sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Paul Virilio: por uma História das rupturas

Paul Virilio
20/10/2008

O crash atual representa o acidente integral por natureza'. Entrevista com Paul Virilio


Há trinta anos o filósofo Paul Virilio analisa as catástrofes como a conseqüência inelutável do progresso técnico. Ele vê na crise financeira o exemplo mais acabado de sua tese, na qual as vítimas não são mais os mortos, mas os milhares de desabrigados que perdem suas casas. Ele vê na crise financeira o exemplo mais acabado de sua tese, na qual as vítimas não são mais os mortos, mas os milhares de desabrigados que perdem suas casas. Virilio diz que "nossas proezas técnicas são grandes promessas catastróficas".

A entrevista é de Gérard Courtois e Michel Guerrin e publicada pelo jornal Le Monde, 18-10-2008. A tradução é da Agência Carta Maior, 19-10-2008.

Paul Virilio é urbanista, filósofo, ensaísta, ex-diretor da Escola de Arquitetura de Paris, autor de, entre outros livros, A Arte do Motor, Velocidade e Política, A Bomba Informática e A Estratégia da Decepção.

Eis a entrevista.

Em 2002, sob o título “O que acontece”, você apresentou à Fundação Cartier uma exposição sobre o acidente na história contemporânea: Chernobyl, 11 de setembro, tsunami...Uma fórmula de Hannah Arendt guiava sua demonstração: “O progresso e a catástrofe são as duas faces de uma mesma moeda”. Com o crash das bolsas, onde estamos?

De fato, em 1979, no momento do acidente da central nuclear de Three Mile Island, nos EUA, eu evoquei um “acidente original” - desses que nós mesmos fabricamos. Eu dizia que nossas proezas técnicas são grandes promessas catastróficas. Antes, os acidentes eram locais. Com Chernobyl, passamos aos acidentes globais, às conseqüências inscritas na duração. O crash atual representa o acidente integral por excelência. Seus efeitos se difundem ao longe, e ele integra a representação dos outros acidentes.

Faz trinta anos que se produz o impasse sobre o fenômeno de aceleração da História e que essa aceleração é a fonte de multiplicação dos grandes acidentes. “A acumulação põe fim à impressão de acaso”, dizia Freud a propósito da morte. Sua palavra-chave aqui é acaso. Esses acidentes não são casuais. Nos satisfazemos neste momento em estudar o crash das bolsas sob o ângulo econômico ou político, com suas conseqüências sociais. Mas não se pode compreender o que se passa se não se põe sob investigação uma economia política da velocidade, gerada pelo progresso das técnicas, e se não a relaciona ao caráter acidental da História.

Vamos dar só um exemplo: dizemos que tempo é dinheiro. Eu acrescento que a velocidade – a Bolsa o prova -, é o poder. Nós passamos de uma aceleração da História a uma aceleração do real. É isso o progresso. O progresso é um sacrifício consentido.

Não estudamos os acidentes suficientemente?

A historiografia dominante se limita a analisar os fatos de longa duração. Eu defendo, ao contrário, uma história acidental, feita unicamente de rupturas. O historiador François Hartog fala do “presentismo” dominante. É preciso ir além. Nós vivemos no “instantaneísmo”.

Para compreender os acidentes, é preciso estudá-los, mas também os expor. O acidente é uma invenção, um trabalho criativo. Quem, melhor que os artistas, poder fazer sentir a dimensão trágica do progresso? Daí a exposição “O que acontece” - nela eu abordava o crash da bolsa -, que prefigurava um museu ou um observatório dos grandes acidentes a que chamo de meus votos. Não para causar medo, mas para enfrentar.

Como definir, para além de seu aspecto de surpresa, o acidente das bolsas?

Como para todo acontecimento contemporâneo, é preciso levar em conta uma série de sincronizações em nível mundial. Sincronizações de hábitos, de costumes, de maneiras de reagir, mas também das emoções. Passamos de um comunismo de classe a uma mundialização instantânea e simultânea dos afetos e dos medos – e não mais das opiniões. Foi o caso do World Trade Center ou com o tsunami.

Com este crash da bolsa é a mesma coisa. Depois de uma curta fase técnica – quebra de bancos, queda de preços -, passamos a um período de “histericização” exagerada das reações. Fala-se de “loucura dos mercados”, de reações “irracionais”, quase de fascinação pelo fim do mundo. Os terroristas compreenderam muito bem esse fenômeno e jogam com ele.

Você crê como certo que o capitalismo se aproxima do seu fim?

Penso antes que é o fim que se aproxima do capitalismo. Eu sou urbanista. O crash mostra que a terra é pequena demais para o progresso, para a velocidade da História. Daí a repetição dos acidentes. Nós vivemos com a convicção de que temos um passado e um futuro. Ora, o passado não passa; ele se tornou monstruoso, ao ponto em que não o tomamos mais como referência. Quanto ao futuro, ele é limitado pela questão ecológica, o fim programado dos recursos naturais, com o petróleo. Resta, portanto, o presente a habitar. Mas o escritor Octavio Paz dizia: “O instante é inabitável, como o futuro”. Nós estamos vivendo isso, inclusive os banqueiros.

É aqui e agora que isso está em jogo. Um novo aspecto se criou. Não é a finitude que é triste, é a realidade. É preciso aceitá-la. O crash nos ensina que é preciso vivê-lo na sua grandeza própria, num mundo acabado. Nós temos uma obrigação de inteligência de fazer isso.

A finança não inventou um mundo virtual?

A velocidade fazia com que se ganhasse dinheiro, a finança quis impor o valor-tempo ao valor-espaço. Mas o virtual também faz parte da realidade. E além do mais, o soi-disant mundo virtual, no qual se pode englobar paraísos fiscais, é o do exotismo, que eu assimilo ao do colonialismo; é o mito de um outro planeta habitável.

À diferença dos outros acidentes, o crash da bolsa permanece hermético à maioria do público. Isso é grave?

Não compreendemos, mas intuímos e isso é suficiente. É preciso intuir o que acontece. Evidentemente, a incompreensão reforça o medo. Mas, ao mesmo tempo, não temos mais tempo de ter medo. O mais inquietante é a aparição de uma dissuasão civil, individual, íntima, que ganha todos os domínios da vida. Somos dissuadidos de fazer tal ou tal coisa como indivíduos. Desde o 11 de Setembro fomos tomados por um medo civil, em função da industrialização do acidente. Para verificar a solidez dos automóveis, efetuamos os testes de colisão. O crash da bolsa é um teste de colisão de natureza grandiosa. Até o divórcio se industrializa. Poderia se introduzir uma cotação nos divórcios, como para medir se o casal e a família se tornaram ilusões.

Pode-se falar de moral do crash, no sentido em que ele também pune aqueles que ganham fortunas?

Eu não sou um justiceiro. Compreendo os críticos que dizem que alguns obtiveram lucros indecentes. Eu não nego os estragos da acumulação de riquezas. Mas criticar essa aceleração dos lucros e da História, essa “avareza galopante”, como dizia Eugène Sue, permanecer no quadro materialista do lucro é uma análise redutora, insuficiente.

O que está em jogo é mais sofisticado e grave. Nós passamos por algo de uma outra natureza. Essa economia da riqueza se tornou uma economia da velocidade. É de resto o problema da esquerda. Eles aplicam os velhos esquemas, proclamam a morte do capitalismo, esperando mais justiça social. Esse diagnóstico é um pouco apressado. Temos realmente um grande bebê no colo...Se o Estado não assume a medida desse futurismo do instante, poderíamos ao contrário ver chegar um capitalismo sem limites.

Você disse que “A Airbus, ao inventar um avião de 800 lugares, criou 800 mortos potenciais”. Mas o crash das bolsas não causou mortes...

Não é a peste, não há milhões de vítimas, não é tampouco o 11 de Setembro. E não é a mortalidade que conta agora, afora alguns suicídios. As vítimas são outras. De onde parte a crise atual? Dos subprimes, das casas à venda a crédito em condições impossíveis. Do solo. As vítimas são algumas centenas de milhares de pessoas que perderam suas casas. A noção de sedentariedade já está posta em causa com os imigrantes, deportados, refugiados, o deslocamento das empresas, etc. O fenômeno vai se acentuar. Até 2040, um milhão de pessoas serão forçadas a se mudarem do lugar em que vivem. Eis aí as vítimas. Nós estamos na noção do stop/eject. Paramos e ejetamos.

Você acredita no caos?

Depois do sistema financeiro haver se destabilizado, o crash ameaça desestabilizar o Estado, a última garantia de uma vida coletiva. Neste momento ele tenta tranquilizar. Mas se a Bolsa continua a cair, é o Estado que irá à falência, e porá as nações no caos. Não se trata de catastrofismo de minha parte. Eu não acredito no pior, não acredito no caos; é absurdo, é arrogância intelectual, mas não se deve se impedir de pensar. Diante do medo absoluto, eu oponho a esperança absoluta. Churchill dizia que o otimista é alguém que vê uma oportunidade em cada calamidade.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Zeitgeist Addendum

Zeitgeist Addendum, continuação de Zeitgeist, o Filme.

link para o filme com legendas em português: http://www.forumlusitana.org/opinioes-e-devaneios-f3/novo-zeitgeist-addendum-sequela-de-zeitgeist-t775.htm

link zeitgeist: www.thezeitgeistmovement.com

Assistam e divulguem.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

CODEX Alimentarius: os últimos dias de liberdade na saúde?


(Fonte: enzimato.blogspot)


A partir de 01 de Janeiro de 2010 entra em vigor o polêmico Codex Alimentarius.

Mas você não sabe exatamente o que é isso, pois não?... Pois é exatamente o que eles querem!

O Codex Alimentarius é um Programa Conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação - FAO e da Organização Mundial da Saúde - OMS. Trata-se de um fórum internacional de normalização sobre alimentos - sejam estes processados, semiprocessados ou crus - criado em 1962, e suas normas têm como finalidade "proteger a saúde da população", assegurando práticas equitativas no comércio e manuseio regional e internacional de alimentos. Sua influência se estende a todos os continentes e seu impacto na saúde dos consumidores e nas práticas do comércio de alimentos em todo o planeta será incalculável.

As normas Codex abrangem ainda aspectos de higiene e propriedades nutricionais dos alimentos, código de prática e normas de aditivos alimentares, pesticidas e resíduos de medicamentos veterinários, substâncias contaminantes, rotulagem, classificação, métodos de amostragem e análise de riscos.

Olhado assim, na versão oficial (exceto as aspas), parece uma coisa boa, certo? Bem, não exatamente... e, na verdade o Codex é olhado com total "desconfiança" (para usar uma palavra elegante) por todos os que denunciam que essa regulação tão "abrangente" virá a ser uma fonte poderosa de controle sobre as grandes populações e de apreciável lucro para as grandes corporações, especialmente as dos ramos químico e farmacêutico.

Quem controla a comida, controla o mundo!

Traduzido em miúdos, o Codex vai trazer severas restrições à nossa já precária LIBERDADE de escolha em termos de alimentação e prevenção/tratamento de doenças. Sem falar que considerações mais complexas podem ser feitas sobre o impacto dessas medidas no controle populational do planeta e na concentração de riquezas...

Os opositores do Codex fizeram uma síntese do que representará essa complexa rede de regulamentações, que, quando implementadas, serão MANDATÓRIAS para todos os países membros, cerca de 170 - o que inclui o Brasil:

- Suplementos nutricionais, como vitaminas, por exemplo, não poderão mais ser vendidos para uso profilático ou curativo de doenças; potências de qualquer suplemento liberado, estarão limitadas a dosagens extremamente baixas, sub-dosagens, na verdade, e somente as empresas farmacêuticas terão autorização para produzir e vender esses produtos (preferencialmente na sua forma sintética) em potências mais altas - no caso da vitamina C, por exemplo, qualquer coisa acima de 200mg será considerada "alta", e será necessária uma receita médica para se poder comprá-la.

- Alimentos comuns, como o alho ou o hortelã, por exemplo, poderão ser classificados como drogas, que somente as empresas farmacêuticas poderão regulamentar e vender. Qualquer alimento ou bebida com qualquer possível efeito terapêutico poderá ser considerado uma droga.

- Alimentos geneticamente modificados não precisarão ser identificados como tal, e não saberemos a origem do que estamos comendo; a criação de animais geneticamente modificados também já consta dessa mesma pauta, ou seja, vai ser difícil saber que bicho se está comendo.

- Aditivos alimentares, a maioria sintéticos, como o aspartame, por exemplo, serão aprovados para consumo sem que se tenha conhecimento dos efeitos a longo prazo de cada um nem das interações entre eles a curto e longo prazos.

- Todos os animais destinados ao consumo humano, deverão receber hormônios e antibióticos como medida profilática; sabe aquele "gado orgânico", criado solto em pastagens e tratado só com homeopatia?... nunca mais!

- Todos os alimentos de origem vegetal deverão ser irradiados antes de serem liberados para consumo: frutas, verduras, legumes, nozes... nada mais chegará à nossa mesa como a natureza fez - tem gente brincando de Deus, mas desta vez não para criar, e sim para DEScriar.

- Os produtos "orgânicos" estarão completamente descaracterizados, pois terão seu padrão de pureza reduzido a níveis passíveis de atender às necessidades de produção em grande escala; alguns aditivos químicos e várias formas de processamento serão permitidos; tampouco haverá obrigatoriedade por parte do produtor de informar que produtos usou e em que quantidades - rótulos não serão obrigatórios na era pós-Codex.

- Para a agricultura convencional, os níveis residuais aceitáveis de pesticidas e herbicidas estarão liberados em níveis que ultrapassam em muito os atuais limites de segurança! Em outras palavras, estarão envenenando nossa comida.

Em síntese: os objetivos do Codex incluem (1) globalização das normas, (2) abolição da agricultura/criação orgânica, (3) introdução de alimentos geneticamente modificados, (4) remoção da necessidade de rótulos explicativos de qualquer espécie, (5) restrição de todos os remédios naturais, que serão classificados como drogas.

O Codex, na verdade, já começou a "acontecer" por aqui - alguém já reparou que não se consegue comprar nada numa farmácia de manipulação sem ter uma receita médica? Nem uma inocente vitamina C... Em compensação pode-se comprar praticamente qualquer coisa SEM receita médica numa farmácia regular, que vende produtos industrializados, mesmo se forem antibióticos, anti-inflamatórios... - e até aquela mesma vitamina C que nos negaram há pouco na outra farmácia...

Indicar aquele chazinho para um amigo? Ou quem sabe informar ao vizinho que farelo de aveia ajuda a reduzir o colesterol? Sugerir que mamão solta e banana prende?... Nem pensar! Poderá ser considerado "prática ilegal da medicina"! Não se poderá dizer que produtos naturais curam doenças porque não são medicamentos e, na era pós-Codex, só medicamentos APROVADOS pelas novas regras poderão ser referidos para tratar doenças... e assim mesmo, só por um médico!

Exagero? Quem sabe? - já teve gente presa na França por vender 500mg de vitamina C... é que lá essa potência já é considerada "remédio", e não pode ser vendida sem receita médica.

Medicina alernativa, tibetana, ayurveda, homeopatia, essencias florais... só se a turma do Codex disser que pode. Se esse "programa" entrar em vigor (daqui há pouco mais de 1 ano) da forma como vem sendo "curtido" há mais de 45 anos, e alertado mundo afora, teremos perdido nossa liberdade de optar por uma medicina e nutrição naturais, poderemos vir a precisar de receita médica até para ir à feira...

Se isso acontecer, não vai ter graça nenhuma.

Vale a pena saber mais!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Fim do neo-liberalismo ?

Joseph Stiglitz
Brasil corre risco de sofrer com a crise, diz Nobel de economia Para Joseph Stiglitz, ninguém está imune e País precisa se preparar para enfrentar cenário de créditos escassos.

Jamil Chade, de O Estado de S. Paulo

GENEBRA - O Brasil não está imune à crise e corre o risco de sofrer uma bolha na agricultura diante da crise internacional. O alerta é do prêmio Nobel de economia, Joseph Stiglitz, que em entrevista ao Estado alerta que o Brasil precisa se preparar para enfrentar um cenário em que os créditos estarão escassos por vários meses ainda. O economista americano ainda aponta que a crise marca o fim de uma era, alerta que a Europa pode ter problemas tão severos quanto a dos Estados Unidos, pede um plano europeu para salvar a economia e alerta que o pior pode ainda estar por vir.

O prestigiado economista que entrou em choque com o Tesouro americano no início da década quando era economista chefe do Banco Mundial ainda aponta que a queda das bolsas desta segunda-feira, 6, foi "um voto de não confiança" no pacote elaborado pela Casa Branca. "Nunca mais nenhum país em desenvolvimento vai dar qualquer credibilidade às recomendações dos Estados UNidos", afirmou.

Ele também aponta que o próximo presidente americano irá herdar "um verdadeiro caos, no Iraque, na economia global e no mercado americano". "A desaceleração da economia está apenas começando", disse.

Após a entrevista, Stiglitz falou para uma platéia de 1,5 mil pessoas em um teatro de Genebra e destacou que Wall Street não fez sua parte em gerenciar risco e o lobby vindo do setor financeiro até recusou novas leis. "Os bancos acreditaram em alquimia financeira, agências de Avaliação de risco eram pagas por bancos", alertou. "Não precisa ser um ganhador do Prêmio Nobel para saber que havia algo de errado, principalmente no setor imobiliário", disse.

Mas ainda destacou que um problema fundamental foi a situação da economia americana e o fato de o Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos) ter adotado uma postura que acabou contribuindo para a crise. "Os Estados Unidos não aprenderam com os erros da América Latina nos anos 70 e 80. "Nos anos 70, quando o mundo entrou em crise por causa do preço do petróleo, só uma região conseguiu crescer. Era a América Latina, que continuou tomando empréstimos. Nos anos 80, pagou o preço e levou mais de uma década para se recuperar. Os Estados Unidos fizeram a mesma coisa e continuou tomando empréstimos", disse.

Ele conclui ainda que o mundo tem conhecimento suficiente e já viveu experiências nos anos 90 para saber evitar que a crise atual se transforme em uma recessão profunda. "Mas precisamos usar esse conhecimento", concluiu.

Eis os principais trechos da entrevistas:

Estado - Qual será o impacto dessa crise nos países emergentes?

Stiglitz -
Todos sofrerão. Mas a ironia é que há uma década estávamos vivendo a crise na Ásia e
o governo americano acusava os líderes de falta de transparência. Hoje, a falta de transparência nos Estados Unidos é tão grande que ninguém sabe o tamanho do problema, nem nos Estados Unidos nem na Europa. A conseqüência direta da crise é de que ninguém mais no mundo seguirá fórmulas propostas pelos Estados Unidos nem um receituário. Outro impacto que os emergentes vão sentir é um aumento de seus spreads, já que o mercado estará se protegendo de todo o tipo de risco. O resultado é uma queda importante de créditos.


Estado - Para o Brasil, diretamente, qual seria a conseqüência?

Stiglitz -
O Brasil hoje está bem melhor preparado que há alguns anos e não sofre uma crise imobiliária. Mas quem pode sofrer são os investidores na agricultura. Podemos ter uma bolha na
agricultura brasileira. Isso porque muitos investidores estrangeiros colocaram seu dinheiro nas commodities nos últimos meses, fugindo do dólar. Isso, como conseqüência, gerou uma alta nos preços dos alimentos, mas também pressionou para cima o preço da terra brasileira. Com a crise, o primeiro impacto é o fim dos créditos e dos investimentos e as dívidas contraídas no Brasil podem ser um problema no campo. Além disso, tudo indica que os preços das commodities vão cair. A bolha no Brasil pode estar no campo. Ninguém está imune à crise. O Brasil, por melhor preparado que esteja, também não está imune.

Estado - O pacote americano é uma solução?

Stiglitz -
De forma nenhuma. É como fazer uma transfusão de sangue a um paciente com hemorragia interna. O pacote não lida com os buracos no sistema e nem com aquela parte da população que não tem como pagar suas dívidas. Foi mal feito e já mostrou com a queda das bolsas de hoje que não está funcionando. A queda de hoje é um voto de não confiança no pacote. O texto original, de apenas três páginas, é uma aberração. Em três páginas o governo pede para gastar US$ 700 bilhões, sem controle nenhum. Esse dinheiro é o equivalente a tudo que os países ricos dariam para os países pobres em ajuda em dez anos. Se um governo de um país emergente tivesse proposto algo parecido, as autoridades americanas estariam gritando, acusando os governos de corruptos e de falta de transparência. A realidade é que o governo americano jamais poderá voltar a dar lições de moral ou de economia aos países emergentes. O pacote não vai resolver o problema. Ele é importante e precisava ser aprovado, mas não vai resolver.

Estado - Em que estado o próximo presidente americano assumirá o país?

Stiglitz -
Em um verdadeiro caos. O próximo presidente irá herdar um país em caos, no Iraque, na economia global e no mercado americano.

Estado - Qual é a solução?

Stiglitz -
Estimular de novo a economia, ajudar os 3 milhões de americanos que estão sem casa
por causa da crise e dos outros 2 milhões que ficarão sem suas casas até o final do ano. Estamos
ajudando os ricos, mas não os pobres e a classe média. A economia mundial vai se desacelerar e
esse é só o começo. Mas precisamos também recapitalizar os bancos, sempre de uma forma transparente. Precisamos restabelecer a confiança. Mas não com discursos e sim com ações. Há quem desconfie que Paulson queria na realidade o mandato para dar US$ 700 bilhões aos bancos sem que os americanos soubessem. Precisamos de novas regulações e pessoas regulando o sistema. Alan Greenspan nunca regulou nada. Ninguém deu um basta à festa.


Estado - Hoje estamos vendo que os problemas na Europa são tão graves como o dos Estados Unidos. O que deve ser feito?


Stiglitz -
A primeira coisa é implodir o Tratado de Maastricht, que coloca um limite aos gastos
públicos. A Europa precisa de um enorme pacote de ajuda a seu sistema financeiro. Os europeus
compraram muitos papéis podres e os americanos precisam agradecer muito isso. Caso contrário,
nossa situação seria ainda pior. A crise não acabou e o pior pode estar por vir ainda. A Europa
não pode dar uma solução nacional a cada banco. Um plano conjunto precisa ser feito, ainda que
haja ainda um problema de fragmentação nas decisões na Europa.

Estado - Como os Estados Unidos chegaram à essa crise?

Stiglitz -
Há várias explicações. Mas gostaria de alertar pelo menos um dos fatores, a guerra no Iraque, que agravou a situação. Nos últimos anos, vimos uma abundância de créditos nomercado, com uma liquidez ampla. Mas isso era em parte obra do Tesouro americano que tomou medidas nesse sentido para inclusive pagar pela guerra no Iraque e pagar pelo petróleo mais caro. A guerra foi basicamente financiada com um cartão de crédito e agora a dívida é de todos. A crise tem grandes chances de ter ocorrido mesmo sem a guerra. Mas a guerra a tornou profunda. O que eu quero dizer é que, na realidade, o problema era também com a situação da economia americana.

Estado - Mas certas teorias apontam que guerras podem estimular as economias.

Stiglitz -
Verdade, mas não quando ela afeta diretamente o preço do petróleo. Em 1991, na primeira guerra do Iraque, os anos seguintes também viram uma queda da economia americana. Na atual guerra, um dinheiro formidável foi usado para pagar empresas estrangeiras e, portanto, não voltou à economia americana.

Estado - Na história da economia mundial, o que representa a atual crise?

Stiglitz -
Ela é o fim de uma era. Um marco de que as políticas que começaram com (Ronald) Reagan e Margareth Thatcher não funcionam. A China hoje está sentada sobre uma reserva de US$ 1,8 trilhão. Nos Estados Unidos, o país soma dívidas de US$ 9 trilhões. A crise é ainda marca a diminuição da influência americana no mundo. Vimos os EStados Unidos tendo de mendigar dinheiro para recapitalizar o Merrill Lynch e o Citi. Essa é uma demonstração dramática do fracasso de um modelo. Há poucos meses, Washington dava lições à China e alertava que a falta de transparência de seus bancos era perigoso para o sistema internacional. Depois, atacou a Índia por manter fechado seu sistema financeiro.
Hoje, ninguém mais vai ouvir essas receitas. Por anos vimos como essas políticas afetaram de forma negativa o Brasil, Argentina, Rússia e Ásia. Em todos esses casos, tivemos pacote de resgate que, na realidade, eram para salvar os bancos credores, e não as economias. Todos sabíamos que o modelo não funcionava. Mas as crises estavam distantes. Agora, ela está em casa. As mesmas pessoas que hoje estão com sérios problemas eram as que, nos anos 90, gerenciavam os planos para salvar os países emergentes.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O neoliberalismo acabou e não foi o fim da história

Keynes


6/10/2008

Entrevista especial com José Guilherme Vieira


Para José Guilherme Vieira, o índice de confiança empresarial já demonstra, na prática, que teremos uma recessão forte assegurada

Restrição ao crédito no curto prazo? “Não se engane! É só o começo”, alerta o professor da Universidade Federal do Paraná José Guilherme Vieira. Ao refletir sobre a crise financeira internacional, ele dispara: “Eu não recomendaria para ninguém se endividar agora. Daí para frente é tudo previsível: esfriamento da construção civil, desemprego, queda no setor de serviços, mais empresas em dificuldade, inadimplência, quebras, mais desemprego”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Vieira afirma que “o Estado é necessário para regular não só o sistema financeiro como também para defender a concorrência”. Ele se diz um grande defensor do capitalismo regulado e acha que, nisso, pode ser considerado um seguidor de Keynes.

Graduado em Ciências Econômicas, pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, José Guilherme Vieira é mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico, pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é também professor na Universidade Positivo e nas Faculdades Integradas Santa Cruz, de Curitiba.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis para compreendermos a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

José Guilherme Vieira –
Keynes, mais do que Kalecki, outro grande nome na heterodoxia, ajuda a entender muito bem esse estado de ânimo dos investidores no mercado de capitais. No famoso capítulo 12 de sua Teoria Geral ele descreve, aliás, de forma ambígua, o papel desse tipo de “investidor”. Ao mesmo tempo em que o especulador permite o aumento da liquidez na economia, causa também as instabilidades e contribui para a formação de um ambiente de incertezas. A partir daí, podemos ter bem claro que a leitura de sua obra prima pode nos ajudar a prever os próximos passos "naturais" da crise. Isso quer dizer que, independente dos desdobramentos da crise no sistema bancário (que é séria e sistêmica) o “Animal Spirit” já foi abalado. O índice de confiança empresarial - que é a melhor proxy para medir esse estado de espírito do empresário brasileiro - já demonstra, na prática, que teremos uma recessão forte assegurada. Keynes e Kalecki se parecem mais com relação ao que se deve fazer diante da crise, mas a sutileza da interpretação dos mecanismos que levam a uma parada nos investimentos é uma contribuição única do mestre inglês.

IHU On-Line – O senhor acredita que a crise financeira internacional em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo? Que tendências se apresentam?

José Guilherme Vieira –
Sim, a crise é sistêmica. Além dos impactos naturais em todo o castelo de cartas que se erigiu em cima de créditos podres, os impactos mais imediatos nos setores da economia real se fazem sentir sobre aqueles que vendem a prazos longos (imóveis e automóveis) devido a um continuo encarecimento de crédito e redução de prazos para pagamentos. Não se engane! Qualquer restrição que venha a surgir no curto prazo é só o começo. Eu não recomendaria para ninguém se endividar agora. Daí para frente é tudo previsível: esfriamento da construção civil, desemprego, queda no setor de serviços, mais empresas em dificuldade, inadimplência, quebras, mais desemprego. O que deve acontecer no Brasil é que o governo vai acabar acelerando as obras do PAC para compensar o desaquecimento, sobretudo porque em 2010 tem eleição presidencial. Mas, no mundo, as coisas se arrastarão por mais tempo e acabarão, sim, por decretar uma mudança de paradigmas. Em primeiro lugar, porque os efeitos da recessão econômica acabam por se refletir na mudança de governos. Insatisfeitos com a crise em seus países, os eleitores tendem a promover a renovação política. O novo governo, por sua vez, precisa mudar o status quo. Assim, espero um maior fechamento das economias mundiais para o comércio internacional (embora em menor escala do que antes dos anos 1980) e um maior fechamento do mercado de capitais (esse sim, em grande escala). O neoliberalismo acabou (não foi o fim da história, portanto).

IHU On-Line – O livre mercado é viável na atual economia capitalista ou a intervenção do Estado é realmente necessária?

José Guilherme Vieira –
Nunca houve livre mercado. Estados Unidos e Europa nunca se abriram para os produtos dos países emergentes. Na realidade, essa retórica foi sempre em favor dos seus próprios interesses comerciais. Nós deveríamos abrir nossos mercados, mas eles não. Argumentos como “setores sensíveis” sempre estiveram na mesa de negociações. No entanto, eu sou favorável ao livre mercado, acredito na lei das vantagens comparativas. É uma pena que nunca possamos testá-la na prática, pois isso exigiria a ausência de barreiras comerciais. O ponto em que realmente não acredito é que o sistema de preços funcione. Saiu um livro esse ano, Previsivelmente irracional, de Dan Ariely, que mostra como pensamos os preços na prática. O mercado não é capaz de mandar sinais eficientes através de preços. E eu provo isso: qual é o valor da Vale do Rio Doce? Bom, se esse valor é estabelecido pelo preço das suas ações eu imagino que todos os dias eles estejam assinando e rasgando contratos (pois essa seria a única explicação para a flutuação absurda de seus preços na Bolsa de Valores de São Paulo). O Estado é necessário para regular não só o sistema financeiro como também para defender a concorrência. Eu sou um grande defensor do capitalismo regulado e acho que nisso posso ser considerado um seguidor de Keynes.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição da retórica na economia keynesiana para a revolução na economia provocada por suas teorias?

José Guilherme Vieira –
Keynes, em certa medida, foi um artista. Ele era mesmo uma celebridade na Inglaterra. Dava entrevistas, circulava entre a elite, os intelectuais. Você pode ver sua personagem em filmes que retratam a vida de vários escritores famosos. Mas o fato de ser filho da elite e ter uma excelente educação burguesa fazia com que suas palavras, fossem elas quais fossem, tivessem espaço para serem ouvidas. Eu me interessei pela análise da retórica de Keynes depois de ler um trabalho de Francisco Anuatti (USP), que falava sobre o assunto. Daí resolvi fazer o mesmo estudo só que focado na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Quando empreendi a leitura do livro com esse propósito, tive uma outra percepção da sistemática de Keynes. Antes, sempre achei o livro desorganizado (embora genial pelo conteúdo). Às vezes, achei-o confuso e mesmo incompreensível em determinados trechos. Mas pude ver que essa confusão foi muitas vezes proposital. Por exemplo: concluí, entre outras coisas, que a distribuição de renda também era uma variável chave (e não apenas marginal) no esquema de Keynes. Para a economia, portanto, um programa como o Bolsa Família é extremamente positivo no seu esquema teórico.

Os especuladores financeiros também são responsabilizados pelas crises na economia capitalista. Mas porque ele apresenta esses temas com pouco destaque? Porque seria revolucionário demais juntar medidas destinadas a corrigir esses problemas a todo o conjunto de outras mudanças propostas. Eu acho que ele também viu a janela de oportunidade que se abriu diante de seus olhos para se colocar enfaticamente como a única alternativa dentro do capitalismo (já que a outra possibilidade de sair da depressão de 1929 seria o socialismo soviético). E isso pode ser visto no capítulo 24 da Teoria geral, no qual Keynes diz para onde deve levar a sua filosofia. A revolução keynesiana está para a economia como Einstein está para a física. Ocorre que, diferentemente do que ocorre com a física, na economia a Revolução foi sucedida de uma contra-revolução que tentou apagar tudo dos livros. Veja os livros de economia de hoje: apagaram Marx, Keynes onde foi possível (obviamente, não na macroeconomia) e enalteceram Friedman, Lucas etc. Acho que vem uma Revolução paradigmática por aí. Mas não sei o que virá, que corrente dará as cartas. Mas, com certeza, será intervencionista.

IHU On-Line – Podemos estabelecer alguma comparação entre o momento econômico vivido na época da ascensão do paradigma keynesiano e o momento econômico atual?

José Guilherme Vieira –
Totalmente. Mas não ainda nesse exato momento. Mais de 10000 bancos faliram nos EUA na década de 1930 (o sistema era composto por pequenos bancos). Estamos longe disso. Mas algumas coisas são semelhantes. O foco da crise é o cerne do sistema e por isso a crise é inegável. O presidente da república dos EUA é republicano (como o era na época). Ele também não fez nada no começo da crise como seu correspondente na Depressão. Teremos eleições em que se afigura uma mudança de comando de ideologias (como ocorreu na Depressão). O mundo está dependente dos EUA como sempre (comercial e financeiramente). Vínhamos de um período de expansão global, extrema liquidez, irracionalidade nos mercados de ações e agora assistimos a restrição de liquidez, entesouramento de dinheiro nos bancos, enfim, é o mesmo cenário só que agora os governos agiram relativamente mais cedo e com maior força. Só que isso já não afasta mais a crise.

IHU On-Line – Qual a influência das revoluções científicas para as transformações econômicas? Como Keynes contribui para a compreensão deste fenômeno?

José Guilherme Vieira –
Ele foi a única Revolução Científica Kuhniana na economia. Quase em toda a parte se dizia que Keynes e sua macroeconomia dirigida eram a solução. Acho que a maior contribuição dada pela revolução é que toda a unanimidade é burra quando se fala em ciência. O liberalismo virou uma fé e quando isso estava disseminado veio a crise. De igual forma, quando o mesmo ocorreu com Keynes, veio a crise. Agora, quando todos falavam das maravilhas do mercado eficiente, veio a crise. É preciso uma dose de pluralismo na economia. Sejamos plurais.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a política econômica (juros) do governo Lula e o risco da inflação? Keynes teria algo a ensinar a esse governo?

José Guilherme Vieira –
Agora é tarde para falar sobre isso, acho. Perdemos uma oportunidade para crescer e a política monetária não tem mais a força necessária para recuperar a economia da recessão que virá. Pode observar. Não adiantarão pacotes de liquidez se você estiver pensando em salvar o “Animal Spirit”. Os pacotes monetários servem para evitar que o mal se agrave ainda mais. A dose de juros foi exagerada sim e existem razões para acreditar que isso não se deva apenas ao sistema de metas inflacionárias. Mas, como disse, é passado. Se tudo der certo, a inflação será tolerável. Se der tudo errado, teremos deflação!

IHU On-Line – Qual a importância do trabalho para as teorias econômicas de Keynes? Como isso se aplica na sociedade brasileira atual, considerando o aumento de postos de trabalho, do salário mínimo e da renda em geral de uma determinada camada da população?

José Guilherme Vieira –
O trabalho sempre foi a única fonte da riqueza produzida. Se existem trabalhadores desempregados, é produto potencial que se perde. Riqueza que não se cria e que divide a que já existe. Reconhecer que não nos encontramos no ponto de emprego máximo e erigir uma teoria que objetiva atingi-lo foi sua maior contribuição. Mas não podemos nos enganar a respeito de onde os trabalhadores entram no esquema keynesiano. Eles são úteis. Eles consomem o que ganham (Kalecki foi mais eficiente em demonstrar as implicações desse ponto). Não é por pena dos trabalhadores que Keynes os quer empregados. Se eu fosse um marxista - e estou longe disso -, diria que ele deseja que eles estejam empregados por que seriam uma espécie de mais-valia desperdiçada.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Geopolitica perspectivista


A ascensão do resto do mundo: os desafios da Nova Ordem Mundial


Os Estados Unidos não são mais capazes de suportar a crise mundial. Mas quem assumiria o seu lugar? A Rússia, o Brasil, a China e a Índia estão em ascensão, mas eles estão competindo também com a Europa e os Estados Unidos por recursos naturais finitos

Por: Wolfgang Nowak

"Os norte-americanos... só são capazes de nadar em um único mar. Eles jamais desenvolveram a capacidade de ingressar no universo dos outros povos" - Fareed Zakaria.

Estamos vivendo uma era na qual não há uma única potência dominante. O globo está acossado por crises - mudança climática, escassez de recursos, crises de alimento e financeira, proliferação nuclear e Estados fracassados. Nenhum país é capaz de elaborar soluções para problemas desse tipo. Nem mesmo as Nações Unidas estão a altura dessa tarefa. De fato, conforme admitiu o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, na Conferência de Governança Progressista, em abril último, em Londres, as organizações internacionais criadas logo após a Segunda Guerra Mundial não atendem mais às necessidades atuais.

Faz apenas 17 anos que o jornalista norte-americano Charles Krauthammer falou a respeito do alvorecer de uma nova era na qual, nas décadas vindouras, os Estados Unidos funcionariam como o epicentro da ordem mundial. Apenas cinco anos se passaram desde que o então secretário de Estado, Colin Powell, disse a uma audiência em Davos que os Estados Unidos reservavam o direito de iniciar ações militares unilaterais.

Mas a Guerra do Iraque esfacelou o sonho de uma era de "imperialismo liberal", na qual os Estados Unidos disseminariam os seus valores ideais utilizando meios coercivos. A crise financeira dos últimos dois anos acelerou ainda mais o deslocamento de poder - dos Estados Unidos e Europa para a Índia, a China e a Rússia, bem como para os Estados árabes do Golfo Pérsico.

Vários livros recentemente publicados nos Estados Unidos descrevem essas mudanças no cenário político. O novo governo que chegar em Washington em 2009 deve cogitar a leitura atenta dos livros "The Post American World" ("O Mundo Pós-Americano"), de Fareed Zakaria, "The Second World" ("O Segundo Mundo"), de Parag Khanna, "The Great Experiment" ("A Grande Experiência"), de Strobe Talbott, "Rivals" ("Rivais"), de Bill Emmott e "The War for Wealth" ("A Guerra pela Riqueza"), de Gabor Steingart. Todos estes autores aceitam a premissa de um mundo multipolar, embora as suas análises e prescrições políticas sejam muito diversas. Bill Emmott, Fareed Zakaria e Gabor Steingart visualizam a continuação da liderança norte-americana ou transatlântica, enquanto Parag Khanna enxerga uma competição cada vez maior entre a Europa, a China e os Estados Unidos pelo apoio de Estados como a Rússia e a Índia, que ele descreve como pertencendo ao "segundo mundo". Porém, quaisquer que sejam as diferenças entre eles, cada um dos autores analisa com clareza as realidades atuais - ao contrário dos neoconservadores que foram os principais responsáveis pela condução da política externa norte-americana nos últimos oito anos.

O ex-presidente George Bush teria afirmado: "Não podemos cometer os erros errados". Um governante que queira evitar "os erros errados" encontrará o seu lugar na nova ordem multipolar.

Quais são as potências decisivas nesta nova ordem mundial? Os Estados Unidos, a Rússia, a Índia, a China, o Brasil e a União Européia estão sem dúvida entre elas. É interessante que estes países estejam se aproximando cada vez mais. A atual crise financeira demonstrou como as relações entre eles se aprofundaram. Outras similaridades são também reveladoras. Com a exceção dos europeus, cada um desses países contém aspectos do primeiro, do segundo e do terceiro mundo. Na megalópole Mumbai, por exemplo, a maior favela da Ásia fica ao lado de uma próspera área econômica. Uma pessoa que faça uma viagem pela Rússia encontrará tanto uma riqueza impressionante quanto uma pobreza absoluta. Até mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, parte da população luta para ter um padrão decente de vida.

Esses países não são nem inimigos nem amigos uns dos outros; eles são "frenemies", competidores na busca por escassos recursos mundiais. Eles asseguram aos seus povos que são capazes de modelar a próxima ordem global e de garantir o futuro bem-estar da população, mas as respectivas idéias de futuro podem variar bastante. Um potencial "choque de futuros" paira na linha do horizonte do mundo multipolar.

Nem todos os "frenemies" são democracias no sentido ocidental. Os sucessos de Cingapura e da China, bem como dos Estados do Golfo Pérsico, provam que os países não precisam ser democráticos para garantir um alto padrão de vida aos seus povos. Mas isto não precisa ser motivo para pessimismo. Nas novas potências mundiais não democráticas, elites produtivas estão substituindo as elites parasitas. Onde as elites produtivas adquirem a supremacia, elas criam um sistema mais livre e justo do que aquele que herdaram. O objetivo delas é desenvolver a economia e corrigir as desigualdades sociais. Elas sabem que onde houver favelas haverá "cidades fracassadas" e "Estados fracassados".

A Sociedade Alfred Herrhausen, o fórum internacional do Deutsche Bank, está organizando um novo projeto chamado Foresight (Previsão) para analisar e comparar as visões de futuro das potências mundiais existentes e emergentes. Por meio da discussão e do debate, espera-se que o projeto encontre os elementos para um futuro comum. O evento inaugural, ocorrido em Moscou, reuniu participantes do Brasil, da China, da Europa, do Japão, da Índia, da Rússia, dos Estados Unidos e de outras partes do mundo para a discussão do papel da Rússia em um mundo multipolar. Mais simpósios estão previstos nos Estados Unidos, após as eleições presidenciais, na Europa, no Japão, na Índia, na China e na América Latina. Esses eventos também incluirão participantes de alto nível da África, do mundo árabe e dos países asiáticos banhados pelo Oceano Pacífico.

Um dos principais objetivos desta série de eventos é ver o mundo segundo a visão dos outros, e não apenas através da ótica oriental e ocidental.

Novas alianças que jogam os países uns contra os outros não serão capazes de resolver os desafios do século 21. Novas formas de cooperação internacional, consulta e compromisso precisarão desempenhar um papel central em um mundo multipolar. É um absurdo que a Itália pertença ao G8, mas a China e o Brasil não. E que espécie de significado pode ter um conselho de segurança global quando a Índia, o Brasil e a União Européia são deixados de fora, enquanto a França e o Reino Unido são membros permanentes?

São necessárias novas formas de governança: em um mundo com cada vez menos recursos e no qual há uma mudança climática acelerada, os Estados podem sentir-se tentados a atender aos seus próprios interesses a fim de obter vantagens de curto prazo. O desafio será elaborar uma nova estrutura internacional e um equilíbrio organizado de interesses. Somente um futuro comum - "mudança através do bom relacionamento" e não "um choque de futuros" - poderá nos impulsionar para adiante.

Não há dúvida de que os últimos dez anos forneceram muitos motivos para pessimismo. Para que os próximos dez anos sejam um sucesso, nós precisaremos nos fortificar com um otimismo crível, ainda que cético.

Wolfgang Nowak é porta-voz da diretoria-executiva da Sociedade Alfred Herrhausen, o fórum internacional do Deutsche Bank.



quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Um Movimento Democratico Global está prestes a estourar




Por: Paul Hawken, Orion Magazine

Ao longo dos últimos quinze anos tenho oferecido perto de mil palestras sobre o ambiente. Depois de cada palestra um pequeno grupo de pessoas se junta para conversar, perguntar, e trocar cartões de visita. Estas pessoas oferecendo os seus cartões trabalham nos assuntos mais pertinentes aos nossos dias: mudança de clima, pobreza, desmatamento, paz, água, fome, conservação, direitos humanos e mais. São do mundo das ONG´s também conhecido como a sociedade civil. Cuidam de rios e baias, educam os consumidores sobre a agricultura sustentável, colocam painéis solares em casas, fazem “lobbies” nos governos estaduais sobre poluição, enfrentam políticas de comércio favoráveis às corporações, se esforçam a tornar verdes as favelas, ou ensinam as crianças sobre o ambiente. Simplesmente, estão tentando resguardar a natureza e garantir a justiça.Depois de uma viagem de uma semana ou duas, voltava com centenas destes cartões enfiados em vários bolsos. Eu arrumava-os na mesa da minha cozinha, lia os nomes, olhava os logotipos, imaginava as missões e ficava admirado a ver o que um grupo pode fazer a favor de outro. Depois, os colocava em gavetas ou sacos de papel, lembranças daquela viagem. Não conseguia jogá-los fora.
Ao longo dos anos os cartões se amontoavam, chegando aos milhares, e quando olhava aquelas sacolas no meu armário, chegava a me perguntar: alguém sabe quantos de tais grupos existem? No começo, era questão de curiosidade, mas lentamente comecei a desconfiar que alguma coisa maior estava acontecendo, um movimento social significativo que estava escapando o radar da cultura vigente.

Comecei a contar. Olhava os dados governamentais de diversos paises e, utilizando diversos métodos para aproximar-me do número de grupos ambientais e de justiça social a partir de dados de censo para impostos, eu inicialmente estimava que tinham umas trinta mil organizações ambientalistas no mundo, quando acrescentava justiça social e organizações indígenas, o número ultrapassava cem mil. Eu então pesquisei movimentos sociais do passado para ver se tinha algum igual em escala e escopo, mas não encontrei nada.

Quanto mais pesquisava, mais eu descobria e os números continuavam a aumentar. Em levantar uma pedra descobri uma formação geológica. Descobri listas, índices, e pequenos bancos de dados específicos para certos setores ou áreas geográficas, mas nenhum conjunto de dados aproximou-se nem de longe a descrever o tamanho do movimento. Extrapolando dos arquivos acessados, me dei conta que o estimativo inicial de cem mil organizações estava errado por um fator de pelo menos dez. Agora achava que existem mais de um milhão de organizações trabalhando em prol de sustentabilidade ecológica e justiça social. Talvez dois.

Se for definir de uma forma convencional, isto não é um movimento. Os movimentos têm lideranças, ideologias. Você se torna membro de um movimento, estuda os propósitos e se identifica com um grupo. Você lê a biografia do(s) fundador(es) ou os escuta em fita ou em pessoa. Movimentos têm seguidores, mas este movimento não funciona assim., É disperso, sem formas definidas e ferozmente independente. Não há manifesto ou doutrina, nenhuma autoridade para verificar.

Procurei um nome, mas não há.

Historicamente, os movimentos sociais surgiram primariamente por causa de injustiças, desigualdades e corrupção. Estes males continuam presentes, mas uma nova condição existe que não há precedente: o planeta está com uma doença que ameaça a vida e que é marcada por degradação ecológica maciça e mudança de clima súbita. Ocorreu-me que talvez eu estivesse vendo alguma coisa orgânica, se não biológica. Em vez de ser um movimento no sentido convencional, será que é uma resposta coletiva à ameaça? É fragmentado por razões que são inerentes ao seu propósito? Ou é simplesmente desorganizado? Mais perguntas seguiram. Como funciona? Qual a velocidade de crescimento? Como é conectado? Porque está sendo em geral ignorado?

Depois de gastar anos pesquisando este fenômeno, inclusive criando com meus colegas uma banco de dados global destas organizações, tenho chegado à conclusão: este é o maior movimento social em toda a história, ninguém sabe do seu escopo. Como funciona é mais misterioso do que aparenta.

O que fica aparente é conclusivo: dezenas de milhões de pessoas ordinárias e nem tão ordinárias assim dispostas a confrontar o desespero, o poder e dificuldades incalculáveis para restaurar algum semblante de graça, justiça e beleza a este mundo.

Clayton Thomas-Muller fala para um encontro comunitário da nação Cree sobre os lixões no seu território em Alberta, Canadá, lagos de despejos tóxicos tão grandes que podem ser vistos do espaço. Shi Lihong, fundadora do Wild China Films (Filmes da China Silvestre) faz documentários com seu marido sobre os migrantes deslocados pela construção de grandes represas. Rosalina Tuyuc Velásquez, membro do povo Maya-Kaquchikel, luta para que sejam responsabilizados os esquadrões da morte, que já mataram dezenas de milhares de pessoas na Guatemala. Rodrigo Baggio resgata computadores de Nova York, Londres, e Toronto e os instala em favelas do Brasil onde ele e seus funcionários ensinam habilidades de informática a crianças pobres. O biólogo Janine Benyus fala para mil e duzentos executivos num fórum de negócios em Queensland sobre desenvolvimento inspirado pela biologia. Paul Sykes, voluntário para the National Audubon Society ( que luta em prol dos aves nos Estados Unidos) completa seu 52em Contagem de Pássaros de Natal em Little Creek, Virgínia, se juntando a cinqüenta mil outras pessoas que contam 70 milhões de pássaros em um único dia. Sumita Dasgupta lidera estudantes, engenheiros, jornalistas, agricultores e Adivasis ( povo tribal) numa viagem a pé de dez dias através do Gujarat, explorando o renascimento de sistemas de captação de águas da chuva que está trazendo a vida de volta para áreas propensas à secas na Índia. Silas KpananÁyoung Siakor, que mostrou os elos entre a política genocidal do então presidente Charles Taylor e o desmatamento ilegal em Libéria, agora cria políticas de certificação de madeira sustentável.

Estas oito pessoas, que talvez nunca venham a se conhecer, fazem parte de uma coalizão composta de centenas de milhares de organizações sem centro, crenças codificadas ou líderes carismáticas. O movimento cresce e se alastra em cada cidade e país. Praticamente toda tribo, cultura, língua, e religião faz parte, desde os Mongóis até Uzbekianos até Tamils. É composto de famílias na Índia, estudantes na Austrália, agricultores na França, os sem terra no Brasil, os bananeiros de Honduras, os “pobres” de Durban, aldeões em Irian Jaya, tribos indígenas na Bolívia, e donas de casa no Japão. As lideranças são agricultores, zoólogos, sapateiros e poetas.

O movimento não pode ser dividido porque está fragmentado - pequenos pedaços com elos frouxos. Forma, se junta, e dissipa rapidamente. Muitos dentro e fora o desprezam por ser sem poder, mas já derrubou governos, companhias e lideranças através do testemunhar, informar e amassar.

O movimento tem três raízes básicas: Movimento para justiça ambiental e social, e a resistência de culturas indígenas contra a globalização - todos dos quais se entrelaçam. Surge espontaneamente de diferentes setores econômicos , culturas, regiões e agrupamentos, resultando num movimento global, sem classe, diverso , alastrando mundialmente sem exceção. Num mundo complexo demais para ideologias construtivas, a palavra movimento pode ser pequena demais , porque este é o maior agrupamento de cidadãos da história.

Têm institutos de pesquisa, agências de desenvolvimento comunitário, organizações baseados em povoados e cidadãos, corporações, redes, grupos baseados em crenças, fundações . Defendem contra políticos corruptos e mudança de clima, predação corporativa e morte dos oceanos, indiferença do governo e pobreza endêmica, formas industrializadas de agricultura e plantio de madeira, esgotamento do solo e da água.

Descrever o tamanho deste movimento é como tentar segurar o oceano na sua mão. É tão grande assim. Quando uma parte aparece, o iceberg abaixo fica invisível. Quando Wangari Maathai ganhou o Prémio Nobel da Paz, os serviços de notícias não mencionaram a rede de seis mil organizações diferentes de mulheres na África plantando árvores. Quando escutamos de um despejo químico num rio, nunca é mencionado que quatro mil organizações nos Estados Unidos adotaram um rio, riacho ou córrego. Podemos ler que a agricultura orgânica é o setor de maior velocidade de desenvolvimento nos Estados Unidos, Japão, México e Europa, mas nenhuma conexão é feita com as mais de três mil organizações que educam agricultores, fregueses e legisladores sobre a agricultura sustentável.

É a primeira vez na história que um enorme movimento social não se juntou por volta de um “ismo”. O que junta são idéias e não ideologias. A maior contribuição deste movimento é a ausência de uma idéia grande: no seu lugar oferece milhares de idéias práticas e úteis. No lugar dos “ismos” são processos, preocupações, e compaixão. O movimento demonstra um lado flexível, ressonante e generoso da humanidade.

Não é possível de definir. As generalidades são em grande parte imprecisas. É não-violento e de base; não tem bombas, exércitos nem helicópteros. Um vertibrado macho carismático não está no comando. O movimento não concorda em tudo e nunca concordará, porque isto seria uma ideologia. Mas compartilha um conjunto básico de compreensões fundamentais sobre a Terra, como funciona, e a necessidade de justiça e igualdade para todos os povos que participam nos sistemas do sustento da vida no planeta.

Este movimento sem nome promete oferecer soluções parta o que parecem ser dilemas insolúveis: pobreza, mudança de clima global, terrorismo, degradação ecológico, polarização da renda, perda de cultura. Não é atrapalhado com síndrome de tentar salvar o mundo: está tentando refazer o mundo.

É feroz. Não existe outra explicação para a coragem crua e o coração visto repetidas vezes nas pessoas que marcham, falam, criam, resistem e constroem. É a ferocidade do que significa saber que somos humanos e queremos sobreviver.

Este movimento não desiste e está sem medo. Não pode ser pacificado, amenizado ou oprimido. Não haverá um momento “Muro de Berlim”, nenhuma assinatura de trégua, nenhuma manhã para acordar para o momento quando os super-poderes abandonam. O movimento continuará nas suas formas diversas. Não descansará. Não haverá nenhum Marx, Alexandre ou Kennedy. Nenhum livro pode explica-lo nenhuma pessoa pode representa-lo nenhuma palavra pode engloba-lo, porque o movimento é o testamento vivo e sentiente do mundo vivo.

Acredito que prevalecerá. Não quero dizer conquistar ou causar danos a alguém. E não estou fazendo esta previsão como oráculo. Quero dizer que o pensamento que informa a mente do movimento - de criar uma sociedade condutiva à vida na Terra - reinará. Ela logo permeará a maioria das instituições. Mas até lá, mudará um número suficiente de pessoas para começar a reverter séculos de auto-destruição desenfreada.

A inspiração não é conhecida de litanias do que é defeituoso; reside na vontade da humanidade de restaurar, reformar, recuperar, reimaginar e reconsiderar. Curando as feridas da Terra e do seu povo não requer santidade ou um partido político. Não é uma atividade liberal ou conservadora. É um ato sagrado.

Paul Hawken é empreendedor e ativista social morando na Califórnia. Este artigo é tirado do livro Blessed Unrest, a ser publicado pelo Viking Press, e é utilizado com permissão.

Neo-capitalismo pós-americano ?



EUA: o país onde o fracasso é recompensado


Na atual crise financeira, o modelo de capitalismo dos Estados Unidos implodiu com um grande estrondo. Mas o governo Bush está tentando extinguir as chamas com mais combustível, em vez de água, e quer que os apostadores de Wall Street sejam recompensados pelo fracasso

Por: Gabor Steingart
Em Washington (EUA)

Mais de cem anos atrás, o sociólogo alemão Georg Simmel criticou os bancos por ficarem cada vez maiores e mais poderosos do que as igrejas. A sua principal queixa - a de que o dinheiro é o novo deus dos nossos tempos - ainda é ouvida nos dias de hoje. Se Simmel estava certo, e há indicações de que de fato estava, a declaração teria que ser modificada para coadunar-se com as circunstâncias atuais: nem todo mundo reza para o mesmo deus.

Entre o grupo de adoradores de dinheiro, existem pelo menos três fés. A primeira é a dos Puritanos, que carregam pacientemente o dinheiro deles para as novas igrejas, esperando que ele se multiplique. O chinês típico, por exemplo, deposita 40% dos seus rendimentos em bancos. Que disciplina louvável! E há também os Pragmáticos. Estes poupam e emprestam, mas somente nesta ordem; a poupança é o fator que limita a ousadia deles. Esta linha é especialmente comum nos países germânicos, nos quais o banco de poupança é o templo religioso.

Finalmente, temos a comunidade religiosa dos Desinibidos, que é especialmente popular nos Estados Unidos. Os seus seguidores não se acanham em admitir a falta de cautela, o desperdício extravagante e a cobiça onipresente.

Eles chamam isto de "American way of life" ("estilo de vida americano"). Os seus membros vivem no aqui e no agora, sem fazer perguntas sobre o amanhã. Um empresta dinheiro ao outro, mesmo que o dinheiro não lhes pertença. Em vez disso, eles tomam quantias emprestadas com uma terceira pessoa, que prometeu conseguir o dinheiro com um quarto indivíduo - e assim por diante.

Southampton: o início do rastro de evidências

Esta comunidade religiosa é a mais fervorosa de todas. Há algum tempo, ela adotou a prática de tratar dinheiro antecipado como dinheiro real e de entender desejo como realidade. Atualmente ela não conta mais com nenhum fragmento de inibição.

Como todos sabiam que havia mais desejos do que dólares, o resultado inevitável foi uma certa lacuna de financiamento, ou déficit. Capitalismo sem capital - o núcleo audacioso desta inovação - não poderia funcionar. Não há salvação terrena - pelo menos esta foi uma conclusão quanto à qual o antigo Deus, aquele que carregou a cruz, e o novo deus, o que traz cifrões nos olhos, poderiam concordar.

E, assim, o inevitável ocorreu: o big bang. Três entre cada cinco bancos de investimento dos Estados Unidos perderam a independência, e os outros dois ainda estão afundando. Dois bancos de hipotecas e uma companhia de seguros encontram-se agora sob administração governamental.

O sistema financeiro global foi abalado, horrorizando os membros das outras duas fés. Pode haver três religiões, mas só há um céu. Se este cair, todos morrem.

Uma busca por evidências a fim de identificar os responsáveis deveria provavelmente começar em Southampton, um reduto da elite endinheirada. Nesta cidade, na parte leste de Long Island, perto da cidade de Nova York, é possível presenciar o quanto a cobiça pode ser atraente.

Trata-se de um lugar no qual as opções de ações foram transformadas às centenas em castelos de contos de fadas à beira-mar. Aproveitando-se das brechas tarifárias, os gurus financeiros de Wall Street conseguiram retirar os seus bônus da cidade mais ou menos intactos. Segundo a legislação tributária dos Estados Unidos, a compensação na forma de ações e garantias é taxada em menos da metade do índice mais elevado de impostos. Como resultado, a taxa tributária que incide sobre os rendimentos de muitos banqueiros é inferior àquela a que estão sujeitos os salários das suas secretárias.

Como menos transformou-se em mais

Os donos destas mansões à beira-mar não estão lá neste momento, de forma que uma investigação mais profunda requer uma viagem de trem até Nova York. No arranha-céu de Midtown que abriga os escritórios do Lehman Brothers, que está em processo de encerramento da sua história, há muito o que descobrir a respeito da seqüência de eventos. Bilhões de dólares foram emprestados a pessoas que não tinham crédito para que elas adquirissem condomínios e casas de pouco valor. No jargão alegre e cínico dos banqueiros, esse tipo de empréstimo foi batizado de "NINA", acrônimo de "No Income, No Asset" ("Sem renda, sem bens").

Mas mesmo assim as coisas andavam bem no mundo dos financiadores. O aumento miraculoso da oferta de dinheiro contribuiu para que o preço de imóveis subisse mais de 70% entre 2000 e 2006. A indústria conseguiu obter lucros aumentando o risco. Pelo menos na folha de balanço, o menos se transformou em mais.

Em tempos melhores, alguém poderia ter chamado os banqueiros de empreendedores; atualmente, eles são chamados de irresponsáveis. Antes mesmo do surgimento da expressão banco de investimentos, Karl Marx sabia como as duas coisas estavam vinculadas: "O capital tem tanto horror à ausência de lucro ou de um lucro muito pequeno quanto a natureza tem horror ao vácuo. Com um lucro apropriado, o capital é despertado; com 10% de lucro, ele pode ser usado em qualquer lugar; com 20%, torna-se vivaz; com 50%, fica positivamente ousado; com 100%, ele esmagará com os pés todas as leis humanas; e com 300%, não existe crime que ele não se disponha a cometer, ainda que se arrisque a ir para a cadeia".

A fé de Paulson

Agora o rastro conduz de Nova York a Washington, onde o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, tem o seu gabinete na Avenida Pensilvânia. O seu ministério é tão importante que há um portão ligando o subsolo do Departamento do Tesouro ao da Casa Branca. A atitude adotada por Paulson em relação aos bancos foi a de deixá-los atuar livremente, e ele agora pretende assumir os prejuízos dessas instituições. Para os altos círculos financeiros, ele tornou-se algo como uma garantia extra. O objetivo dele é eliminar a ameaça de cadeia - mas não a cobiça.

Paulson já foi um banqueiro de Wall Street. Ele é um homem de boas maneiras e princípios firmes. Em tempos normais, ele tem fé no mercado, em Deus e em George W. Bush. Mas em tempos como estes, ele prefere depositar a sua fé no governo, no contribuinte e em Bush.

Ao contrário do que muito se anunciou, Paulson não pretende utilizar as rendas obtidas com impostos para financiar o pacote de socorro aos bancos. Em vez disso, a intenção dele é tomar novos empréstimos de bilhões de dólares em nome do Tesouro dos Estados Unidos. "Detesto o fato de termos que fazer tal coisa, mas isto é a melhor do que a única outra alternativa", disse ele na semana passada. O presidente já deu o seu sinal de aprovação.

É isso o que acontece com as comunidades religiosas quando sofrem pressões: elas tornam-se ainda mais fervorosas. A idéia é que o mesmo tipo de pensamento de curto prazo que provocou o desastre vá agora pôr um fim a esta situação calamitosa. O governo está tentando extinguir o fogo com combustível, e não com água. Na verdade, este é exatamente o mesmo combustível que deu início ao incêndio em Wall Street: dinheiro emprestado.

A única diferença é que os novos empréstimos não virão do sexto, do sétimo ou do oitavo membro da comunidade religiosa. Eles serão coletados de todos os contribuintes. Isso significaria o fim da separação entre igreja e Estado, sendo que Wall Street se tornaria a religião nacional.

Os pontos em comum com as outras duas comunidades religiosas já estão desaparecendo. Coisas que na época da tradicionalmente honrada economia de mercado eram consideradas inseparáveis - como valor e consideração, salário e desempenho, risco e responsabilidade - estão sendo agora rasgadas em nome do governo. O capitalismo atualmente exibido pelos Estados Unidos é uma versão rota e degradada daquilo que costumava ser.

As ações dos políticos estão amplificando, em vez de mitigar, os efeitos do fracasso econômico. O capitalismo no estilo norte-americano ainda não morreu, mas está simplesmente preparando o seu próprio falecimento. A história destes dias é a história de uma morte que já foi anunciada. O que nos leva a Miss Marple.

Começou um jogo perigoso com o tempo

A detetive amadora imaginada por Agatha Christie, baseada na avó da escritora, era equipada com algo mais do que apenas um senso de humor e uma compreensão da natureza humana. Ela também tinha experiência em relação a coisas óbvias que ninguém acredita serem possíveis - até que elas aconteçam. No seu romance de 1950, "A Murder is Announced" ("Convite para um Homicídio"), Christie olhou para o futuro de maneira cômica.

A história transcorre mais ou menos assim: certa manhã, os cidadãos leram a seguinte mensagem nos classificados de um jornal local: "Um assassinato foi anunciado e ocorrerá na sexta-feira, 29 de outubro, em Little Paddocks, às 18h30. Amigos, por favor aceitem isto, a única intimação". Na hora designada, metade da vila reuniu-se na casa onde o assassinato supostamente aconteceria. A advertência é tratada como uma piada frívola, que ninguém desejaria rejeitar. Serve-se sherry aos presentes. O grupo é tomado por um pânico coletivo. Exatamente às 18h30, as luzes apagam-se.

"Não é maravilhoso?", diz uma voz feminina. "Estou trêmula".

Quando as luzes voltam a acender-se - para a surpresa de todos - um crime foi cometido. E agora nós, assim como os presentes na sala em Little Paddocks, estamos de pé, sussurrando, tomados pelo medo coletivo, aguardando para ver o que acontecerá a seguir. E ninguém acredita seriamente que um crime de verdade está prestes a ocorrer.

"Todos estavam em silêncio e ninguém se movia. Todos olharam para o relógio... Quando a última nota terminou, todas as luzes apagaram-se. Murmúrios de alegria e gritinhos femininos de satisfação foram ouvidos no escuro. 'Está começando', gritou a senhora Harmon, extasiada".

Um futuro vendido

Quem quer que espere receber um alerta antecipado deveria simplesmente expandir o seu campo de visão enquanto as luzes permanecerem acesas.

As companhias de cartão de crédito dos Estados Unidos não estão em uma situação significativamente melhor do que os bancos. Elas também venderam o futuro e até mesmo uma parcela do período posterior a ele.

A indústria automobilística norte-americana também se encontra seriamente combalida e tem dificuldades para estender as suas linhas de crédito no mercado aberto. A indústria perdeu mais de 300 mil empregos desde 1999. Mas qual é o benefício disto se são os gerentes - e não os trabalhadores - os culpados pela crise? A enorme conta dos Estados Unidos com a compra de petróleo - cerca de US$ 500 bilhões (? 345 bilhões) - é atualmente paga com dinheiro emprestado pela China. A cada dia útil, a dívida externa dos Estados Unidos aumenta em quase US$ 1 bilhão (? 690 milhões).

Provavelmente a pílula mais amarga de engolir nos Estados Unidos de hoje é o fato de os lares privados não estarem administrando as suas finanças de maneira melhor do que os executivos de corporações. Estes lares vêem o reflexo de suas imagens nos banqueiros de Wall Street, e não uma espécie de figura destorcida de si próprios. "De fato, não conheço nenhum país no qual o amor pelo dinheiro tenha se estabelecido tão fortemente no sentimento dos homens", observou Alexis de Tocqueville 170 anos atrás.

A conversa há muito necessária entre o governo e os governados ainda não se materializou. Essa teria que ser uma conversa a respeito da relação entre a economia e os valores, sobre a recuperação daquilo que se perdeu, em vez de sobre expansão. A palavra frugalidade - que desapareceu do vocabulário dos Desinibidos - deveria ser reintroduzida.

Mas não há sinal de que nada disso esteja acontecendo. Os Estados Unidos de hoje são muito estadunidenses para sobreviverem na sua forma atual. Mas os Estados Unidos atuais são também muito orgulhosos para perceberem isto. Os fiéis dificilmente permitiriam que alguém os convertesse.

Assim, a nossa compreensão dos acontecimentos continua ficando cada vez menos clara. Teve início um jogo perigoso com o tempo.

"O ruído de duas balas sacudiu a complacência da sala. Subitamente, o jogo não era mais um jogo. Alguém gritou... 'Luzes'. 'Não consegue encontrar um isqueiro?'...'Oh, Archie, quero sair daqui'".

Tradução: UOL

(Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/10/01/ult2682u958.jhtm)