se em Literatura Comparada, pela Universidade da Califórnia, nos EUA. É pós-doutor, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é, atualmente, professor adjunto. É autor de A imitação dos modernos (São Paulo: Paz e Terra, 2000).
Pensar as mudanças que acontecerão no mundo no futuro é imponderável. Alguns prognósticos que transcendem o mundo conhecido e tem como horizonte a possibilidade virtual foram estudados pelo professor João Camillo Penna e apresentados no Programa Cultura e Pensamento, que aconteceu em setembro, no Rio de Janeiro. Nele, Penna apresentou o trabalho “Máquinas Utópicas e Distópicas”, no qual, a partir do movimento das evoluções, analisa algumas produções de ficção científica e pensa na construção de um “mundo possível”. Sobre este assunto, João Camillo Penna falou à IHU On-Line, por e-mail.
Nesta entrevista, o doutor em Literatura Comparada fala sobre a dependência e independência do homem em relação às tecnologias, das nanotecnologias e tecnociências como utopias e distopias desenvolvidos no mundo contemporâneo e as diferenças entre o homem e as máquinas. Segundo ele, “a substituição do trabalho humano pela tecnologia gerou uma classe de inúteis ao sistema produtivo, dispensável e excrescente, ao invés de energia livre para o ócio, ele próprio integrando o ciclo reprodutivo da produção”.

IHU On-Line - A sociedade contemporânea está cada vez mais dependente das máquinas e das tecnologias para acompanhar o desenvolvimento do mundo. No entanto, essa mesma sociedade nega essa dependência. Porque a pessoa humana precisa fazer essa negação para afirmar sua humanidade, em sua opinião?


João Camillo Penna - A discussão sobre a dependência das máquinas depende e está ligada à da independência delas, as duas proposições sendo contemporâneas uma da outra, e interdependentes. Precisamos estar dependentes das máquinas, sentirmo-nos quase escravizados por elas, em uma fantástica inversão dos desígnios que deram origem a elas, sob a forma de um pesadelo, para podermos, então, nos libertar delas. O que me impressionou em meu estudo sobre ficção científica é que o sonho de um outro ser, semelhante ao ser humano, mas artificial e por ele produzido, que desembocará na temática da automação e dos robôs, uma máquina das máquinas, capaz não apenas de cumprir programas estabelecidos pelos homens, mas reprogramar-se e produzir programas. Ele consiste imediatamente em um alerta contra os perigos que isso representaria para a humanidade. A máquina é em si a imagem deste perigo, é refletido nelas que nos vemos como dependentes/independentes. Ela existe para que afirmemos a partir dela a nossa liberdade e libertação dela.
Há um roteiro clássico que reaparece de forma recorrente tanto em ficção científica, quanto nos relatos de viagem, e que hoje em dia estrutura reality shows, como Survivor (1) e No limite (2), que consiste em imaginar um grau zero da técnica: uma nova sociedade estabelecida em uma ilha fechada, onde faltam o conforto e as conquistas da civilização, e para onde são jogados estes náufragos da cultura. O que estes relatos contêm é uma imagem da reinvenção da civilização a partir da sua tábula rasa, e constituem pesadelos organizados sobre precisamente o problema que ecoa em sua pergunta: o que fazer quando não temos mais nenhuma máquina em que nos apoiar? Precisaríamos nos desvencilhar delas, treinarmo-nos asceticamente a não mais depender delas para no momento preciso não sentirmos tanto a sua falta?
Esta seria uma reação programada por este pesadelo, que é posto em prática incessantemente hoje em dia pelos mais diversos grupos refratários aos avanços tecnológicos. Mas o que invariavelmente se comprova nestes reality shows? Que os humanos são plenos de recursos, têm “muitos truques”, como se dizia de Ulisses, na Odisséia de Homero (3), e invariavelmente prevalecem sobre as agruras da natureza, reconstituindo a civilização inclusive e, sobretudo, no que ela tem de mais terrível: a competição e o critério seletivo dos melhores. O que este laboratório darwiniano-capitalista demonstra é que nos refazemos invariavelmente, prevalecemos necessariamente, que somos de fato os melhores e que prevalecem os melhores. Que isso tudo se dê na superfície da tela da televisão - uma máquina de imagens, e das mais poderosas, sintoma central de nossa “dependência” delas - significa o que dizia no início: que a máquina é quem produz tanto o sonho de um mundo no qual seríamos independentes delas (utilizaríamo-nas, sem ser contaminados por elas), em que elas representariam um acréscimo de conforto em nossa existência social, quanto o pesadelo de sermos delas dependentes (sem elas morreríamos).


IHU On-Line – No texto "máquinas utópicas e distópicas", o senhor fala sobre as projeções que se faziam na ficção científica dos anos 1960, 1970. Essas projeções eram, geralmente, otimistas, ou seja, imaginavam um futuro repleto de tecnologias (muitas surreais ainda hoje) e o homem totalmente conectado a elas. As ficções científicas produzidas hoje são bastante pessimistas. Elas projetam um mundo caótico e o fim dos seres humanos. Para o senhor, o desenvolvimento da tecnociência e das nanotecnologias são uma distopia ou uma utopia? Viveremos num mundo diferente do que conhecemos?


João Camillo Penna - A ficção científica é o relato sobre o futuro e, especificamente, sobre a parte que a tecnociência desempenhará neste futuro. O progressismo do século XIX gerou uma série de projeções otimistas sobre o futuro da humanidade, em um mundo que seria de fato melhorado pela mecanização. Este mesmo otimismo está presente na futurologia de Herman Kahn (4) nos anos 1960, ou na ficção científica de Isaac Azimov (5), na série de relatos otimistas sobre os robôs (Eu, robô [6]) - ambos correspondendo à perspectiva da tecnocracia estadunidense, que desembocará nas epopéias espaciais e interplanetárias, que desdobram o imaginário da “corrida espacial” entre Estados Unidos e União Soviética, uma ficcionalização tecnológica da Guerra Fria.
Há, no entanto, uma outra linhagem da ficção científica, que se inicia precisamente na pós-Segunda Guerra Mundial, quando tanto Hiroshima e Nagazaki, de um lado, e os campos de concentração e extermínio nazistas, de outro, ambos produtos diletos da tecnociência, demonstraram de forma insofismável que nem tudo eram flores no que tocava à tecnociência. Vem daí esta corrente de fato dominante hoje em dia na ficção científica, de relatos distópicos, com uma forte ênfase em uma temática biológico-genética, que projetam um futuro entrópico: o que ocorreria à humanidade após uma grande catástrofe, freqüentemente nuclear, que erradicaria a vida na superfície do planeta? A ficção científica tem uma certa veleidade preditiva, pode representar horizontes possíveis de nosso futuro, mas não é de fato esta a sua pretensão mais essencial.
Assim, quando assistimos ao maravilhoso 2001 – Uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick (7), percebemos que de fato as viagens interplanetárias ainda não se transformaram em episódios corriqueiros explorados por linhas áreas comerciais. É possível que um dia isso venha a ocorrer, embora a hipótese seja cada dia menos verossímel. O mais importante aqui, no entanto, não é o fato de que 2001 passou e esta representação do futuro esteja bem longe de ser confirmada, demonstrando a falha preditiva de A. C. Clarke (8) e de Kubrick. O importante no filme e no livro sobre o qual é baseado, como na ficção científica em geral, é que constituem um espelho analógico a partir do qual podemos ver o nosso presente, refletir sobre o que significa o humano, esta a pergunta essencial da ficção científica.



IHU On-Line - Esse desenvolvimento das tecnologias, tornando tudo cada vez menor, mas nos tornando cada vez mais cidadãos dessa aldeia global, como pensou Mcluhan (9), pode mudar nossa moral e os valores que predominam hoje na sociedade? De que forma?


João Camillo Penna - Mcluhan descreveu de forma aguda, nos anos 1960, o mundo contemporâneo a partir da invenção da eletricidade, que introduziu a simultaneidade de espaços-tempos, a aproximação, coexistência e inclusão recíproca de mundos, por oposição à especialização, segmentarização, seqüenciamento do mecanismo, a revolução tecnológica anterior. Esta descrição do mundo unificado em uma “aldeia global”- formulação que, diga-se de passagem, foi transposta na logomarca da TV Globo, a ponto de não mais poder dela ser distinguida (sendo contemporânas: Compreendendo a mídia: as extensões do homem é de 1964, e a fundação da Globo de 1965) - corresponde de fato à uma representação possível, parcialmente realizada no mundo atual. Com a sabedoria que um certo olhar retrospectivo lança sobre o insight de Mcluhan, percebemos, no entanto, que a eletricidade, ou sua derivação, a informática e a comunicação, não apenas juntou o mundo, mas resegmentarizou-o, permitiu a coexistência de diversos mundos simultâneos, ao mesmo tempo separados e internamente articulados.
Se a hipótese da integração crescente, tendendo à simultaneidade e à unificação dos mundos em um mundo único gerava uma perspectiva universalista de fundo iluminista, com o eventual predomínio de uma ética progressista e libertária, ocidental, vemos hoje em dia que um movimento inverso também se deu: uma inesperada reação entrópica, arcaizante, que reage a esta dissolução dos mundos violentamente produzindo o ressurgimento de particularismos. A aldeia de Mcluhan no campo da moral seria de fato o relativismo: a transcendência das hierarquias, fundadora dos sistemas morais, sendo substituída por uma horizontalidade imanente dos mundos em um mundo, afirma-se então que tudo é certo, e que, portanto, qualquer perspectiva auto-justificada é certa e pode e deve legitimamente coexistir com as outras.


IHU On-Line - Se mudarmos esses valores, estaremos caminhando para uma ética mundial, onde haverá uma unidade entre as nações, ou as diferenças e singularidades ficarão ainda mais em evidência predominando o estado de exceção?


João Camillo Penna - Minha hipótese é que na política contemporânea o estado de exceção deixou precisamente de ser uma exceção, isto é, uma eventualidade, mesmo que implícita a todas as constituições nacionais modernas, e passou a ser a regra. Estamos diante de um paradoxo: a exceção perdeu o seu status excepcional e passou a constituir o nosso cotidiano político de cidadãos que vivem no mundo hoje em dia. O estado de exceção é na verdade a condição para a vigência do estado de direito (que em tese se oporia a ele). Há largos segmentos de populações inteiras do mundo hoje em dia que vivem em um estado de exceção explícito, indisfarçado. Ao contrário do que queria um certo relato da modernização progressista, que entendia que gradativamente o círculo modernizante se expandiria, atingindo um número cada vez maior de pessoas, é necessário que estes bolsões de estado de exceção existam, para que aqueles onde vige o estado de direito possam subsistir.
É provável que a coexistência necessária destas duas ordens esteja ligada à revolução tecnológica de que estamos falando: uma ordem única globalizada ou mundializada, horizontal e imanente, subsumindo singularidades as mais diversas, diversos mundos em um mundo, estados de exceção e estado de direito. A descrição lógica disso seria o seguinte: uma igualdade geral entre segmentos desiguais, que subsumem desigualdades internas a cada sistema. O que é certo é que o horizonte das revoluções tecnológicas é o mesmo do estado de exceção: ambos têm origem na modernidade (a primeira formulação do estado de exceção data do terror revolucionário francês), no programa de uma revolução racional social. Que esta revolução tenha ao mesmo tempo ocorrido (dado certo), e rotundamente fracassado, é um dos enigmas que a política contemporânea nos apresenta.


IHU On-Line - O senhor cita autores que dizem que o robô, ou seja, a máquina é o escravo ideal do homem. No entanto, o senhor afirma, também, que o homem é a tecnologia. Quais são as principais diferenças entre o homem e a máquina que de fato definem quem é o criador e quem é o dominado?


João Camillo Penna - A palavra robô vem do tcheco robota, “trabalho tedioso e maçante”, com fortes conotações feudais do trabalho escravo e servo. Ela surge justamente na ficção científica, na obra dos irmãos Karel e Josef Capek (10), nos anos 1920. A tese do que Marx e Engels chamaram de “socialismo utópico” do século XIX era baseada na hipótese de que a mecanização da sociedade produziria uma melhoria em nossas vidas, fazendo com que parte ou eventualmente a totalidade dos trabalhos de sustentação social seja realizada pos máquinas. Na utopia de Saint-Simon ou nos falanstérios de Fourier, teríamos uma sociedade sem trabalhadores, com homens exercendo funções de chefia no exército e na empresa. Podemos dizer com segurança que, mais uma vez, a profecia maquínica utópica ao mesmo tempo realizou-se e fracassou. É verdade que as máquinas se ocupam de certas funções antes exclusivas a humanos, no entanto isso não liberou o nosso tempo para termos uma vida melhor.
Pelo contrário, a arqueologia prova que o homem do neolítico trabalhava muito menos do que nós, seu dia sendo constituído por longos períodos de espera e ócio, pontuados de atividades circunscritas. A substituição do trabalho humano pela tecnologia gerou uma classe de inúteis ao sistema produtivo, dispensável e excrescente, ao invés de energia livre para o ócio, ele próprio integrando o ciclo reprodutivo da produção. Tudo indica que esta perspectiva da máquina como escravo ideal, tão presente nas ficções científicas, não se efetivou na realidade. Mas a ficção científica não sendo preditiva, entende-se então por que os robôs fornecem tão somente analogias para com as relações humanas. A partir deles, a ficção científica formula a sua questão essencial: o que é o humano?
Pergunta complexa já que o homem é essencialmente técnica, isto é, artifício, sua natureza sendo por assim dizer artificial, constituído que é, em sua diferença específica, como fala articulada, a partir de um sistema fonador que se instala como prótese em um sistema vocal digestivo. Debruçando-se sobre este paradoxo, a ficção científica vai constantemente perguntar-se: o que nos diferencia das máquinas? Esta, na verdade, é a razão de ser das máquinas na ficção científica. E partirá freqüentemente da resposta rousseauiana à pergunta: o que nos diferencia é a compaixão, a piedade, no léxico rousseauiano, a capacidade de se identificar com a dor do outro. Esta resposta precária, constantemente expandida, contradita, mas renovada, é o ponto de partida da pergunta sobre a paradoxal natureza técnica do humano.


Notas:


(1) Survivor é um reality show competitivo popular nos EUA e produzido em vários outros países. No programa, participantes são isolados em um local remoto onde competem por um prêmio em dinheiro e outros prêmios. Seu formato foi criado no Reino Unido em 1992 por Charlie Parsons, e sua primeira produção foi o programa sueco Expedition Robinson em 1997. A versão estadunidense é conhecida como a mãe dos reality shows americanos devido ao seu pioneirismo na TV americana e pelos altos índices de audiência nos EUA. Seu produtor é Mark Burnett, o mesmo responsável por sucessos como "O aprendiz".


(2) No Limite é a versão brasileira (não-autorizada) de Survivor editada por três vezes pela Rede Globo.


(3) Homero foi o primeiro grande poeta grego cuja obra chegou até nós. Teria vivido no século VIII a.C. período coincidente com o ressurgimento da escrita na Grécia. Consagrou o gênero épico com as obras Ilíada e Odisséia.

(4) Herman Kahn foi um estrategista e teórico do sistema militar empregados na Rand Corporation, nos EUA. Suas teorias contribuíram para o desenvolvimento da estratégia nuclear dos EUA.

(5) Isaac Asimov foi um escritor e bioquímico famoso como popularizador da ciência e como autor de ficção científica, sendo suas séries mais populares Fundação e Robôs. Nesta última criou as famosas Três Leis da Robótica. Sua obra de ficção destaca-se por introduzir ao leitor leigo conhecimentos científicos e a idéia do método científico.

(6) Eu, Robô é um filme futurista estadunidense lançado em 2004. É baseado em uma história de Isaac Asimov, mais precisamente, nas Três Leis da Robótica criadas pelo escritor. Nos contos da série, Asimov brincava com as diferentes implicações da lógica das leis, criando situações absurdas e perigosas para os humanos envolvendo os robôs, mas sempre elegantemente resolvidas também de forma lógica.

(7) Stanley Kubrick foi considerado um dos cineastas mais importantes do século XX, responsável por uma obra polêmica, mas que gozou de uma excelente recepção crítica, 2001 - Uma odisséia no espaço (1968). Cinco anos de produção foram necessários para o desenvolvimento de 2001, para muitos, a melhor ficção científica já filmada. Foi escrito ao mesmo tempo em que o livro homônimo de Arthur C. Clarke estava em produção.

(8) Arthur Charles Clarke é um escritor e inventor britânico, autor de obras de divulgação científica e de ficção científica, como por exemplo os contos The Sentinel, A estrela, A muralha das trevas, As canções da terra distante e os romances 2001 - Uma odisséia no espaço, A revelação de Rama e As fontes do paraíso. Talvez sua contribuição de maior importância seja o conceito de satélite geoestacionário como futura ferramenta para desenvolver as telecomunicações.

(9) Herbert Marshall McLuhan foi um filósofo e educador canadense. McLuhan introduz o impacto sensorial, o meio é a mensagem e aldeia global como metáforas para a sociedade contemporânea, ao ponto de se tornarem parte da nossa linguagem do dia-a-dia. Teórico dos meios de comunicação, foi precursor dos estudos midiológicos. Seu foco de interesse não são os efeitos ideológicos dos meios de comunicação sobre as pessoas, mas a interferência deles nas sensações humanas, daí o conceito de "meios de comunicação como extensões do homem" (título de uma de suas obras), ou "prótese técnica".


(10) Karel Capek nasceu em 1880 e seu irmão, Josef, em 1887, na Checoslováquia. Karel foi novelista, dramaturgo e encenador. Simultaneamente, foi o editor do jornal de Praga, fundador e diretor do "Vinohradsky Art Theater", em Praga, e ensaísta político. É reconhecido pelas suas peças, sendo a R.U.R. a mais famosa. Realizada em 1921, retrata uma fantasia dramática em que cada uma das personagens é desumanizada pela máquina da idade. R.U.R. é a sigla de "Rossum´s Universal Robots" e foi nesta peça que surgiu a palavra Inglesa robot. Já Josef é conhecido com um notório pintor, escritor e poeta. Inventou a palavra robô que foi usada por seu irmão. Primeiramente, foi um pintor cubista, mas inventou seu próprio estilo, chamado playfull. Escreveu poemas do campo de concentração de Bergen-Belsen-Belsen, onde morreu em 1945.