"Entre os brasileiros que estudaram a história da mata atlântica e apreciam seus remanescentes, a floresta amazônica inspira alarme. O último serviço que a mata atlântica pode prestar, trágica e involuntariamente, é demonstrar todas as terríveis consequências de destruir sua imensa vizinha do oeste." Este alerta foi dado há 15 anos num livro que deveria ser leitura obrigatória para os brasileiros: o belo e deprimente A Ferro e Fogo, do americano Warren Dean (1932-1994).
A reportagem é de Claudio Angelo e publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, 05-06-2009.
Na obra, a primeira grande historiografia ambiental brasileira, Dean narra a destruição da floresta atlântica da chegada dos portugueses até o governo Collor. Sua esperança era a de que a coletânea de crimes, irresponsabilidades e absurdos cometidos pelos brasileiros contra o próprio futuro pudesse fazer o país mudar de tática em relação à floresta amazônica. O plano não funcionou.
"A Ferro e Fogo" pode ser lido como um script quase completo dos processos atuais de destruição acelerada da Amazônia. Trocando nomes e datas, alguns trechos poderiam ter sido escritos ontem, mas com uma diferença importante: a velocidade. Jamais as taxas anuais de destruição da mata atlântica foram tão altas.
Já no ano da morte do brasilianista, quando o livro foi concluído, a euforia econômica induzida pelo Plano Real provocou o desmatamento recorde de 29.000 km2 da Amazônia.
Se fosse vivo, ele talvez tivesse comparado essa devastação, perpetrada em apenas um ano, com tudo o que a produção de açúcar derrubou da mata atlântica em 150 anos, entre 1700 e 1850: "meros" 7.500 km2.
Quando os números da mata atlântica ontem e da Amazônia hoje se igualam, é só para demonstrar a regra da destruição acelerada. "O regime de pecuária era notavelmente improdutivo. As pastagens nativas degradadas e as pastagens convertidas permitiam uma população de gado muito escassa, não mais do que uma cabeça a cada 2 ou 5 hectares." O trecho poderia estar falando do sul do Pará, onde a produtividade média do pasto no começo do século 21 é de meia cabeça por hectare. Mas ele se refere a Minas no começo do século 19.
Como na Amazônia, na mata atlântica o principal fator por trás da devastação era o caos fundiário. Sem títulos de propriedade claros, os fazendeiros tinham pouco estímulo para investir no aumento da produtividade. Sentiam-se à vontade para atender ao "chamado da floresta virgem" -a abertura de novas áreas de floresta para aproveitar a matéria orgânica do solo quando as áreas de ocupação mais antigas começavam a dar sinais de esgotamento.
Nas palavras de Dean, citando comentarista do séc. 19: "Os donatários derrubavam e queimavam a floresta, falhavam em melhorar a terra e, quando ficavam sem espaço para plantar, abandonavam as sesmarias a eles vendidas por quase nada e iam explorar outra doação ou reivindicar posse em algum outro pedaço de terra". O mesmo fenômeno acontece na Amazônia hoje, com um nome diferente: garimpagem de nutrientes. Ele é o motor da grilagem.
Crônica também tem sido a incapacidade do governo de fiscalizar as florestas. Mesmo após o estabelecimento do primeiro Código Florestal, em 1934, a guarda florestal prevista jamais foi estabelecida. Após a Segunda Guerra, o governo deixa de ser um desmatador por omissão e passa a ser um dos agentes principais do desmatamento. Dean aponta aqui um conflito que viria a ecoar décadas mais tarde, na guerra do PAC contra a floresta: "Preocupado como o Estado havia se tornado com o desenvolvimento econômico, seu papel como protetor das florestas primárias remanescentes no país se tornara problemático".
Primeiro, com o nacionalismo varguista, que viu nascer uma aliança entre políticos e industriais e empreiteiras que garantia recursos naturais de graça para os últimos e dinheiro de campanha para os primeiros. Depois, com o milagre econômico dos anos 70, que levou o então senador José Sarney à sua declaração ilustre: "Deixe vir a poluição, contanto que as fábricas venham junto".
Nesta fase do saque dos recursos naturais, aponta Dean, o golpe de misericórdia foi a expansão maciça das hidrelétricas pelo Sudeste. Um dos pontos altos do processo, que inundou milhares de quilômetros quadrados de mata, foi a obliteração das Sete Quedas para a construção de Itaipu -o que levou Octávio Marcondes Ferraz, ex-presidente da Eletrobrás, a escrever que o Brasil era "um país de fatos consumados e contribuintes submissos".
Qualquer semelhança com Lula, Dilma Rousseff, Santo Antônio, Jirau e Belo Monte é mera repetição da história. Mas, num país cujo ato de fundação foi cortar uma árvore, como lembra Dean, repetir a história talvez seja apenas cumprir um destino manifesto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário