segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Cibercultura conservadora



Prazerosa confusão de fronteiras: sobre o imaginário do excesso e da transgressão


Por: Erick Felinto

Fonte: Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 24 • julho 2004 • quadrimestral

RESUMO

Este artigo examina as noções de excesso e transgressão nos discursos da cibercultura. Defende-se a hipótese de que a retórica libertária e revolucionária dos ciberutopismos oculta, na realidade, uma cosmovisão essencialmente conservadora e marcada pelos mitos da modernização progressiva.

ABSTRACT

This paper discusses the notions of excess and trans-gression propagated by cyberculture’s discourses and find them to be very conservative and modernist.

There is pleasure sure, in being mad, which none but madmen know

John Dryden, The Spanish Friar


When reality just isn’t good enough, pleasure must be synthesized

Iara Lee, Synthetic Pleasures

A FRASE QUE anuncia o excelente documentário de Iara Lee, Synthetic Pleasures, é sintomática de uma situação cultural dominada pelo tema do excesso. É preciso ir além, ultrapassar todos os limites, viver todas as experiências e criar ainda outras novas. Como diz Omar Calabrese, nossa era neobarroca tem como um de seus traços identificadores básicos o desejo do rompimento dos limites, do atravessamento das fronteiras.


“Desmesura e excedência estão entre as principais constantes formais dos contentores neobarrocos, sobretudo no âmbito da civilização de massas” (1988: 77).


A noção de excesso aparece, de fato, em todos os campos da vida cultural, mas com força redobrada no horizonte dos meios de comunicação massivos.
O cinema hollywoodiano é, talvez, a maior demonstração desse prazer excêntrico.
Filmes como Matrix (1999) ou Star Wars: Attack of the Clones (2002), com suas explosões monumentais e incríveis efeitos especiais, representam com perfeição essa categoria estética que poderíamos denominar como um gosto pelo excessivo.
O prazer pela ruptura, que se desdobra em diversas formas, manifesta-se também nitidamente no campo daquilo que se convencionou chamar cibercultura. Os discursos sobre as novas tecnologias de informação e comunicação, como indica o bordão de Synthetic Pleasures, repetem incessantemente a idéia de que é preciso avançar todos os sinais, derrubar todas as barreiras, inclusive aquelas que tradicionalmente definiam categorias ontológicas, como a separação humano-inumano. Retomando a reflexão de Bataille sobre a noção de despesa, André Lemos detecta, com perspicácia, esse traço fundamental da cibercultura:


A cibercultura fornece vários exemplos de uma despesa excessiva, não acumulativa e irracional de bits. Dançar por horas em festas tecno, viajar por vínculos banais e efêmeros do ciberespaço, produzir vírus, penetrar sistemas de computador, trocar informação frívola em bate-papos e grupos temáticos, etc. (2002: 264)


Mas o que uma abordagem crítica pode nos revelar a respeito desse tropo? Onde poderíamos encontrar suas origens? Qual é a extensão integral das idéias envolvidas nesse tema e de que visão de mundo ela constitui uma expressão? Este artigo é uma tentativa de formular algumas respostas iniciais. Para tanto, convém tecer algumas considerações sobre as noções de equilíbrio e excesso, pois compreender o papel que desempenham no horizonte da tecnocultura contemporânea exige antes a obtenção de uma clareza mínima a respeito dos sentidos que podemos atribuir-lhes. Pretendo abordar essas noções a partir de perspectivas físicas (ou “físico-filosóficas”) e antropológicas, já que é nos âmbitos da ciência, da filosofia e da cultura que se desenham (e por vezes se cruzam) os temas do equilíbrio e do excesso.


Do ponto de vista da física clássica, a tendência natural do universo pode ser caracterizada como um processo de entropia. Dado um sistema fechado (que é provavelmente o caso do universo), a energia inicialmente ali manifestada tende a se dissipar com o tempo. Sabemos que o que permite a manutenção de qualquer sistema é um estado de heterogeneidade, no qual as várias forças envolvidas se diferenciam continuamente. Em qualquer sistema fechado, parte-se de um estado inicial de diferenciação onde a energia sofre diversas transformações e vai se degradando progressivamente. Com o passar do tempo, a energia se perde em formas não aproveitáveis, como, por exemplo, calor. Pode-se dizer, portanto, que a morte de todo sistema é representada pela passagem da heterogeneidade à homogeneidade.
Essa situação, contudo, se complexifica no âmbito da física contemporânea. A percepção de que determinados fenômenos microfísicos podem ser entendidos como energia ou matéria (caso dos fótons, por exemplo) oferece novas perspectivas para pensar as questões do equilíbrio, da heterogeneização e da homogeneização.
Stéphane Lupasco, por exemplo, argumenta que ambos os processos são necessários para o funcionamento dos sistemas microfísicos. Nessa relação entre diferença e indiferenciação, na qual operaria uma lógica paradoxal, homogeneização e heterogeneização estão presentes simultaneamente, em estados diferenciados de virtualidade ou atualidade. Em outras palavras, para que um sistema se homogeneíze, é necessário que as formas de homogeneização estejam presentes desde sempre, em estado de virtualidade ou potência, para então progressivamente se atualizarem dentro do sistema. Da mesma maneira, para que possa haver heterogeneização no sistema, as forças de heterogeneidade devem estar continuamente presentes, ainda que na forma de potencialidade.
Como diz Lupasco, “cada evento energético, cada processo dinâmico passa de um certo estado de potencialidade a um certo estado de atualização. Mas ele pode apenas fazê-lo potencializando o evento energético antagonista que o mantém como tal através de seu estado de atualização” (1970: 36).
Lupasco observa, assim, que é possível falar em dois tipos de matéria: a macrofísica – mundo das nossas experiências cotidianas –, na qual os processos de homogeneização são dominantes e a levam a um estado de não-contradição e estabilidade máximas, e a microfísica, na qual se manifesta uma orientação inversa, em direção ao antagonismo simétrico e contraditório. Mas é possível falar ainda em um terceiro tipo de matéria, segundo Lupasco, a matéria viva. O interessante na organização dos sistemas vivos é que eles se constituem numa forma de matéria que luta constantemente contra o segundo princípio da termodinâmica (a entropia, a morte). Trata-se de um sistema voltado especificamente para os dinamismos heterogeneizantes. Ainda que submetida às leis do mundo macrofísico, à tendência ao equilíbrio e estabilidade, a matéria viva resiste, se diversifica e se desdobra em sistemas de complexidade crescente.
Todo esse belo (e em grande parte incompreensível para a maioria de nós, simples mortais) edifício científico não seria de grande ajuda se não fossem os postulados filosóficos derivados da argumentação. É possível sintetizar esses postulados em duas idéias fundamentais, importantes para o desenvolvimento da minha argumentação:


1) o universo tende à entropia; não há excesso de energia que possa ser desperdiçado. O que permite resistir à entropia, segundo Lupasco, são os mecanismos de equilíbrio dinâmico da matéria microfísica,


2) o verdadeiro equilíbrio, no plano do mundo microfísico (e da vida psíquica), consiste num regime de convivência antagonista entre forças de homogeneização e heterogeneização. A contradição absoluta ou a ausência total de contradição trariam a destruição do sistema (o excesso).


Do ponto de vista cultural, o tema da “despesa excessiva” é objeto de uma larga tradição de estudos antropológicos. O fenômeno do potlach, cuja descrição mais exaustiva encontra-se no célebre Essai sur le Don, de Marcel Mauss, consiste em uma cerimônia na qual o chefe de uma tribo oferece a um rival um presente, com vistas a humilhá-lo ou desafiá-lo. O rival deve, então, responder ao desafio, oferecendo, mais tarde, um novo potlach mais suntuoso e dispendioso que o primeiro. Mas observou-se também que a dádiva não era a única forma de manifestação do potlach. Por ocasiões, consistia na simples e espetacular destruição de imensas riquezas. Há casos em que o potlach envolve o assassínio de escravos, a queima de alimentos vitais ou até mesmo a destruição da própria aldeia.


Bataille irá retomar as reflexões da antropologia e desenvolver, sobre a noção do potlach, toda uma filosofia da despesa. Para Bataille, o fenômeno da dádiva remete ao desenvolvimento de uma economia geral, preocupada com o todo – ou seja, não apenas com a vida social, mas também com os fenômenos naturais. É na própria natureza – portanto, curiosamente, no horizonte de uma perspectiva física – que se funda o ato da dádiva. A natureza demonstra um excesso de energia, de vida (cujo maior exemplo é o sol). Esse excesso significa que a tendência da vida é expandir-se continuamente, e essa expansão é limitada apenas pelas dimensões da biosfera (Bataille, 1975: 67). As limitações imediatas do crescimento são dadas imediatamente, para cada indivíduo, através dos outros indivíduos. Daí a origem de fenômenos como o potlach: a energia em excesso precisa ser desperdiçada, sob pena de chegar a nos destruir. Nas sociedades capitalistas modernas, corre-se esse risco, já que seu princípio básico de funcionamento é a acumulação.
Nesta equação estão presentes dois componentes diversos que, porém, tendemos a confundir e tomar como um só: excesso e despesa (ou dispêndio). Na verdade, na tradição antropológica o tema do excesso não chega a se tornar o tópico central da discussão. Mauss e a tradição antropológica em geral encaravam a questão do potlach como uma expressão de poder por parte dos chefes tribais (o poder de dar e destruir), ou como um processo primitivo de troca sob forma ritual. É Bataille quem introduz decisivamente o tema do excesso, mas apenas para justificar sua teoria da dádiva.
O excesso seria um fenômeno da natureza que se reflete no campo da vida cultural.
O dispêndio inútil poderia, assim, ser encarado como um princípio de oposição ao conceito de utilidade do mundo capitalista.
Na verdade, quando falamos no tema sob uma perspectiva culturalista, pode-se entender que, na forma de acúmulo, o excesso chegue a ser considerado como essencialmente nefasto (Bataille). Por outro lado, se adotarmos a posição de Calabrese – que entende excesso como a ultrapassagem dos limites e formas tradicionalmente impostos por uma cultura – não existe propriamente um julgamento de valor. Na definição de Calabrese, “o excesso manifesta a ultrapassagem de um limite visto como caminho de saída de um sistema fechado” (1988: 63). Toda cultura se caracteriza por determinados limiares, confins, a partir dos quais qualquer fenômeno é considerado como rompimento de normas, como ação revolucionária.
Mas Calabrese estabelece uma distinção importante entre limite e excesso. O limite significa operar nas fronteiras do sistema cultural sem de fato chegar a rompê-las, ao passo que o excesso implicaria a crise do sistema, exigindo uma total reformulação do mesmo. No caso da cultura contemporânea, Calabrese identifica um movimento complexo, entre limite e excesso, o que não permitiria classificar o neobarroco como época propriamente dinâmica ou “revolucionária”.
“O gosto neobarroco”, afirma, “configura-se como perenemente em suspensão, excitado mas nem sempre disposto à subversão de categorias e valores” (1988: 80).
No domínio da cibercultura parece que lidamos precisamente com esse tipo de situação. Por um lado, encontramos discursos de entonação revolucionária que pregam a transgressão de normas e a ultrapassagem de todas as limitações políticas e sociais (ou mesmo biológicas); por outro, temos também os discursos que adotam uma posição conservadora, preocupada com os perigos do excesso, especialmente do excesso de informação. É relativamente fácil, porém, encontrar exemplos que oscilam entre esses dois pólos. No mission statement do Instituto Extropiano, dedicado ao desenvolvimento integral do homem em sua relação com a tecnologia, lemos que ‘’Avanços na tecnologia (incluindo as ‘tecnologias sociais’ da administração do conhecimento, aprendizagem e tomada de decisões) começam a nos capacitar para alterar a própria natureza humana nos seus aspectos físicos, emocionais e intelectuais. As possibilidades radicais que agora emergem podem causar enormes problemas, assim como aperfeiçoar enormemente a condição humana/transhumana. Com melhores conhecimentos e processos de tomada de decisões, os humanos podem viver muito mais longamente numa saúde “mais que perfeita”; aprimorar seu autoconhecimento e consciência da dinâmica interpessoal; superar preconceitos culturais, psicológicos e meméticos na forma de pensar; aperfeiçoar a inteligência em todas as suas formas e aprender a desenvolver-se na mudança e evolução2’’.
Essa passagem nos oferece alguns elementos interessantes de análise. Em primeiro lugar, registre-se a presença da ambigüidade em relação à superação de limites possibilitada pela tecnologia. Esta pode “causar enormes problemas” ou promover extraordinários avanços. Trata-se de “possibilidades radicais”, capazes, portanto, de conduzir a extremos opostos: a felicidade absoluta ou a desgraça total. Em segundo lugar, vemos o tema da saúde perfeita, ao qual Lucien Sfez dedica todo um livro. Sfez vê na idéia de saúde perfeita ou “grande saúde” a última grande ideologia possível da pós-modernidade. Mais que isso, afirma ele, trata-se de uma bio-eco-religião visando ao desenvolvimento de um super-homem que “liberto do dilaceramento vida/morte, dilaceramento constitutivo de nossa infeliz existência humana, atingiria a imortalidade e, desse modo, não precisaria mais de Deus, da moral e da metafísica” (1996: 21). Em terceiro lugar, intimamente vinculada ao tema da saúde total, evoca-se a mitologia do transhumanismo.
O transhumano é um ser que transcende as fronteiras da espécie, do gênero e até mesmo de seu reino, já que, de certo modo, pode resultar da combinação entre o animal e o mineral – por exemplo, das pastilhas de silício que, implantadas em seu corpo, ampliaram suas capacidades físicas e mentais.
O tema do transhumano, assim como do pós-humano ou do ciborgue, repousa na idéia da superação dos limites impostos pelo estado natural. Como enuncia a já célebre frase cunhada por Donna Haraway em seu Manifesto Ciborgue, aqui lidamos com “o prazer da confusão de fronteiras” (2000: 42). Para Haraway, o ciborgue é criatura tanto do nosso imaginário como da nossa realidade cotidiana, que simboliza o rompimento, já em curso, das fronteiras tradicionalmente estabelecidas na cultura ocidental, como as de gênero (homem/mulher) ou natureza (orgânico/inorgânico).
Tiziana Terranova encara a filosofia do pós-humanismo como uma reelaboração contemporânea de um tema que já aparecia, ao menos embrionariamente, nos futuristas italianos ou em Nietzsche (com o que parece concordar Sfez). Todo o discurso transhumanista pode ser articulado em duas alternativas básicas: a extensão das capacidades do corpo ou a simples e pura ultrapassagem das limitações corporais (nas fantasias de digitalização da consciência). Terranova observa inteligentemente que as utopias transhumanistas são essencialmente individualistas e anti-sociais. No triunfo dessa vontade tecnológica, “a sociedade é apagada e o universo social emerge como um agregado fragmentário de indivíduos num vazio sem restrições históricas e materiais” (2002: 275). A idéia merece maior desenvolvimento. Os filosofemas trans-humanistas, mesmo quando pregam utopias coletivas, são essencialmente avessos à idéia de uma organização social, já que esta implica, de certo modo, uma limitação das possibilidades máximas de cada indivíduo.
Para ser inteiramente coerente com suas premissas, o transhumanismo deve constituir-se numa afirmação do indivíduo como artista de si mesmo; como ser que, insurgindo-se contra os tradicionais padrões culturais, sociais e cognitivos (“memes”), rompe todas as fronteiras e produz uma transvaloração de todos os valores. Mas os discursos da ciberutopia raramente buscam a coerência. São sistemas de valor que hesitam entre o excesso e a contenção, entre o revolucionário e o convencional. Desse modo, no site da Associação Mundial Transhumanista, prega-se a necessidade de se criar fóruns “onde as pessoas possam debater racionalmente sobre o que precisa ser feito, e uma ordem social na qual decisões responsáveis possam ser implementadas”3. Curiosamente, também se afirma que o movimento transhumanista “abarca muitos princípios do humanismo moderno”4.
Calabrese fala no excesso contemporâneo como um princípio endógeno. Em outras palavras, trata-se de um excesso que trabalha do interior do próprio sistema, estendendo seus limites em lugar de rompê-los. Na verdade, uma característica tradicional dos sistemas sociais é a capacidade de integrar o excesso, “tornando substancialmente normal uma aparência excessiva” (Calabrese, 1988: 79). No âmbito da cultura contemporânea, os discursos da ciberutopia podem parecer transgressores e libertários, mas trata-se de uma subversão domesticada, controlada. Como explica Terranova, o entusiasmo utópico da filosofia pós-humanista é contrabalançado por temores distópicos5 e, poderíamos acrescentar, valores conservadores. Como demonstra Terranova em sua análise dos discursos ciberutopistas, a associação entre idéias como televisão-feminilidade-estupidez é “parte de uma significante estratégia de oposições e analogias definindo a identidade tanto das novas tecnologias ‘interativas’ (como opostas à televisão) quanto de seus usuários ‘ativos’ (como opostos à passividade feminina)” (2002: 272).
Além dos procedimentos propriamente retóricos, é interessante também falar no modo de apresentação dos discursos da cibercultura.

Muitos se apresentam na forma de manifestos. É o caso do célebre texto de Haraway, por exemplo. O manifesto constituía a forma discursiva por excelência das vanguardas. Futurismo, dadaísmo, cubismo, surrealismo: todos tiveram seus manifestos expressando o desejo do rompimento absoluto com o passado; o estabelecimento de uma nova hybris em busca de realizações espetaculares e inéditas. Em tempos pós-modernistas, porém, essa retomada da forma-manifesto se esvazia de sentido. Como diz Eduardo Subirats, em relação ao esgotamento das vanguardas, “suas atitudes converteram-se há muito em espetáculo ritualizado, em gesto representativo e narcisista, em afirmação vazia de poder” (1986: 11). Os manifestos da cibercultura são sintoma dessa derrocada das utopias modernistas, que agora reeditam antigos sonhos tecnológicos sob roupagens aparentemente novas. A retórica do manifesto do movimento FutureCulture é semelhante à de seus correligionários:

‘’Assim como uma tecnocracia é um governo dirigido por cientistas ou aqueles que criam a tecnologia, a tecnocultura é uma cultura alimentada pela tecnologia. A América é tecnocultura. Nós estaríamos perdidos sem nossas televisões ou carros, nossos computadores ou telefones. FutureCulture é, portanto, uma forma de decifrar como o amanhã irá parecer em uma tecnocultura6’’.
A tecnocultura se apresenta como uma forma híbrida, um cenário cultural no qual a tecnologia está tão inextricavelmente ligada à vida cotidiana que é dela inseparável. É preciso assinalar, porém, que toda cultura já é desde sempre tecnológica. Como diz Erik Davis, “a cultura é tecnocultura” (1998: 10). Podemos, contudo, admitir o uso do conceito para expressar a individualidade do momento histórico que agora se apresenta.
Se a cultura sempre foi tecnológica, é apenas no contexto da “tecnocultura” que ela passa a se pensar explicitamente como tal e tomar como objeto de reflexão toda a extensão dos problemas implicados na conjunção homem-máquina. Para Geoff Waite, que, como Sfez e Terranova, crê na antecipação nietzschiana do tema do pós-humano, a tecnocultura se caracteriza pela constituição de um self ciborgue, habitante de uma paisagem cultural híbrida, resultado da mescla de elementos da cultura popular (“junk culture”), de fragmentos filosóficos (especialmente dos filosofemas nietzschianos) e do culto ao tecnológico. E nessa paisagem filosófica passeiam ainda os tradicionais mitos de modernização das primeiras utopias tecnológicas. Em última instância, como afirma Jonathan Crary, nos encontramos em “mais um daqueles momentos recorrentes no século XX em que uma das máscaras do fracasso e da paralisia do político é a entusiasmada afirmação da força transformadora e da centralidade cultural da inovação tecnológica” (apud Waite, 1996: 16). Uma forma não de pensamento revolucionário, portanto, mas de conformismo infantil que oculta a derrocada do projeto moderno.
Aliás, é interessante observar a série de metáforas infantis com que se inicia o manifesto FutureCulture. Em uma paisagem bucólica, uma criança sopra bolhas de sabão e, de repente, pára para observar a beleza de uma bolha em particular. Nessa observação descobre todo um mundo novo e fascinante. As bolhas se combinam, estouram, adquirem formas exóticas, se aproximam e se afastam. Tudo para metaforizar o processo do diálogo e intercâmbio entre as várias facções e elementos de uma cultura. As bolhas são “subculturas” (como, por exemplo, a cultura cyberpunk), que nascem, se desenvolvem, morrem, se afastam e se reaproximam no horizonte mais amplo desse grande environment que é a Cultura. A metáfora nos transporta para um paraíso originário, para um estado de inocência e pureza fora do tempo e do espaço. Um mundo adâmico das conciliações, anterior à ruptura da Queda, e ao qual a tecnologia agora poderia nos devolver. Vale a pena reproduzir um trecho da passagem:
‘’Desse modo, como se pode ver, as subculturas se combinam em culturas ou subculturas mais amplas (é tudo relativo), as subculturas podem se autodestruir, podem evoluir ou meta-morfosear-se, podem divergir para diferentes direções. Mas em qualquer dos casos, sempre há bolhas, pois nós, como aldeia global, somos como o menino de cinco anos – entrincheirado no mundo das bolhas, olhando-as com um olhar de admiração7’’.
O imaginário de excesso e transgressão da cibercultura revela-se, assim, como conservadorismo político e mitologia religiosa. Esse imaginário envolve, como tenho procurado demonstrar8, uma deificação da tecnologia como forma de obtenção da transcendência humana. Misticismo e ciência são termos intercambiáveis nessa equação, segundo um dos princípios do Manifesto Pós-Humanista: “O pós-humano está inteiramente aberto a idéias de ‘paranormalidade’, ‘imaterialidade’, ‘sobrenatural’ e ‘oculto’. O pós-humano não aceita que a fé em métodos científicos seja superior à fé em outros sistemas de crença”9. Temos, assim, efetivamente, mais um exemplo da transgressão de limites tão própria do gosto contemporâneo. Contudo, mais que atitude inovadora ou revolucionária, essa aproximação entre tecnologia e religiosidade representa um retorno a paradigmas anteriores, a uma visão de mundo pré-moderna, na qual os dois domínios apresentavam-se intimamente conectados10.
Há um outro aspecto do tema do excesso na cibercultura que, por sua centralidade, merece nossa atenção. Falo do tema da informação, da idéia de information overload ou data smog, como o qualifica David Shenk (1997); o excesso de informação. Diz-se que não é possível ter-se algo bom em demasia. Informação, aparentemente, é algo desejável e tradicionalmente implica as idéias de transformação, desenvolvimento e crescimento. Mais que em qualquer outra época da história, na cultura contemporânea a informação passou a ser encarada como o bem fundamental. Contudo, o tema do excesso de informação, que de fato não cessa de multiplicar-se no âmbito das redes digitais, constitui uma das principais fontes de distopia no imaginário cibercultural. Shenk afirma que o fenômeno da “névoa de dados” (data smog) nos atinge constantemente em nosso cotidiano na tecnocultura:

‘’Ele agita os momentos silenciosos e obstrui os tão necessários instantes de contemplação. Ele arruína a conversação, a literatura e mesmo o entretenimento. Ele inviabiliza o ceticismo, tornando-nos menos sofisticados como consumidores e cidadãos. Ele nos estressa (1997: 31)’’.
O grande pesadelo do excesso de informação é a impossibilidade de escapar dela, de encontrar um “local” da cultura que não esteja sobrecarregado de estímulos informacionais. Em Minority Report (2002), encontramos uma representação desse pesadelo na idéia de uma sociedade inteiramente controlada pela informação. Sensores eletrônicos escaneiam a retina das pessoas, submetendo-as a um constante bombardeio de propaganda dirigida em qualquer lugar por onde passem.
Katherine Hayles aponta, inteligentemente, as conexões que existem entre os temas da informação e do pós-humano. Um dos filosofemas do pós-humanismo repousa na noção da consciência como fluxo de processos informacionais. Se somos, essencialmente, padrões de informação (inclusive geneticamente falando) e se a informação se apresenta como bem imaterial, nada mais natural que desejar a eliminação dessa materialidade incômoda do corpo. Sem descartar o tema do pós-humanismo, Hayles contudo imagina a possibilidade de uma perspectiva alternativa, menos contaminada pelo mito e pelo desejo do excesso:
Meu sonho é uma versão do pós-humano que abrace as possibilidades das tecnologias da informação sem ser seduzida por fantasias de poder ilimitado e imortalidade descorporificada; que reconheça e celebre a finitude como uma condição do ser humano, e que entenda a vida humana como embebida em um mundo material de grande complexidade, mundo do qual dependemos para continuar sobrevivendo (1999: 5).
Mas não parece ser fácil separar a imaginação pós-humanista de seus mitos de transgressão, excesso e superação da finitude humana. A visão informacional da cultura desmaterializa a realidade e assim facilita a propagação dos mitos da digitalização corporal. Paulo Vaz observa que enquanto um dos problemas centrais da modernidade era a falta (falta de informação, de acesso à verdade), na cultura contemporânea revertemos ao problema do excesso e da rapidez (1999: 117). São esses dois elementos que situam os sujeitos contemporâneos em um ambiente destemporalizado e desmemoriado. Oferecida de forma descontextualizada, fragmentária, rápida e excessiva, a informação acaba constituindo-se em não-informação.


Chegando a este ponto, já é possível fazer uma síntese do percurso até aqui traçado e propor algumas hipóteses:


1) O excesso não é um traço constitutivo da natureza física; na realidade, o universo se caracteriza pela tendência à entropia típica de todo sistema fechado. O que o mantém em funcionamento são os processos de diferenciação e antagonismo da matéria microfísica;


2) Nada indica que qualquer forma de excesso seja positiva. Pelo contrário, a noção de excesso implica a presença de uma quantidade exagerada, em um sistema, de um determinado elemento e, portanto, uma situação de desequilíbrio. O excesso implica homogeneização e assim impede a manifestação de uma diferença criadora;


3) A antropologia clássica prega que a despesa excessiva pode ser entendida como um ritual de poder. Dessa forma, desperdiçar bens materiais, energia ou informação pode ser entendido não como uma forma de resistência aos processos de acumulação do capitalismo selvagem, mas como a expressão de um desejo de poder totalitário;


4) A cultura contemporânea apresenta um gosto pelo excesso e pelo limite, mas esse gosto raramente se manifesta como forma revolucionária e transformadora do sistema. Pelo contrário, em muitas ocasiões, tal gosto se constitui em mais um mecanismo de controle e manutenção do sistema;


5) Os discursos do excesso e da transgressão na cibercultura estão carregados de mitos utópicos e fantasias distópicas, revelando as contradições internas dessa Weltanschauung. Na maioria das vezes, podem ser criticamente percebidos como expressão de uma ingenuidade infantil, que busca recuperar o vigor transgressor da modernidade, mas acaba por recair em um imaginário pré-moderno e numa visão religiosa e reconciliadora dos conflitos sociais.


É possível que o quadro aqui pintado seja considerado excessivamente sombrio. Talvez o seja, de fato, mas não tanto devido a alguma forma de pessimismo de matriz frankfurtiana. Ocorre que a prevalência dos discursos afirmativos no horizonte da cibercultura é tão grande que qualquer forma de perspectiva alternativa deve ser formulada com a máxima acidez da visão crítica. O entusiasmo pelas novas tecnologias, do qual muitos de nós – inclusive aquele que escreve estas linhas – compartilhamos, talvez represente, num obscuro recôndito de nosso inconsciente cultural, a expressão de um desejo de salvação tecnológica. Em um mundo onde o sentido se evaporou, onde a sensação se anestesiou, onde o percurso histórico estacionou, nada mais natural que almejar o prazer ciborgue da dissolução de fronteiras. Mas é a fronteira última da nossa finitude que pode também nos resguardar contra as formas mais agudas da insanidade.

Notas


1 Este trabalho foi originalmente apresentado no XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em Belo Horizonte, em setembro de 2003.


2 Disponível em http://www.extropy.orgaboutindex.html/. Memético (memetic) é um termo cunhado pelo biólogo Richard Dawkins e que fez fortuna no universo da cibercultura. Um meme indica aquela espécie de comportamento ou hábito cognitivo que segue padrões fortemente estabelecidos e que se repetem, de modo similar ao que sucede nos processos de replicação genética.


3 Disponível em http://www.transhumanism.org/ decla-ration.htm



4 Idem.


5 Como no caso do manifesto extropiano, os princípios da Associação Mundial Transhumanista também apresentam os possíveis perigos do desenvolvimento tecnológico: “Por outro lado, também seria trágico se a vida inteligente fosse extinta por causa de algum desastre ou guerra envolvendo tecnologias avançadas” – também em http://www.transhumanism.org/declaration.htm. O imaginário da literatura cyberpunk e da ficção científica é pródigo em fantasias apocalípticas e distópicas.


6 Disponível em http:project.cyberpunk.ruidbfuture_cultu-re_manifesto.html.


7 Disponível em http://project.cyberpunk.ru/idb/future_culture_ manifesto.html.


8 Ver, por exemplo, meu artigo “Tecnognose: Tecnologias do Virtual, Identidade e Imaginação Espiritual”, in Revista Famecos nº 18. Porto Alegre: Famecos/PUCRS (agosto 2002).



10 A esse respeito, ver Noble, David. The Religion of Technology: the Divinity of Man and the Spirit of Invention. London: Penguin, 1999.


Referências


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HARAWAY, Donna. “Manifesto Ciborgue”, in DA SILVA, Tomaz Tadeo (org.). Antropologia do Ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.


HAYLES, Katherine. How we Became Post-Human: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.


LEMOS, André. Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.


LUPASCO, Stéphane. La Tragédie de l’Énergie. Paris: Casterman, 1970.


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SHENK, David. Data Smog: Surviving the Information Glut. New York: Harper Edge, 1997.


SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo: Nobel, 1986.


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VAZ, Paulo. “Agentes na Rede”, in Lugar Comum, nº 7. Rio de Janeiro: Nepcom/UFRJ (janeiro-abril 1999).


WAITE, Geoff. Nietzsche’s Corps/e: Aesthetics, Politics, Prophecy, or, the Spectacular Technoculture of Everyday Life. Durham: Duke University Press, 1996.


(Fonte: http://www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/24/Erick_Felinto.pdf)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A bolha assassina


Clique aqui para ver a animação.

Sim, a Bolha Assassina existe. Muito pior que aquela mostrada em filmes "B", trata-se de uma gigantesca bolha de plástico flutuante, uma espécie de gel vivo cobrindo o Oceano Pacífico, engolindo e matando tudo que se encontra em seu caminho.
Uma enorme camada flutuante de plástico que já é considerada a maior concentração de lixo do mundo, com cerca de 1.000 km de extensão. Vai da costa da Califórnia a meio caminho do Japão, com uma profundidade de mais ou menos 10 metros .

Acredita-se que haja neste "vórtex de lixo" cerca de 100 milhões de toneladas de plástico de todos os tipos.

Pedaços de redes, garrafas, tampas, bolas , bonecas, patos de borracha, tênis, isqueiros, sacolas plásticas, caiaques, malas e todo tipo de plástico. Segundo seus descobridores, a mancha de lixo - ou sopa plástica - tem quase duas vezes o tamanho dos Estados Unidos.

O oceanógrafo Curtis Ebbesmeyer, que pesquisa esta mancha há 15 anos, compara o vórtex a uma entidade viva, um grande animal se movimentando livremente pelo Pacífico. Quando passa perto do continente a mancha causa praias cobertas de lixo plástico de ponta a ponta.

A bolha plástica atualmente está em duas grandes áreas ligadas por uma faixa estreita. Referem-se a elas como bolha oriental e bolha ocidental. Um marinheiro que navegou pela região no final dos anos 90 disse que ficou atordoado com a visão do oceano de lixo plástico à sua frente. 'Como foi possível fazermos isso?' - 'Naveguei por mais de uma semana sobre todo esse lixo'.

Pesquisadores alertam para o fato de que toda peça plástica que foi manufaturada desde que descobrimos este material e que não foi reciclada ainda está em algum lugar do planeta. Acrescente a isso o problema das partículas decompostas de plástico. Segundo dados de Curtis Ebbesmeyer em algumas áreas do oceano Pacífico pode se encontrar uma concentração de polímeros até seis vezes maior que a de fitoplâncton, base da cadeia alimentar marinha.



Segundo o PNUMA, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, este plástico é responsável pela morte de mais de um milhão de aves marinhas todos os anos. Sem contar toda a fauna que vive nesta área, como tartarugas marinhas, tubarões e centenas de espécies de peixes.

Essa sopa plástica pode funcionar como uma esponja que concentra poluentes persistentes. Ou seja, qualquer animal que se alimenta nestas regiões pode ingerir altos índices de venenos que acabam introduzidos, através da pesca, na cadeia alimentar humana, tornando verdadeira a afirmação de que o que fazemos à Terra acaba tendo impacto sobre nós, seres humanos.

O navio do Greenpeace Esperanza recentemente cruzou uma das maiores áreas da bolha, cujo centro encontra-se a cerca de 900 KM a nordeste do Hawaí. Esse é o epicentro de um "sistema" que cobre boa parte do Oceano Pacifico. Somente esta área tem aproximadamente o tamanho do Estado do Texas, girando em sentido horário. Estima-se que haja na área cerca de 6 Kg de plástico para cada Kg de plancton.

***

O que fazer ?

Todos nós sabemos, no íntimo, o que fazer.

Se você é publicitário, jornalista ou outro tipo de formador de opinião, voce pode e deve mudar sua conduta, com vistas a ajudar na imprescindível mudança de mentalidades. Seus filhos e netos agradecem. A natureza agradece.

Se voce é professor, universitário ou não, páre de dar aulas burocráticas e promova discussões pertinentes e atinentes ao cotidiano de seus alunos. Traga a Filosofia, a Matemática, a Geografia ou qualquer outra disciplina para os problemas urgentes que nos defrontamos, promova uma "massa crítica".

Seus alunos não se interessam pelas aulas ? Eles têm razão ! Saia do cinismo burocrático.

Se você é somente um consumidor, pelo menos consuma conscientemente.

Penso ser nefasta a cultura do denuncismo que se limita a ouvir e ver passivamente.

Podemos e devemos fazer algo agora, neste momento, mudando nossas próprias rotinas.

A solução de nossos problemas não se encontra fora de nós, mas na integridade e na lucidez cotidianas.

Não siga cartilhas ou preceitos morais: seja simplesmente honesto e íntegro com você mesmo !




(Fontes das matérias: The Independent, Greenpeace e Mindfully)

(Extraído de:

http://www.viomundo.com.br/bizarro/no-oceano-pacifico-bolha-de-plastico-e-marca-do-homem/

e

http://images.google.com/imgres?imgurl=http://kauaian.net/blog/wp-content/themes/default/images/sushi/trashvortex.jpg&imgrefurl=http://kauaian.net/blog/%3Fp%3D381&h=101&w=160&sz=17&hl=pt-BR&start=19&usg=__FC38G3XvqGqAlDodA_PBhwPHSS0=&tbnid=StKtVSQMSWyL5M:&tbnh=62&tbnw=98&prev=/images%3Fq%3D%2522pacific%2Btrash%2Bvortex%2522%26gbv%3D2%26hl%3Dpt-BR





domingo, 21 de setembro de 2008

Sociologia do cotidiano de Patópolis


Tio Patinhas no centro do universo (*) (**)

Por: JOSÉ DE SOUZA MARTINS



"Bem, é que no nosso país", disse Alice, ainda um pouco ofegante, "o mais certo seria chegar a outro lugar — depois de correr tanto como nós fizemos".
"Um país muito lento", retorquiu a Rainha. "Não, aqui, como vês, é preciso correr o mais que se pode para ficar no mesmo lugar. Se quiseres ir para outro lugar tens de correr, pelo menos, duas vezes mais depressal
"

(Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho)



(...)



Neste trabalho registro uma leitura sociológica das histórias cujos personagens são os habitantes de Patópolis, figuras criadas pela empresa de Walt Disney. Procuro descrever as relações sociais que vinculam os vários personagens e, através do seu conteúdo, mostrar que elas hierarquizam os patopolitanos por meio de uma escala implícita de valores fundada na figura do capitalista clássico. Essa escala de valores é que se pretende educativa, por meio da definição do gosto do leitor, procurando incutir nele as noções morais de bom, ridículo, delinqüente e louco, entre outras. Tal leitura seria impossível sem a constatação preliminar de que cada personagem é, antes de tudo, mercadoria, que se vende e se compra. Daí resulta o imobilismo que explica os vários tipos e a posição passiva do leitor "educando". Torna-se possível, desse modo, a leitura sociológica das historietas, uma vez que a substância das relações sociais não está primeiro nos vínculos entre os personagens, mas sim na relação da empresa que produz e vende a história e o consumidor que a compra. A historieta sistematiza o universo simbólico que suporta e explica a relação entre produtor-vendedor e o comprador de história em quadrinhos, projetando-o, no entanto, para todas as outras relações, como se substantivamente fossem uma única relação e, em decorrência, os personagens se reduzissem a um.




***

Tio Patinhas, além das suas excentricidades de rico, tem parentes, amigos e inimigos. Cada um possuído por suas próprias características, só consegue definir-se, no entanto, contraponteando com ele. Patinhas é o único personagem que serve de referência na definição e constituição de todos os outros.
Donald, seu sobrinho, vem primeiro na lista dos circunstantes. Um dos herdeiros da fortuna de Patinhas, persegue dolorosamente a existência anômala de rico potencial, cuja vida oscila entre o desemprego e, os empregos que o Tio lhe oferece. Quando empregado pelo Tio vive, entre irado e apavorado, as humilhações que aquele o faz sofrer, desde o salário miserável até as artimanhas e engenhos utilizados para mantê-lo desperto e ativo conforme as expectativas do patrão. Sua humilhação é maior porque o delírio acumulativista de dinheiro do Tio transforma-o numa das peças de um sistema de produzir riquezas, cujo caráter espoliativo consegue perceber, mas ao qual se conforma para não ser deserdado. Excluído dos benefícios da riqueza que ajuda a crescer, com ela se compromete, como se por antecipação fosse sua. Vive o sonho de desfrutar a riqueza que na realidade lhe é vedado.
Seu drama é imenso. É pai sem, ter filhos. Huguinho, Zezinho e Luizinho, os três sobrinhos, representam para ele um encargo paterno e um pesadelo. Podem acompanhar, de modo adulto, toda a incompetência de Donald para o desempenho da maior parte das atividades a que o obrigam as circunstâncias, no emprego ou em casa. Sua determinação de vencer, a desesperada necessidade de ser capaz a que as expectativas inflexíveis de Patinhas o submetem, impedem-no de reconhecer-se incapacitado, bem como o impedem de aceitar sugestões e auxílios dos três sobrinhos. É na interferência dos três que se apóia a maior parte das vitórias de Donald. São eles que, depreciando-o ainda mais, de fato se realizam segundo as regras de Patinhas.
Embora os três correspondam melhor às esperanças de Patinhas do que Donald, eles não repetem o modo de ser, as táticas, as intenções, os recursos do tio senil. São de uma geração de tecnocratas, para os quais não é viável o projeto do enriquecimento pessoal pelo trabalho, pela sorte e pela astúcia. Por isso, agem coordenadamente. Nunca cada, um deles é senhor de um pensamento completo. No mais das vezes cada um se limita a emitir uma única palavra que se junta à palavra do outro e à do outro para que surja uma sentença e uma idéia. Estão articulados entre si como peças ajustadas de um mecanismo rigoroso. Eles têm o que falta a Donald — apenas os pedaços das idéias — enquanto Donald tem o que já é obsoleto — as idéias por inteiro. Isso seria paradoxal, em se tratando de idéias, se para eles o pensamento e a inspiração não fossem objetivamente determinados. Para toda nova situação não há uma idéia nova: há o "Manual do escoteiro% fonte inesgotável de informações que cobre todo o saber possível e do qual se pode receber qualquer resposta ou dado com rapidez, como se viesse de um computador. Para eles a situação é clara: não existem para repetir individualizadamente as mesmas palavras, os mesmos gestos e os mesmos atos que criaram o universo de Patinhas. Não nasceram para produzir o universo, mas para reproduzi-lo.
É aí que representam um pesadelo para Donald, pois este é compelido a repetir sozinho palavras, gestos e atos do criador — Patinhas — sem efeito algum. Seus ataques de ira são indicativos de uma incapacidade fundamental para entender porque à sua atividade é estéril. É que sua condição de herdeiro obscurece a sua condição de trabalhador. Não está entre os deserdados da terra. Não pode ver na riqueza o produto do trabalho, inclusive do seu trabalho, porque ela constitui a massa de bens que -espera receber e que é totalmente desproporcional à sua pequena participação na tarefa de produzi-la. Não pode ver-se na condição de explorado porque se vê na de beneficiário da exploração. Por isso, a sua indignação é sempre e justificadamente uma indignação pessoal, escoada para o nível da irritação descontrolada. Essa é a articulação adequada para transformar o pesadelo de Donald-trabalhador e Donald-desempregado em irritação cômica, em atividade comicamente desastrada. O drama do trabalhador é obscurecido pela comicidade do herdeiro.
Donald é também marido sem ter mulher. Sua namorada Margarida o submete ao regime duro do parceiro de cama e mesa, sem as vantagens do cargo, transformado no perene carregador de pacotes e fazedor de serviços. Margarida não lhe oferece as penas cálidas e macias para que recoste a cabeça atormentada. Ela também o submete ao duro regime da exploração doméstica. De Margarida não se ouve ou vê uma palavra ou atitude de amor, de afeto desinteressado. Para ela, pata venal, a relação entre os sexos é assexuada e utilitária. Nesse plano, ela estabelece com Donald uma relação que amplia a sua esterilidade: não se acasalam nem procriam. Margarida é a fêmea fútil à espera da doação e da rendição incondicional e material dos patos. Não trabalha. Afora o trato das três sobrinhas (Lalá, Lelé e Lili), resumido no adestramento que, por contraposição aos sobrinhos de Donald, as transformará em novas Margaridas, esgota o seu tempo, acompanhada da galinha Clara, nas festinhas da sociedade, vivendo vicariamente a condição de consumidora, não se sabe a partir de que. Para ela Donald é importante apenas enquanto é servil.


Para manter Donald subjugado aos seus caprichos, não hesita em aceitar a corte de outros patos, enciumando-o. O primo de Donald, Gastão, pato de vida fácil, de características mais próximas às de Margarida, sistematicamente empenhado em cortejá-la, pode satisfazê-la em seu afã de consumo, representando sempre um desafio a mais para que Donald se empenhe na luta para preservar ou ganhar aquilo que deseja e nunca alcança: dinheiro ou companhia feminina. Só Margarida não perde — com Donald ou Gastão ela é herdeira virtual de uma parcela da fortuna de Patinhas.
Mas, Gastão é dotado de um dom: ele tem sorte, que lhe é dada por um infalível pé-de-coelho, desde que o tenha sempre consigo. Para ele, tudo se resolve graças aos eflúvios desse talismã, suporte externo que legitima seu modo de ganhar a vida e até a futura herança de parte da riqueza de Patinhas. O talismã tem aí uma importância muito grande, pois Patinhas também tem o seu — a moedinha n.1. A presença desse componente mágico no universo de Patinhas constitui como que a fonte de um direito natural, o direito de enriquecer. Já que todos trabalham — Donald trabalha, Huguinho, Zezinho e Luizinho trabalham e vários outros membros do universo trabalham — é preciso explicar porque uns têm a riqueza e outros não a têm. Esse componente mágico institui uma diferenciação interna fundamental no universo de Patinhas: há os predestinados e escolhidos, cujos talentos se multiplicam (estou aqui trocadilhando com a palavra bíblica "talento", usando-a ao mesmo tempo no sentido de moeda e de dom) e há os demais que não são servos nem bons nem fiéis, de tal modo que misteriosa entidade sobrenatural neles não confia. A sorte representa, portanto, um chamamento mágico, apoiado em símbolos externos. Com isso, nem Gastão nem Patinhas parecem senhores de si mesmos, pois ambos estão subjugados pelos objetos mágicos que lhes garantem a sorte e a riqueza. Dessa maneira, a excepcional riqueza de Patinhas torna-se legítima em face, por exemplo, da modesta existência de Donald. O componente mágico instaura a ordem do universo, pois, do contrário, o Pato Donald subversivamente declararia guerra a seu Tio, dando estrutura e direção à sua irritação perene, efetivando, pois, a profecia de que no fim dos tempos filhos lutariam contra pais, irmãos contra irmãos.
Aparentemente, -a sorte de Gastão é destinada a contrabalançar as adversidades de Donald, através de um contraste que torna a este último mais uma vez cômico. Quase sempre, no entanto, a ajuda tecnocrática e secularizada dos sobrinhos de Donald, senhores de um "talismã" moderno, o já referido "Manual do escoteiro", mediante recursos que separam o pé-de-coelho de seu dono, atenua, desvia ou inverte a privilegiada sorte de Gastão. Esse personagem serve, a um só tempo, para reforçar os fundamentos mágicos da existência de Patinhas e a sua negação, que é o recurso tecnocrático ao "Manual". O "Manual" é a esperança dos desesperançados. Num mundo crescentemente secularizado, o reinado absoluto dos talismãs na distribuição dos bens produzidos pelo trabalho comum poderia fazer com que o Donald irascível se transformasse no Donald consciente, descobrindo que a mágica supremacia dos talismãs poderia ser questionada e até destruída. O "Manual" "democratiza" mais do que o acesso à riqueza, a convivência com a distribuição desigual da riqueza, pois restaura, no plano secular, o princípio ordenados da vida social que encontrara sua primeira eficácia na sorte justificada pelos talismãs.
O Pato Donald não cumpre sozinho as adversidades do universo de Patinhas. Seu primo Peninha acompanha-o, de modo diverso, na trajetória desfavorável. Enquanto Donald é essencialmente um cumpridor de ordens, um pato no trabalho ou em busca de trabalho, Peninha é um pato cheio de imaginação e iniciativa. Sua imensa submissão e boa vontade no atendimento das ordens do Tio leva-o à constante tentativa de inovar. Entretanto, cada iniciativa e cada inovação revelam-se sempre desastrosas. Ao contrário de Donald, não amarga a impossibilidade do cumprimento formal do que lhe é determinado. Não consegue entender por que suas intenções nunca se realizam, por que levam sempre a atos que produzem resultados opostos aos desejados. Peninha não consegue entender nunca o que faz, pois entre a intenção, o ato e o resultado intrometem-se outros componentes da situação que não estão sob seu controle, desvirtuando os seus objetivos. Por isso, não pode decifrar o sentido do que faz. Em termos mannheimianos, Peninha está mergulhado na racionalidade funcional de um universo instituído que "dispensa" os patos e os homens, absorvendo-os apenas no cumprimento do ritual dos papéis sociais rigidamente demarcados.
Peninha e Patinhas estão contrapostos, pois, no plano da criatividade. Enquanto o segundo é criador e criatura na gênese do universo, é senhor das ações e das conseqüências das ações, tem o domínio do que faz, com Peninha se dá o contrário. É que a criatividade de Patinhas se torna impessoal na medida em que ele se submete ao querer objetivo representado pela "moeda n.° 1. Nesse processo, submetido ao reinado das coisas, ele se torna agente e não sujeito da reprodução das coisas e do universo coisificado. Patinhas não é senhor do dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem —diz" ao dinheiro o que deve ser feito, mas é o dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a sua lei natural que é a reprodução crescente, incessante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois está irremediável e totalmente identificado com ele. Peninha inverte a imagem de Patinhas. Tomado de iniciativas é vitimado por elas constantemente. É que essas iniciativas não são canalizadas para o leito natural do que nesse universo é concebido como criação. Peninha quer criar soluções. Patinhas quer criar dinheiro. Peninha não sucumbiu ainda à desumanização que a posse impessoal do sujeito pela riqueza impõe. É que as possibilidades de criar de novo o mesmo universo já estão esgotadas. A fase da acumulação originária encerra-se com Patinhas.
Donald, Gastão e Peninha nascem num mundo constituído e integrado. Nenhum pato pode possuir mais a envergadura heróica do civilizador Patinhas porque no momento histórico por este vivido os dons podiam ser encontrados no mesmo pato. Já seus sobrinhos receberam fatias de um mundo especializado: o trabalho para Donald, a sorte para Gastão, a iniciativa para Peninha. A associação entre eles, porém, não reconstitui o pato heróico: já estão confrontados e em conflito, à espera da herança que virá com a morte do Tio sovina e obsoleto, com suas suíças e polainas à antiga. Os pedaços não podem ser juntados para começar de novo porque cada um deles ainda está tomado pelo mito do capitalista-herói e considera, pois, que o seu próprio dom é o dom essencial. Desse modo, as freqüentes associações entre Donald e Peninha resultam em fracasso, pois cada um tenta a seu modo assumir individualmente a totalidade do mundo. Os pedaços podem ser juntados apenas para reproduzir o já produzido, como fazem Zezinho, Huguinho e Luizinho. Não pode criar de novo quem não tem acesso à moeda n.° 1 e à sua "vontade" impessoal. Os sujeitos misturam-se aos objetos, sem distinção entre uns e outros. Os sujeitos estão sobrecarregados de exigências e significações que não decorrem deles mesmos, tornando-se, portanto, estranhos em relação a si próprios. A natureza humana é subvertida pela mediação dos objetos criados pela atividade humana.
Somente quando essa família volta à natureza é que pode encontrar a sua paz. É na fazenda da Vovó Donalda, no retorno ao mundo natural, que Patinhas aparentemente deixa de reinar. Vovó Donalda o substitui. Aí ela é a senhora do mundo. A natureza dadivosa atenua a exploração dos patos pelos patos. Gansolino, o empregado da fazenda, pode tranqüilamente tirar as suas sonecas nos montos de feno sem que por isso a vida animal e vegetal do estabelecimento rural sofra grandes conseqüências. Nem por isso Vovó Donalda deixará de fazer as suas tortas, sempre disponíveis para todos, inclusive para o próprio Gansolino. Por essas razões, as únicas reuniões familiares, em que todos confraternizam, são presididas por Vovó Donalda, apesar da completa anomalia na estrutura familiar: ela é avó sem ter tido filhos; Patinhas é tio sem, ter tido irmãos e o mesmo se dá com Donald; os três sobrinhos não conhecem pai e mãe. A trágica esterilidade biológica de todos os membros da família só é possível porque na verdade estão em diferentes graus destituídos de humanidade. Vovó Donalda simboliza apenas a recomposição artificiosa do mundo natural. Ainda aí, por trás das aparências, é Patinhas quem reina. A unidade familiar em face da natureza é apenas utopia que ocasionalmente se concretiza para logo mais ser desfeita em resultado de processos substantivos que separam ao invés de unir, que conflitam, ao invés de harmonizar.


É que a unidade do universo de Tio Patinhas não é garantida pela apropriação comum das condições de existência. Por isso, os parentes não formam uma comunidade, nem mesmo uma comunidade familiar e por isso não formam uma família. Os vínculos familiares mais constantemente presentes não são de parentesco por consangüinidade ou afinidade, mas são vínculos dominados pela linha de herança das riquezas. Entre um parente e outro interpõem-se os bens tidos ou esperados. Estão juntos porque a riqueza foi acumulada, foi juntada.
Em conseqüência, as relações sociais que produzem outros personagens do universo, não. parentes — amigos e inimigos — em nada diferem das relações aparentemente familiares.
Maga Patalójika, auxiliada por Madame Min, está obcecadamente voltada para a captura da moeda n.° 1. Deseja para si a fonte mágica da riqueza e supõe que a posse do talismã fará com que ela, que já dispõe de tantos e variados poderes, possa reproduzir em seu benefício a riqueza de Patinhas. Nesse plano, ela e Patinhas são iguais. Ambos acreditam na importância transcendental do talismã como produtor e reprodutor de riquezas. O talismã representa aí, para Patinhas e Maga, os riscos imponderáveis do capitalismo: a sorte de um é a desgraça do outro. Preservar a dimensão mágica da reprodução da riqueza não é apenas um elemento de coerência interna na ditadura dos quadrinhos, mas é também a tentativa de mostrar que o talismã, embora necessário, não é exclusivo. Maga tem poderes excepcionais, pode fazer e desfazer, mas pião pode criar e recriar o capital, pois os outros dois componentes presentes na consciência burguesa de Patinhas — a iniciativa e o trabalho — não podem ser substituídos por bruxaria. Com Maga reforça-se o princípio do direito natural à riqueza, ao talento. No fundo, Maga serve para situar nos limites da ordem o pretenso caráter mágico da acumulação (Ia riqueza. Não é o pato que escolhe o talismã, mas o talismã que escolhe o pato.
Enquanto Maga deseja apossar-se do que ela supõe ser a fonte da riqueza, os irmãos Metralha buscam apossar-se diretamente da riqueza já acumulada. No universo de Patinhas eles representam a conduta anômica dos que aceitam os fins do sistema, mas não os meios institucionais. para alcançá-los. Tanto quanto Patinhas, estão sedentos de riqueza. Mas repudiam os caminhos institucionais para obtê-la. Na verdade, as experiências de cada um dos outros membros do universo, parentes, amigos e inimigos de Patinhas, constituem a reiterada demonstração de que os Metralha têm razão.

Acontece, porém, que a mesma riqueza gerada para as mãos de Patinhas cria os outros componentes do mundo, inclusive os recursos de defesa dá apropriação privada da riqueza. A diferença entre Patinhas e os Metralha é que Patinhas chegou primeiro. A institucionalização dos canais de acesso à riqueza legitimou essa primazia, transformando em ilícitas todas as outras formas de apropriação dos bens. Daí que a vida livre dos Metralha seja sempre apenas curta temporada fora da cadeia. Estão sempre retornando à prisão. Basicamente são iguais a Patinhas, concordam quanto à acumulação da riqueza, discordando apenas quanto aos detalhes na forma de fazê-lo. Estão certos de que a melhor coisa do capitalismo é ser capitalista. O grau de organização dos Metralha para obtenção da riqueza chega a ser empresarial. Os ardis que são interpostos por Patinhas mostram que entre este e aqueles o que há é uma verdadeira competição, freqüentemente decidida através da polícia que responde pela observância da conduta institucionalizada, que, garantindo a igualdade jurídica, garante ao mesmo tempo a desigualdade econômica (Dahrendorf, 1966:29). Em suma, os amigos de Patinhas são amigos do capital. Os seus inimigos são inimigos das formas institucionais e dos mitos de sustentação do capital, embora na verdade sejam amigos do capitalismo.

As histórias se tornam atraentes e engraçadas na medida em que os seus vários cômicos, como Donald e Peninha, retiram a sua comicidade das discrepâncias que há entre suas condutas e o personagem-padrão: Patinhas. A trama das historinhas é una e sólida, amarrada pela valorização do capitalista-herói chamado Patinhas. Ora, Patinhas, sabemos, personifica o capital, assumindo a vida da coisa, vivificando o que é morto, o que é trabalho morto, social, acumulando em suas mãos particulares. Portanto, cada um é ridículo, delinqüente, ingênuo ou louco na medida em que a sua razão particular não é a razão pela qual o capital se institucionalizou socialmente.
É nesse tipo de contraste que o cientista também tem a sua parte na degradação moral que vincula cada um ao Tio Patinhas. O prof. Pardal, inventor desastrado, desespera-se na tentativa de solucionar com a sua inteligência, as suas pesquisas e a sua incansável dedicação à invenção e à descoberta os grandes e pequenos problemas de Patópolis. Seu desligamento do mundo é proverbial nos quadrinhos, em que o cientista é freqüentemente apresentado como louco, ingênuo, alienado, sonhador, perigoso enfim. Por isso, Pardal não pode ter no universo de Patinhas senão a tolerância que piedosamente a nossa hipocrisia burguesa dedica aos alienados mentais. Ele se preocupa 'com pequenas coisas (e nisso é quase infantil), como a invenção de um pula-pula que facilite o transporte das pessoas, ou de um combustível que torne mais rápido, os meios de transporte, ou de uma banheira voadora. Vive, enfim, na esperança de resolver aflitivos problemas do dia-a-dia dos patopolitanos ou na esperança de antecipar e solucionar os problemas que os patopolitanos provavelmente enfrentarão no futuro. Só que Pardal esquece freqüentemente de uma coisa muito importante no universo de Patinhas: é que aí não há lugar para a primazia da utilidade dos objetos. Cada objeto tem que ser, antes de mais nada, uma mercadoria. Por isso, as loucuras de Pardal só desaparecem quando são absorvidas pelo delírio acumulativista de Patinhas. Quando este faz uma encomenda ou solicita uma invenção que resolva um problema crucial para o capital, como unia defesa contra os Metralha ou um equipamento que o torne mais rico. O cientista só deixa de ser doido quando trabalha para o capital, quando perde de vista a perspectiva tola e infantil da condição humana dos patos para atender a demanda da reprodução do dinheiro pelo dinheiro. Aí ele se torna racional, porque a racionalidade é a dos objetos e a do enriquecimento que propiciam quando são comprados e vendidos.
Entre Pardal e Peninha há semelhanças e diferenças. As semelhanças dizem respeito à crença ineficaz na atividade criadora. As diferenças dizem respeito a que um se apóia no pensamento científico e o outro no senso comum para pôr em prática o impulso criador. Ambos são iguais, porém, quando ignoram que tudo 'Já está criado" se se leva em conta que a dinâmica do universo é regida pela riqueza acumulada que insaciavelmente precisa crescer.
De fato, o universo de Patinhas é educativo se tomamos a educação como veículo impositivo de valores. Diante dele as crianças e os adultos podem descobrir como são estúpidos, como são ridículos e alienados quando toleram que na sua personalidade se manifestem grotescos traços humanos. Patinhas constitui um chamado à razão: a razão que faz com que as coisas se relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que faz com que as relações entre os homens pareçam relações entre coisas, conforme já observou um sábio alemão.

REFERENCIAS

1. Dahrendorf; Ralf, 1966. Sociedad y líbertad. Editorial Tecnos S.A., Madrid.


2. Dorfman, Ariel e Mattelart, Armand, 1972. Para leer al Pato Donald — Comunicación de masa y. colônialismo, segunda edición, Siglo XXI Argentina Editores S.A., Buenos Aires.


3. Goldmann, Lucien, 1967. Dialética e cultura. Paz e Terra, trad. de Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinbo e Ciseh Vianna Konder, Rio de Janeiro.


4. Mannbeim, Karl, 1946. Libertad y planificación social. Fondo de Cultura Ecorromica, trad. Rubén Landa, México.


5. Merton, Robert K., 1964. Teoria y estnictura sociales, trad. de Florentino Torner, Fondo de Cultura Económica, México — Buenos Aires.


6. Martins, José de Souza, 1974. Conde Matarazzo, o empresário e a empresa — Estudo de sociologia do desenvolvimento, 2.a edição, 1.a reimpressão. HucitecEditora de Humanismo, Ciência e Tecnologia, São Paulo.


(*)Publicado originalmente em Ciência e Cultura, volume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzido no Caderno de Sábado (suplemento literário do Correio do Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.



(**)Com este artigo não tenho a descabida pretensão de parafrasear o surpreendente e ótimo estudo de Ariel Dorfman e Armand Mattelart (Dorfman e Mattelart, 1972) sobre o conjunto dos personagens das historietas industrializadas de Walt Disney. Apenas retomo uma análise que fiz em 1970, como recurso didático, em cursos de Sociologia para alunos de currículos diferentes do de Ciências Sociais. Recebi de diversas pessoas, especialmente ex-alunos, a sugestão para sistematizar e publicar as minhas formulações de então. Depois de resistir por algum tempo, arrisco-me a fazê-lo agora por várias razões, a principal das quais é a de que, fundando-se o trabalho na mesma perspectiva que orientou aqueles autores —decorrendo daí vários pontos de contato —. guarda, no entanto, uma identidade própria que sugere a exploração de outros aspectos do mesmo tema, como notará o leitor.







(Extraído do livro de José de Souza Martins, "Sobre o Modo Capitalista de Pensar" - 3 Ed. - Coleção Ciências Sociais - Ed. Hucitec - 1982)


domingo, 14 de setembro de 2008

A pílula vermelha


Por: Gardel Silveira
(http://sitiocurupira.wordpress.com/a-pilula-vermelha/)


Você já se sentiu como se não tivesse certeza de que a realidade que vemos, ouvimos e sentimos é verdadeira? Nós acordamos todo dia, ligamos a tv, nos alimentamos, ouvimos rádio, levamos nossos filhos para escola, vamos para o trabalho, pagamos nossas contas, dirigimos o carro do ano, temos nossa casa própria, tv a cabo e todo ano viajamos de férias para poder compensar todo sofrimento que passamos para conquistar tudo isso. Costumo dizer para meus amigos que boa parte da humanidade dedica quase toda sua vida trabalhando num emprego que não gosta para comprar coisas que não precisa. Todos concordam, mas quase ninguém faz nada para mudar.

Mesmo com toda essa dedicação e trabalho parece que está sempre faltando algo, há sempre um vazio que não consegue ser preenchido. E a televisão, o oráculo da sociedade moderna, nos diz que, para sermos mais felizes, temos que nos desfazer das coisas velhas e comprar, consumir, possuir o novo. A mídia é um instrumento pelo qual nossa sociedade adquire todos esses desejos e conhecimentos. Não obtemos mais o conhecimento diretamente da terra, pois perdemos os contatos com as fontes da nossa sobrevivência. Não cultivamos mais o nosso próprio alimento ou aprendemos diretamente com nossas próprias experiências. Nem temos nossa família como a raiz de nossas opções, basicamente somos como um astronauta no espaço flutuando em um universo metálico desconectados das fontes da terra e somos completamente dependentes de informações que recebemos de lugares longínquos. Talvez isso explique o fascínio dos cientistas da Nasa em tentar achar vida em Marte. Será que eles não perceberam que há vida na Terra?

Estamos mentalmente dormentes. Entorpecemos nossos sentidos da manhã até a noite, seja com o desejo de consumir mais e mais ou pelo cárcere de um emprego que nos trata como escravos em troca de dinheiro para manter todo este ciclo vicioso e destrutivo. Ficamos cegos para a verdadeira beleza. E, se estamos insensíveis à beleza do mundo, então procuramos substitutos.

Eric Hoffer já dizia, “Você nunca pode ter o bastante daquilo que não quer de verdade”, quer dizer, nos ocupamos com o trabalho, viajamos de férias para o Caribe, consumimos tudo o que desejamos, mas sempre há uma sensação de carência, de perda. Essa sensação é porque nós não sabemos o que perdemos. E o que perdemos foi à beleza do mundo. E a gente tenta compensar isso conquistando o mundo, possuindo o mundo. Só que nesse consumo compulsivo e desenfreado estamos literalmente consumindo nosso limitado planeta. Estamos acabando com o único planeta capaz de prover a nossa vida em todo sistema solar, quiçá da galáxia ou do universo. Basta dar uma olhadinha pelo Google Erth e visualizar as grandes cidades da superfície da Terra. Elas parecem um câncer de pele que se espalha pela superfície do planeta, destruindo sua fina camada natural de vida e transformando tudo em asfalto e concreto. E os rios, que são o sistema circulatório do planeta, estão congestionados de poluentes industriais e dejetos humanos. É possível perceber esta infecção até mesmo na temperatura do planeta, pois a febre é um sintoma do que já está acontecendo. Furacões, secas, derretimento das geleiras, enchentes, são apenas sintomas de que a humanidade está doente. Sim meus amigos, a doença do planeta é um reflexo de uma doença humana. A deterioração do meio ambiente de nosso planeta é um espelho externo de um estado interno. Tal externo, tal interno.

Meu objetivo não é listar razões para vocês entenderem que devemos mudar nossa maneira de pensar, agir, escolher e consumir. Não vai adiantar, pois tenho certeza que todos irão concordar comigo, mas quantos realmente tomarão uma atitude? Na experiência que tive em contatos com humanos civilizados, não adianta discursar, dizer que estamos errados agindo assim ou assado. Tem que haver um esforço pessoal seguido de um despertar interno de cada um.

Bem, vejo que ficou uma série de perguntas e lacunas sem respostas, esta foi minha intenção com este texto. Nestes últimos meses consegui reunir uma série de documentários e filmes que tratam exclusivamente destes assuntos. Talvez até vocês já tenham visto algum. A página “Pílula Vermelha” terá esta função: citar livros, títulos, resenhas e trailers de filmes que irão ajudar neste despertar interno.

Temos o privilégio de viver em uma era onde a tecnologia faz com que as informações andem tão rápido que mesmo antes do fato terminar já virou notícia em algum site ou blog independente. Isso quer dizer que não vai ser por ignorância que destruiremos a vida que conhecemos no planeta.

Termino este texto com a célebre frase de um homem que não precisou presenciar efeito estufa, destruição da camada de ozônio e derretimento das geleiras para saber o que devemos fazer.

“Um homem deve decidir se vai andar na luz do altruísmo criador ou na escuridão do egoísmo destrutivo” Martin Luther King

Um grande abraço a todos e desfrutem da pílula vermelha, Gardel Silveira.