"Podemos incluir um pequeno acrescento entre parênteses à célebre expressão de Voltaire para
afirmar que a civilização (burguesa) não suprimiu a barbárie e sim que a
aperfeiçoou. O capitalismo não deve ser assumido como uma etapa em
última instância positiva na marcha do progresso humano e sim como uma
desgraça, como um desastre, uma degeneração cuja não existência teria
evitado numerosas tragédias", escreve Jorge Beinstein, economista e professor na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado pelo sítio resistir.info, 07-07-2014.
Eis o artigo.
Da
Líbia à Venezuela, passando pela Síria, México, Ucrânia, Afeganistão ou
Iraque, no que já decorreu da década actual presenciámos o
desdobramento planetário permanente da violência directa ou indirecta
(terciarizada) dos Estados Unidos e dos seus sócios-vassalos da NATO.
Toda a periferia foi convertida no seu mega objectivo militar. A onda
agressiva não se acalma, em alguns casos combina-se com pressões e
negociações mas a experiência indica que o Império não
agride para se posicionar melhor em futuras negociações e sim que
negoceia, pressiona, com o fim de conseguir melhores condições para a
agressão.
Estas
intervenções quando têm "êxito", como na Líbia ou no Iraque, não
concluem com a instauração de regimes coloniais "pacificados",
controlados por estruturas estáveis, como ocorria nas velhas conquistas
periféricas do Ocidente, e sim com espaços caóticos dilacerados por
guerras internas. Trata-se da emergência induzida de
sociedades-em-dissolução, da configuração de desastres sociais como
forma concreta de submetimento, o que coloca a dúvida acerca de se nos
encontramos diante de uma diabólica planificação racional que pretende
"governar o caos", submergir as populações numa espécie de indefensão
absoluta convertendo-as em não-sociedades para assim saquear seus
recursos naturais e/ou anular inimigos ou competidores... ou, ao
contrário, trata-se de um resultado não necessariamente buscado pelos
agressores, expressão do seu fracasso como amos coloniais, da sua alta
capacidade destrutiva associada à sua incapacidade para instaurar uma
ordem colonial ("incapacidade" decorrente da sua decadência económica,
cultural, institucional, militar). Provavelmente encontramo-nos diante
da combinação de ambas as situações.
Também é possível supor que o Império,
na sua decadência, se encontra prisioneiro de um emaranhado de
interesses políticos, financeiros, mafiosos... conformando uma dinâmica
auto-destrutiva imparável que o obriga a desenvolver operações
irracionais se observamos o fenómeno com um certo distanciamento
histórico, mas completamente racionais se reduzimos a observação ao
espaço da razão instrumental directa dos conspiradores, ao seu
micromundo psicológico (a razão da loucura como razão de estado ou
astúcia mafiosa impondo-se à racionalidade no seu sentido mais amplo,
superior).
Ainda
que esses desastres não representem necessariamente acções de verdugos
impiedosos a destruírem paraísos periféricos, o capitalismo é uma
totalidade global e o que aparece como a decadência do centro imperial é
a manifestação decisiva mas parcial de um fenómeno planetário que
inclui a periferia presa na armadilha da sobredeterminação burguesa
universal (decadente) das suas sociedades. A operação de destruição da
Líbia lançando sobre o seu território ondas de mercenários e
bombardeamentos pôde triunfar graças à degradação do regime kadafista; o
golpe neonazi de Fevereiro de 2014 na Ucrâniacapturou
o governo de uma "república" resultante do desastre soviético que a
havia submergido num gigantesco apodrecimento seguido pela instauração
de um capitalismo mafioso; a desestabilização da Venezuela orquestrada
pelos Estados Unidos apoia-se em sectores das classes médias conduzidos
pela velha burguesia local que não foi eliminada depois de quinze anos
de "revolução" ("bolivariana" autoproclamada "socialista") eternamente a
meio caminho... essas elites não foram varridas do cenário ainda que
fossem irritadas, enfurecidas pela ascensão social das classes baixas.
Tudo
isto nos conduz à necessidade de estabelecer o momento da história do
capitalismo em que nos encontramos. Trata-se do bordel sangrento global
prelúdio de uma nova acumulação primitiva berço de um futuro
super-capitalismo ou dos golpes finais, desesperados, de uma civilização
que entrou no ocaso?
Proponho responder a essa pergunta utilizando aquela velha e tão repetida frase de Churchill em plena Segunda Guerra Mundial quando, ao terminar a batalha de El Alamein,
assinalou que esse facto era não "o começo do fim (da guerra) e sim o
fim do começo" de um processo muito mais importante, decisivo.
Encontramo-nos actualmente na presença do fim do começo , vai-se
concluindo a etapa preparatória do declínio ocidental que se prolongou
durante várias décadas e começa a emergir o começo do fim , o
desmoronamento do capitalismo como civilização que, como outras
civilizações em declínio, provavelmente percorrerá uma trajectória
temporal complexa de duração indeterminável de antemão.
Ainda
que não possa deixar de assinalar diferenças decisivas com as
civilizações anteriores, como seu carácter planetário (não limitado a
uma região), a massa de população incluída no processo (actualmente umas
sete mil milhões de pessoas e não apenas umas poucas dezenas ou
centenas de milhões) e o descomunal desenvolvimento das suas forças
produtivas, com capacidade industrial e militar para destruir totalmente
a vida no planeta. O que coloca de maneira radicalmente distinta o
opção que enfrentaram todas as decadências de civilizações: superação ou
afundamento num longo desastre do qual emergia mais adiante uma nova
civilização no espaço anterior ou imposta por uma força externa. Isto
não é a decadência da Babilónia devastada
pelos pântanos difusores de malária gerados pelo seu próprio
desenvolvimento, nem da Roma imperial esmagada pelo parasitismo e a
hipertrofia militar, resultado da sua dinâmica imperialista marchando em
direcção ao abismo enquanto boa parte do resto da humanidade ignorava
esses factos. [1]
Violência e decadência sistémica
O
fenómeno sobredeterminante é a decadência, demonstrada por numerosos
indicadores como o declínio a longo prazo (desde os anos 1970) da taxa
de crescimento económico global activada pelo arrefecimento tendencial
do crescimento dos países centrais e a seguir pelo acompanhamento desta
tendência por um processo de hipertrofia financeira que se articula com
um aparelho parasitário sem precedentes: consumista, militar e
burocrático.
Encontramo-nos diante de sociedades imperiais tão decadentes que já não podem mobilizar militarmente a sua juventude como no século XX,
ainda que a sua capacidade financeira e os seus avanços tecnológicos
lhe permitam contratar mercenários em substituição das forças operativas
tradicionais (a oferta de lumpens proveniente de todos os continentes é
directamente proporcional ao progresso da decadência), utilizar armas
como os drones e outros artefactos mortíferos super refinados que
estabelecem um fosso técnico descomunal entre agressores e agredidos e,
finalmente, esmagar com manipulações mediáticas suas vítimas directas e o
resto do mundo.
Estas
"vantagens" são ao mesmo tempo expressões de poder e de fraqueza, de
capacidade destrutiva mas também de descontrole ideológico das suas
próprias sociedades, da ilegitimidade interna das suas operações, o que
somado à sua deterioração económica impede-os de passar da destruição à
reconstrução colonial dos territórios conquistados.
As transformações burguesas das sociedades europeias haviam gerado, desde os fins do século XVIII,
a possibilidade de integrar o conjunto da população às suas diferentes
aventuras militares. Desse modo, o cidadão-soldado e a guerra de massas
substituíram o mercenário e os exércitos das aristocracias. Os
assassinos a soldo cederam lugar aos assassinos voluntários ou forçados
que entregavam a sua vida não por dinheiro e sim pela defesa da
"pátria", da "liberdade", etc.
Mas a decadência do capitalismo e a sua transformação, depois do aggiornamento burguês da China e do derrube da URSS,
em sistema único (ou seja, em dominação planetária, visivelmente amoral
das elites parasitárias) deitou abaixo os mitos, as legitimações que
permitiam aos estados fabricar causas nobres para enviar à morte o
cidadão comum.
A
perda de legitimidade do aparelho militar ocidental surge como um traço
decisivo da decadência, mas a reprodução imperialista continua e o
exercício da violência contra a periferia retoma a velha tradição dos
exércitos mercenários.
Agora
a propaganda do poder junto às suas populações não tem como objectivo
arrastá-las ao campo de batalha (operação inviável) e sim, antes, obter a
sua aprovação passiva ou diluir a sua recusa diante de aventuras
fisicamente distantes apresentadas como fenómeno virtual, como um
elemento mais do entretenimento brindado pela televisão e outros meios
de comunicação.
O desdobramento bélico foi teorizado pela chamada Guerra de Quarta Geração ,
resultado das reflexões no alto nível militar dos Estados Unidos
posteriores à derrota do Vietname, visualizada como "guerra assimétrica"
onde a força inimiga com baixo nível tecnológico e reduzida potência de
fogo, mas bem integrada à população, pôde derrotar o exército imperial
possuidor de um elevado nível tecnológico e um gigantesco poder de fogo.
A
nova doutrina militar aponta não para a simples destruição da força
militar inimiga e sim, principalmente, para o conjunto da sociedade que a
sustenta. A desintegração social (económica, moral, cultural,
institucional) passa a ser o objectivo procurado e esse processo pode-se
dar ou não com intervenções directas e sim, antes, com combinações
variáveis de intervenções externas (militares, mediáticas, económicas,
etc) e acções de desestabilização interna.
Estabelece-se
assim uma ampla variedade de cenários de agressão. Num extremo podemos
localizar as guerras do Afeganistão e Iraque, numa zona intermédia a
Líbia, a Síria ou a Jugoslávia e, no outro extremo, as chamadas
intervenções suaves ou revoluções coloridas como no Paraguai, Honduras
ou Ucrânia. Todas elas implicam o desenvolvimento intenso de acções
violentas no começo da operação, em algum momento da mesma ou como
resultado da vitória imperialista. Mas estas guerras de configuração
variável não resolvem o problema da dominação colonial da periferia, o
caos instalado entorpece, encarece ou por vezes torna impossíveis os
saqueios sistemáticos.
O atalho da Guerra de Quarta Geração aparece
como o que realmente é: o máximo possível de agressão num contexto de
debilidade estratégica do agressor cujo resultado é não só a caotização
periférica como também a degradação interna. As operações mafiosas em
direcção ao exterior acabam por consolidar práticas mafiosas dentro do
aparelho dominante do Império, onde se propagam as camarilhas
parasitárias, as tendências irracionais, as loucuras elitistas, as
rupturas das regras de jogo institucionais.
Começo do fim: o mundo depois de 2008-2013
O
sexénio 2008-2013 marca a transição entre o declínio relativamente
suave e controlado do sistema, iniciado no princípio dos anos 1970, e a
sua degradação geral de que estamos a presenciar os primeiros passos.
A
crise desencadeada entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970
não foi superada como as anteriores, através de uma grande onda
depressiva destruidora de empregos e empresas que, reduzindo salários e
concentrando a produção e a procura solvente, disparava um novo ciclo
ascendente da economia. A era das "crises cíclicas", descritas por Marx, havia concluído. Ainda que Marx explicasse
que essas crises recorrentes iriam acumulando desordem no sistema – até
que as forças entrópicas adquirissem uma dimensão tal que já nenhuma
reconstrução capitalista seria possível. Ficava assim prognosticada a
crise geral do capitalismo, o esquema teórico decorrente da lógica da
sua dinâmica de acumulação O que de modo algum podia ser prognosticado
era o seu desenvolvimento histórico concreto, seus tempos, seus
protagonistas de carne e osso, os atalhos e inovações sociais que
permitiram adiar ou precipitar o desenlace.
A avaliação prospectiva de Marx era
um cenário muito geral que dava cabimento a uma ampla gama de futuros
possíveis. Não se tratava de uma profecia apocalíptica na qual se
estabelece uma data ou como calculá-la, descrições precisas de actores e
coreografia, etc. Mas esse esquema teórico permitia a Marx e Engels explicar,
por exemplo, que "dado um certo nível de desenvolvimento das forças
produtiva, surgem forças de produção e de meios de produção tais que nas
condições existentes provocam catástrofes, já não são mais forças de
produção e sim e destruição" [2] , o que abria a reflexão acerca do carácter auto-destrutivo da civilização burguesa na sua etapa decadente mais avançada.
E
isso começou a ser inegável em torno de 2008-2013, ainda que muito
antes desse período fossem aparecendo sinais de alerta a respeito –
quase sempre ignorados pelos grandes meios de comunicação e pelas
ciências sociais. Quando se referiam a possíveis desastres ambientais,
sanitários ou políticos atribuíam-nos a manejos irracionais corrigíveis
no interior do sistema. A isso apegaram-se "a partir da esquerda" alguns
adoradores masoquistas do capitalismo, propondo uma espécie de
eternização dos seus ciclos, tentando destacar na crise em curso os
sinais da próxima recuperação do sistema. Mas esses sinais eram puras
fantasias ou então ladainhas conservadoras baseadas em que "sempre" o
capitalismo havia conseguido superar suas crises, naturalmente à custa
dos trabalhadores – o que normalmente entristecia o auditório (e não
muito o orador).
Dentre
os variados factores da decadência destacam-se dois que são decisivos: a
degradação (e hipertrofia) financeira e a degradação (e hipertrofia)
militar.
A partir de 1990 (aproximadamente), enquanto o Produto Mundial Bruto vinha
decrescendo suavemente em progressão aritmética (desde os anos 1970), a
massa financeira começou a crescer em progressão geométrica. Os
produtos financeiros derivados, sua espinha dorsal, que nos fins dos
anos 1990 representavam umas duas vezes o PBM, em 2008 passaram a representar umas 12 vezes o PBM – mas a partir daí a expansão estancou e tendeu a decrescer pouco a pouco.
Durante a sua ascensão a especulação financeira foi a muleta parasitária que permitiu aos consumidores, empresas e estados do Primeiro Mundo continuarem
a gastar e investir apesar de os rendimentos marginais da avalanche
financeira serem decrescentes em termos de crescimento do produto bruto
dos países centrais. Cada vez era precisa mais droga financeira para
obter cada vez menos expansão económica – até que finalmente, em 2008, o
mecanismo quebrou: o peso financeiro tornou-se insustentável e
desencadeou-se um rodopio de auxílios estatais ao sistema financeiro a
fim de impedir a sua derrocada.
Mas
estes auxílios não reactivavam a economia. Apenas travavam a derrocada
financeira, fazendo aumentar as dívidas públicas até o ponto de o estado
norte-americano ter estado duas vezes à beira do incumprimento
(default), enquanto as dívidas públicas mais as privadas do Japão
chegaram em 2013 a 520% do PIB, a 510% na Grã-Bretanha, etc. A partir daí, os auxílios esgotaram-se e o Primeiro Mundo entrou
no que, no melhor dos casos para ele, poderia ser descrito como um
longo período de estancamento, recessões e crescimentos anémicos que não
devem ser pensados como um planalto de arrefecimento estável da
produção, do consumo e do emprego e sim como um tobogã descendente.
O
crescimento zero ou o declínio, ainda que suave, significam o aumento
tendencial do desemprego e em consequência a entrada num complexo
fenómeno de desintegração social.
Por sua vez, a militarização dos Estados Unidos não terminou com o fim da guerra fria.
Após um breve estancamento em fins dos anos 1990 recomeçou a expansão
das despesas militares. Foi de tal modo que em 2012 o seu volume real
(somando todas as verbas com finalidade militar do estado, não apenas as
do Departamento da Defesa) chegou a um número equivalente a cerca de 9% do Produto Interno Bruto [3] .
Aquilo que poderíamos considerar como área militar e de segurança
deslizou do passado "clássico", povoado por militares e agentes
profissionais de tipo tradicional adstritos directamente à administração
pública, para uma nova etapa com participação crescente de mercenários,
estruturas privadas contratadas pelo estado e uma multidão de
organizações públicas e privadas informais oscilando entre a legalidade e
a ilegalidade, misturadas com negócios clandestinos (drogas,
prostituição, tráfico de armas, etc). Guerra de Quarta Geração,
lumpen-burguesia financeira e lumpen-militarismo converteram-se no
núcleo duro ideológico físico de uma elite imperial degradada que alguns
autores assinalam como lumpen-imperialista [4] .
Mas
assim como a mega bolha financeira primeiro escorou o funcionamento do
sistema e a seguir converteu-se num salva-vidas de chumbo, a degeneração
militarista-mafiosa e sua doutrina nova surgiram como a tábua de
salvação de estruturas militares e de inteligência ineficazes diante de
uma periferia aparentemente pronta a ser devorada mas que lhes escapava
das mãos. Contudo, essas esperanças eram ilusórias. A única coisa que
conseguiram foi destruir países, fracassar na tentativa ou ambas as
coisas ao mesmo tempo, acumulando despesas e défices fiscais: a
criminalidade converge com a estupidez.
A
"transição 2008-2013" significou uma mudança fundamental nas formas da
guerra (sua degradação radical) que deixou a descoberto o carácter da
mutação em curso do conjunto do capitalismo. Em meados dos anos 1950 e
fazendo referência à então recente prática bélica nazi, Johan Huizinga assinalava
que historicamente a guerra sempre havia feito parte das civilizações
ou culturas "uma vez que uma comunidade (em guerra) reconhecia a outra
(contra a qual fazia a guerra) como humana... e separava claramente e de
maneira expressa a guerra da paz, por um lado, e da violência
criminosa, por outro. A teoria da guerra total – destacava o historiador
– renunciou ao último resto lúdico da guerra (ou seja, a toda regra de
jogo) e com isso à cultura, ao direito e à humanidade em geral" [5] .
No
meu entender, a ruptura hitleriana em relação à prática e à teoria da
guerra, ou seja, a "guerra total" e seus genocídios, foi uma
antecipação, um primeiro ensaio em plena crise capitalista do que
actualmente surge como Guerra de Quarta Geração.
No primeiro caso tratou-se de uma monstruosidade precoce, pioneirismo
"alemão" mas com antecedentes na cultura mais reaccionária dos Estados
Unidos. Autores como Domenico Losurdoestabeleceram de maneira rigorosa as evidentes raízes ideológicas estado-unidenses do nazismo [6] .
Esse desastre exprimia a doença de uma civilização que ainda dispunha
de reservas sistémicas (morais, produtivas, institucionais, etc) para
recompor-se e que ainda não havia sofrido uma metástase geral. O tumor
hitleriano foi extirpado parcialmente e o mal pôde sobreviver
ocultando-se nas sombras à espera de uma nova oportunidade. Nos
julgamentos de Nuremberga,
os crimes de guerra (a violação das regras do jogo da guerra moderna)
foram condenados selectivamente da maneira difusamente contida.
Em fins dos anos 1930 Hermann Rauschning escreveu
uma obra essencial para entender o funcionamento do fenómeno: "La
revolución del nihilismo". O autor acertou ao assinalar que "a essência
da dominação nazi é o niilismo", a negação simultaneamente criminosa e
suicida da realidade humana, mas equivocou-se completamente quando
prognosticou que "esse fanatismo produzido e difundido pela maquinaria
do poder é tão vazio, tão artificial e inautêntico que todo esse
gigantesco aparelho poderia ruir de um dia para o outro por causa de um
só acontecimento sem deixar qualquer rastro de vida autónoma" [7] . Rauschningnão
soube (ou não quis) aprofundar o bisturi até o fundo, se o fizesse
teria sido obrigado a colocar no banco dos réus o conservadorismo
burguês no seu conjunto e, a partir daí, os aspectos destrutivos (e
auto-destrutivos) da civilização ocidental à qual se orgulhava de
pertencer.
Agora,
quando vemos o cancro fascista propagar-se tranquilamente por toda a
Europa ao ritmo da crise, desde o avanço irresistível da Frente Nacional em
França até a vitória neonazi na Ucrânia, passando pela Holanda,
Bélgica, Croácia, Hungria, os países bálticos, Grécia, etc, não podemos
deixar de constatar o enraizamento profundo do mesmo não só na tragédia
dos anos 1920-1930-1950 como também em histórias muito mais antigas, em
fanatismos religiosos, em genocídios coloniais e outras práticas sociais
de grande crueldade (o nazismo clássico não era superficial nem
inautêntico, fundia suas raízes na longa trajectória criminal do
Ocidente).
Mas
o mais significativo e terrível foi a reinstalação sem maiores
escândalos da doutrina hitleriana da guerra total, rebaptizada Guerra de Quarta Geração e
por vezes adocicada como "golpes gentis" ou "suaves" ou sob a delirante
apresentação de guerras ou bombardeamentos "humanitários". Agora já não
se trata de uma experiência pioneira e em certo sentido menos
surpreendente, "anormal", e sim de um vale-tudo aceite pelo conjunto das
elites imperialistas. O facto de que a forma capitalista de fazer a
guerra haja sofrido tal transformação está estreitamente vinculado à
(faz parte da) transformação do capitalismo num sistema destruidor de
forças produtivas estendendo-se ao contexto ambiental com suas terras,
mares, montanhas, animais, etc a apontarem para a aniquilação de todo o
património histórico da humanidade, de toda a acumulação de
civilizações.
Retorno à origem?
Poderíamos estabelecer paralelos entre a conjuntura actual e as origens da modernidade.Robert Kurz pôs em evidência as origens militares do capitalismo. Por volta do século XVI, segundo Kurz,
"não foi a força produtiva e sim, pelo contrário, uma contundente força
destrutiva que abriu o caminho à modernização, a saber, a invenção das
armas de fogo. A produção e mobilização dos novos sistemas de armas não
eram possíveis no plano de estruturas locais e descentralizadas que até
então haviam marcado a reprodução social, requeriam sim, em diversos
planos, uma organização completamente nova da sociedade. As armas de
fogo, sobretudo os grandes canhões, já não podiam ser produzidas em
pequenas oficinas, como as pré-modernas armas de ponta e gume. Por isso
desenvolveu-se uma indústria de armamentos específica, que produzia
canhões e mosquetes em grandes fábricas" [8] .
Um bom exemplo disso é a presença em pleno século XVI do célebre Arsenal de Veneza ,
fábrica militar muito admirada na sua época, provavelmente a primeira
indústria moderna, que inspirou muitos empreendimentos militares e civis
posteriores e cuja organização produtiva baseada numa divisão eficaz de
tarefas esboçava o modelo que vários séculos depois, no início da
revolução industrial, foi descrito por Adam Smith.
Foi
efectivamente em torno dos desenvolvimentos militares que se foram
gerando redes comerciais e financeiras que permitiam aos príncipes e
demais senhores da guerra lançarem suas aventuras.
As
mesmas estavam destinadas às lutas intestinas das aristocracias e à
repressão das massas camponesas. Contudo, o seu objectivo principal era a
pilhagem da periferia, o que disparou decisivamente e alimentou durante
séculos a emergência e consolidação do capitalismo, seus mercados
centrais, sua ciência, sua arte e sua expansão industrial e tecnológica
(existe, por exemplo, uma abundante literatura quanto à incidência da
inundação de ouro e prata proveniente das colónias americanas na
transformação burguesa da Europa)[9] .
Foi
a aliança militar-parasitária, entremeada de mercenários, aristocracia
militarizada, comerciantes-bandidos, usurários de alto nível, etc que
constituiu a plataforma de lançamento da conquista da periferia,
permitindo que uma relativamente pequena economia guerreira realizasse
uma pilhagem desmesurada em relação à sua dimensão inicial. No século
XVI o produto bruto do Ocidente apenas superava os 10% do que poderíamos
considerar como produto bruto mundial, contra 23%-24% para a China ou
27%-28% para a Índia [10] .
Houve uma primeira tentativa: as Cruzadas,
quando aproximadamente nos séculos XII e XIII os ocidentais lançaram
uma sucessão de invasões ao rico Oriente Próximo, ocupando parte do seu
território [11] .
Mas
essa colonização fracassou apesar da enorme crueldade aplicada. Os
povos invadidos dispunham de uma capacidade militar que lhes permitiu
expulsar o invasor por meio do que poderíamos chamar guerra de longa
duração. A disparidade militar entre invasores e invadidos não foi
suficientemente grande para garantir a derrota definitiva das vítimas.
A
situação foi-se alterando a partir do século XV e experimentou uma
grande viragem no século XVI, quando o Ocidente adquiriu uma
superioridade técnico-militar decisiva sobre o resto do mundo.
A batalha de Lepanto (1571) provou a superioridade técnica ocidental sobre o ImpérioOtomano. A eficácia do Arsenal de Veneza esteve por trás dessa vitória [12] . Meio século antes os espanhóis haviam utilizado sua esmagadora superioridade técnica para arrasar oImpério Asteca, que não conhecia a pólvora nem as armas metálicas.
Essa
superioridade militar do Ocidente não foi produto do acaso, apoiou-se
no vertiginoso desenvolvimento da sua ciência militar. Durante os
séculos XV e XVI, a engenharia militar esteve no centro no Renascimento europeu,
herdava a engenharia militar medieval que por sua vez mantinha vínculos
com a ciência militar da antiguidade greco-romana. Bertrand Gillerelata que "quando em 1328 Felipe V de Valois concebeu o projecto de partir para as cruzadas, Guy de Vigevano converteu-se
no seu conselheiro militar e escreveu para o rei um tratado sobre
máquinas de guerra ... que pode ser considerado como um dos principais
antecedentes da ciência militar posterior". Gille destaca
que "certas ilustrações do tratado apresentam analogias surpreendentes
com algumas imagens de antigos manuscritos gregos e romanos" que, junto
com outros desenvolvimentos medievais, demonstram segundo o autor uma
clara continuidade científico-técnica no tema militar desde a Grécia e
Roma até chegar aos séculos XV e XVI [13] .
A continuidade histórica da "procura" (o militarismo) para essa ciência remonta primeiro àIdade Média europeia.
Uma das suas características principais foi o sobredimensionamento dos
seus dispositivos bélicos, a excessiva proliferação de organizações
militares conduzidas por príncipes aspirantes a imperadores e titulares
de "impérios" como Carlos Magno,
passando por senhores da guerra de toda dimensão, bandos de
mercenários, etc. Militarismo feudal entrelaçado historicamente com a Antiguidade europeia guerreira e imperialista, constatemos só que, como observa James O'Donnell em relação ao império romano já em decadência: "depois de chegar ao trono no ano 284 o imperador Dioclecianoe
seus sucessores puderam restaurar as fronteiras romanas e a ordem
romana multiplicando por cinco ou dez o número de soldados e
funcionários. Diocleciano aumentou o número de soldados para 400 mil e mais tarde chegou a alcançar os 650 mil" [14] .
No seu livro "Matança e cultura" [15] Victor Hanson desenvolve a longa trajectória belicista do Ocidente e, ao referir-se às suas vitórias militares do século XVI, assinala que "o dinamismo militar europeu era um contínuo da Antiguidade clássica, não uma consequência casual da idade da pólvora e do descobrimento do Novo Mundo...
desde a Grécia até o presente... as afinidades demonstradas pelas
sociedades ocidentais na sua forma de fazer a guerra tornam-se
assombrosamente duradouras" e acrescenta a seguir: "as falanges
macedónias, tal como o exército de Cortes, a frota cristã que combateu em Lepanto e a companhia de fuzileiros britânicos que defendeu Rorque's Drift (1879,
África, as tropas coloniais foram derrotadas pelos zulus) dispunham de
um armamento muito superior ao dos seus adversários".
Não
se trata só de superioridade técnica e sim da extrema crueldade na sua
"forma de fazer a guerra", o que leva o autor (apesar da sua admiração
para com o Ocidente) a assinalar que: "alguns estudiosos equiparam Alexandre Magno a César... ou a Napoleão,
com os quais compartilhava sua vontade de ferro, seu génio militar
inato e a busca de um império mais poderoso do que os recursos naturais
da sua terra nativa permitia. Alexandre, com efeito, mantém afinidades com eles, mas com ninguém se parece mais que com Adolf Hitler".
O paralelo inevitável entre as falanges gregas, as legiões romanas, os
cruzados, as tropas coloniais espanholas, inglesas, francesas e os
exércitos hitlerianos estabelece o fio condutor "ocidental" de uma longa
sucessão de guerras, conquistas e matanças.
A
acumulação primitiva do capitalismo baseou-se, com êxito, no saqueio
desmesurado da periferia e com recursos naturais gigantescos,
relativamente "infinitos" dado o nível técnico e a capacidade de rapina
dos imperialistas europeus daquele tempo. Mas essa desmesura é
impossível actualmente, o planeta é demasiado pequeno para as
necessidades do que seria um novo processo de acumulação capaz de
potenciar o parasitismo ocidental até gerar uma espécie de
super-capitalismo global.
As
potências centrais são suficientemente grandes para destruir o planeta
(o que significaria sua auto-destruição) e é por isso, por causa do seu
gigantismo, que não se podem salvar, iniciar um novo ciclo ascendente
devorando recursos humanos e naturais, ainda que para sobreviver como
império precisem alimentar-se das suas vítimas. Isto assinala uma
diferença qualitativa essencial com o que ocorreu há cinco séculos.
Agora a violência imperialista não é a de um monstro vigoroso, na sua
infância ou juventude, e sim a de um monstro velho e obeso.
Ocidente
É
preciso associar conceitos artificialmente dissociados como
"civilização ocidental", "civilização burguesa", "Império" (ocidental) e
"capitalismo". O capitalismo surge como um fenómeno histórico com
raízes geográficas ocidentais bem delimitadas que carregavam uma pesada
herança cultural específica. O Ocidente emergiu
como um empreendimento imperialista colectivo, agrupando vários
estados, expandindo-os globalmente e ao mesmo tempo envolvidos em
ferozes disputas intestinas. A unificação chegou, após um longo percurso
de muitos séculos, no final da Segunda Guerra Mundial sob o comando de uma super-potência não europeia: os Estados Unidos.
O
irromper da guerra de 1914, mas especialmente a ruptura russa de 1917,
assinalou o início do declínio ocidental – ainda que a tendência tenha
parecido reverter-se nos anos 1990 com o derrube da URSS e
em certo sentido, antes, a partir da reconversão capitalista da China.
Mas não foi assim, da desintegração soviética após uma década de
desastres surgiu a Rússia como potência militar-energética cada vez mais
autónoma ainda que mantendo laços comerciais e financeiros estreitos
com o Ocidente e
do aburguesamente chinês não nasceu um país subdesenvolvido dócil aos
interesses norte-americanos como a Índia ou o México e sim uma potência
periférica também com importantes margens de autonomia.
A
deterioração geral da dominação ocidental, da sua hierarquia
imperialista, ou seja, do capitalismo como sistema mundial, engendrou o
fenómeno da despolarização, do descontrole periférico. A China e a
Rússia mas também o Irão, e os jogos mais ou menos independentes de
alguns estados "progressistas" da América Latina ilustram
o processo. Os bárbaros do século XXI organizam-se sem tutela romana ou
a negociarem com a Roma moderna já não como simples vassalos, mas essa
Roma não pode reproduzir-se como tal, seu parasitismo não pode
sobreviver sem os tributos crescentes dos seus súbditos periféricos,
necessita cada vez mais sangue das suas vítimas (petróleo barato, lítio,
ouro, cobre, salários miseráveis, maiores vantagens comerciais,
mega-transferências financeiras, etc) enquanto as vítimas vão
encontrando caminhos para reduzir a pilhagem graças precisamente ao
enfraquecimento do parasita (o que não impede em certos casos que
bárbaros pilhem-se entre si).
Algumas precisões podem nos ajudar a entender melhor o que está a ocorrer.
Em
primeiro lugar, o facto de que a consolidação dos estados burgueses
centrais tem estado (e continua a estar) estreitamente associada à
expansão e consolidação colonial, à extracção maciça de riquezas da
periferia, permitiu e continua a permitir a integração das sociedades
centrais e a permanência do seu guardião estatal-militar. O fim ou o
enfraquecimento grave da referida exploração assinalaria o eclipse
desses estados e das suas bases sociais.
Em
segundo lugar, a comprovação de que o capitalismo é um sistema baseado
num encadeamento de hierarquias fortemente autoritárias, desde a empresa
em ascensão até chegar ao centro do poder mundial através de uma
complexa articulação de estados, grupos económicos, instituições
internacionais, meios de comunicação, etc. A hierarquia imperialista do
capitalismo é inerente ao mesmo, é a sua forma histórica, concreta, de
reprodução. Nunca foi uma articulação pacífica e sim um conjunto
violento e instável onde a autoridade é ganha e conservada com guerra,
pressões, armadilhas, etc. Mas até ao fim da Segunda Guerra Mundial essa
hierarquia jamais pôde estruturar-se em torno de um único centro
estatal, super-imperialista, de poder. Desde o início da modernização e
sua sombra colonial encontramo-nos perante sucessivas rivalidades e
guerras inter-imperialistas.
A
fantasia da globalização regida por uma só potência mundial, apesar de
insinuar concretizar-se nos longínquos anos 1990, foi-se desvanecendo na
década seguinte. A submissão da Europa e do Japão à chefia
estado-unidense continua a basear-se na degradação de ambos os sócios
menores; factos recentes como os da Líbia, Síria e Ucrânia são bons
exemplos disso. Mas acontece que o chefe imperial também se degrada, o
que introduz a incerteza quanto ao futuro dessa convergência central.
Pelo seu lado, a periferia vai-se descontrolando precisamente quando
mais necessário é o seu controle (super-exploração) para a reprodução do
parasita. Em consequência o império enfurece-se, desespera-se, resgata
toda a sua memória racista não só para expulsar ou reduzir à escravidão
os intrusos periféricos que se instalam nos territórios imperiais como
também para converter seus países de origem em zonas de caça livre.
Esta
última etapa ilumina toda a história anterior do sistema, destrói seus
mitos decisivos, deixa a descoberto sua falsidade essencial. Sobretudo o
mito do capitalismo como progresso, como etapa superior na sucessão de
civilizações, ou seja, como a mais potente negação da barbárie.
Boa
parte das ideologias anti-capitalistas dos séculos XIX e XX
apresentavam a superação do capitalismo como uma espécie de continuidade
a um nível superior, de negação inicial, revolucionária, apoiada nos
êxitos "positivos" do velho mundo (o projecto de ruptura albergava
condicionamentos culturais que asseguravam a reprodução de aspectos
decisivos da civilização burguesa).
Mas
a degeneração em curso desse sistema retira o véu ideológico e mostra o
seu verdadeiro rosto. Os feitos aparentemente positivos da sua
tecnologia (em que o capítulo militar é decisivo) surgem inscritos num
contexto de conquistas coloniais com centenas de milhões de
assassinatos, com liquidações de criações culturais, qualificadas com
desprezo como atraso ou subdesenvolvimento, depredando até à extinção
uma ampla variedade de recursos naturais.
Podemos incluir um pequeno acrescento entre parênteses à célebre expressão de Voltairepara
afirmar que a civilização (burguesa) não suprimiu a barbárie e sim que a
aperfeiçoou. O capitalismo não deve ser assumido como uma etapa em
última instância positiva na marcha do progresso humano e sim como uma
desgraça, como um desastre, uma degeneração cuja não existência teria
evitado numerosas tragédias. O balanço histórico da sua evolução é
globalmente negativo, muitos dos seus progressos científicos e
tecnológicos teriam sido obtidos seguindo provavelmente outros ritmos e
caminhos mas em contextos sociais menos terríveis.
Hegel, nas suas lições de filosofia da história, estabelecia que o desenvolvimento da liberdade, componente da marcha da Civilização entendida como encadeamento de civilizações, como a evolução do progresso universal, nascia penosamente no Oriente (ou
seja, na periferia) para realizar-se integralmente no Ocidente com a
vitória mundial da sua civilização, da modernidade burguesa [16] .
A soberba eurocêntrica impedia-o de perceber que a liberdade periférica
(embrionária, em desenvolvimento) havia sido arrasada, abortada,
liquidada por um Ocidente parasitário
e depredador concretizando a maior matança da história humana e sua
civilização sanguinária só podia afirmar-se repetidamente por meio da
força bruta, dos seus dispositivos militares contra os povos oprimidos
da periferia (e quando foi necessário também contra suas próprias
populações como o demonstrou o fascismo europeu do século XX, agora em
pleno renascimento).
A
subestimação, o desprezo ocidental, sua visão desumanizante das
culturas periféricas, constitui uma peça chave da sua ideologia imperial
estruturada durante muitos séculos de saqueio. A animalização da imagem
do homem do "resto do mundo" fez parte da construção psicológica que
facilitou ao colonizador do Ocidente a
realização dos grandes genocídios legitimados como obra civilizadora. A
ignorância ou desprezo das riquezas culturais da periferia, da
criatividade das suas bases sociais, do potencial de autonomia das suas
comunidades camponesas não só armadilhou o cérebros das elites
ocidentais como também uma boa parte dos seus inimigos internos. Foi
assim que Gramsci pôde
chegar a afirmar que na velha periferia pré capitalista "o Estado era
tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa" ao passo que no Ocidente existia uma robusta sociedade civil [17] o
que não permite explicar como fizeram, por exemplo, as populações
andinas da América para sobreviver culturalmente ao genocídio inicial da
conquista seguido por mais de cinco séculos de opressão e pilhagem
ocidental, ou outras proezas culturais dos periféricos da Ásia e da
África.
É
necessário entender que o declínio em curso do mundo ocidental se
converte em degeneração do seu tecido ideológico e económico planetário,
ou seja, do capitalismo como totalidade universal. Desde os anos 1970
sucederam-se as ilusões quanto às emergências capitalistas não
ocidentais, desde o milagre japonês, passando pelos tigres e dragões daÁsia (Coreia
do Sul, Formosa, etc) até chegar à China. Em todos esses casos era
evidente que as expansões industriais exportadoras que lideravam os
desenvolvimentos "milagrosos" se apoiavam nas necessidades dos mercados
ocidentais ou de mercados periféricos fortemente dependentes dessas
procuras. Em consequência, a deterioração dos referidos mercado golpeia
os capitalismos não ocidentais. Além disso, factos como a hipertrofia
globalizada das redes financeiras estabeleciam um só espaço mundial
estreitamente intercomunicado. Portanto, a impossível desfinanciarização
do capitalismo constitui um bloqueio comum do qual não podem escapar
nem o centro nem a periferia. Esta última, além disso, quando embarca na
prosperidade burguesa fica submetida ao modelo consumista, às pautas
ideológicas ocidentais que têm efeito destrutivo devastador (familiar,
comunitário, ambiental).
Em meados de 2008, em plena explosão financeira, Richard Haass , presidente do Council on Foreign Relations dos
Estados Unidos, publicou um artigo onde lançava o sinal de alarme: a
unipolaridade estava condenada à morte e não tendia a ser substituída
pela multipolaridade, estava começando a emergir um mundo não polarizado
que o autor carregava de imagens caóticas [18] .
Haass percebia que o fim da hierarquia imperialista, unipolar desde
1991 e multipolar em toda a história anterior do sistema (incluído o
período de auge do império britânico) podia chegar a ser uma espécie de
"fim do mundo", de ruir da "civilização", ou seja, de desarticulação do
capitalismo como cultura universal e naturalmente adiantava algumas
medidas correctivas que permitiriam atenuar o suposto desastre.
Haass tinha razão quando advertia que a não polaridade albergava o fantasma do fim da "civilização" (burguesa). George W. Bush e depois Barack Obama tentaram
impedir esse futuro introduzindo correctivos militares que acabaram por
agravar a enfermidade do império propagando o caos onde lhes foi
possível.
Por
sua vez, potências periféricas como a Rússia e a China não estão em
condições de reordenar, no sentido burguês do termo, a desordem causada
pela decadência ocidental através do desenvolvimento de novos espaços
capitalistas hierarquizado em substituição dos velhos espaços
agonizantes. Não são forças negentrópicas do sistema e sim zonas
capitalistas resistentes submersas, também elas, na decadência global.
Tentam travar as bofetadas do império contra os seus interesses, mas ao
resistir, revidar ou avançar sobre os flancos débeis do adversário
contribuem para a "desordem" geral, bloqueiam as tentativas de
recomposição do domínio ocidental do mundo e desse modo agravam a
degeneração global do capitalismo.
A insurgência global como necessidade histórica
As
elites dominantes da China e da Rússia, também as do Brasil, Índia ou
Irão, acreditam na possibilidade de desenvolverem seus capitalismos
nacionais, fazem o que podem para não afundarem no desastre ao qual o
Ocidente as quer condenar. Mas o carácter global, profundamente
inter-relacionado do sistema de que fazem parte, condiciona suas
astúcias.
Todos
esses tropeções e empurrões entre o centro e a periferia contribuem
para criar um panorama global rarefeito que a qualquer momento pode
redundar em guerras e situações pré bélicas a nível regional, ameaçando
por vezes transformar-se em confrontações mundiais como ocorreu em 2013
devido à situação síria e em 2014 com a ucraniana.
Karl Polanyi descrevia
a longa "pax europea" (salpicada de conflictos menores) que vigorou
desde o fim das guerras napoleónicas até 1914, resultado segundo ele do
papel harmonizador, apaziguador de conflitos, cumprido por alguns
factores ocultos dentre os quais destacava a "haute finance", os
círculos financeiros europeus mais elevados que, pondo-se acima dos
interesses políticos e nacionais, amarravam compromissos, negócios
atravessando países e consequentemente acalmando as disputas
inter-imperialistas [19] .
Mas Polanyi só
olhava a superfície do fenómeno. Na realidade os negócios da "haute
finance" fundavam-se na vertiginosa acumulação de capitais proveniente
principalmente da rapina imperialista do mundo, um de cujos pilares
essenciais era a acção dos estados ocidentais, o desenvolvimento dos
seus aparelhos militares (fonte decisiva de negócios) e da consequentes
megalomanias "patrióticas" das respectivas burguesias nacionais rivais.Polanyi assinala que "os Rothschild não
estavam sujeitos a um governo; como uma família, incorporavam o
princípio abstracto do internacionalismo; sua lealdade era entregue a
uma firma, cujo crédito se havia convertido na única conexão
supranacional entre o governo político e o esforço industrial numa
economia mundial que crescia com rapidez" [20] . Na realidade o papel "pacificador" dos Rothschild fazia
parte de um jogo duplo perigoso mas muito rentável. Por um lado
excitavam as bestas alentando suas ambições (e de imediato
entregavam-lhes a conta) e por outro acalmavam-nos quando ameaçavam
fazer um desastre. Mas essa sucessão de excitantes e calmantes aplicadas
a bestas que absorviam drogas cada vez mais fortes terminou como tinha
que terminar: com uma gigantesca explosão (Agosto de 1914).
Transferindo-nos
para o mundo actual é necessário afirmar que a globalização dos
negócios não estabelece um manto transnacional pacificador e sim
exactamente o contrário, sobretudo nos centros globais de poder
político-militar incentivando megalomanias criminosas.
É
no interior do sistema global decadente que se desenvolvem as ilusões,
esperanças e rebeldias da periferia. A ilusão de assegurar capitalismos
autónomos sob as bandeiras da restauração da "identidade russa" ou do
"socialismo de mercado" chinês ou de um socialismo a meias como na
Venezuela ou de uma sociedade baseada no islão como no Irão ou de
capitalismos "progressistas" como no Brasil, Argentina ou Equador. Mas
também a resistência ao invasor no Afeganistão ou na Líbia até chegar à
guerra prolongada pelo socialismo das FARC na
Colômbia, aos protestos sociais na Europa, etc. Esse grande
quebra-cabeças não constitui uma insurgência global nem muito menos um
movimento em vias de articulação e sim um processo sumamente heterogéneo
onde se apresentam erupções efémeras, ciclos de longa duração,
tentativas de desenvolvimento capitalista relativamente autónomo,
rebeliões anti-capitalistas, etc que podem ser vistos de diferentes
maneiras. Uma delas é a de uma grande turbulência periférica que se vai
expandindo em meio a contradições de todo tipo a anunciarem ao mesmo
tempo cenários futuros de insurgência popular contra o sistema e o seu
contrário: o afundamento em degradações prolongadas.
É
nesse espaço complexo no qual as potências ocidentais tentam arrasar,
isolar, demonizar, triturar, que se reproduz um gigantesco proletariado
universal, vários milhares de milhões de camponeses, operários,
marginais, comerciantes miseráveis, etc condenados à morte ou à
sobrevivência infra-humana pela dinâmica decadente do sistema.
Constituem uma realidade plural que se opõe naturalmente à
homogeneização escravizante do Ocidente tentando preservar e/ou construir identidades, espaços de liberdade, sobreviver, viver dignamente.
Os
próximos anos dirão se a partir dessa massa proletária irrompe a
insurgência global que desdobrando-se na sua pluralidade irá convergindo
na segunda ofensiva contra o império. A primeira ocorreu no século XX a
partir da Revolução Russa,
convertendo-se numa rebelião global que se prolongou durante cerca de
seis décadas abarcando desde a China até Cuba, passando pela Argélia,
Vietname, Nicarágua.
Há
meio século estavam na moda na Europa ocidental autores que denunciavam
a perda de hegemonia da região, superada por superpotências
extra-regionais como a URSS, os Estados Unidos ou o Japão. Um desses textos, de grande êxito editorial, foi "El rapto de Europa" [21] de Luis Diez del Corral.
Sua tese era que nações extra europeias estavam a roubar à Europa, ou
já haviam roubado, sua maior criação cultural: a modernidade.
Deslumbrado pelo mito grego, o autor não reflectiu o suficiente acerca do seu significado histórico: Zeus rapta Europa, princesa do Oriente Próximo enganada
pelo deus que mimetizado como touro a induz a montá-lo, do que se
aproveita para sequestrá-la e levá-la à sua ilha. A origem do Ocidente histórico
é o engano e o roubo. Seu próprio nome, Europa, é o de troféu, produto
do roubo. Em última instância, se o mundo não ocidental se apropriasse
da modernidade ocidental não estaria a fazer outra coisa senão recuperar
o capital mais os juros das riquezas que o ladrão lhe havia sacado
durante séculos: ouro, prata, petróleo, cereais, centenas de milhões de
vidas humanas. Na realidade, o planeta hoje está completamente
modernizado. Para uns (o centro do mundo) isso significa desenvolvimento
capitalista, poder, privilégios, ao passo que para o resto do mundo
quer dizer subdesenvolvimento capitalista, miséria, frustrações.
De
qualquer forma, a "apropriação periférica da modernidade" é um anzol
envenenado, é a ilusão de reproduzir os supostos êxitos culturais da
civilização burguesa de modo independente ou a enfrentar o Ocidente.
Quando o escravo imita o amo ou pretende regenerar sua comunidade
adoptado-adaptando seus fundamentos ideológicos, o que consegue é
bloquear a criatividade revolucionária da sua base social. Como o
demonstra a experiência histórica do século XX [22] , quando acredita ter encontrado o fio de Ariadneque
lhe permitirá sair do labirinto, aferra-se ao mesmo e marcha
triunfalmente rumo à saída... Na realidade agarrou a cauda do diabo o
qual, astutamente, o conduz rumo a paragens ainda mais sinistras.
Mas
a modernidade entrou no estado de decrepitude e a libertação das suas
vítimas centrais e periféricas só pode ser alcançada por meio da negação
absoluta do capitalismo, sua completa destruição, para a partir das
suas cinzas construir um mundo novo. Nada autoriza a supor que essa
proeza – a maior da história humana – seja inevitável. A regeneração pós
capitalista é historicamente necessária ainda que não constitua um
fenómeno inexorável imposto por supostas leis da história. Trata-se de
uma tarefa que exige um gigantesco esforço voluntarista animado por
ideias resultantes de práticas insurgentes, rebeldias mais ou menos
radicalizadas, ensaios, erros, fracassos, êxitos efémeros ou
duradouros.
Notas
[1] As
decadências de civilizações anteriores e as reflexões contemporâneas
sobre as mesmas, na medida em que conseguiam uma visão de certa
amplitude associavam as referidas decadências com futuras renovações ou
instalações de novas civilizações no mesmo território. A nível mundial,
enquanto uma civilização decaía outras permaneciam ou emergiam. Agora,
dado o potencial auto-destrutivo do capitalismo global, surge a
possibilidade histórica do "fim da história" não no sentido idílico
(sinistro) do mundo liberal feliz que Francis Fukuyama nos propunha há
algumas décadas e sim como desastre universal.
[2] Marx e Engels, "La ideología alemana", Ediciones Progreso, Moscú, 1974.
[3] Em 2012 as despesas do Departamento da Defesa chegaram
a cerca de US%700 mil milhões. Se às mesmas forem adicionadas as
despesas militares que aparecem integradas (diluídas ou ocultas) em
outras áreas do Orçamento (Departamento de Estado, USAID, Departamento
da Energia, CIA e outras agências de segurança, pagamentos de juros,
etc) alcançar-se-ia um número próximo dos US$1,3 milhões de milhões.
Esse número equivale a 50% das receitas orçamentais previstas ou 100% do
défice orçamental. Essas despesas representaram quase 60% das despesas
militares globais e se lhes somarmos as dos seus sócios da NATO e de alguns países vassalos extra-NATO como
a Arábia Saudita, Israel, Colômbia ou Austrália estaríamos entre 75% e
80% da despesa global (Ref: Jorge Beinstein, "Capitalismo del Siglo XXI.
Militarización y decadencia", Ed. Cartago, Buenos Aires 2013).
[4] Narciso Isa Conde, Estados neoliberales y delincuentes , Aporrea, 20/01/2008,
[5] Johan Huizinga, "Homo ludens" (1954), Emecé Editores, Buenos Aires, 1968.
[6] Domenico Losurdo, "Las raices norteamericanas del nazismo", Enfoques Alternativos, nº 27, Octubre de 2006, Buenos Aires.
[7] Hermann Rauschning, "La révolution du nihilisme", Gallimard, Paris, 1980.
[8] Robert Kurz, Los orígenes destructivos del capitalismo , 1997,
[9] Em outros textos apresentei um conceito de Anouar Abdel Malek, no meu entender essencial para compreender o fenómeno. Trata-se do "excedente histórico" acumulado durante séculos pelo Ocidente em
resultado de um saqueio universal sem precedentes, um património
imperialista baseado na destruição do contexto ambiental e de
civilizações de todos os continentes (Anouar Abdel Malek, "Political
Islam", Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978.
[10] Angus Maddison,"The World Economy: Historical Statistics", OECD 2003.
[11] René Grousset qualificou-a como "a primeira expansãon colonial do Ocidente". Renée Grousset, "Las cruzadas", EUDEBA, Buenos Aires, 1965.
[12] "O
poder veneziano baseava-se na sua capacidade para fabricar armas de
acordo com os modernos princípios da especialização e da produção
capitalista", assinala Victor Davis Hanson. E acrescenta que "três anos depois de Lepanto o monarca francês Henrique III, que se encontrava em Veneza, visitou o Arsenal que, para seu assombro, montou, equipou e lançou uma galera em uma hora!
Em
condições normais, recorrendo a princípios de construção naval,
financiamento e produção em massa comparáveis unicamente aos do século
XX, o Arsenal era capaz de lançar uma frota inteira de galeras no espaço de uns poucos dias", Victor Davis Hanson,
"Matanza y cultura. Batallas decisivas en el auge de la civlización
occidental", Fondo de Cultura Económica-Turner, México D.F. / Madrid
2006.
[13] Bertrand Gille, "Les ingénieurs de la Renaissance", Herman, Paris 1964.
[14] James O'Donnell, "La ruina del imperio romano", Ediciones B, Barcelona 2010.
[15] Victor Davis Hanson, op cit.
[16] G.W.F Hegel, "La Raison dans l`Histoire", Union Générale d`Editions, 10/18, Paris 1965.
[17] Antonio Gramsci, "Cuadernos de la cárcel", Ed. Era, México, 1999.
[18] Richard N. Haass, "The Age of Nonpolarity. What Will Folow U.S. Dominance", Foreign Affairs, Mai/June 2008.
[19] Karl Polanyi, "The Great Transformation.The Political and Economic Origins of Our Time", Bacon Press, Boston, Massachusetts, 2001.
[20] K. Polanyi, op. cit.
[21] Luis Diez del Corral, "El rapto de Europa", Alianza Editorial, Madrid 1974.
[22] Desde
os fantasmas burocráticos da história soviética até chegar ao realismo
burguês dos dirigentes chineses passando pelos diversos nacionalismos
mais ou menos "socialistas" ou capitalistas do Terceiro Mundo.