sexta-feira, 31 de maio de 2013

Agronegócio: uma burrice insustentável. Artigo de Egydio Schwade

"O agronegócio é insustentável porque começa depredando a biodiversidade e as fontes da ciência, depende da máquina que compacta o solo e não respeita os meandros da natureza, envenena e contamina os produtos da terra, que não visam o bem viver do povo, mas o dinheiro de uns poucos", escreve Egydio Schwade, um dos fundadores do Cimi e primeiro secretário executivo da entidade, em 1972. Hoje é colaborador dessa instituição, residindo em Presidente Figueiredo, AM.
Eis o artigo.
Há muito estou intrigado com os altos investimentos do Governo ao agronegócio através do Ministério da Agricultura. Pois em primeiro lugar nem agricultura é. Quem se dedica ao agronegócio não se dedica necessariamente a fazer ciência na terra, ou seja, agricultura. Apenas obedece a um programa pré-fabricado nos laboratórios urbanos.
O agronegócio ao se instalar destrói a biodiversidade, fonte da ciência, para produzir em seu lugar o que interessa apenas a quem quer fazer negócio para alimentar de dinheiro os seus mandantes, o mercado como fim em si mesmo e o Estado, ficções criadas pelo homem que não comem nem riem, não sofrem e nem choram. Pouco lhes importa trabalhar com o equilíbrio dinâmico da natureza para o futuro da humanidade.
Quando vim fixar residência com a família aqui nas margens da BR-174 comprei um pedacinho de terra que fizera parte de um agronegócio. Aproximadamente 16% de um hectare, mais precisamente, de um campo de gado desapropriado pela Prefeitura para a instalação da cidade de Presidente Figueiredo, ainda inexistente, quando saiu o decreto que criou o município.
16% de um hectare é algo invisível ou irrisório para um agronegociante. Para começar, num sistema de criação de gado na Amazônia, os 16% de hectare sustentavam talvez o rabo, ou uma perna de uma vaca, alguns canarinhos e formigas que não faltavam quando começamos a arrancar o capim. Para criar um só bovino nestas bandas necessita-se nada menos que um hectare e meio, ou seja, dez vezes mais.
Mas para um agricultor este pedacinho de chão é algo importante. Hoje cultivamos neste terreno, 32 espécies de frutas, 8 espécies de tubérculos e raízes comestíveis, 5 espécies de abelhas sem-ferrão, além de hortaliças.
Além disso, a família instalou ainda naquele pedacinho de terra a sua residência, a Casa da Cultura do Urubuí e uma lojinha para a venda dos frutos excedentes produzidos no quintal e em sítio mais afastado.
O agronegócio é insustentável porque começa depredando a biodiversidade e as fontes da ciência, depende da máquina que compacta o solo e não respeita os meandros da natureza, envenena e contamina os produtos da terra, que não visam o bem viver do povo, mas o dinheiro de uns poucos. Dentro do agronegócio tudo está programado contra a vida e não há mais nada para inventar ou criar a favor dela a não ser o seu fim.
Questione os governos e a mídia que continuam dando incentivo a essa burrice iniqua!
Algumas espécies cultivadas nesse quintal
Frutas: Abacate (Persea americana), Abiu (Pouteria oblanceolata), Açaí (Euterpe oleratia), Acerola (Malpighia emarginata), Amora (Morus alba L.), Araçá-boi (Eugenia stipitata Mc Vaugh.), Araçá-do-brejo (Posoqueria calantha), Bacuri (Platonia insignis Mart.), Banana (Musa spp.), Biribá (Rolinia), Cacau (Theobroma cacau), Café (Coffeaarabica), Cajá-manga (spondeas dulcis), Carambola (averrhoa carambola), Coco (Cocus nucifera), Cubiu (Solanum), Cupuaçu (Theobroma), Figueira (fícus pohliana), Fruta-pão (artocarpus incisa), Goiaba (Psidium guaiava), Graviola (Annonamuricata), Jambo (Eugenia), Limão (citrus limonum), Limão-Caiana, Mamão (Caricapapaya), Maracujá (Passiflora edulis), Marmeladinha, None, Pitangueira (eugenia uniflora), Pitombeira (tal isia esculenta), Pupunha (Bactrisgasipaes), Puruí, Tamarindo (tamarindos indica).
Tubérculos: macaxeira (manihot utilissima), cará branco e roxo (deste temos diversas variedades), cará-inhame (colocasia antiquorum) (7 variedades), gengibre ou mangarataia (zingiber zingiber) (2 variedades), ariá, araruta, (maranta arundinacea), araruta Manoki, batata doce, taioba, (xanthosoma violaceum), batata doce (Ipomea) e açafrão,(crocus sativus L).
Há ainda uma variedade grande de plantas medicinais, hortaliças, flores como o amor agarradinho: Z(antiginum leptopus), importante fonte de alimento das abelhas. E temos ainda uma pequena criação de galinha caipira e garnizé.
Abelhas: Melípona fulva, moça-branca, raiz, jati e mosquitinho.
Pássaros que frequentam o quintal: Assanhaçu, pipira, xexeu ou corruíra, aracuã, um passarinho pequeno amarelinho, beija flor (pelo menos 3 espécies), pica-pau-do-topete-vermelho, sabiá, papagaio, tucano, arara-amarela, maracanã, rolinha, coruja, entre outros

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O silencioso comando dos algoritmos


Os algoritmos são a nova gramática do poder. Eles estão enraizados nas plataformas digitais invisíveis, alertou o professor franco-canadense Serge Proulx em palestra proferida para a comunidade acadêmica da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na segunda-feira, 8, quando questionou o "solucionismo tecnológico".
A reportagem é de Edelberto Behs e publicada pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 12-04-2013.
"Em qual mundo vivemos?" - indagou Proulx ao falar de participação na era digital, que definiu como "um poder de ação frágil e paradoxal". Ele formulou uma crítica à sociedade em rede, perguntando em que se tornou a promessa de liberdade anunciada nesses novos tempos.
Reportando-se ao sociólogo bielorusso Evgenij Morozov, o palestrante destacou que a internet é centralizada e hierarquizada, dominada pelas grandes empresas como Google,Microsoft, Yahoo e outras, que controlam as plataformas através dos algoritmos.

A crença na abolição da hierarquia é quase um mito religioso, disse. Uma mudança proposta na wikipedia passa por uma hierarquia, que a adota o u não. A rede é um modelo social e político que está na base da reestruturação das organizações. Morozov afirma que existe uma cultura da internet única e coerente no fundamento de um novo paradigma.

O internetcentrismo, uma categoria proposta por Morozov, procura aplicar o modelo da internet para todas as instâncias da vida, como se ela fosse a solução para os problemas do mundo, como se fosse um modelo de engajamento cidadão. A ideologia da comunicação, que Proulx desenvolveu em parceria com Philippe Breton, questiona a ideia de que todos os problemas se resolvem pela comunicação e negociação.

"A maioria dos problemas são engendrados por interesses divergentes e não podem ser resolvidos pela comunicação, pela crença no milagre técnico do digital, ou pensar que trará maior democracia e soluções prontas para a humanidade", afirmou. Naquele caso, toda e qualquer solução seria uma questão de algoritmo, sem levar em conta a dimensão filosófica, antropológica, psicológica da pessoa humana, admoestou.

As tecnologias inteligentes que se propõem a ajudar as pessoas na tomada de decisões controlando seus gestos e opiniões postula um modo de vida em que as incoerências são completamente eliminadas, e reduzem as problemáticas sociais a simples carências individuais, apontou.

Para Proulx, está subjacente a isso tudo o perigo do conservadorismo. "A inovação tecnológica nem sempre se traduz em uma inovação social. As máquinas nem sempre tomam as decisões certas. Elas reduzem o nosso tempo de decisão, o que coloca em cheque a nossa responsabilidade humana, política e social", alertou.

A midiatização do mundo, disse, é um mundo organizado e controlado pelo algoritmo. MasProulx reconhece que a midiatização incentiva a cooperação, a difusão de conhecimento sem alguma contrapartida monetária, como ocorre com o software livre, web 2.0, wikipedia, baseada na criação de conteúdos pelos próprios usuários. As pessoas sentem prazer nessa criação voluntária de um bem coletivo sem esperar retorno financeiro.

Proulx faz duas leituras da realidade produzida pela sociedade em rede. A primeira, procedente de pensadores do capitalismo cognitivo, que encara a transformação do sistema como uma possibilidade, mas sem abandonar a ideia de mercado.

A outra leitura, de uma utopia pós-mercantil, permite sonhar com uma superação do capitalismo pelas dissidências digitais, inventando um mundo que sobreviva fora do mercado. O ato criativo po de ser o embrião dessa revolução silenciosa. O horizonte de um mundo pós-mercantil é frágil, pode ser efêmero, "mas é a esperança que me habita", destacou Proulx.

Serge Proulx é professor titular da École des Médias, da Université de Québec e Montréal, no Canadá, e professor associado do Télécom ParisTech, França. Autor de dezenas de livros, ele ministrará, de 15 a 19 de abril, o Seminário Mutação da Comunicação: Emergência de uma Cultura da Contribuição na Era Digital, do Programa de Pós-Graduação da Ciência da Comunicação da Unisinos.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A cidadania segundo Aaron Swartz



"Aaron Swartz queria mudar o mundo. Ele não queria desperdiçar sua vida com questões consideradas por ele desimportantes. Ele queria enfrentar as grandes questões de seu tempo (como compartilhar informação, criar arranjos de propriedade diferentes da lógica de um período passado, melhorar o bem-estar das pessoas, combater a corrupção da política e tornar a internet um instrumento de participação cívica). Ele se definia como um sociólogo aplicado - e acho que essa definição é bastante cabível: Swartz não queria simplesmente compreender como a sociedade se organiza e produz vida, queria também solucionar problemas sociais".
O comentário é de Rafael Zanatta em artigo no blog e-mancipação, 07-04-2013.
Eis o artigo.
Há menos de um mês, a revista estadunidense The New Yorker publicou uma matéria sobre Aaron Swartz intitulada Requem for a Dream. Trata-se de uma belíssima crônica escrita por Larissa MacFarquhar, resultante de um robusto trabalho investigativo sobre a genialidade docyberativista tragicamente morto em janeiro de 2013 e as percepções das pessoas próximas a Aaron com relação ao modo como ele enfrentou o polêmico processo criminal (iniciado em razão do download de milhares de artigos acadêmicos pela plataforma JSTOR, através de um computador ligado na rede do Massachusetts Institute of Technology) que motivou sua morte.

A crônica, entretanto, erra ao focar no "lado sombrio" de Swartz e nas relações de causalidade que podem explicar seu suicídio. Ao meu ver, o caso de Aaron Swartz não deve ser objeto de reflexão para possíveis explicações causais (quais fatores psicológicos e biológicos levaram ao suicídio?). Buscar uma explicação é colocar-se em uma posição de conforto (construir sentido).

Na minha leitura, o suicídio de Swartz - ocorrido há quase três meses - deve levar ao desconforto reflexivo e um debate sério sobre cidadania e engajamento político. Os projetos nos quais Aaron se envolveu e as causas pelas quais ele lutou (compartilhamento de informação, modelos alternativos de copyright e aproveitamento do potencial conectivo da internet para ativismo cívico) forçam um trabalho constante de questionamento sobre as limitações do status quo e o potencial de empoderamento ligado a inovações.

O que diz o texto do The New Yorker?

Requiem for a Dream � � um impressionante trabalho jornalístico com características de literatura. O texto mistura relatos de pessoas próximas a Swartz, antes e depois de seu suicídio, com dados e informações pouco discutidas sobre a formação educacional transgressora de Aaron, sua condição de saúde, sua fragilidade emocional e o impacto do processo criminal em sua vida.

MacFarquhar
constrói uma narrativa de modo a tentar convencer o leitor de que há ligações entre a colite ulcerosa de Aaron (doença que pode levar a comportame ntos impulsivos) e seu espírito livre, nunca preso a padrões comportamentais comuns. Para a jornalista, o fato deSwartz nunca ter se acostumado com as regras e imposições do sistema educacional estadunidense - Aaron abandonou não somente a escola, mas também a Universidade de Stanford, por considerar tais instituições dotadas de rotinas estúpidas e pessoas limitadas a formas de pensar pré-estabelecidas - pode ter gerado duas consequências: ao mesmo tempo que garantiu liberdade e autonomia intelectual a Aaron, diminuiu sua paciência e capacidade de lidar com procedimentos burocratizados.


A an� �lise corrobora a interpretação do professor Lawrence Lessig, um dos idealizadores do Creative Commons. Na opinião de Lessig, "[Aaron] estava livre de todas as experiências disciplinadoras da vida. Seus pais o tiraram da escola cedo, o que foi ótimo pois isso permitiu que ele se tornasse alguém que não era o produto da puberdade em uma escola pública. Mas isso foi ruim no sentido de que deu a ele a confiança sobre seus próprios julgamentos, o que é perigoso".

MacFarquhar inicia o texto com um recurso narrativo interessante. A jornalista constrói uma espécie de mosaico, com frases de pessoas próximas a Swartz - como Ben Wikler, Taren Kauffman (namorada) e Quinn Norton (ex-namorada de Aaron) - centradas no mesmo tema: o alto risco de suicídio de Aaron. Os depoimentos são colocados propositalmente no início do texto para construir uma tese: as pessoas mais próximas de Aaron temiam o suicídio. Essa tese é desenvolvida a partir de uma narrativa que envolve um clima de tensão em torno da morte de Swartz. Não há uma explicação linear ou cronológica sobre os fatos.

Depoimentos após o suicídio são intercalados com trechos de textos escritos por Aaron em seu blog entre os anos de 2004 e 2012. Através deste recurso, a autora tenta demonstrar que há indícios de um comportamento potencialmente suicida nas percepções de Aaron sobre a vida. Larissa MacFarquhar usa colagens de posts para reforçar a ideia de que Swartzenxergava sua vida como uma imposição ("I’m not such a nuisance to the world, and the kick I get out of living can, I suppose, justify the impositions I make on it. But when life isn’t so fun, well, then I start to wonder. What’s the point of going on if it’s just trouble for us both? My friends will miss me, I am told... But even so, I feel reticent. Even among my closest friends, I still feel like something of an imposition, and the slightest shock, the slightest hint that I’m correct, sends me scurrying back into my hole"). A ideia defendida é de que o suicídio, considerado trágico e inesperado, era uma preocupação recente dos mais próximos.

A crônica é rica em depoimentos de amigos, parentes e colegas de trabalho sobre o modo como Aaron se comportava. Há detalhes interessantes sobre como que Swartz enxergava as relações de poder. Na juventude, ele sentia um tremendo desconforto em estar em uma posição de comando, mesmo nos casos em que tais relações eram previsíveis e mediadas por instituições formais ou informais. Aaron, por exemplo, não gostava de restaurantes em razão do desconforto de ser atendido por um garçom. Ele considerava humilhante estar na posição de receber ordens, preparar e servir outrem. Em bibliotecas, Aaron raramente pedia ajuda para a bibliotecária. Por incrível que pareça, ele sentia um enorme desconforto em interromper a atividade da funcionária, mesmo sabendo que ela estava ali justamente para atendê-lo (e sendo paga para isso). De certo modo, através destes exemplos, MacFarquhartentar apresentar uma outra tese na crônica: Aaron Swartz sentia-se repelido por relações de dependência e pela relação comando-obediência.

Aparentemente, a matéria do The New Yorker tenta relacionar essa tese com o suicídio. O texto é muito rico ao relatar como ocorreu a prisão de Swartz em 2011, em razão do processo criminal iniciado pela promotoria de Massachusetts. O processo forçou uma primeira relação de dependência de Swartz com profissionais da área jurídica, em especial advogados. Após o pagamento da fiança, Swartz tornou-se dependente destes profissionais, que recomendaram sigilo total para enfrentar o caso. De acordo com a estratégia de defesa, tornar o caso público poderia piorar a situação. Para Aaron, era inconcebível que suas ações fossem consideradas ilegais. Ele tinha uma concepção muito clara de que download não era roubo. Ainda, Aaron não conseguia encontrar um motivo razoável para a existência do processo penal e do pedido de condenação de 35 anos de prisão. Como é sabido, o Massachusetts Institute of Technology retirou a ação civil movida contra Swartz pelo download dos artigos acadêmicos e Aaron assinou um termo de compromisso em que prometia não disponibilizar tais arquivos publicamente. Os promotores queriam que Aaron se declarasse culpado. Entretanto, ele se recusou a fazer tal declaração (plea guilty).

A crônica tenta mostrar que o processo destruiu Aaron psicologicamente. Nesse aspecto, concordo com MacFarquhar. Após a repercussão que foi dada no Brasil ao texto que escrevi sobre Aaron, passei a ler cuidadosamente alguns posts de seu blog e a resenha de alguns livros. Swartz lia muito, mais de cem livros por ano. Curiosamente, em meados de 2011 - após o início do processo criminal -, Swartz leu o livro The Trial (O Processo), do escritor tcheco Franz Kafka. Há ali uma relato particular que deixa claro como Swartzsentia-se angustiado pela pavorosa e surreal burocracia do sistema judiciário. O trecho a seguir, em especial, é brilhante e revela o desespero kafkiano diante do sistema: "O Processo, por Franz Kafka. Uma obra profunda e magnífica. Eu nunca tinha lido muito Kafkae havia sido levado a crer que era uma obra paranoica e hiperbólica, uma ficção distópica no estilo de George Orwell. No entanto, eu a li e a achei precisamente exata - cada detalhe singular perfeitamente espelhado na minha própria experiência. Isso não é ficção, mas sim documentário. (...) Uma vívida ilustração de que burocracias, uma vez iniciadas, continuam a fazer qualquer coisa sem sentido que foram programadas a fazer, independentemente se as pessoas dentro dela particularmente querem fazer ou mesmo se é uma boa ideia".

Para a matéria do The New Yorker, a morte do "gênio" Aaron Swartz é melhor compreendida diante de alguns fatores específicos, como a doença intestinal de Aaron e a propensão a comportamentos impulsivos, seu desconforto com relações de poder, sua alta privacidade para determinados temas, sua reclusão diante do processo penal, a dependência diante dos advogados e o pavor de ser considerado criminoso (felon) diante de suas ambições de reforma da política estadunidense para construção de um mundo melhor. A matéria tenta não somente informar, mas também apresentar uma espécie de tese a partir de métodos empíricos qualitativos. A partir da percepção das pessoas mais próximas deAaron Swartz (suas interpretações e narrativas), MacFarquhar tenta defender a ideia de que o suicídio foi uma saída impulsiva diante da in capacidade de Swartz de lidar com os problemas existentes. Trata-se de um patchwork narrativo com pretensão explicativa.

Indo além da explicação: o legado de Swartz

Apesar dos aspectos elogiáveis do texto do The New Yorker, acredito que o caso deSwartz é muito mais do que uma simples história de suicídio, marcada pelas angústias psicológicas de uma pessoa supostamente fragilizada. Está claro, diante dos relatos disponíveis, que Swartz era uma pessoa diferente e frágil. Mas sua meteórica trajetória de vida - dos 26 anos de vida, 13 foram dedicados a questões ligadas à sociedade e à internet - mostra algo muito maior para o futuro da humanidade. Swartz queria mudar o mundo. Ele não queria desperdiçar sua vida com questões consideradas por ele desimportantes. Ele queria enfrentar as grandes questões de seu tempo (como compartilhar informação, criar arranjos de propriedade diferentes da lógica de um período passado, melhorar o bem-estar das pessoas, combater a corrupção da política e tornar a internet um instrumento de participação cívica). Ele se definia como um sociólogo aplicado - e acho que essa definição é bastante cabível: Swartz não queria simplesmente compreender como a sociedade se organiza e produz vida, queria também solucionar problemas sociai s.

Seria o projeto swartziano um idealismo típico de um jovem? Pouco importa saber se essa ideia é ou não típica da juventude. Levar a sério Swartz não é discutir se ele era um idealista. Levar a sério Swartz é dar continuidade ao projeto de utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum. É reconhecer que a cidadania envolve uma obrigação moral de lutar contra a corrupção do sistema político.

Recentemente, o professor Lawrence Lessig deu uma grande contribuição ao legado deAar on Swartz. No dia 19 de fevereiro, Lessig foi contemplado com a Roy Furman Chair na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Nos Estados Unidos, ao invés de se tornaram "professores titulares", os docentes são homenageados com a cadeira - chair - de um antecessor. Trata-se do maior posto acadêmico dentro de uma instituição. Ao receber o prêmio da reitora Martha Minow, Lawrence Lessig realizou uma palestra intitulada Aaron's Laws. A aula foi organizada às pressas e de forma turbulenta após o suicídio de Aaron Swartz, com quem Lessig conv iveu por mais de dez anos. É admirável notar que Lessig aproveitou um momento de altíssimo prestígio pessoal (em uma das mais renomadas instituições de ensino do mundo) para explicar por que um rapaz de vinte e poucos anos era seu "mentor intelectual".

A palestra de Lawrence Lessig estrutura-se em uma tese central e contra-intuitiva: os juristas deveriam celebrar hackers como Aaron Swartz. Para Lessig, utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum deveria ser a preocupação por excelência dos juristas, bem como a preocupação de qualquer cidadão. Swartz - ironicamente processado por pessoas que fazem parte do staff responsável pela aplicação de sanções a quem descumpre normas impostas pelo Estado - deveria ser um ícone do que devemos fazer (e como devemos fazer).

Lessig faz uma excelente análise das áreas de atuação de Swartz em seus treze anos de ativismo. Ele a divide em três momentos (antes dos assuntos copyright/assuntos copyright/depois dos assuntos copyright). Lessig e Swartz trabalharam juntos no "segundo momento" da vida prática de Aaron (assuntos copyright) e desenvolveram o modeloCreative Commons. No entanto, Lessig ressalta que os atos mais significativos de Aaronocorreram no "terceiro momento", interrompido por seu suicídio.
Swartz identificou que as questões de direitos autorais não eram tão importantes quando comparados com as questões do sistema político estadunidense, em especial a corrupção por interesses econômicos. Swartz utilizou de toda sua capacidade de solução de problemas e desenvolvimento de códigos para pensar em como os cidadãos poderiam ter uma participação política maior. Aaron mostrou a força do grassroot movement, do engaja mento cívico de base. Foram suas ações iniciais contra o Stop Online Piracy Act(SOPA) que resultaram nos gigantescos protestos de janeiro de 2012. Tanto Aaron quantoLessig focaram em grandes questões políticas (como hackear o sistema? como participar do processo legislativo? como garantir que o direito atenda ao bem comum?).

An alisar a vida de Aaron Swartz implica em dar atenção especial a essas questões. Na correta interpretação de Lessig, Swartz não estava preocupado em corrigir "leis estúpidas" de propriedade intelectual, mas sim em corrigir a forma como são feitas leis estúpidas. Daí sua preocupação com o conhecimento e a informação. O insight teórico swartziano é claro: as pessoas precisam não somente entender como as coisas funcionam, mas precisam de ferramentas de participação e controle da democracia. Em síntese, Swartz tinha em mente uma noção idealizada de cidadania, pautada na ampla formação intelectual e na participação política. De diferentes modos, Swartz tentou concretizar esse ideal. Infelizmente, optou pelo suicídio como saída diante da opressão do sistema judiciário em um caso particular.

Não importa discutir se o suicídio foi um erro, tampouco compreendê-lo. O legado de Swartzé muito maior do que a decisão de 11 de janeiro. Ele é uma inspiração para a ação colaborativa transformadora. Ele sintetiza o que resta de esperança e idealismo em cada um de nós e impulsiona a ação prática voltada ao bem comum. Se o desafio contemporâneo é o combate à corrupção e o aprofundamento da democracia diante das tecnologias disponíveis, talvez não haja exemplo maior do que Aaron Swartz. Ele foi um exemplo de cidadão.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A humanidade ainda está no caminho da autodestruição, diz guru ambiental

A humanidade ainda está no caminho da autodestruição, diz guru ambiental

Em 1972, o guru ambiental Dennis Meadows previu em seu estudo seminal “The Limits to Growth” (“Os limites para o crescimento") que o mundo estava caminhando para um colapso econômico. O fato de o colapso econômico não ter ocorrido, não o faz desacreditar que ocorrerá no futuro. "Não há dúvida de que o mundo está mudando, e nós vamos ter de acompanhar essas mudanças. Há duas maneiras de fazer isso: uma é você perceber a necessidade de mudança antes do tempo e realizar a alteração necessária. A outra é você não fazer n ada e, no final, ser obrigado a fazer a mudança de qualquer maneira", respondeMeadows à Markus Becker.

A entrevista foi publicada pela revista Der Spiegel e reproduzida pelo portal Uol, 26-12-2012.

Eis a entrevista.

Professor Meadows, 40 anos atrás, você publicou "The Limits to Growth" ("Os limites para o crescimento", em tradução livre) com sua esposa e seus colegas. Esse livro transformou você no pai intelectual do movimento ambiental. A mensagem central do livro continua válida hoje: a humanidade está explorando brutalmente os recursos naturais e está no caminho da autodestruição. Você acredita que o colapso final do nosso sistema econômico ainda pode ser evitado?

O problema que deve ser enfrentado por nossas sociedades é o fato de termos desenvolvido indústrias e políticas que eram adequadas para um determinado momento histórico, mas que agora começam a reduzir o bem-estar da humanidade. Por exemplo: a indústria do petróleo e dos automóveis. Seu poder político e financeiro é tão grande que ela é capaz de impedir as mudanças. Eu espero que ela tenha sucesso. Isso significa que nós vamos evoluir por meio de uma crise, e não por meio de uma mudança proativa.

Várias das previs� �es centrais feitas em seu livro se tornaram realidade, como o crescimento exponencial da população mundial e a destruição ambiental generalizada. Mas sua previsão de que o crescimento econômico cessaria e que a economia mundial entraria em colapso ainda não aconteceu.

O fato de o colapso não ter ocorrido até agora não significa que ele não acontecerá no futuro. Não há dúvida de que o mundo está mudando, e nós vamos ter de acompanhar essas mudanças. Há duas maneiras de fazer isso: uma é você perceber a necessidade de mudança antes do tempo e realizar a alteração necessária. A outra é você não fazer nada e, no final, ser obrigado a fazer a mudança de qualquer maneira. Vamos dizer que você esteja dirigindo um carro dentro de um armazém ou de uma fábrica. Há duas maneiras de parar o carro: ou você põe o pé no freio ou você continua até bater na parede. Mas você vai parar, pois o edifício é finito. E o mesmo vale para os recursos da Terra.

Isso soa convincente, mas será que é realmente verdade? Será que as empresas privadas não vão reagir à escassez de recursos com inovação, em um esforço para manter sua lucratividade?

As mudanças realmente grandes não são promovidas por indústrias estabelecidas. Quem fez o iPhone? Não foi a Nokia nem a Motorola nem nenhum dos outros fabricantes de celulares estabelecidos. O iPhone foi criado pela Apple, que estava totalmente fora desse setor. Há muitos outros exemplos desse tipo.

E quanto às áreas que estão sob o controle de governos ou são regidas por algum tipo de regulamentação?

Essa situação é ainda pior. Nossa história com a pesca mostra que estamos destruindo osecossistemas dos oceanos, por exemplo. E estamos usando nossa atmosfera como um depósito gratuito de lixo industrial. Ninguém recebe incentivos para protegê-los.

Será que o desejo de sobrevivência da humanidade não é motivação suficiente?

Veja você, existem dois tipos de problemas de grandes dimensões. Um desses grupos eu chamo de problemas universais e o outro eu batizei de problemas globais. Ambos afetam a todos. A diferença é a seguinte: os problemas universais podem ser resolvidos por peque nos grupos de pessoas, pois elas não têm de esperar pelos outros para agir. Você pode limpar o ar em Hanover sem ter que esperar que Pequim ou a Cidade do México façam o mesmo. Os problemas globais, no entanto, não podem ser resolvidos em um único lugar. Não há nenhuma maneira de Hanover conseguir resolver a questão das mudanças climáticas ou impedir a disseminação de armas nucleares. Para que isso aconteça, as pessoas na China, nos EUA e na Rússia também precisam fazer alguma coisa. Por isso, não faremos nenhum progresso em relação aos problemas globais.

Você não está subestimando as pessoas e sua reação no momento em que elas forem encostadas contra a parede? O empresário australiano e ambientalista Paul Gilding, por exemplo, diz em seu livro "The Great Disruption" ("A Grande Ruptura", em tradução livre) que, apesar de a crise estar se aproximando, a humanidade vai se mobilizar para combatê-la como costumamos fazer em tempos de guerra.

Ele está certo. Mas será que a humanidade vai conseguir? Ela até poderia conseguir caso os atrasos fossem menores. Mas, infelizmente, eles não são. Em relação às mudanças climáticas, por exemplo, os atrasos são grandes. Mesmo que reduzíssemos a zero nossas emissões de gases de efeito estufa hoje, o aquecimento gl obal ainda se manteria durante séculos. O mesmo é válido para o solo, que estamos destruindo em todo o mundo. A recuperação pode levar séculos.

Com certeza as inovações tecnológicas têm servido para reduzir o impacto de alguns problemas no longo prazo. Desde que seu livro foi lançado, quatro décadas atrás, a medicina moderna, por exemplo, tem aumentado a expectativa de vida das pessoas e reduzido a mortalidade infantil. As novas tecnologias aumentaram drasticamente as colheitas – e os computadores e a internet reduziram as distâncias e melhoraram o acesso à educação.

A tecnologia não inventa a si própria. Essas conquistas foram r esultado de décadas de trabalho duro – e alguém tem de pagar por esses programas. Uma grande fonte de dinheiro são os orçamentos militares. Outra fonte são as empresas, e elas não estão motivadas a resolver os problemas globais. Elas estão motivadas a ganhar dinheiro. As empresas farmacêuticas dos Estados Unidos gastam mais dinheiro na prevenção da calvície do que na prevenção das infecções por HIV. Por quê? Porque os ricos ficam carecas e as pessoas pobres pegam HIV.

Mas imagine os lucros que o inventor de uma nova fonte de energia, limpa e ilimitada, obteria.

Eu espero que você não esteja falando a respeito de fusão, porque isso é besteira. Acho que vamos descobrir uma nova e importante fonte de energia. Mas depois dessa descoberta, levaria décadas para que seu impacto fosse sentido. Mesmo que não houvesse nenhuma resistência a ela, mesmo que não houvesse impactos ambientais ou até mesmo se essa nova fonte de energia não levasse um monte de gente à falência – ainda assim, levaria muito tempo para implementá-la totalmente. Então, se alguém disser a você que a tecnologia vai nos salvar dessa forma, essa pessoa não sabe como as tecnologias são desenvolvidas.

E os recursos naturais? Previsões passadas diziam que não haveria quase nenhum petróleo disponível em 2012, mas ainda parece existir muito petróleo disponível. Estimativas recentes chegam até a mostrar que os EUA em breve produzirão mais petróleo do que a Arábia Saudita.


Pode ser que sim. Mas as reservas de petróleo de que estamos falando são escassas e muito caras para explorar. E elas também se esgotarão um dia. E então teremos um problema. Por exemplo: eu tenho uma vizinha rica. Digamos que a conta de luz dela corresponda a 1% de sua renda. Então, chega o furacão Sandy e, de repente, ela fica sem energia elétrica em casa. Será que a qualidade de vida dela vai piorar 1%? Não! A comida dela vai estragar, ela não poderá ligar as luzes de casa, ela não poderá mais trabalhar. Será um desastre para ela. Dê uma olhada ao seu redor. A cadeira em que você se senta, a janelas de vidro, as luzes – tudo está aqui por uma razão simples: nós gostamos de energia barata.

Vamos supor que você esteja certo e que o colapso vai chegar neste século. Como ele será?

Ele vai ser diferente em lugares diferentes. Alguns países já estão entrando em colapso, e algumas pessoas nem vão pe rceber. Há quase um bilhão de pessoas morrendo de fome atualmente, e as pessoas aqui basicamente não estão percebendo. E há a questão da velocidade: a diferença entre o declínio e o colapso é a velocidade. Os ricos pode pagar para escapar de várias situações. O fim da energia fóssil, por exemplo, será gradual. Mas asmudanças climáticas também alcançarão os países industrializados, independentemente do que vier a acontecer. E os registros geológicos mostram claramente que a temperatura global não aumenta de forma linear. Ela salta de repente. Se isso acontecer, um colapso ocorrerá. Mas não seria nada de novo, é claro. Sociedades surgem e desaparecem. E isso tem ocorrido com elas há 300 mil anos.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sem direito a comer

 

"A produção de alimentos desde os anos 60 triplicou, de acordo com a organização GRAIN, enquanto a população mundial, desde então, apenas dobrou. Há uma quantidade enorme de comida, mais do que em qualquer outro período da história. Mas se você não tem dinheiro para pagar por ela ou o acesso a terra, água, sementes para produzi-la, não come. Não se trata de produzir mais alimentos, mas de repartir os já existentes". O comentário é de Esther Vivas,ativista política e dos movimentos sociais, em artigo publicado em seu blog, 08-04-2013.

Eis o artigo.

Nos dizem que querem acabar com a fome no mundo, se não for possível em 2015, será mais tarde. Agora, quando expiram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), sem ter conseguido nada, se inventam novos conceitos como a Agenda para o Desenvolvimento pós-2015 e nos dizem para esperar e confiar, que deixemos tudo em suas mãos, que desta vez será definitiva. E a história, ou a mentira, se repete de novo.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, impulsionado pelas nações Unidas no ano 2000, terminou em letra morta, como acabará, eu garanto, a Agenda para o Desenvolvimento pós-2015 ou o que siga. Porque por fim à fome não depende de declarações de boas intenções, nem de acordos assinados, ou de lideranças fortes nos altos escalões ... depende única e exclusivamente de vontade política. E esta não existe.

A Consulta de Alto Nível das Nações Unidas sobre a Fome trata desses temas, Segurança Alimentar e Nutrição, realizada faz pouco [04/04/2013] em Madrid, como parte de uma série de diálogos internacionais promovidas pela ONU, e que reúne a partir de seu secretário-geral, Ban Ki-moon, o presidente Maria no Rajoy, a nata da ONU e representantes do mundo empresarial, acadêmico ... Seu objetivo: discutir sobre como enfrentar a fome a partir de 2015, data em que concluem os ODM’s. Mesmo que os governos que nos levaram à presente situação de falência tenham que liderar este processo, vamos mal.

Os autores dos cortes, que desencadearam os índices da fome aqui e internacionalmente, pouco, ou melhor, nada têm a contribuir. No Estado Espanhol, e de acordo com o Instituto Nacional de Estatística de 2010, se calcula que, pelo menos, um milhões e cem mil pessoas passam fome e não comem as calorias e proteínas mínimas necessárias. Uma cifra que, no atual contexto de crise econômica, social, greve e precariedade, seguramente é maior. E não só isso. O governo espanhol, anfitrião da consulta da ONU, é o mesmo que aniquilou a Assistência Oficial ao Desenvolvimento, reduzindo sua partida para um mínimo, colocando-o nos níveis de 1990 e em último lugar na UE. Esta é a solidariedade do governo com os países do Sul, zero.

A ONU diz que, para acabar com a fome, temos de confiar no crescimento. Declarou em seu relatório O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2012: "Os pobres devem participar no processo de crescimento e seus benefícios. O crescimento deve ser alcançado com a participação dos pobres e se estender a estes ". E acrescenta: "O crescimento agrícola é particularmente eficaz na redução da fome e da desnutrição". Mas esse não é o problema. Não se trata de querer reiniciar o motor do crescimento econômico como uma fórmula mágica. O que nós precisamos é de justiça e de redistribuição. Especialmente nas políticas alimentares e agrícolas, onde toneladas de alimentos acabam no lixo diariamente, enquanto isso 870 milhões de pessoas no mundo sofrem de fome. Não mais riqueza concentrada nas mãos de poucos, mas mais democracia.

A produção de alimentos desde os anos 60 triplicou, de acordo com a organização GRAIN, enquanto a população mundial, desde então, apenas dobrou. Há uma quantidade enorme de comida, mais do que em qualquer outro período da história. Mas, se você não tem dinheiro para pagar por ela ou o acesso a terra, água, sementes para produzi-la, não come. Não se trata de produzir mais alimentos, mas de repartir os já existentes. É o modelo agroalimentar, a serviço de alguns poucos interesses privados, o que falha.

A fome, diz a mídia e as instituições internacionais, é o resultado de fenômenos metereológicos e de conflitos de guerra. Não apenas, nem principalmente, acrescento. As causas da fome são políticas e têm a ver com aqueles que controlam as políticas agrícolas e alimentares, aqueles que se beneficiam, e em cujas mãos estão os meios de produção de alimentos. Só isso pode explicar por que pa� �ses como o Haiti, que nos anos 70 produziu arroz suficiente para alimentar sua população, hoje seja um dos países mais afetados pela fome. Desde os anos 80 até o presente, as políticas de liberalização comercial, de invasão de seus mercados com produtos subsidiados de multinacionais do Norte vendidos abaixo do preço de custo, etc, destruíram seus sistemas agrícolas, anulando sua soberania alimentar, e converteu o país em dependentes da compra de alimentos a empresas estrangeiras. Não é o acaso o que conduziu o Haiti, como tantos outros países, à fome, mas a política.

No atual contexto de crise profunda do sistema, os bens comuns se convertem na nova fonte de negócio do capital. Intensifica-se a acumulação de terras, a privatização da água, a especulação com a comida. Em outras palavras, o que o geógrafo David Harvey chama de acumulação por espoliação. Ou como ficar rico às custas de privatizar o que é da maioria. E estes processos só aumentam as causas da fome, deixando muitos sem o direito a comer.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Um mundo sem proteção. A morte de Robert Castel

 

"Robert Castel não se cansava de repetir que os últimos 30 anos foram o cenário de uma profunda transformação na maneira de representarmos nosso futuro. A crença de que o progresso social é produto do desenvolvimento econômico, cujo objetivo é o aperfeiçoamento da sociedade – “o amanhã será melhor do que hoje” – cedeu espaço a um pessimismo no qual o desenvolvimento econômico é a razão de toda a desigualdade – “o amanhã será pior do que hoje”, escreve Jorge Barcellos, doutor em Educação pela UFRGS, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 06-04-2013.
Segundo ele, "para Castel, desemprego, precariedade e concorrência responsabilizam cada individuo, que tem apenas o Estado Social como amparo. Quando este Estado é criticado pelas políticas neoliberais, o que resta de proteção desaparece e o ressentimento e a angústia preenchem a subjetividade do cidadão".
Eis o artigo.
A morte de Robert Castel, em março, priva as Ciências Sociais de um de seus mais notáveis investigadores. Nascido em 1933, Castel foi professor de filosofia no ensino secundário até 1963, e iniciou uma carreira acadêmica em 1967. Orientado em seu Doutorado por Raymond Aron, notável crítico do conformismo da esquerda, desde os anos 1990 Castel foi professor de sociologia na Universidade de Paris VIII, onde também foi Diretor de Altos Estudos. Foi também fundador e diretor do Grupo de Pesquisa e Análise do Social e da Sociabilidade entre 1982-1990 e Diretor do Centro de Estudos dos Movimentos Sociais entre 1995 e 1999, experiência que resultou no aprofundamento daquilo que denominou de “questão social”.

Castel não se cansava de repetir que os últimos 30 anos foram o cenário de uma profunda transformação na maneira de representarmos nosso futuro. A crença de que o progresso social é produto do desenvolvimento econômico, cujo objetivo é o aperfeiçoamento da sociedade – “o amanhã será melhor do que hoje” – cedeu espaço a um pessimismo no qual o desenvolvimento econômico é a razão de toda a desigualdade – “o amanhã será pior do que hoje”. Quer dizer: a grande transformação do capitalismo industrial em financeiro implicou não só em uma nova forma de produção social, mas também de regulação social, algo que o autor se propôs a analisar em sua obra Metamorfose da Questão Social (Vozes, 1998), atualizada depois em El Ascenso de las incertidumbres (FCE, 2010).

Ele define nossa época na esteira do conceito de crise de Claus Offe: “uma situação na qual as instituições estabeleci das e as evidências se encontram subitamente questionadas, em que surgem dificuldades inesperadas mas fundamentais, em que finalmente o futuro está em aberto”. Ele também agrega a essa noção o pensamento de Miguel Aglietta, que define nossa época como a da emergência da sociedade salarial, na qual os indivíduos se constituem ao redor de um contínuo de posições salariais interdependentes. A consequência é que “tudo circula, todos se medem e se comparam, porém, sobre a base de uma desigualdade de condições”. Castel atualiza a oposição de classes de Marx, substituída pela disputa entre grupos profissionais, mas não sem uma perda: a partir de agora, as desigualdades são superadas não na dialética da luta de classes, mas na negociação dos diversos grupos profissionais – fim da radicalidade da ideia de conflito. A crítica de Castel é que, neste sistema, a possibilidade de limita� �ão da arbitrariedade patronal e a existência de certa “proteção social” nada mais são do que um consenso débil do capitalismo industrial que, em realidade, amplia desigualdades em vez de reduzi-las, pois se trata mais uma vez de subordinar o mundo do trabalho ao do capital.

Mas Castel não se deteve a esmiuçar o mundo do trabalho. Ao contrário, suas primeiras investigações foram de sociologia, psiquiatria, psicanálise e cultura psicológica. Datam dos anos 1970 e 1980 suas primeiras obras nesse campo. Publicou O Psicanalismo, A Ordem Psiquiátrica (ambos pela Graal, 1978) e A Gestão dos Riscos (Francisco Alves, 1987). O primeiro é um retrato da evolução dos sistemas psiquiátricos e dos aparelhos repressivos que levam à psicologização da sociedade. O segundo livro dá um passo a mais, analisando as condições concretas da produção da loucura como objeto de saber (na linha de Michel Foucault) legitimado por instituições socialmente reconhecidas que terminam por formar um campo especifico (na linha de Pierre Bourdieu). A terceira obra critica a medicina mental, da antipsiquiatria à pós-psicanálise em debate na França dos anos 1980 (Laing, Guattari & Deleuze, etc.).

Como assinala Guilhon Albuquerque, trata-se de denunciar “o dispositivo teórico-prático que reproduz um modo de conhecimento e poder”. Em realidade, a análise do universo psiquiátrico preparou o terreno para a emergência da “nova questão social”. Dito de outra forma: se a genealogia de Foucault e o pensamento de Bourdieu permitiram a Castel descrever as contradições da psicanálise e da psiquiatria, esta análise foi uma espécie de “canteiro de obras” para o estudo dos modelos de proteção social. Basta ver que, para Castel, a psicanálise tem uma teoria, um método e uma técnica próprios, mas que ocultam valores e ideologias que se manifestam nas atitudes, concepções e ações sociais de seus atores. Quer dizer, a crítica de Castel à psicanálise – que se estende à sociedade salarial – é a da ocultação que ambos fazem de suas ideologias. Ele aponta as consequências de cada sistema para as práticas e as experiências individuais, seja no fato de que o psiquiatra disputa com outros profissionais (psicanalistas, psicólogos) um espaço de exercício de poder, seja no fato de ser um movimento social composto de organizações sectárias.

A importância de Metamorfoses da Questão Social (Vozes, 1998) está no fato de que Castel retoma e aprofunda a categoria trabalho, tal como formulada por Marx, para além das relações técnicas de produção. A expe riência do universo psicanalítico lhe permitiu inúmeras inflexões sobre o sentimento do desemprego e da ausência de perspectivas, integrantes da nossa subjetividade no mundo do trabalho. Castel denuncia o imaginário do desemprego como efeito do capital, e não característica individual. A “nova questão social” é, em primeiro lugar, a constatação do enfraquecimento da condição salarial com o fim do pleno emprego – cuja marca principal é o nascimento dos “trabalhadores sem trabalho” (os inúteis do mundo, segundo Arendt, o lixo humano, segundo Bauman). Com Castel, o conceito de precariedade emerge como nova característica do capitalismo, o que faz com que o Estado Social seja definido como “princípio de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de todos”. O problema para Castel é que, se o Es tado torna-se a principal fonte de proteção do indivíduo, e não atende este objetivo, é o próprio vínculo social que corre risco.

Qual é a ideia central de Castel? A de que, no capitalismo atual, a identidade pelo trabalho está perdida pela degradação da condição salarial. Essa condição é a força motriz do neoliberalismo, a redução do espaço do Estado, mote de A Insegurança Social: o que é Ser Protegido (Vozes, 2005). Espécie de resumo de seu pensamento, este pequeno texto parte da sociedade francesa moderna para caracterizar a angústia que o desemprego provoca em relação ao futuro dos indivíduos. Castel constata que, ao contrário das sociedades tradicionais, em que a segurança era garantida pelo pertencimento a uma comunidade, nossas sociedades vivem sob o signo da insegurança. A notável conclusão de Castel é que, ao longo da história, a comunidade de destino foi substituída pela propriedade como garantidora da segurança: somente os indivíduos com propriedades são capazes de darem segurança a si mesmos. Mas é preciso considerar que, de fato, há duas proteções: a primeira, de pessoas e bens garantidos pelo Estado de direito; e a segunda, a proteção social propriamente dita, as políticas de proteção oriundas da incapacidade do cidadão em função da idade ou desemprego. Vivemos em insegurança porque não podemos mais nos prevenir dos riscos que a vida oferece. Na propriedade social, que diz respeito ao direito do trabalho, os riscos de insegurança são reduzidos. O problema desta sociedade salarial é o questionamento formulado pelas politicas neoliberais que acompanham o desenvolvimento do capitalismo industrial e financeiro. Para Castel, desemprego, precariedade e concorrência responsabilizam cada individuo, que tem apenas o Estado Social como amparo. Quando este Estado é criticado pelas política s neoliberais, o que resta de proteção desaparece e o ressentimento e a angústia preenchem a subjetividade do cidadão.

Sua morte nos priva da reflexão sobre uma estratégia diferenciada de luta política frente ao fracasso do sonho de uma “sociedade do trabalho”. Castel, o reformista, jamais relegou a necessidade do Estado Protetor: é que ser protegido é não apenas dispor de direitos, mas de condições de independência, fundamento básico para uma sociedade de semelhantes, que é apenas outra forma de conceituar democracia.
Nota da IHU On-Line:
Robert Castel esteve na Unisinos, a convite do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em maio de 2007, onde proferiu uma conferência no Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
A conferência de Robert Castel foi publicada no livro O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos? (São Leopoldo:Editora Unisinos), 2009, sob o título "O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos: Uma leitura sociológica".
Veja também:
“As pessoas não são autônomas por natureza, por essência”. Entrevista especial com Robert Castel

O risco do fim da sociedade salarial. Entrevista com Robert Castel


"A França deve mudar’. Entrevista com Robert Castel

Estamos constituindo uma sociedade de "precariados’, afirma Robert Castel


A construção de uma sociedade de indivíduos e a fragilidade dos suportes sociais. Qual é o futuro dos trabalhadores?


O dobre de finados soou para o liberalismo. Um artigo de Robert Castel

domingo, 12 de maio de 2013

Megaprojetos abrem Amazônia para saque de recursos

 

 
As águas esverdeadas do Rio Tapajós estão na mira dos investimos públicos e privados, seja para tornar mercadoria a água, a energia elétrica, os minérios, ou a terra, por meio do agronegócio em plena expansão. De acordo com levantamento do Observatório de Investimentos na Amazônia, há 30 usinas hidrelétricas planejadas ou em fase de construção na Amazônia. Somente no PAC II, estão previstos investimentos de R$ 94,14 bilhões para construção de hidrelétricas na região – R$ 67,38 bilhões para obras em andamento (Jirau, Santo Antônio, Belo Monte, Santo Antônio do Jari, Colider, Teles Pires, Estreito, Ferreira Gomes) e R$ 26,78 bilhões em novos projetos (São Luiz do Tapajós, Jatobá, São Manoel, Sinop).


A reportagem é publicada pelo jornal Brasil de Fato, 03-04-2013.

O BNDES emprestou volumosas quantias para empresas avançarem nas obras: até dezembro de 2011 já havia emprestado R$ 22,45 bilhões para a construção de UHEs na Amazônia, segundo dados do Observatório.

Na avaliação de Iury Paulino, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por ser a última fronteira de expansão do capital no Brasil e com base natural vantajosa, a Amazônia tem atraído grandes empresas nacionais e estrangeiras. “Qualquer empresa que se instalar na região vai conseguir lucros extraordinários. Inclusive remuneração acima de qualquer média de lucro do mundo, em qualquer atividade que fizer. Esse período de crise é um momento em que a gente tem percebido um direciona mento das forças do capital para fazer o saque dos recursos naturais”, afirma.

A conjuntura atual da Amazônia mostra novas formas de apropriação das riquezas naturais e dos territórios onde vivem povos indígenas e tracionais. “A gente não está mais falando daquela fase inicial dos grandes projetos da Amazônia, quando grandes empresas nacionais e internacionais olhavam pra cá como imenso espaço vazio que precisava ser ocupado. Ou quando o governo militar olhava para Amazônia e pensava que essa economia precisava ser integrada à economia nacional, era um espaço que precisava ser ocupado. Vivemos uma nova fase dos grandes projetos na Amazônia, mais voraz e destruidora do que nunca”, analisa a advogada da Terra de Direitos, Érina Gomes, que enxerga a exploração atual focada nos bens comuns, estratégicos para a soberania nacional, como a água e os minérios.

As hidrelétricas seguem como o carro-chefe de um conjunto de outros investimentos, fazendo a abertura do rio Tapajós para o capital. “É como se nós tivéssemos abrindo estradas dentro da floresta, estradas dentro da Amazônia para fazer o saque dos recursos naturais, porque aí vem a soja, os portos, as hidrovias. Já se ouve falar até em ferrovias. Tudo isso proporcionado por um megaprojeto em conjunto”, analisa Paulino.

Para o militante, energia é essencial em qualquer processo no mundo hoje, e por isso será alvo de grandes disputas. “A energia elétrica é central em qualquer processo, tanto como produto, quanto como incorporada no sistema produtivo. E quem domina as fontes de energia, certamente dominará o mundo, isso é razão de grandes conflitos, e nós estamos no olho desse furacão”, explica.

Adequação das leis

O avanço de grandes projetos na região amazônica está calcado em uma série de desregulamentação de direitos já conquistados pelos povos tradicionais e de preservação ambiental. Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos, chama a atenção para “agroestratégias” da bancada ruralista no Congresso e suas ramificações com as empresas nacionais e transnacionais.

Entre as reorganizações jurídicas estão as mudanças no Código Florestal, que diminuíram as áreas protegidas para aumentar a extensão de terra usada na produção de celulose e outros monocultivos, visando principalmente o mercado externo; o aumento da pressão sobre o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para não avançar na regularização e reconhecimento das terras quilombolas e indígenas; a não aprovação da PEC do trabalho escravo, que tira a terra dos fazendeiros e grandes empresas que escravizam trabalhadores; além da mudança no Código Minerário para o avanço na exploração em terras indígenas.

“O mais grave é que essas mudanças legislativas estão sendo feitas em âmbito nacional com o viés de retirada de direitos dos povos e comunidades tradicionais e para facilitar as grandes obras do PAC, tendo como carro-chefe a construção de grandes hidrelétricas no coração da Amazônia, num primeiro momento. Na sequência virão os projetos de mineração e as velhas práticas de grilagem de terras e devastação da floresta”, avalia Frigo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Glaciares e mudança climática

 

As variações na radiação solar que chega à Terra determinaram, há mais de 20.000 anos, os grandes glaciares. Os avanços e retrações dos glaciares de hoje costumam ser atribuídos à mudança climática produzida pelo homem e pode ser objeto de controvérsia.

O geólogo argentino Eduardo Malanino concedeu entrevista a Leonardo Moledo e que está publicada no jornal Página/12, 27-03-2013. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Conte-me.

Eu basicamente trabalho em dois temas. Um é quaternário: glaciação, mudança climática, tudo o que tem a ver com as glaciações, basicamente a partir do final do plioceno até os últimos avanços glaciares que houve em períodos históricos.

Falemos disso primeiro.

Bom, basicamente eu trabalho no campo de gelo patagônico, com as glaciações que ocorreram em períodos pós-glaciares. Depois da última grande glaciação, que foi há 23.000 anos, mais ou menos, houve glaciações. A partir daí os glaciares retrocederam; essas grandes glaciações que houve (por exemplo, no lago Buenos Aires eu encontrei seis) tiveram a ver com variações da radiação solar que chega à Terra, porque a Terra tem movimentos diferentes ao longo do tempo, ciclos, que fazem com que a quantidade de radiação que chega à Terra varie. Quem determinou isso foi Milankovich há muito t empo: quando ele disse isso, não podia ser provado, mas finalmente foi provado. Também estudou, ali, o que ocorreu depois do último retrocesso do glaciar.

Há 23.000 anos.

Sim. Houve várias oscilações. Há 23.000 anos é o máximo e aí começam a retroceder. Há 13.000 anos os glaciares estavam bastante mais atrás inclusive da posição que têm agora. A partir daí, há um avanço muito importante no Hemisfério Norte, que foi muito forte, e que durante muito tempo foi uma verdadeira incógnita, porque teve a magnitude das grandes glaciações. Mas aparentemente isso teve a ver com uma ruptura de um lago glacial que havia no norte do Canadá, que solubilizou parcialmente a salinidade do Atlântico e deteve a corrente marinha profunda. Isso provocou um esfriamento que...

Isso quando foi?

Há 13.000 anos, 11.000 anos. O interessante disto é que durante muito tempo não se soube qual era a causa. E esta que lhe conto é apenas uma teoria muito provável: ao se romper um enorme lago que havia no Canadá, a água doce se misturou com a corrente salina e em vez de afundar, porque a corrente afunda no Atlântico Norte, permaneceu na superfície. Ao permanecer na superfície, esfriou o Hemisfério Norte. Durante o máximo glaciar, o norte do Canadá está coberto de gelo. O que ocorre aí é que toda a água de fusão glaciar drenava pelo Mississipi até o Golfo do México. Havia um enorme lago entre a borda de gelo e a saída finalmente do emissário, que era o Mississipi. Em um determinado momento, se rompe o último dique que havia... Há duas opções: uma, que seja a baía de Hudson, que aí havia a massa de gelo e que de repente se rompeu, e esse lago gigante, porque é um lago gigante... Quando você pensa que os lagos, atualmente, no limite dos Estados Unidos e Canadá, representam apenas 15% desse lago gigante, se dá conta da magnitude que tinha. Chamava-se Agassiz. Quando se rompe esse último dique, se esvazia catastroficamente para o Ártico. O problema é que nesse momento existia a corrente marinha profunda e se afunda, viajando pelo fundo oceânico. Depois volta a subir já no Hemisfério Sul. Essa corrente funciona como transportadora de temperatura de lugares onde é muito alta para lugares onde é muito baixa e vice-versa; uniformiza a temperatura planetária. O problema é que, se eu a paro, vou ter um superesfriamento no Hemisfério Norte. Teoricamente, foi o que aconteceu.

Foi quando se fechou o estreito de Bering?

Não, isto é ao contrário. O que há aqui é a liberação de um enorme lago de água doce que se mistura com a corrente salina, qu e a essa altura está na superfície, mas que começa a afundar por uma diferença de densidade, tira-lhe a densidade, e isso faz com que todo o sistema pare, se superesfrie o Hemisfério Norte e se produza a glaciação. Essa glaciação nunca foi verificada no Hemisfério Sul, e a encontramos com um colega no campo de gelo patagônico. Em Puerto Banderas, no lago Argentino, estamos entre 13 e 11.000 anos. A partir daí retrocede à glaciação, mas há, em tempos históricos, avanços glaciares. Chamam-se neoglaciações, porque já não têm a magnitude das grandes glaciações. E estas são interessantes porque são provocadas pela radiação solar. O Sol tem ciclos de maior e menor atividade. E isto, justamente, por observações circunstanciais que se fizeram ao longo de muito tempo, presença ou ausência de manchas solares, permitiu chegar à conclusão de que há períodos em que o Sol tem baixa atividade...

A pequena era do gelo.

Exatamente. Mas a pequena era do gelo não é verdadeiramente uma pequena era do gelo. São vários eventos de esfriamento separados por eventos de maior temperatura.

A pequena era do gelo fez com que os vikings deixassem de viajar para a América, por exemplo.

Claro, mas não foi uma só. Essa é a questão. Aqui se meteu tudo no mesmo saco, a tal ponto que inclusive se discutiu durante muito tempo sua existência. Isso é algo que muitos meteorologistas estão discutindo. Porque aqui há um problema: se se aceita que há ciclos nos quais o Sol passa por maior ou menor atividade solar, e quando há menor atividade solar há uma relação direta com avanços glaciares e quando há maior atividade com retrações glaciares, é preciso reconhecer que o clima é algo notavelmente va riável, não que permaneça constante e de repente há grandes mudanças. Não apenas se esfria, mas que também se esquenta. A média global, durante um mínimo glaciar, é 1,5 °C menor que a média normal.

E quanto tempo dura?

Na ordem de cerca de 180 anos. E aqui vem uma questão interessante. Nós vemos isto no campo de gelo patagônico; nós temos diques morénicos que podem ser datar muito bem datados, porque esses diques são diques neoglaciares que estão relacionados com esta variação solar. Há muitos métodos para datá-los, com erros relativamente pequenos. O interessante, inclusive em alguns casos...

O que é o depósito morénico?

Quando o glaciar empurra detritos, e quando retrocede deixa algo. Isso é o depósito. Quando se o lha como são os valores, há uma separação temporal muito rítmica com relação a esse tema. E o interessante é que o último esfriamento, que é o mínimo de Dalton, ocorre há aproximadamente cento e tantos anos. Desde então, subiu a temperatura. E aqui vem uma discussão chave...

Se o aquecimento global tem a ver com o homem ou não.

Claro. Os que apostam fortemente em que é o homem o principal agente são os do IPCC, para o qual eu trabalhei entre 1994 e 1998. Pediram-me para fazer toda a parte da evolução da criosfera da América do Sul. Nós temos dois glaciares paradigmáticos: um é o Moreno, que supostamente está em equilíbrio, embora na realidade avance. Quando se topa com a península de Magallanes, se faz um dique e a água rompe o dique. Mas se não fosse a península, avançaria. O outro é o Upsala, um glaciar que tem uma taxa de retr ocesso alucinante. Não há nenhum outro glaciar que retroceda a essa velocidade, e por é tomado como exemplo de aquecimento global antropogênico. Viemos estudando o Upsala desde 1991, e chegamos à conclusão de que é um glaciar que retrocede muito porque tem problemas mecânicos. O problema é que esse glaciar, quando avançou, apoiou-se nesses arcos morénicos, dos quais lhe falava, que são como montanhas transversais ao leito do lago. Quando retrocede e está apoiado, não há problema, mas de repente perde parte da frente. E aí se soltam 300 ou 400 metros de frente glaciar. Bom, e há outros fenômenos como a água... Mas o importante aqui é que nós determinamos que, se retrocede, é por motivos mecânicos, não climáticos.

E então?

Quando escrevi tudo isto para o IPCC cortaram essa parte. Eu perguntei por que e me disseram que não podiam colocar tudo, mas o problema era que não estava colocando o que se queria demonstrar, que era que o glaciar estava retrocedendo por questões climáticas. Eu demonstrava que retrocedia por razões mecânicas. Isso me produziu um forte desencanto, porque me dá a sensação de que qualquer argumento contrário à antropogênese do aquecimento global é preciso silenciar.

Não acredita, então, na antropogênese da mudança climática?

Durante muito tempo acreditei que fosse assim, mas à medida que fui avançando no trabalho de campo fui colocando em questão as minhas suposições.

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