quarta-feira, 18 de julho de 2007

O senso comum e a vida cotidiana

in Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(1): 1-8, maio de 1998



JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O interesse sociológico pela vida cotidiana tem resultado diretamente do refluxo das esperanças da humanidade num mundo novo de justiça, de liberdade e de igualdade. Parece simples, mas é assim mesmo que a progressiva constituição da vida cotidiana como objeto de conhecimento da sociologia tem sido justificada. De certo modo, há nessas origens uma descrença na História, uma renúncia à idéia de que o homem é senhor de sua História, de que pode produzir o seu próprio destino. O interesse pela vida cotidiana se difunde como um dos componentes mais nítidos do ceticismo decorrente das desilusões que tem acompanhado a notável capacidade de auto-regeneração da sociedade capitalista.
Para muitos, a vida cotidiana se tornou um refúgio para o desencanto de um futuro improvável, de uma História bloqueada pelo capital e pelo poder. Viver o presente já é uma consigna que encontra eco numa sociologia do detalhe, do aqui e hoje, do viver intensamente o minuto desprovido de sentido, que poderia ser definida como sociologia pós-moderna.[1] Ou, então, que poderia situar a sociologia como uma das poderosas expressões da modernidade. Esse refluxo tem tido muitas implicações no conhecimento sociológico. Viabilizou uma redescoberta das sociologias fenomenológicas, sugeriu uma crítica nova ou renovada à sociologia positivista, abriu um amplo campo de investigações teóricas. De certo modo, estamos diante de um fascinante processo de reinvenção da sociedade. Mas também de reinvenção da sociologia.
Se a sociologia do século XIX e da primeira metade deste século descobriu o homem como criatura da sociedade, o período recente põe a sociologia ante a crise dessa concepção e crise dessa verdade relativa e transitória.
Porque, no fundo, crise de uma sociedade dominada por grandes e definitivas certezas, a da ilimitada reprodução do capital e a da inesgotável força de coação do poder do Estado. As grandes certezas terminaram. É que com elas entraram em crise as grandes estruturas da riqueza e do poder (e também os grandes esquemas teóricos). Daí decorrem os desafios deste nosso tempo. Os desafios da vida e os desafios da ciência, da renovação do pensamento sociológico.
Se a vida de todo o dia se tornou o refúgio dos céticos, tornou-se igualmente o ponto de referência das novas esperanças da sociedade. O novo herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano. É que no pequeno mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimentos sociais.
Nesse âmbito é que se propõe a questão do conhecimento de senso comum na vida cotidiana. Questão porque, na perspectiva erudita, o senso comum é desqualificado porque banal, destituído de verdade, fonte de equívocos e distorções. E com ele o mundo de que faz parte, o da vida cotidiana. Não era assim que pensava Émile Durkheim em As regras do método sociológico e também em Sociologia e filosofia? (cf. 1960; 1963) Questão porque, se no refúgio da vida cotidiana o homem descobre a eficácia política (e Histórica) de sua aparente solidão, impõe, também, o reconhecimento de que o senso comum não é apenas instrumento das repetições e dos processos que imobilizam a vida de cada um e de todos.
Isso nos remete criticamente de volta a suposições fundamentais do pensamento sociológico. Do lado do positivismo, à revisão da idéia de que só o fato desprovido de vida é social. Crítica que, aliás, a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz já fez de modo eficaz.[2] Do lado da dialética, à revisão da idéia de que só a conversão consciente ao projeto da revolução pode revolucionar a vida.
Em tudo, o questionamento de que um senso comum desprovido de sentido condena irremediavelmente o homem comum ao silêncio e à condição de vítima das circunstâncias da História. A hipótese de que “os homens fazem a sua própria História, mas não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1961, p. 203) retorna forte e desafiadora. Não só aos que querem mudar o mundo, mas também aos que querem compreender e explicar essa mudança. Esse desencontrado agir histórico pede e propõe uma reflexão propriamente sociológica.[3] E essa reflexão incide exatamente sobre as características, as peculiaridades e a eficácia desse conhecimento próprio da realidade de todo dia, até há pouco recusado ou desqualificado justamente em nome de seu suposto desencontro com a História. O que é mesmo fazer História sem saber que a estamos fazendo? A proposta que há nessa pergunta implica em passar da Filosofia à Sociologia e, mais concretamente, a uma sociologia da vida cotidiana.
A possibilidade de uma sociologia da vida cotidiana está nesse âmbito intermediário, na investigação e superação do que o senso comum tem sido para a interpretação acadêmica: ou apenas o conhecimento com que o homem comum define a vida cotidiana, dando-lhe realidade, como supõem Berger e Luckmann; ou apenas o conhecimento alienado da falsa consciência que separa o trabalhador do mundo que ele cria, de que nos falam os marxistas.
Em A questão judaica, Marx já havia mostrado que no desencontro do homem e daquilo que faz há também um encontro e um ato de criação histórica e social (cf. Marx, 1973). O mesmo se repete em outros textos desse autor.
É por isso que me proponho a desenvolver aqui uma breve reflexão sociológica que me permita encontrar na divergência de orientações teóricas de marxistas e fenomenologistas a possibilidade de um encontro justamente naquilo que, sob diversos nomes, é na verdade o lugar do conhecimento de senso comum na vida cotidiana e, também, na História. Não me preocupa, neste momento, o desacordo essencial entre autores de um grupo e de outro. Nem me motiva o ecletismo ingênuo que poderia existir na tentativa de fundir sem critério, e sem crítica, as constatações de uns e de outros.
Há, sem dúvida, uma enorme riqueza de interpretações do senso comum nas sociologias fenomenológicas. Muito maior, certamente, do que a limitada concepção que do senso comum tinha Durkheim (e também Max Weber na sua tipologia da ação). É notório que nas recaídas positivistas da Sociologia haja sempre um empobrecimento de sua definição, como se vê em Berger e Luckmann: “a sociologia do conhecimento deve, sobretudo, ocupar-se do que as pessoas ‘conhecem’ como ‘realidade’ na sua vida cotidiana...”
(Berger & Luckmann, 1968, p. 31). Apesar de discípulos de Schutz, eles colocam
o conhecer, o senso comum, numa relação de exterioridade com o viver (a vida cotidiana). Essa coisificação do conhecimento de senso comum está em contradição com o lugar que ocupa na tradição fenomenológica.
O senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exterior conhecimento. Mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social. Nela o significado a precede, pois é condição de seu estabelecimento e ocorrência. Sem significado compartilhado não há interação.
Além disso, não há possibilidade de que os participantes da interação se imponham significados, já que o significado é reciprocamente experimentado pelos sujeitos. A significação da ação é, de certo modo, negociada por eles.
Em princípio, não há um significado prévio ou, melhor dizendo, não é necessário que haja significações preestabelecidas para que a interação se dê. Um aspecto essencial dessa formulação é o de que esse complicado jogo se desenrola, de fato, em minúsculas frações de tempo. Se nos fosse possível observar o processo interativo em “câmara lenta”, poderíamos perceber o complexo movimento, o complicado vai-e-vem de imaginação, interpretação, reformulação, reinterpretação, e assim sucessivamente, que articula cada fragmentário momento da relação entre uma pessoa e outra e, mesmo, entre cada pessoa e o conjunto dos anônimos que constituem a base de referência da sociabilidade moderna.
Além disso, os significados que mediatizam os relacionamentos entre as pessoas estão sujeitos a um complexo mecanismo de deciframento. Os interacionistas simbólicos mostraram como a interação só é possível por meio de procedimentos interpretativos que fazem da relação social uma construção (cf. esp. Blumer, 1969).
Não há apenas negociação e interpretação de significados, mas também critérios para seu uso. A sociologia de Erving Goffman justamente demonstra que as relações sociais estão permeadas por uma dramática atividade de simulação e teatralização para que, afinal, o significado produzido e reconhecido na interação não acarrete o descrédito para o sujeito (cf. esp. Goffman, 1971). Isso quer dizer que o ator não se dirige imediata e diretamente ao outro para com ele interagir. A interação é precedida pela simulação, pelo exercício que o sujeito faz de experimentar-se como outro, numa relação de exterioridade consigo mesmo, nos segundos que constituem o preâmbulo do seu relacionamento. Uma imensa construção imaginária define a circunstância da relação social.
Por sua vez, a etnometodologia sugere que a interação não repousa nos significados que a mediatizam, simplesmente. O conhecimento cotidiano não é constituído apenas de significados. De fato, o que caracteriza o experimento etnometodológico é a utilização de catástrofes artificialmente produzidas como recurso para criar situações de anomia e destruir os significados que sustentam a interação. Os experimentos têm demonstrado que, com grande rapidez, os envolvidos na circunstância de privação repentina de significados são capazes de criar significados substitutivos e restabelecer as relações sociais interrompidas ou, mais que isso, ameaçadas de ruptura. Portanto, mais do que uma coleção de significados compartilhados, o senso comum decorre da partilha, entre atores, de um mesmo método de produção de significados (cf. Garfinkel, 1967). Portanto, os significados são reinventados continuamente ao invés de serem continuamente copiados. As situações de anomia e desordem são resolvidas pelo próprio homem comum justamente porque ele dispõe de um meio para interpretar situações (e ações) sem sentido, podendo, em questão de segundos, remendar as fraturas da situação social.
As descobertas da etnometodologia sugerem que a desordem e a revolta só atingem a ordem superficialmente, pois apenas suprimem significados por um certo tempo, sem atingir o método (de senso comum), o critério, dos procedimentos que reconstituem o tecido rompido. Alvin W. Gouldner,mesmo em sua notória indisposição para com as descobertas de Garfinkel, observou acertadamente que a etnometodologia colocou a rebelião possível no lugar da revolução impossível (cf. Gouldner, 1972, p. 394). No fundo, são descobertas que detalham os sutis e complicados mecanismos do que os autores marxistas denominam reprodução social.[4]
Se outra importância não tivesse tal tipo de descoberta, serviria ao menos para demonstrar a dinâmica do imobilismo, do repetitivo, da permanência e do que muitos também chamam de vida cotidiana. E do profundo compromisso que as ciências sociais podem eventualmente ter com a negação da vida e da emancipação do homem de suas carências, em particular a carência de liberdade.
Na raiz da própria interpretação fenomenológica, porém, o conhecimento de senso comum e a vida cotidiana que ele viabiliza aparecem circunscritos ao âmbito da atenção e da vigília. O que, no fundo, sugere uma instabilidade permanente da vida cotidiana, sujeita aos choques que estabelecem descontinuidades mais ou menos profundas na passagem de um mundo a outro do que Schutz define como realidades múltiplas. Múltiplas, justamente, porque cada mundo (como a vida cotidiana, o sonho, a loucura etc.) tem o seu próprio estilo cognitivo, definidor dos limites de suas significações. Embora a vida cotidiana seja o mundo que dá sentido aos demais, enquanto referência, aparece subvertida e alterada nesses outros mundos. O que nos mostra as descontinuidades que atravessam a vida cotidiana todos os dias. Essas descontinuidades também são constatadas pelas interpretações dialéticas. Ainda que de outro modo, não é delas que nos fala a teoria da alienação? Não é delas que nos fala Karel Kosik quando proclama a cisão da práxis (e da consciência) em práxis utilitária cotidiana e práxis revolucionária? (cf. Kosik, 1976).
Elas aparecem, porém, de modo mais rico nas interpretações de Ágnes Heller e de Henri Lefebvre. Mais neste do que naquela. Em ambos, nos momentos de elevação acima da cotidianidade; nos momentos superiores, criadores e privilegiados, em contraste com os instantes banais da vida cotidiana (cf. Périgord, 1977). Mesmo na rotina alienadora da fábrica e da produção há momentos de iluminação e criação (cf. Périgord, 1977, p. 236), de invasão do cotidiano e do senso comum pela realidade e pelo conhecimento que revolucionam o cotidiano.
O vivido em Schutz é o vivido dos significados que sustentam as relações sociais. Mas, em Lefebvre, o vivido é mais que isso: é a fonte das contradições que invadem a cotidianidade de tempos em tempos, nos momentos de criação.
A reprodução social, lembrou Lefebvre mais de uma vez, é reprodução ampliada de capital, mas é também reprodução ampliada de contradições sociais: não há reprodução de relações sociais sem uma certa produção de relações – não há repetição do velho sem uma certa criação do novo, mas não há produto sem obra, não há vida sem História. Esses momentos são momentos de anúncio do homem como criador e criatura de si mesmo. É no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo desenvolvimento capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do cotidiano, que essas contradições fazem saltar fora o momento da criação e de anúncio da História – o tempo do possível.[5] E que, justamente por se manifestar na própria vida cotidiana, parece impossível. Esse anúncio revela ao homem comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de transformação do impossível em possível. Heller disse que só quem tem necessidades radicais pode querer e fazer a transformação da vida.[6] Essas necessidades ganham sentido na falta de sentido da vida cotidiana. Só pode desejar o impossível aquele para quem a vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida já não pode ser manipulada.
É aí que o reencontro com as descobertas das orientações fenomenológicas ganha novo e diferente sentido. Pois, é no instante dessas rupturas do cotidiano, nos instantes da inviabilidade da reprodução, que se instaura o momento da invenção, da ousadia, do atrevimento, da transgressão.
E aí a desordem é outra, como é outra a criação. Já não se trata de remendar as fraturas do mundo da vida, para recriá-lo. Mas de dar voz ao silêncio, de dar vida à História.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. (1968) La construcción social de la
realidad. Buenos Aires, Amorrortu Editores.

BLUMER, Herbert. (1969) Symbolic interactionism. New Jersey, Prentice-Hall,
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DURKHEIM, Émile. (1960) As regras do método sociológico. Trad. Maria Isaura
Pereira de Queiroz. São Paulo, Cia. Editora Nacional.

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France.

GARFINKEL, Harold. (1967) Studies in ethnomethodology. New Jersey,
Prentice-Hall, Inc. / Englewood Cliffs.

GOFFMAN, Erving. (1971) La presentación de la persona en la vida cotidiana.
Buenos Aires, Amorrortu Editores.

GOULDNER, Alvin W. (1972) The coming crisis of western sociology. London,
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HELLER, Agnes. (1978) La théorie des besoins chez Marx. Paris, Union
Générale d’Éditions.

KOSIK, Karel. (1976) Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico
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Éditeur.

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______. (1965b) La proclamation de la commune. Paris, Gallimard.

______. (1966) Sociologie de Marx. Paris, Presses Universitaires de France.

______. (1972) La revolución urbana. Trad. Mario Nolla. Madrid, Alianza Editorial.

______. (1973) La survie du capitalisme (La re-production des rapports de production). Paris, Anthropos.

MAFFESOLI, Michel. (1983) La conquista del presente (Per una sociologia della vita quotidiana). Trad. Anna Grazia Farmeschi e Alfonso Almafitano. Roma, Editrice Ianua.

______. (1988) O conhecimento comum (compêndio de sociologia compreensiva).
Trad. Aluizio Ramos Trinta. São Paulo, Brasiliense.

MARX, Karl. (1961) O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl & ENGELS, F. Obras escolhidas. 2a ed. Rio de Janeiro, Editorial Vitória.

______. (1973) La cuestión judía. In: MARX, Karl & RUGE, Arnold. Los analesfranco alemanes. Barcelona, Martinez Roca.

PÉRIGORD, Monique. (1977) Henri Lefebvre ou les moments de la quotidienneté. Revue de Synthése, 87-88:235-254, juillet-decembre.

SCHUTZ, Alfred & LUCKMANN, Thomas. (1977) La estruturas del mundo de
la vida. Trad. Néstor Míguez. Buenos Aires, Amorrortu Editores.

SCHUTZ, Alfred. (1972) Fenomenología del mundo social (Introducción a la sociología compreensiva). Trad. Eduardo J. Prieto. Buenos Aires, Paidos.

______. (1974) Estudios sobre teoría social. Trad. Néstor Míguez. Buenos Aires, Amorrortu Editores.
[1]Essa concepção ganha sua expressão sociológica mais esclarecedora na obra de Michel Maffesoli. Entre outros livros desse autor, cf. Maffesoli (1983; 1988). Embora se apresente como um crítico da obra de Henri Lefebvre, Maffesoli dela se apropria, embora nem sempre com citações, “desistorizando-a”, fazendo uma leitura compreensiva e anti-histórica de noções e perspectivas produzidas por uma interpretação dialética do viver, da vida cotidiana e da cotidianidade.
[2] Cf. Schutz & Luckmann (1977); Schutz (1972; 1974). Agradeço a José Jeremias de Oliveira Filho, que em meados dos anos 70 me pôs em contacto com a obra criativa e fascinante de Schutz e sua leitura singular da sociologia compreensiva.
[3]Esse fundamental retorno sociológico à dialética está exposto de maneira completa e clara em Henri Lefebvre (1966).
[4] Cf. a rica volta ao tema da reprodução proposta por Henri Lefebvre (1973).

[5] Foi Henri Lefebvre quem propôs de maneira sociologicamente mais consistente a questão do possível, articulando-a com o tema dos resíduos, do que não pode ser capturado pelos poderes e, portanto, propõe e reclama o novo. Uma inovação essencial em sua obra é a indicação de que além de dedução e indução, a ciência social deve trabalhar com a transdução, a lógica do possível. Entre outros livros desse autor sobre esses temas, cf. Lefebvre (1958; 1957; 1965a; 1972).
[6] Cf. Heller (1978). O tema das necessidades radicais, as necessidades que fundam a práxis revolucionária ou inovadora, aparece proposto originalmente em Henri Lefebvre (1965b).

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O CINEMA, A LITERATURA, A EDUCAÇÃO E O MERCADO GLOBALIZADO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI


(*) extraído de mnemocine.com.br/cinema/cinetxtapresent1.htm


Luiz Henrique da Costa



Luiz Henrique da Costa: Bacharel em Cinema, formado pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense; Mestre e Doutorando em Ciência da Literatura, pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


De Arnold Hauser a André Bazin, de Georges Sadoul a Flora Süssekind é recorrente perceber o momento em que o cinema surge como algo que se descreve sobretudo a partir da dificuldade generalizada para compreendê-lo e conceituá-lo e do espanto que terá provocado— espanto esse que se estendeu de 1895, data oficial de sua invenção, até pelo menos 1911, quando David Wark Griffith, na americana Biograph, deslancharia o processo de consolidação, como gramática narrativa, das experiências dispersas de vários realizadores e escolas.[1]
Ponto culminante dos engenhos ópticos surgidos ao longo de todo o século XIX, o cinema, num primeiro momento, foi percebido como um filho legítimo da ciência, ora se afirmando como um instrumento de registro cuja “isenção” seria capaz de suplantar as imperfeições do olho humano, ora, em conseqüência mesmo de afirmar-se assim, favorecendo a evocação de miragens sobre “o espírito da modernidade” convenientes às aspirações das vanguardas. Na mesma medida, com a intervenção do ilusionista Georges Méliès, a partir de 1896, essa dupla percepção passaria a coincidir também com os acentos de “maravilha charlatã”, insinuando-se como uma atração a mais em meio à feira de elixires mágicos, sylphoramas[2] e ajeebs[3], e oferecendo-se, assim, como a nova obra com a qual reinventaríamos os dons de iludir que dão forma e substância à condição humana, de sorte a constituí-los como marcos iniciais da era midiática. E mais: não bastasse o trânsito entre a ciência, a celebração da irracionalidade e a ilusão dos espetáculos, era ainda convocado a servir de divisa com que se sublinhavam os afetos familiares dos lares mais abastados.
Vetores tão díspares, a família burguesa, os apelos modernizadores soprados desde a indústria e os cacoetes da tradição mundana, não erudita, dos cabarés, dos shows de variedades, dos cafés-concertos, antecederam em muito a nobre consolidação do cinema como “sétima arte”, o que só viria a acontecer na década de 1920. Até que se o aceitasse assim, contudo, o teatro, a pintura, a música e a literatura, em seus impasses e promessas de renovação, foram insistentemente buscados como referência tanto por realizadores quanto por aqueles que se aventuravam em esforços de crítica. Nomes como Ricciotto Canudo, Germaine Dulac, Louis Delluc, Léon Moussinac, Élie Faure, Abel Gance, Jean Epstein, René Clair, Fernand Léger tateavam no escuro em busca do paradigma mais perfeito para o objeto-não-identificado que manipulavam. Expressões como “drama visual”, “poema cinematográfico”, “sinfonia de luzes”, cunhadas por alguns deles, são emblemáticas dessa busca.
Mas, paradoxalmente, convocar o cinema aos domínios já consolidados e seguros das demais artes era também uma busca por reconhecer suas especificidades, por reconhecê-lo e afirmá-lo como linguagem autônoma, para o que vieram concorrer inovações técnicas capazes de ampliar suas possibilidades de expressão.
Os filmes sonoros, no final dos anos 1920, não constituíam mais uma novidade. Em 1889, Thomas Edison já conseguira produzir alguns balbucios rudimentares em laboratório. E, antes dele, os Lumière e Méliès já haviam obtido o mesmo efeito, camuflando a presença de atores atrás das telas no momento da projeção. Na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra e até na Escandinávia eram conhecidas formas de prestidigitar a sonoridade dos filmes. Mas, em todas essas experiências, a sincronia era difícil de se obter, e, constantemente, as vozes soavam estranhas, fanhosas ou simplesmente inapropriadas para os tipos que eram vistos na tela.
Eram dificuldades de ordem técnica, concretas, mas seu equacionamento já se anunciava, podemos ver agora, porquanto se o buscasse desde época tão remota. Havia, contudo, entraves econômicos, estes sim preponderantes, a retardar a sincronização efetiva e satisfatória de sons e imagens. Afinal, em que língua um filme produzido por Hollywood poderia ser assistido e entendido? Enquanto as produções permanecessem silenciosas, todo e qualquer filme se ofereceria como produto exportável, favorecendo as estratégias das distribuidoras estadunidenses que se espalhavam pelo mundo. No caso do Brasil, em particular, tais estratégias já tinham resultado numa profunda estagnação dos recursos técnicos e dos meios de produção, contrabalançada quase que exclusivamente pelo exercício de “cavadores”[4] que, espalhados pelo país, não descuidavam de praticar o cinema possível.
Quando, em 23 de outubro de 1927, The Jazz Singer [5] foi lançado, assinalou-se uma nova era na história do cinema, em que a falta de sincronia e a má qualidade das gravações puderam ser superadas. Em 1930, o cinema falado seria já uma tendência majoritária, senão única, em todo o mundo. O final da década de 1920 é um limiar definitivo da história do cinema; a passagem do cinema silencioso para o falado, como observa Jabor, é o instante em que prevalece a imperiosa necessidade de realizar
a narrativa fechada do idealismo romântico [...]. O cinema sem som poderia até evoluir para uma arte mais épica, evocativa, como esperavam tantos artistas visionários, como Eisenstein ou Carl Dreyer. Mas [...] sente-se que o cinema falado, além de ser uma necessidade de mercado, era também uma necessidade narrativa que a caretice do verismo internacional pedia.[6]
Conforme se queira, talvez se possa argumentar que, ao contrário do que afirma Jabor, o advento do cinema “coincide” com o fim de certa literatura romanesca, a da linhagem de Flaubert e de Stendhal; ou mesmo assinalar que o zoom e o flashback, nomeados e apropriados pelo cinema, são antes uma invenção daquela literatura que se encerra no século XIX, marcada pelos assomos de introspecção que o cinema faria subsumir aos encantos da imagem em movimento, da ação que se decompõe quadro a quadro, cujo norte é o deleite com a contemplação dos gestos e do comportamento alheio.
Mas é, por todo efeito, inegável que as expectativas com relação à narrativa, herança literária que nos legaram os olhos dos que pensavam o cinema naquele momento crucial, são hoje parte integrante e definitiva da linguagem cinematográfica; são causa e conseqüência de uma como que natural inclinação, por parte do leitor/espectador, a empreender a construção de nexos quaisquer com os elementos que se lhe ofereçam — os quais, por coesão meramente suposta que seja, permitem justificar ou reparar as lacunas ou incongruências de todo e qualquer relato. Nada, senão o reconhecimento dessa inclinação, explicaria, por exemplo, o impulso dos surrealistas de violentá-la com a superposição de signos própria daquele movimento; nada, senão a persistência dessa inclinação, justificaria seu esgotamento como proposta e como ação.
A experiência de montagem empreendida por Lev Kulechóv em 1919 é exemplar como ilustração dessa capacidade que tem o espectador de forjar narrativas por vezes alheias àquilo que contempla. Naquele ano, o cineasta soviético realizou um pequeno filme com apenas seis planos: prato de comida / rosto de um homem / criança brincando / rosto de um homem / um caixão / rosto de um homem. Tais planos foram projetados para espectadores desprevenidos, deixando-os extasiados com a sutileza alcançada por Iván Moszhúkhin, o ator cujo rosto era exibido, para exprimir sucessivamente a fome, o amor paternal e a tristeza. Só que, milagres da prestidigitação, os três planos em que o ator aparece são exatamente um mesmo e único plano, extraído de um filme antigo e, segundo Kulechóv, particularmente inexpressivo; os sentimentos lidos no rosto do ator foram uma criação dos espectadores, movidos que estavam pela aproximação das imagens.[7]
Tal percepção decerto se põe em franco desacordo com algumas considerações feitas pelo professor Ronaldo Lima Lins a respeito das relações entre cinema e literatura. Apreciando A Idade da Terra, diz o professor que o filme de Gláuber Rocha
criou-se como uma contrafação na indústria de bens culturais, só podendo ser entendido, à maneira de uma sinfonia atonal, pelas mentes abertas à não-coerência, à não-harmonia, à não-estética. Trouxe, talvez pela primeira vez no cinema, o augúrio apocalíptico das vanguardas, até então encontrado na literatura e nas velhas artes [...].
A contradição chegou, desta feita, a todos os recantos da arte, inclusive aos segmentos que, compromissados com a diversão, mantinham traços da narrativa do século XX.[8]
Ora, postas nestes termos, nem a não-coerência, a não-harmonia e a não-estética se bastam, sem senões, como determinantes da perturbação provocada pelo filme do cineasta baiano; nem, se bastassem, constituiriam ineditismo de qualquer espécie — pois que figurariam já desde o augúrio apocalíptico das vanguardas. Se há tensões – e elas são facilmente verificáveis – assinalando as distâncias entre as intenções do realizador e o repertório de possibilidades que o espectador constitui para operar com aquelas intenções e com o resultado que, por fim, tenham a oferecer, essas tensões não se dissolvem no endereço em que se refugiam as mentes abertas. Pelo contrário até: é mais provável que se agigantem na medida mesma em que se abram ao infinito as possibilidades de reconhecê-las — como referências meras (ou fatais), próprias de um qualquer discurso mínimo sobre alteridade, ou, no limite, como atalho para novas e insuspeitadas tensões.
Quer se lide com sua forma clássica ou com algum de seus duplos, o video game, o video clip, etc, são os procedimentos narrativos que os olhares do espectador, tal qual se pôde constituir, busca encontrar. Mesmo porque, como afirma Metz,
a negação da narrativa é uma projeção de fantasias do crítico do moderno, visto que o cinema, pela sua natureza de meio temporal, sempre deve depender de, e reverter a, estruturas de narratividade (embora estas não tenham de ser do mesmo tipo de narrativa realista de Hollywood).[9]
Sem esquecer, com Octavio Paz, que por vezes poesia e prosa negam-se mutuamente[10] (e, diga-se, tanto mais, talvez, do que cinema e literatura), mas estendendo ao infinito a afirmação de Metz, a arquitetura, o cinema, a literatura equivalem-se, nalguma medida, como narrativas; tal medida é talvez o próprio meio em que se realizam: o tempo, sempre presente. E já não nos tolhem, nesse sentido, os delírios de pureza greemberguianos, a promover como procedimentos incomunicáveis, ou quase isso, os misteres com que cada uma das diversas formas de expressão se realiza.
Contudo, se facilmente constatamos que nem sempre se constituíram como necessariamente danosas as relações entre cinema e literatura; se, ao contrário, tais relações são (ou já puderam ser) fonte de enriquecimento para ambas as linguagens, é igualmente incontestável que algo se vem afirmando pelo avesso do outrora otimista aforismo de Godard, para quem os escritores sempre tiveram a ambição de fazer cinema sobre a página em branco.[11]
Num corte abrupto, chegamos a 1995, e deparamos com o poeta estadunidense Douglas Messerli[12], que, entrevistado pelo também poeta Régis Bonvicino, resume como antitéticas as relações entre as possibilidades de invenção literária e as formas com que se estrutura o mercado editorial dos EUA. Segundo Messerli, se hoje é possível dizer que de algum modo a produção poética está fortalecida naquele país, isso se deve, justa e paradoxalmente, à sua alienação da indústria cultural:
Aqui, nos Estados Unidos, o teatro (não o de Andrew Lloyd Weber) e a poesia têm estado em tão longa quarentena de remuneração financeira que os escritores jovens se sentiram à vontade para se dedicar ao experimentalismo, para tentar novas linguagens — o que é essencial para a permanência da arte séria.[13]
Desprezando, neste momento, os sentidos que possam impregnar uma expressão como “arte séria”, é algo desconcertante perceber que o discípulo de Stein e Whitman dirige-se ao solidíssimo, libérrimo mercado estadunidense — margem última, fim primeiro da indústria cultural daquele país. Mas esse desconcerto faz ver também que, igualmente noutra margem, novos ensaístas, historiadores, filósofos e demais membros de certo estrato da comunidade acadêmica dos EUA encontram-se entalados dentro das universidades; talvez sem o perceber, há tempos não encontram outro canal para a divulgação e o debate de suas produções que não as editoras das próprias universidades em que atuam. E uns, outros e outros, conforme observa o também poeta Robert Creeley[14], constituem a substância de um ambiente que, por uma via, aglutina, sim, e dinamiza discussões literárias, mas, por outra, na mesma medida, não deixa de ser hostil à poesia[15] — para sempre margem terceira.
Mais recentemente, esse impasse multifacetado entre mercados, academias e literaturas encontrou nova significação, iluminado que está sendo pela sandice européia a respeito da reorientação dos parâmetros de formação escolar, de modo a adequar currículos e conteúdos, já desde o ciclo fundamental, aos interesses da indústria. A ERT, Mesa-Redonda Européia dos Industriais, estaria exercendo uma dupla pressão: no sentido de forçar que a educação se torne uma “prestação de serviços” voltada para o mundo econômico, seguindo a lógica de que é aquele “mundo” o responsável pela maior parte dos impostos recolhidos no continente, a um só tempo em que, sendo considerada como não mais que uma prestação de serviços, passe a ser assumida pela iniciativa privada como um bem de mercado qualquer, de modo a excluí-la do âmbito das preocupações e influências dos Estados. Obviamente, tal medida, se aceita, teria por efeito a redefinição dos parâmetros de formação escolar, já desde as primeiras séries, de forma a imaginá-los como um mero suporte das necessidades da indústria — o que implicaria em desprezar a História, a Geografia, a Biologia, a Literatura e tudo quanto não se preste a “ganhos de produtividade”. Os alunos, assim, passariam a remunerar aos diferentes conglomerados industriais pelo “direito” de assimilar os programas e conteúdos definidos por esses mesmos conglomerados — o que, num futuro próximo, os tornaria aptos a candidatar-se às vagas oferecidas por aquele mesmo segmento que os formou.[16]
Com tais engenhos, o Velho e o Novo Mundo apontam de mesmo para dois segmentos do gigante que é a indústria do audiovisual: se na Europa o que há de mais virtual na informática permite tramar a tal ponto o futuro da educação, nos EUA é o cinema a razão de tantas reviravoltas no mercado editorial.
Mas é importante notar que tomar o problema por europeu ou estadunidense é algo que sequer se aproxima do ponto central. Mesmo porque, desde os anos 1980, a indústria cinematográfica estadunidense, a exemplo dos demais segmentos da indústria daquele país, vem, progressivamente, deixando de ser... estadunidense. O caminho já havia sido aberto por empresas automobilísticas como Toyota, Honda e Mitsubishi: determinadas a entrar no mercado, logo deixariam para trás a concorrência nativa, incapaz de fazer frente aos índices de preços que se dispunham a praticar. A rapidez e a violência de sua inserção logo lhes valeria a acusação de, deliberadamente, pôr em curso uma estratégia que teria por fim minar o sonho americano em sua matriz mais óbvia e acarinhada: o consumo. E não de um bem qualquer, mas de um emblema distintivo de sua cultura: o automóvel, não por acaso um astro de nada menos que a totalidade das produções cinematográficas contemporâneas, ícone contíguo às imagens de James Dean, John Kennedy, serial killers ou pin-ups.
Alguns anos mais tarde, com a compra da Columbia Pictures, num negócio de cifras astronômicas, a Sony reavivava a comoção e os lamentos dos dirigentes de empresas tradicionais do ramo automobilístico, como a Ford, a GM, a Chrysler, mas deixava aberto o caminho para que, aos poucos, outras empresas japonesas se aproximassem, já então dando vez a comoções nacionalistas cada vez menos intensas. Passado o primeiro impacto, e reinventado o mercado, são raros, hoje, dentre os grandes estúdios de Hollywood, aqueles que não contem com a participação de capital japonês em sua estrutura acionária.
Em 1994, segundo dados oficiais, o filme Jurassic Park[17], de Steven Spielberg, já contabilizava uma bilheteria em torno de U$700.000.000.[18] Isso sem incluir os rendimentos referentes ao imenso mercado paralelo: bottoms, games, camisetas, etc, decerto equivalentes a um montante igual ou superior. Como o custo oficial do filme, que é de 1993, ficou em torno de U$100.000.000, mesmo se considerássemos apenas a bilheteria, isso já representaria um lucro líquido de 600% em apenas um ano. Não há nada, em nenhum lugar do mundo, capaz de render tanto e tão rapidamente assim. Mas ainda havia espaço para aumentar margem de lucro já tão extraordinária.
Uma parcela minoritária da produção cinematográfica hollywoodiana é baseada em roteiros originais. Tradicionalmente, a maior parte das produções é constituída de adaptações de romances, contos e novelas: alguém escreve coisa que interesse aos padrões da indústria, e logo aparece o representante de uma produtora, propondo a compra dos direitos da obra; daí, acertam quanto caberá a cada uma das partes (autor, diretor e agentes); em alguns casos, também definem o roteirista, se será o próprio autor ou não, o tanto que poderá ser alterado no filme com relação ao texto original, etc. Grosso modo, com ligeiras variações aqui e ali, é assim que funciona — ou melhor, funcionava: entrando em cena, rapidamente as companhias japonesas pressionaram o mercado de modo a alcançar um novo patamar; e os estúdios, às voltas com novas possibilidades de racionalização de custos, passaram a comprar editoras, de modo a só passar para as telas obras sobre as quais já tivessem o direito de edição.
O processo é exemplarmente ilustrado com a notícia abaixo, assinada por Sérgio Sá Leitão:
Nasceu na segunda-feira de Carnaval, nos Estados Unidos, um Gulliver das comunicações e do entretenimento capaz de rivalizar com a Time Warner e a Disney. A Viacom venceu a mais longa operação de takeover da década: cinco meses de disputa pelas ações da Paramount, sexta produtora de cinema em público em 93, nos EUA.
A empresa se associou à Blockbuster, a maior companhia de “home video” dos EUA, e conseguiu 75% das ações da Paramount, mais do que o suficiente para assumir seu controle. Enfrentou outra empresa interessada, a QVC Network. O governo e a Justiça dos EUA foram chamados para arbitrar o takeover. A Paramount custou US$ 9,5 bilhões e a Blockbuster está investindo US$ 8 bilhões na supercompanhia resultante.
A Viacom Blockbuster Paramount já é a maior proprietária de canais a cabo do mundo (tem 10, incluindo MTV e Showtime), de emissoras abertas de TV (12), o maior editor de livros — 26 dos 150 best-sellers de 93 nos EUA — e o maior locador de vídeos — com ganhos superiores aos dos 550 concorrentes reunidos. Possui 5% das salas de cinema dos EUA e um acervo de 3.790 filmes e seriados, além de lojas de discos, parques de diversões e duas equipes esportivas — New York Knicks, de basquete, e New York Rangers, de hóquei.
A Viacom tem 61% das ações e está de olho em um novo mercado. Para Summer Redstone, chairman da empresa, o objetivo é “criar uma megaempresa de mídia com alcance global e proporções jamais vistas”. Os alvos são a TV interativa e produtos que a “superestrada” de fibras óticas aprovada pelo governo dos EUA torna possíveis.
Aqui entra em cartaz um quarto parceiro, minoritário: a companhia de telefonia Nymex, de Nova York, que está injetando US$ 1,2 bilhão no Gulliver. Com ela, a megacompanhia fecha um ciclo completo de produção: uma das editoras lança um livro, a Paramount faz o filme, a Viacom exibe nos seus 1927 cinemas, a Blockbuster vende o vídeo nas suas 3500 lojas, o canal Showtime reexibe a fita e depois ela fica no banco de uma emissora interativa.
A cadeia pode ir além, segundo seqüência sugerida por especialistas em mídia ao jornal norte-americano “USA Today”: a trilha sonora é vendida nas lojas da Blockbuster, os clips passam na MTV, as músicas tocam nas rádios, os astros aparecem nos talk shows das emissoras de TV do Gulliver, e assim por diante.[19]
As leis de mercado, conforme praticadas atualmente, não encontram jurisprudência suficientemente consistente com que questionar a hegemonia totalitária de tal sistema de produção, coisa inédita na história do capitalismo. Contrariamente a isso, insinuar a contenção de um mercado que se quer auto-regulável exatamente pela manutenção da voracidade de tais táticas é suposição risível diante da necessidade de assegurar a bandeira do crescimento econômico de conglomerados desse porte, pespegados já, de modo inelutável, a qualquer idéia de promoção ou de manutenção do desenvolvimento dos países em que aportam.
Ainda há, obviamente (e possivelmente sempre existirá quem presuma que haja), arestas a aparar em cada uma das instâncias que compõem a linha de produção da indústria do audiovisual. Às editoras, por exemplo, ainda incomoda ter de negociar com turba tão numerosa de autores a tropeçar nos próprios egos, inflados pelo sucesso ocasional desta ou daquela adaptação, dentre as cerca de 400 novas adaptações que os estúdios estadunidenses oferecem a cada ano. Mas, a partir desse incômodo, já se oferece a inclusão de uma nova cláusula nos contratos, segundo a qual o candidato a autor abre mão de quaisquer outros agentes, aceitando como seu representante único e exclusivo a própria editora; além disso, por uma quantia estabelecida a partir de uma escala de importância em que o encaixem, o escritor passa a ceder previamente à editora todos e quaisquer direitos sobre a possível utilização futura da obra pelo mercado de cinema, vídeo e derivados. Em troca, claro, da possibilidade de ser contratado.
Há muito se percebeu quão inútil é publicar textos que não se prestem a serem adaptadas para o cinema. Poesia, por exemplo, nunca mais. Mesmo os que se candidatam a publicar obras de ficção por essas editoras são agora filtrados por roteiristas e produtores das companhias cinematográficas às quais as editoras são associadas; só têm vez aqueles que, além de se sujeitarem aos termos do contrato, abrem mão das possibilidades de invenção literária, fazendo de sua escrita um meio caminho andado ao encontro da forma do roteiro.
Claro que Shakespeare, Dickens, Updike, Roth e todos os demais índices canônicos, clássicos ou contemporâneos, continuam sendo publicados, e isso é coisa que dispensa explicações. Mas não é esse o problema. É fato que Messerli, em sua entrevista, tinha em mente sobretudo as preocupações com seu próprio ofício, o que não é pouco. Mas não é difícil perceber o quanto tais preocupações são, para dizer o mínimo, quase irrelevantes, diante das possíveis conseqüências de estratégias dessa natureza num futuro próximo. Nada garante que tenham terminado por ali. Pelo contrário, em vista do artigo publicado pelo Le Monde Diplomatique[20], não é absurdo supor que, neste exato momento, alguma nova cláusula esteja sendo adicionada aos contratos de edição, convocando os autores a se aliarem nesse grande projeto para a educação do futuro de um modo bastante singular: ausentando-se dele. Se é possível supor que a única finalidade da educação é servir aos propósitos da indústria, subtraindo-se a ela qualquer veleidade de pensamento crítico, nada impede que os escritores, já obrigados pelo mercado a adotar em seus livros um tipo de narrativa que facilite sua apropriação pelo cinema, passem a ser tolhidos também pela necessidade de contribuir com temas, idéias e posturas favoráveis à consolidação do novo mercado. Não seria coisa nova: a poesia romântica alemã, exaltando sentimentos patrióticos, serviu como palavra de ordem para a unificação do país em 1870; mais tarde, o Ministério da Propaganda do regime nazista fez o mesmo com todas as artes, tendo em vista a consolidação do mito ariano; o fascismo, o Estado Novo brasileiro, o português, o macartismo americano... Há exemplos de sobra. Mas nenhum que impeça pensar o mercado qual novíssima bandeira, qualquer que seja a nação de origem ou destino.



São Sebastião do Rio de Janeiro, em novembro de 2002.



[1] Cf. Sadoul, Georges. História do cinema mundial: das origens aos nossos dias, vol. I. Lisboa: Horizonte, 1983, p. 139.
[2] Sylphorama: do latim sylphu, “imagem vaporosa”, ou “o gênio do ar”, nas mitologias céltica e germânica medievais, e do grego hórama, “vista de”, “espetáculo”. Também chamada Inana, possivelmente graças às dificuldades com o idioma daqueles que anunciavam a atração, ficou assim conhecida a atração importada pelo tcheco Frederico Figner para a Rua do Ouvidor do final do século XIX. Matéria controversa há algumas décadas, é consensual hoje aceitar, como base mínima, que se tratasse de um engenho de espelhos que fazia ver uma mulher flutuando nos ares — o que torna a Sylphorama (ou Inana) uma espécie de ancestral das Kongas, as mulheres-gorilas que ainda se encontram nos circos e parques de diversões do interior do país.
[3] Ainda no século XVIII, em 1769, o húngaro Wolfgang von Kempelen (1734-1804) apresentou à Imperatriz Maria Tereza, da Áustria, sua fantástica criação: o Turco, que teria a extraordinária habilidade de derrotar qualquer adversário em partidas de xadrez. A engenhoca se caracterizava por um boneco vestido de turco, com uma mesa-tabuleiro à sua frente e várias gavetas dotadas de mecanismos e engrenagens que produziam ruídos estranhos. Era um engodo: na verdade, dentro do boneco escondia-se um jogador dos mais exímios; e o aspecto estranho, os ruídos, só faziam roubar a atenção dos eventuais oponentes, que se maravilhavam com a oportunidade de travar um embate com semelhante prodígio tecnológico. Morto seu criador, o Turco foi operado ainda pelo alemão Johan Nepomuk Maelzel (1772-1838), o inventor do metrônomo e do panharmonicum, orquestra mecânica que motivou Beethoven a compor A Vitória de Wellington. Mas perdeu-se para sempre, num incêndio em um museu da Filadélfia, em 1854. O Ajeeb foi uma tentativa de reviver os prodígios do Turco: criado pelo inglês Charles Hopper (1825-1900) em 1865, era anunciado por toda a parte como um magnífico autômato jogador de damas e de xadrez. Somente depois de sua fama ter corrido meio mundo, atraindo o interesse de adversários como Theodore Roosevelt, Houdini, Admiral Dewey e Sarah Bernhardt, descobriu-se que era na verdade uma armadura, na qual se escondiam enxadristas lendários como os estadunidenses Constant Ferdinand Burille (1866-1914) e Harry Nelson Pillsbury (1872-1906).
[4] “Cavadores”: realizadores do “cinema de cavação” — termo com que ficaram marcados muitos dos primeiros empreendedores da atividade cinematográfica no Brasil. Aventureiros, lançavam-se pelos interiores do país, seduzindo coronéis e fazendeiros com as maravilhas do cinematógrafo; por onde quer que passassem, casamentos iminentes, batizados, ou mesmo a possibilidade de fixar a magnitude de propriedades rurais, eram pretexto para a obtenção de somas, por vezes vultosas, com as quais viriam à capital federal e comprariam equipamentos de filmagem e de projeção para registrar o acontecimento. Como, na maior parte das vezes, o dinheiro era embolsado, o cinegrafista desaparecia da região para nunca mais ser visto, o que justificava a pecha de trambiqueiros que se acercava dos profissionais da área naqueles primórdios. Em muitas ocasiões, o equipamento era de fato comprado, mas sua destinação, longe de ser aquela esperada pelo comprador ludibriado, era a realização de projetos cinematográficos particulares dos “cavadores”, que não encontravam, senão por esse expediente, outra fonte de financiamento. A prática é exemplarmente ilustrada por Maria Rita Eliezer Galvão, em sua Crônica do cinema paulistano (São Paulo: Ática, 1975). E também por Lauro Escorel Filho, em Sonho sem fim (1986), filme com que retrata a vida do pioneiro cineasta gaúcho Eduardo Abelim: acrobata, automobilista, fundador da Gaúcha Filmes, “cavador” e diretor de A avançada das tropas gaúchas, documentário sobre os acontecimentos ligados à Revolução de 1930 em seu estado natal.
[5] Filme de Alan Crossland, exibido no Brasil com o título O Cantor de Jazz. É habitualmente tomado como marco do cinema falado — o que é discutível, uma vez que há outros exemplos que o precedem.
[6] Jabor, Arnaldo. “Garbo brilha em dois momentos”. Folha de São Paulo. São Paulo: 17 de novembro de 1994.
[7] Cf. Sadoul, Georges. História do Cinema Mundial: das origens aos nossos dias. Op. cit., e Bernadet, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
[8] Lins, Ronaldo Lima. “Literatura e cinema (ruína e construção no universo do impasse)”. In: Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 149.
[9] Apud Connor, Steven. Cultura Pós-Moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1992, p. 143.
[10] Paz, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 19.
[11] Apud Borges, Jorge Luis & Cozarinsky, Edgardo. Do Cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1983, p. 9.
[12] Poeta e dramaturgo estadunidense, nascido em 1947, é um ex-ativista do Language Poetry, principal movimento da cena poética de seu país nos anos 1980.
[13] Bonvicino, Régis. “A experiência da linguagem”. Folha de São Paulo. São Paulo, 01 de outubro de 1995.
[14] Poeta estadunidense, nascido em 1926, é considerado por muitos críticos um dos principais sucessores de Ezra Pound e William Carlos Williams.
[15] Cf. Silva, Fernando de Barros e. “Creeley conta casos de poesia”. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de maio de 1996.
[16] Cf. Sélys, Gérard. “L’école, grand marché du XXIe siècle”. Le Monde Diplomatique. Paris, junho de 1998.
[17] Filme de Steven Spielberg, de 1993, exibido no Brasil com o título Parque dos Dinossauros.
[18] Cf. Couto, José Geraldo. “Cinema vira campo de guerra planetária”. Folha de São Paulo. São Paulo, 1º de janeiro de 1994.
[19] Leitão, Sérgio Sá. “Takeover cria gigante do entretenimento”. Folha de São Paulo. São Paulo, 6 de março de 1994.
[20] Sélys, Gérard. “L’école, grand marché du XXIe siècle”. Op. cit.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

O homem neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos

A suspensão atual das proibições esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado pelo capitalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade


Dany-Robert Dufour


Dado que só há mais um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas
Em L’art de réduire les têtes1, eu havia tentado evidenciar a profunda reconfiguração das mentes realizada pelo mercado. A demonstração era relativamente simples: o mercado recusa qualquer consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental…) que possa impedir a livre circulação da mercadoria no mundo. É por isso que o novo capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em benefício do valor monetário neutro da mercadoria. Dado que não há mais nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas.
Tem-se um bom exemplo dessa dessimbolização produzida pela expansão do reino da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro. Observa-se que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, indexavam, ainda ontem, as trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-nação. Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas, exaltando uma fluidez desculturada. Pede-se aos homens que se curvem ao jogo da circulação infinita da mercadoria. Pode-se dizer, portanto, que a lei do mercado é destruir todas as formas de lei que representem uma pressão sobre a mercadoria.
Ao abolir qualquer valor comum, o mercado está em via de fabricar um outro “homem novo”, privado de sua faculdade de julgar (sem outro princípio que o do lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única salvação possível encontra-se na mercadoria), formado em todas as flutuações identitárias (não há mais sujeito; existem apenas subjetivações temporárias, precárias) e aberto a quaisquer conexões comerciais. Estamos, aqui, diante de um aspecto muito particular da desregulamentação neoliberal que, infelizmente, ainda não é bem compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis em todos os domínios, particularmente sobre o psiquismo humano. Um certo número de psiquiatras e de psicanalistas está fazendo o inventário dos novos sintomas decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, a extensão da perversão etc.

Desregulamentação simbólica

Está se fazendo o inventário dos novos sintomas decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, perversões
Esta desregulamentação de tipo novo provoca grandes confusões nos debates atuais. Ela é acompanhada de um cheiro libertário, baseado na proclamação da autonomia de cada um e numa extensão da tolerância em todos os campos sociais (dentre os quais o dos costumes), que tende a fazer acreditar que estamos em vias de viver um intenso período de libertação. Dado que o antigo patriarcado opressivo está em desvantagem, acredita-se que uma revolução sem precedentes estaria a caminho... esquecendo-se de que foi o próprio capitalismo que comandou esta “revolução” visando a facilitar a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o da cultura.
Karl Marx não se enganava quanto a essa face “revolucionária” do capitalismo: “A burguesia”, escrevia ele, “não pode existir sem provocar, constantemente, grandes mudanças nos instrumentos de produção, portanto nas relações de produção e, portanto, no conjunto das condições sociais. De modo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores era manter inalterado o antigo modo de produção. O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de mudanças na produção, a desestabilização contínua de todas as instituições sociais, em resumo, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais enferrujadas, com seu cortejo de idéias e de opiniões admitidas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, bem definido, se desmancha no ar, tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e suas relações recíprocas2.” Esta capacidade de transformar as relações sociais atingiu o ponto máximo através desse novo estado do capitalismo que é chamado às vezes, e com razão, de “anarco-capitalismo”.
Essa transformação funcionou tão bem que houve quem tentasse reter apenas o lado “libertário”, “jovem” e “conectado” da nova forma, empolgando-se, sem grandes dificuldades, com a revolução dos costumes que ela introduzia. A confusão é tal que quem não faz outra coisa senão seguir essa desregulamentação cultural e simbólica acredita-se muitíssimo revolucionário – penso na parte da esquerda conectada que se entusiasma com todas as “causas tendência”. Ora, é exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo que gosta, se não da “revolução”, pelo menos de todas as formas de desregulamentação culturais e simbólicas. Todos os spots publicitários mostram isto.

Perigos potenciais

Esta desregulamentação simbólica provoca grandes confusões nos debates atuais, pois é acompanhada de um cheiro libertário
Parece que as populações pressentem os consideráveis perigos potenciais que a civilização corre diante de tal desregulamentação simbólica. Mas o Mercado pode recuperar tudo em seu proveito: muitos grupos já estão agindo, vangloriando-se e vendendo morais de péssima qualidade. Ora, seria um erro crucial deixar o debate sobre os valores para os conservadores, sejam eles antigos ou “neo”. De fato, se se abandonar esse terreno, ele será, como nos Estados Unidos, ocupado por George W. Bush, pelos tele-evangelistas e seus supostos puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistizantes. Portanto, é urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum destinado às populações confusamente alarmadas pelos estragos morais devidos à extensão infinita do reino da mercadoria. É claro que, se esse terreno não for cercado, essas populações serão tentadas a pender para o lado dos que o ocupam de forma tão barulhenta quanto indevida.
Entretanto, restringir o debate a esses aspectos culturais seria cometer um grande engano. Porque parece que essa reconfiguração das mentes não é senão a primeira fase de um mecanismo mais amplo. Para dizê-lo em poucas palavras, a “redução de cabeças” e a dessimbolização são apenas o prelúdio de uma outra redefinição em profundidade do homem, a qual, então, atingiria não só sua mente, mas também seu corpo.

Momento decisivo

É urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum para populações alarmadas pelos estragos morais
Essa dessimbolização do mundo ocorre num momento decisivo da aventura humana: é a primeira vez na história do ser vivo que uma criatura chega a ler a escrita da qual ela é a expressão. Com tal seqüência, tornou-se possível um acontecimento incrível: o instante em que a criatura vai poder voltar à criação para se refazer. O instante em que a criatura vai interferir em sua criação e pôr-se como seu próprio criador. Chega, pois, o momento inconcebível em que uma espécie vai poder intervir em seu próprio devir substituindo as leis naturais da evolução.
Tudo acontece como se a recomendação humanista lançada no Renascimento por um de seus grandes pensadores, Pic de la Mirandole, tivesse sido ouvida além de todos os limites. Pic queria introduzir, de encontro às antigas formas de dominação absoluta pelo divino, um pouco de livre arbítrio humano. Deste modo, convocava o homem a “esculpir sua própria estátua3 ”. O apelo foi ouvido por toda a filosofia posterior, pois esta pode ser considerada como um desenvolvimento muito longo do tema do livre arbítrio humano, da construção do cogito cartesiano ao tema da morte de Deus em Nietzsche, passando pelo ideal crítico do Iluminismo.
Ora, o homem atual está em via de ultrapassar esse ideal dado que, se estiver efetivamente em via de “esculpir sua própria estátua”, esta bem poderia ser uma estátua viva, chamada a substituir a do próprio homem. Observemos, de passagem, que isso não seria nada menos que o fim da filosofia, que seria abrangida numa tal intenção de redefinição das bases materiais da humanidade. Sua realização suporia, de fato, a transformação irremediável de um empreendimento, incessantemente relançado desde a Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca da autonomia, pela refundação do entendimento) num objetivo puramente tecnicista de modificação do corpo. Mas de que serviria ganhar um corpo novo se isto significasse perder o espírito?

Fukuyama e a "pós-humanidade"

Essa dessimbolização do mundo ocorre num momento decisivo da aventura humana: em que a criatura vai interferir em sua criação e pôr-se como seu próprio criador.
É mais importante ainda colocar a questão à medida que existe um programa difuso de fabricação de uma “pós-humanidade”. Tal programa é dissimulado, quase não se lhe dá publicidade. Não se deve assustar os homens; principalmente, eles não podem compreender que os fazem trabalhar na abolição da humanidade – isto é, em seu próprio desaparecimento. O mundo do ser vivo foi de tal forma cercado pelo capitalismo, a fim de nele desenvolver novos espaços para a mercadoria, que algumas de suas conseqüências possíveis sobre a própria humanidade acabaram atravessando o muro do silêncio. É assim que Francis Fukuyama – o arauto do neoliberalismo, que havia proclamado, depois da queda do muro de Berlin, o início do “fim da história” com o advento generalizado das democracias neoliberais – teve que se retrair e admitir que o triunfo do mercado não era o último episódio da história humana. Um outro se seguiria: a transformação biológica da humanidade4 . Mas este abrir de olhos não lhe foi senão a oportunidade de cair num novo erro de avaliação.
Francis Fukuyama quer acreditar que o neoliberalismo poderá preservar-nos dessa engrenagem fatal… quando é ele que nos leva diretamente a ela! Para ele, na verdade, a democracia de mercado seria um estado perfeito se não estivesse ameaçado pelo desenvolvimento de algumas técnicas: “Uma técnica suficientemente poderosa para remodelar o que somos pode bem ter conseqüências potencialmente ruins para a democracia liberal5 .” Evidentemente, é necessário convir quanto a isto: se não há mais homens, a democracia corre o risco de se esvaziar. Para evitar semelhante perigo, bastaria, segundo Fukuyama, que “os países regulassem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica”. Piedosa intenção que não come pão e que lhe permite manter-se em silêncio a respeito do essencial: é o mercado que mantém o desenvolvimento infindável das tecno-ciências, as quais, não reguladas, conduzem diretamente para uma saída fora da humanidade.

Da pós modernidade à pós história

O empreendimento, relançado desde a Antiguidade, de reforma do espírito se transforma num objetivo puramente tecnicista de modificação do corpo
Este elo, no entanto, é claro: dado que o mercado implica o fim de qualquer forma de inibição simbólica (isto é, o fim da referência a qualquer valor transcendental ou moral em proveito unicamente do valor comercial), nada, caso se permaneça nesta lógica, poderá impedir que o homem se liberte de qualquer idéia que pretenda mantê-lo em seu lugar e que saia de sua condição ancestral tão logo tenha os meios para tal. Portanto, não é a ciência sozinha, como se diz com freqüência, e sim a ciência mais o efeito deletério do mercado sobre os valores transcendentais que estariam em condições de permitir a realização desse programa. É preciso, pois, se colocar a questão: existirá, em nossas democracias pós-modernas onde se pode dizer tudo, uma instância política para decidir se nós queremos ou não essa mutação? Nada é menos certo.
Ora, a ausência desse lugar tem um peso importante. Vê-se onde o programa de fabricação de uma pós-humanidade poderia levar: diretamente à entrada numa era de produção de indivíduos ditos superiores tendo escapado à geração. E indivíduos inferiores para as tarefas subalternas. A existência, banalizada, de organismos geneticamente modificados deveria pôr a pulga atrás da orelha: poder-se-ia, a curto prazo, empreender fabricar, por clonagem e modificação genética, novas variantes humanas. É até verossímil que experimentações estejam em curso ou possam não demorar a estar.
Quando esse dia chegar, teremos passado da pós-modernidade, período perturbado pelo desmoronamento dos ídolos, à pós-história. Se ninguém pode prever o que será isto, pode-se, entretanto, dizer o que não será mais. Porque significa o desenlace de cinco grandes topoï da humanidade: o fim da humanidade comum, o fim da fatalidade costumeira da morte, o fim da individualização, o fim do ordenamento (problemático) entre os sexos e a desorganização da sucessão de gerações.

Perigo para o animal inacabado

O perigo que ameaça a espécie humana não é só o eugênico. A curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a perpetuação da própria espécie
O perigo que ameaça a espécie humana não é só o perigo eugênico. O que está em perigo, a curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a perpetuação da própria espécie. Esta conservação não procede de si mesma; ela passa por um contexto simbólico e cultural. Isto se explica pelo fato, reconhecido por uma parte da pesquisa paleoantropológica, de que o homem é concebível como um ser de nascimento prematuro, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, entretanto, capaz de se reproduzir e de transmitir suas características de juvenilidade, normalmente transitórias entre os outros animais. Fala-se a esse respeito da neotenia do homem6 . Ela implica que este animal, não acabado, diferentemente dos outros animais, deve acabar-se em outro lugar que não na primeira natureza, isto é, numa segunda natureza, geralmente chamada cultura.
Encontram-se muitas coisas nessa segunda natureza: deuses, relatos, gramáticas referindo-se a qualquer objeto do mundo (as estrelas, os seixos, os micróbios, a música, a narrativa, o cálculo, a subjetividade, a sociabilidade...), uma intensa atividade protética (todos os objetos que permitem a esse animal não acabado habitar o mundo), leis, princípios, valores... Ora, se esse quadro for deteriorado, se as leis e os princípios que o regem se tornarem fluidos, pode-se esperar não só efeitos individuais e sociais deletérios, mas também ameaças sobre a espécie, pois nada mais será suficientemente legítimo para se opor a manipulações visando a transformá-la assim que possível.

A domesticação do Ser

A deliberação moral é tão pouco levada em consideração que, nesse discurso “desinibido”, só a técnica é que pode determinar uma ética
Algumas vozes já se fazem ouvir na intelligentsia para acolher a suposta boa nova e próxima mutação do homem. De modo muito especial, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que já se tornara famoso por haver feito no final de 1999, no além-Reno, uma conferência intitulada Règles pour le parc humain [Regras para o parque humano] 7 , por ocasião de um seminário dedicado a Heidegger. Esta conferência suscitou uma grande controvérsia, particularmente com Jürgen Habermas. Os propósitos desse “nietzschiano de esquerda” parecem muito significativos do modo como a desregulamentação simbólica atual pode confundir as mentes.
Numa outra conferência realizada no Centro Georges Pompidou, em março de 20008 , Sloterdijk retomou uma tese de Heidegger, mas para invertê-la. Não se tratava mais de dizer que a técnica era “esquecimento do Ser”, mas de proclamar que ela contribui para a “domesticação do Ser”, sendo esse o atributo maior do homem neotênico, levado a se produzir a si mesmo. Como se a técnica fosse a única conquista do homem neotênico e o contexto simbólico que faz prescrições e proibições nunca tivesse existido! Com tais premissas, todas as conseqüências possíveis da técnica são justificadas antecipadamente. Por outro lado, a deliberação moral é tão pouco levada em consideração que, nesse discurso “desinibido”, só a técnica é que pode determinar uma ética – não uma ética qualquer, mas, sim, uma “ética do homem maior” e, enquanto tal, aberta às “automanipulações biotecnológicas”.

A substituição do "homem primeiro"

O homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, estaria encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir à multiplicidade biológica
Nesse discurso, a ética consiste, pois, em afastar qualquer forma de exame moral. É assim que o homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, estaria encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir à multiplicidade biológica9 . O homem, nascido insuficiente e sendo produto da técnica, não teria outra coisa a fazer senão levar a técnica a suas últimas conseqüências. Deste modo, o velho homem deveria ser rebatizado de “homem primeiro” – em que se pode ouvir um claro eufemismo de “primitivo” (como em “museu das Artes Primeiras”) –, porque este homem já é somente um primitivo diante dos homens superiores que devem vir. Não se devia provocar a alucinação da volta do Ser na sinistra farsa histórica do nazismo – não havia ali senão um lamentável equívoco de meu caro mestre, parece dizer Sloterdijk. Não, é hoje que se dá o verdadeiro êxtase: o homem superior, o verdadeiro, chega e seus aduladores já o louvam e funcionam como polícia para lhe abrir caminho.
Ora, esse caminho está cheio de “homens primeiros” – eis o problema. Para nosso profeta, o velho homem primitivo é manhoso, é constitutivamente surdo – e eu cito – com “generoso potencial” de transformação “polivalente”. Pior ainda, por seu “antigo egoísmo”, ele só prestaria para “exercer o poder sobre as matérias-primas” para “delas dispor” a fim de livrá-las das mudanças prometidas – onde se compreende que tais “matérias-primas” poderiam até ser o próprio corpo humano. Evidentemente, esse velho homem não seria senão “o homem do ressentimento”, prestes a fazer “reuniões” para arregimentar “populações desinformadas” e levá-las a “falsos debates sobre ameaças não compreendidas, sob a autoridade severa de editorialistas lascivos”... Abaixo, pois, os velhos “humanólatras” que pretendem, movidos por “uma histeria antitecnológica”, opor-se ao salto para o qual o Ser nos chama porque, é evidente, não há “nada de perverso” em querer “se transformar através da autotécnica”...

Projeto pós-nazista

O verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona tão bem que um dia acabará consumindo tudo: os recursos, a natureza, – até os indivíduos que o servem
Esses propósitos de Sloterdijk – por seu próprio exagero – são muito úteis: permitem compreender que a atual desinibição simbólica não é somente uma questão de libertação dos costumes e de saída mais ou menos dolorosa do patriarcado. De fato, a suspensão atual das proibições revela que perdura um verdadeiro projeto pós-nazista de sacrifício do humano. Ele é sustentado pelo anarco-capitalismo que, ao mesmo tempo em que quebra todas as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade.
“O discurso capitalista”, já dizia o doutor Lacan, “é algo de loucamente astucioso [...], funciona perfeitamente, não pode funcionar melhor. Mas justamente funciona depressa demais, se consome. Consome-se tão bem que se esgota10 .” Em suma, o verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona bem demais. Tão bem que um dia acabaria consumindo tudo: os recursos, a natureza, tudo – até e inclusive os indivíduos que o servem. Na lógica capitalista, esclarecia Lacan, “o antigo escravo foi substituído” por homens reduzidos à condição de “produtos”: “produtos [...] consumíveis tanto quanto os outros11 .” Esta observação permite compreender que é exatamente nesse sentido muito ameaçador que devem ser entendidas as expressões levianamente eufóricas que se encontram em toda a literatura neoliberal: “o material humano”, o “capital humano”, a gestão esclarecida dos “recursos humanos” e a “boa governança ligada ao desenvolvimento humano”.
O anarco-capitalismo acreditou na idéia de que o dar-se leis é cruel e só confina a uma espécie de masoquismo insuportável. E remete cinicamente os que teriam necessidade de um suplemento de alma ao puritanismo obscurantista. É preciso, portanto, lembrar que os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, diziam que a liberdade consiste apenas em obedecer às leis que o homem se deu. De fato, temos necessidade de verdadeiras leis jurídicas e morais – e não desses sucedâneos moralizantes – para, enfim, fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde demais, para preservar a espécie humana ameaçada por uma lógica cega. Ora, estamos em via de ab-rogar todas as leis – exceto as do mais forte – e, se continuarmos nessa funesta direção, entraremos numa crueldade bem mais intensa que a de ter que se submeter a leis. Entraremos numa crueldade desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100 mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros.

(Trad: Iraci D. Poleti)

1 - Ver, de Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes ? sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total, Denoël, Paris, 2003.
2 - Karl Marx, Manifeste communiste, trad. Lafargue, Ed. sociales, Paris, 1976, p. 35
3 - Pic de la Mirandole [1463-94], Discours sur la dignité de l’homme, citado por Jean Carpentier, Histoire de l’Europe, Points, Seuil, Paris, 1990, p 224-225
4 - Em “La fin de l’Histoire dix ans après”, Fukuyama repete seu credo: “A democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades viáveis para nossas sociedades modernas”. Mas ele reconhece uma insuficiência quanto à sua concepção do fim da história: “A História não pode se acabar enquanto as ciências da natureza não chegarem a seu termo. E estamos à véspera de novas descobertas científicas que, por sua própria essência, suprimirão a humanidade enquanto tal.”. Le Monde, 17 de junho de 1999.
5 - Cf. Francis Fukuyama, La Fin de l’homme: Les Conséquences de la révolution biotechnique, La Table Ronde, Paris, 2002.
6 - Ver os trabalhos do grande antropólogo norte-americano Stephen Jay Gould: Darwin et les grandes énigmes de la vie, [1977], Pygmalion, Paris, 1979, e Le pouce du Panda [1980], Grasset, Paris, 1982.
7 - Ver, de Peter Sloterdijk, Règles pour le parc humain, Mille et une nuits, Paris, 2000.
8 - Conferência retomada numa coletânea intitulada La Domestication de l’Etre, Mille et une nuits, Paris, 2000. Todas as citações que seguem foram extraídas desta obra.
9 - De fato, essa diversificação já está em curso: o semanário norte-americano Science, de 27 de julho de 2001, relatava que uma equipe norte-americana conseguiu implantar células-ovo cerebrais humanas no interior de cérebros de fetos de macaco Macaca radiata por volta da décima segunda semana de gestação, tal implantação podendo levar à criação de macacos cujos cérebros teriam sido, deste modo, mecanicamente “humanizados”.
10 - Jacques Lacan, “Conférence à l’université de Milan”, 12 de maio de 1972, texto inédito.
11 - Jacques Lacan, L’Envers de la Psychanalyse, Seuil, Paris, 1991, sessão de 17 de dezembro de 1969, p. 35.