quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Vivemos em um regime de produtos com preços mentirosos

“Vivemos em um regime de produtos com preços mentirosos”. Entrevista com Ricardo Abramovay


As mudanças na perspectiva ambiental passam necessariamente por alterações no setor empresarial. Essa é opinião do economista Ricardo Abramovay, que esteve em Curitiba ontem para participar do Fórum Sustentabilidade e Governança – evento direcionado a gestores de grandes empresas.



Abramovay destaca que bem-estar e qualidade de vida não precisam estar atrelados a consumismo e desperdício de recursos naturais. O acesso a transporte público de qualidade, por exemplo, faria muitas pessoas desistirem de ter automóvel.



Autor do recém-lançado livro Muito além da economia verde, o professor desenha um panorama em que a valorização dos recursos ambientais afeta os preços dos produtos e propõe que o Brasil assuma o protagonismo mundial na construção de um novo modelo econômico.



A entrevista é de Katia Brembatti e publicada pelo jornal Gazeta do Povo, 22-08-2012.



Eis a entrevista.



O senhor combate a ideia do crescimento como único caminho para o desenvolvimento. No entanto, apostar na eficiência como via para o desenvolvimento não colocaria as nações mais ricas em posição de ainda maior superioridade?



Não, porque os responsáveis pela eficiência são as empresas que hoje têm uma presença global. Isso por si só não é um fator que compromete a competitividade de países mais pobres em benefício de países mais ricos. A matriz energética dos Estados Unidos e do Canadá está se tornando mais dependente de combustíveis fósseis. É verdade que o gás tem uma presença forte e é menos nocivo que o carvão, mas isso significa que esses países vão investir em energias renováveis menos do que a gente esper aria. Vão ampliar as suas capacidades competitivas, ao menos até 2020, não com base na adoção de energias renováveis não acessíveis a outros países, mas em energia suja ou um pouco menos suja. Então, não acho que isso traga um componente adicional de desigualdade.



Alguns países não se mostram sensíveis à necessidade de usar energia mais limpa. Existe um mecanismo capaz de forçar essa mudança ou isso é da regra do mercado?



O mecanismo que existe é muito frouxo, como os tratados internacionais. E o aquecimento global talvez seja uma das questões mais importantes para o futuro da espécie humana. O fato é que sabemos que estamos numa rota que coloca a temperatura média do planeta durante o século 21 acima de 2 graus celsius. Existem instâncias locais e nacionais com metas precisas. Mas a humanidade não tem uma meta de redução de emissões para fazer frente a esse aumento de temperatura.



Como in tegrante de um grupo de pesquisa de mudanças climáticas, o que tem a dizer aos céticos sobre o aquecimento global?



Leiam as revistas científicas. Os grupos que negam as mudanças climáticas publicam apenas o que se chama de literatura cinzenta. Ciência não é verdade nem certeza. Ciência é crítica e dúvida, mas qualificadas. A qualificação está na avaliação pelos pares, através das revistas científicas de qualidade. Eu fui ver os currículos dos 18 professores que enviaram para a presidente Dilma Rousseff um manifesto dizendo que o aquecimento global é uma bobagem. Nenhum deles tem publicação científica nos últimos cinco anos em uma revista de qualidade sobre mudanças climáticas.



Fazer os que usam helicóptero passarem a andar de bicicleta é o caminho? Ou será preciso esperar o nascimento de uma nova geração?



A ideia de que é preciso persuadir os mais ricos não leva em conta como ocorrem mudanças sociais. O que tem de válido nessa ideia é que mudanças sociais da envergadura que precisaremos enfrentar vão exigir lideranças, que vêm do setor privado, associativo e governamental. É muito importante localizar essas lideranças. Pelo exemplo, pela narrativa que são capazes de criar, elas incutem um espírito de que é possível fazer as coisas de uma forma diferente. Mas as mudanças precisam atingir os cidadãos.



E como é possível chegar aos cidadãos?



Eles precisam ser colocados diante de situações em que a renúncia a produtos e serviços característicos da sociedade de consumo e de alto impacto sobre o meio ambiente não signifique piorar a qualidade de vida. O melhor exemplo é o transporte coletivo. Hoje as pessoas amam o carro como se, por si só, ele fosse um valor, mas se nós vivêssemos numa sociedade como em Londres, em que o transporte público realmente funciona, as pessoas não iam querer ter carro porque é um gasto absurdo.



A solução é a combinação de pequenas mudanças?



É preciso uma posição firme para ter grandes mudanças. Ou seja, mudanças que representem rupturas para o modelo de hoje. O gradualismo não está funcionando e não vai funcionar. Temos hoje o consumo da biodiversidade, a elevação das temperaturas, as cidades cada vez menos amigáveis, embora com mais riqueza – mas menos gente participando dessas riquezas.



O senhor palestrou para um público empresarial. Que semente espera ter plantado?



A mais importante é de a que a inovação tem que ter um foco não apenas na diminuição de custos, no aumento da produtividade, mas, sim, na sustentabilidade, no melhor uso dos recursos, na urgência de promover reciclagem, reuso, redução de resíduos. As pessoas que participam de um seminário como esse estão buscando caminhos de mudanças além das graduais que a sociedade está passando.



Será que esses empresários vão conseguir fazer a ruptura que defende?



Se eles não conseguirem fazer a ruptura com as formas tradicionais de tocar os negócios, os resultados vão ser catastróficos para eles e piores ainda para nós. Porque, de qualquer maneira, a mutação pela qual nós temos que passar está ligada à invenção, à experimentação que se materializa na empresa e só depois vai para o conjunto da sociedade. E os parâmetros não podem ser só os preços e a obtenção de lucro. Precisamos corrigir isso. Vivemos em um regime de produtos com preços mentirosos.



Como assim?



O sistema econômico não paga pelo conjunto de bens que usa. São os serviços ambientais, como água, biodiversidade, lixo, mudanças climáticas etc. Se a cadeia siderúrgica japonesa, por exemplo, precisasse pagar o real valor da água que usa, os lucros cairiam 40%.



Colocar no preço dos produtos o valor dos serviços ambientais é a saída?



Sim. O problema é que no Brasil somos dependentes de uma economia que usa fortemente os serviços ambientais e toda nossa estratégia não é no sentido de valorizar esses recursos. Acho que é uma estratégia equivocada. O Brasil tinha que liderar um grande movimento internacional para elevar a barra de preços dos produtos primários para um outro padrão, aos moldes da certificação FSC, do setor madeireiro. Mas a nossa diplomacia não vai nessa direção.



As empresas estão realmente interessadas em ser sustentáveis?



Na sua esmagadora maioria, não. Pesquisas internacionais mostram que 80% das empresas estão preocupadas com meio ambiente, mas isso não quer dizer nada. Não significa que o empresário incorporou mudanças ao modelo de negócio dele. E aí mais uma vez os preços vão ter papel fundamental.



As ações individuais adiantam ou a mudança de paradigma só vai funcionar em escala?



A atitude individual tem função importante pelo seu caráter exemplar, mas só vai funcionar quando for em escala.







Para Abramovay, bens produzidos necessitam ter relevância social

Há 20 anos, a teoria econômica preconizava que, se cada agente usasse suas competências para satisfazer os consumidores e se houvesse liberdade, sem intervenções do Estado, tudo funcionaria bem. "Esse raciocínio, aceitável num mundo de 3 bilhões de habitantes, não funciona num planeta que logo terá 10 bilhões de pessoas ", diz Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP.



A reportagem é de Gisele Paulino e publicada no jornal Valor, 21-08-2012.



Abramovay é filósofo, mas muitos o tomam por economista. Ele dedicou-se a entender as razões pelas quais a sociedade atual está produzindo, e as conclusões estão em seu novo livro: "Muito Além da Economia Verde", lançado pela Editora Planeta Sustentável.



Nele, o professor propõe uma economia capaz de criar bens que tenham relevância para a sociedade e para a comunidade. "Isso não significa renunciar à vocação natural que é obter lucro. Mas as empresas terão, de agora em diante, que obter lucro oferecendo produtos com utilidades reais, capazes de propiciar bem-estar para a população", diz ele.



Sob essa lógica, não basta que um produto gere empregos, receitas, impostos, inove e atenda demandas genéricas da sociedade. "É necessário que seja produ zido com ecoeficiência. Os impactos que terão na vida das pessoas e nos ecossistemas, sua capacidade de reduzir a pobreza e aumentar o bem-estar das pessoas deverão ser levados em conta", diz. "O crescimento econômico deve acontecer com bens e serviços voltados para preencher demandas sociais, respeitando limites dos ecossistemas."



Segundo Abramovay, depois de duas décadas de queda nos índices, a pobreza voltou a aumentar. Por isso, é necessário que questões éticas sejam colocadas no centro desse debate. Em seu livro, ele cita os números revelados em "Geografia da Fome", obra de Josué de Castro, editada em 1946. Na época, entre dois terços e três quartos da população latino-americana não ingeriam o suficiente para suprir suas necessidades básicas. Esses índices melhoraram. Em 2010, segundo o Global Hunger Index, o número de famintos fica em torno de 5%, da população, mesmo nas regiões do Semiárido e a Zona da Mata do Nordeste brasileiro. Em 1970, a fome atingia 37% da população mundial. Hoje o mundo tem 1 bilhão de famintos.



"A associação entre fome e subdesenvolvimento, no entanto, hoje é questionada", diz Abramovay. Ele lembra que a fome pode ser reduzida em lugares onde outras formas de pobreza como violência, falta de acesso a serviços básicos e à educação muitas vezes foram ampliadas. "De qualquer forma, a redução da fome no mundo é nítida", diz.



Entre 1998 e 2008, a quantidade de pessoas que vivem com menos de US$ 2,75 por dia caiu de 30% da população mundial para 17%. Outro fenômeno é o aumento da classe média. Segundo ele, estima-se que em 2030, metade da população mundi al terá renda entre U$ 6.000 e U$ 30.000. Desde o início do século 21, todo ano, aproximadamente 70 milhões de pessoas ingressam nessa faixa de renda. Até 2030, cerca de 3 bilhões de pessoas devem fazer parte de uma nova classe que gasta U$ 10 e U$ 100 diários, consequência da redução da pobreza que leva à massificação de consumo.



O livro traz exemplos de estratégias corporativas bem-sucedidas para a base da pirâmide na Ásia, África e América Latina, como o produto da Danone vendido a R$ 0,18, tênis da Adidas vendido em Bangladesh por R$ 2,20 e cosméticos em miniatura vendidos na Índia por alguns centavos.



Na América Latina, a taxa de pobreza caiu de forma expressiva também devido a fatores como programas de transferência de renda e melhorias nas condições de emprego. No livro, ele destaca o caso brasileiro. A renda per capita das famílias correspondentes aos 10% mais pobres aumentou 120% entre 1993 a 2008.

domingo, 19 de agosto de 2012

A União Europeia gera viés contrário à social-democracia






"O grande problema político atual da Europa, portanto, e cuja gravidade alternância nenhuma no poder será capaz de equacionar isoladamente, pode ser formulado da seguinte maneira: a União Europeia, dado seu modo de operar, gera claro viés contrario à vigência de políticas de cunho social democrata no âmbito interno dos países", escreve Fabiano Santos, cientista político, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no artigo "Das imperfeições democráticas na Europa", publicado pelo jornal Valor, 20-07-2012.



Segundo ele, "a lição que fica para a esquerda (europeia) é de que extremo cuidado deve cercar decisões envolvendo o tema da integração regional. O problema nacional, assim como a possibilidade de ativismo estatal no campo econômico são paradigmas essenciais tanto para o discurso, quanto para as políticas de quem se define como alternativa aos partidários do livre mercado. Abrir mão destes paradigmas pode significar mais do que simplesmente assistir à queda da social democracia. Pode significar a impossibilidade de efetiva alternância democrática no poder".



Eis o artigo.



As últimas eleições europeias, independentemente da tendência ideológica do partido vitorioso, se liberal ou social democrata, de esquerda ou de direita, trouxeram sempre o mesmo veredicto: a oposição ganha e, por óbvio, o governo perde. Na Dinamarca e na França, a esquerda desbancou governos de inclinação conservadora. Em Portugal, na Espanha, na Grécia e na Inglaterra o contrário ocorreu, a saber, partidos de direita derrotaram governos socialistas, social democratas ou trabalhistas, retornando ao poder, em alguns casos, depois de longo período na oposição. Além disso, na Itália, após a queda do inacreditável Berlusconi e um governo técnico emergencial, a esquerda demonstra boas perspectivas de vitória.



Qual o grande aprendizado a ser extraído do cenário europeu contempo râneo? Existem de fato alguns aspectos positivos a serem ressaltados, aspectos, contudo, incapazes de fazer frente ao grande drama político vivido pelo velho continente.



Entre os aspectos positivos podemos elencar os seguintes: o fato de estarem os países enfrentando profunda crise econômica e seus governos, incapazes de ensejar políticas de elevação do desempenho de indicadores básicos, supostamente aumenta a probabilidade de derrota de tais governantes e a alternância de poder. Nada mais democrático e racional. É de se admirar também o fato de tais mudanças estarem ocorrendo dentro dos marcos do sistema partidário vigente. Até o momento, não há notícia de vitória de partidos radicais, propagandistas de paixões nacionalistas ou xenófobas (com a provável exceção da Hungria).



Ademais, onde ocorre realinhamento mais significativo, como, por exemplo, na Grécia, com a aparição da Syriza, a mudança caminha na direção da rearticulação da esquerda organizada politicamente com sua clientela eleitoral por excelência, vale dizer, dos assalariados, desempregados e vítimas em geral do funcionamento do mercado. O velho partido socialista, Pasok, parece a esta altura fadado à marginalização ou à pura e simples extinção.



Por sua vez, na Espanha, em Portugal, na Alemanha e na Inglaterra, os grandes partidos de esquerda passam por profunda reavaliação do legado da terceira via. Esta linha política, adotada inicialmente pelos trabalhistas ingleses sob a liderança de Tony Blair, acabou sendo emulada, logo em seguida, por vários partidos de esquerda no continente. Sua tese fundamental consistia na necessidade de renovação do discurso e da prática da esquerda, necessidade decorrente das alterações na morfologia do capitalismo introdu zidas pela globalização. "Renovação" no caso significava a aceitação da premissa básica de funcionamento da ordem social propugnada pelo liberalismo, a saber, que o dinamismo econômico de um país decorreria naturalmente da liberdade e segurança fornecidas pelo governo às empresas e aos investidores, nacionais e multinacionais, para uma eficiente alocação de seus recursos e capacidades. Tamanha guinada no discurso, todavia, não se limitou ao campo da retórica eleitoral, pois no âmbito econômico, sobretudo, políticas no âmbito macro e micro seguiram a linha da rigidez monetária, desregulamentação financeira e alívio das contas nacionais através da redução dos benefícios do welfare.



Difícil dizer se a estratégia da terceira via resultou de uma genuína alteração de crenças, ou do mais desavergonhado e puro cálculo eleitoral, com partidos à esquerda buscando o eleitor de centro, eleitor que cada vez mais se deslocava para o campo libe ral. Provavelmente um mix das duas motivações. A verdade é que hoje surge a questão de se saber até que ponto o excesso de moderação não acabou em capitulação e alienação de boa parte de seu eleitorado tradicional. A pergunta é ainda mais relevante quando se nota que tanto a unificação monetária (válida para os casos de Grécia, Itália, Espanha e Portugal), quanto a desregulamentação dos mercados financeiros vem conduzindo a economia destes países ao desastre.



O grande problema político atual da Europa, portanto, e cuja gravidade alternância nenhuma no poder será capaz de equacionar isoladamente, pode ser formulado da seguinte maneira: a União Europeia, dado seu modo de operar, gera claro viés contrario à vigência de políticas de cunho social democrata no âmbito interno dos países. Isto porque a unificação monetária foi feita sem legislação comum de controle dos fluxos financeiros, sem compensações aos países menos competitivos no comercio internacional e, sobretudo, sem que tenha sido criada uma base comum de arrecadação fiscal. Ora, não se trata exatamente de novidade a noção de que sem tributo não há governo, e sem governo não há controle político do mercado - mas não residiria justamente aí o fundamento da social democracia?



A estratégia do recém-eleito presidente da França, o socialista François Hollande, é, por conseguinte, mais do que acertada. Não há possibilidade de alteração significativa no status quo das políticas seguidas pelos principais países da zona do euro, priorizando o crescimento e o emprego, sem que haja uma articulação e coordenação envolvendo vários governos nacionais. Crucial saber, neste sentido, o resultado das próximas eleições italianas e o poder de resistência dos conservadores na Alemanha frente à pressão por mudanças de países tão influentes como França e Itália. Seja como for, a lição que fica para a esquerda é de que extremo cuidado deve cercar decisões envolvendo o tema da integração regional. O problema nacional, assim como a possibilidade de ativismo estatal no campo econômico são paradigmas essenciais tanto para o discurso, quanto para as políticas de quem se define como alternativa aos partidários do livre mercado. Abrir mão destes paradigmas pode significar mais do que simplesmente assistir à queda da social democracia. Pode significar a impossibilidade de efetiva alternância democrática no poder.