A vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise, foram objetos de uma enormidade de estudos. Mais uma biografia, hoje, do célebre autor de “Interpretação dos sonhos” e “Totem e tabu”? Para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, a escrita de seu “Sigmund Freud — dans son temps et dans le nôtre”(Sigmund Freud — em seu tempo e no nosso) foi uma “imposição”.
A reportagem é de Fernando Eichenberg, publicada pelo jornal O Globo, 27-09-2014.
Com acesso aos novos arquivos abertos pela Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos, a autora francesa mergulhou na vida e obra do biografado com a intenção de mostrar que Freud é
um produto de seu tempo e, ao mesmo tempo, revelar verdades sobre as
“lendas negras e douradas” edificadas sobre o personagem. O livro foi
lançado este mês na França, pela editora Seuil, e tem publicação prevista no Brasil para 2015, pela Zahar.
Crítica severa de uma psicanálise a-histórica, Roudinesco condena a percepção da obra deFreud isolada
do contexto de sua época, estudada como um corpus clínico à parte do
mundo em que foi elaborada. Somado a isso os repetidos ataques
protagonizados nos últimos 30 anos pelos “antifreudianos radicais”, hoje não se sabe mais quem é Freud, sustenta a autora em entrevista ao Globo em sua casa, em Paris.
Desde a primeira biografia de Freud, de autoria de Fritz Wittels, em 1924, passando pelos três volumes de “Vida e obra de Sigmund Freud”, de Ernest Jones, publicados entre 1953 e 1957 (lançados no Brasil pela Zahar), uma miríade de teses e ensaios foi produzida nos mais variados idiomas, entre os quais o título de referência “Freud: uma vida para o nosso tempo”, de Peter Gay, de 1988 (Companhia das Letras). O minucioso trabalho de 592 páginas de Roudinesco é reivindicado como a primeira biografia francesa do personagem, com uma nova abordagem e distanciamento de um Freud definido como um“conservador rebelde” e criador de uma “revolução simbólica” em um movimento que se perpetua.
Elisabeth Roudinesco será a principal convidada da “IX Jornada Bianual do Contemporâneo”, promovida pelo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade, nos próximos dias 3 e 4, em Porto Alegre. No dia 6, estará no Rio para falar sobre “A psicanálise na situação contemporânea”, às 9h, no Instituto de Psicologia da Uerj. OBrasil, para ela, é hoje o “país mais freudiano do mundo”.
Eis a entrevista.
Por que Freud e este livro hoje?
A necessidade se fazia sentir ao longo de um certo tempo de renovar a abordagem deFreud.
Sou o primeiro autor francês a fazê-lo, e o último de um longa série. E
o primeiro a ir aos arquivos e utilizá-los de uma outra forma. É
verdade também que o fim de um ciclo de ondas sucessivas de ódio a Freud, de lendas negativas, de livros negros, já faz 25 anos. Se foi muito longe no antifreudianismo, e se chegou a um ponto em que a opinião pública já estava farta de que se tratasse Freud de
nazista, de incestuoso, de canalha. Era preciso restabelecer um pouco
de verdade. Eu me dediquei a isto. Os psicanalistas nadam no
anacronismo, na interpretação abusiva, porque para eles o contexto
histórico não existe. Quis mostrar bem que Freud nasceu
num mundo no qual não havia eletricidade, em que a promiscuidade de
membros de uma mesma não era a mesma de hoje. Quando ele conta sua vida
cotidiana, seja na “Interpretação dos sonhos” ou em outros escritos, é
um dia a dia diferente de hoje. Freud foi
criado numa família grande, com muitos empregados, sem água corrente.
Ele vive nesta promiscuidade em que pode realmente elaborar a teoria dos
substitutos. Quando ele vê suas cinco irmãs, vê sua mãe ou seu pai. Há
modelos familiares que estão acabando no momento em que teoriza isto.
Tive sempre a preocupação de o imergi-lo em seu contexto histórico, e de
mostrar que ele e sua obra são um produto de seu tempo.
Na
França, o país mais freudiano do mundo, segundo a senhora, há uma
rejeição analítica da complexidade da história de Freud. Por quê?
Mais
se é freudiano, menos se é histórico. Mas isto está acabando. A França
foi o país da renovação da doutrina e não o da herança histórica.
Gerações de psicanalistas se interessaram nos textos freudianos de forma
estrutural: o corpus sem sua história. Não é um acaso se não houve
biografia de Freud na
França. Jones, qual seja a crítica que lhe possa ser feita, tem a
preocupação da história. O mundo anglófono foi muito mais atento do que o
francófono à questão de imergir Freud na
história, mesmo se ainda restam como interpretações psicanalíticas. A
psicanálise sendo cada vez menos forte na renovação teórica, a
preocupação foi de historizar. E nos Estados Unidos, as querelas entre
historiadores são muito mais importantes do que as disputas entre
psicanalistas. Não é o caso na França. E também não é o caso no Brasil e
na Argentina.
O
argentino Emilio Rodrigué (1923-2008), primeiro biógrafo
latino-americano de Freud, teve, na sua opinião, a “audácia de inventar
um personagem mais próximo de um personagem de Gabriel García Márquez do
que de um sábio originado da Velha Europa”. A senhora diz que cada país
criou seu próprio Freud. Quem é o Freud brasileiro?
O Brasil tem
esta vantagem de ser aberto a tudo. Os brasileiros são muito abertos à
história da psicanálise e a todas as doutrinas, há um sincretismo. É o
que foi chamado de antropofagia, este movimento que digere o que vem da Europa fazendo algo novo. Daí esta vivacidade.
Embora a França seja mais forte no plano doutrinal, hoje provavelmente o país mais freudiano do mundo seja o Brasil. Porque no Brasil o ensino da psicanálise se mantém nas universidades de Psicologia, mais do que na Argentina. Mesmo que a implantação da psicanálise tenha sido feita pelos argentinos, que tiveram o golpe de gênio de implantar okleinismo, o freudismo e o lacanismo.
Mas a tradição universitária brasileira é muito forte. E o fato de que
seja dividida em cidades é muito importante. Não é a mesma coisa no Rio, em Porto Alegre... E eles digeriram tudo que veio da Europa de
forma antropofágica. Temos uma abertura maior no Brasil a tudo. O
defeito, evidentemente, é que não há escola histórica, mas há uma
tradição.
Houve Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss,
há uma abertura. Os brasileiros são ecléticos, e abertos a novas
abordagens, enquanto na França os psicanalistas têm 25 anos de atraso em
relação a sua história, infelizmente. E o dogmatismo lacaniano e
psicanálitico em geral teve um papel nisso. Mas vamos chegar lá. Já o Freud brasileiro é eclético, é uma mistura de kleinismo, de lacanismo, de invenção brasileira. E neste ponto, Emilio Rodriguécolocou
seu tempero. Ele faz variações em seu livro, é um romance
latino-americano, se autoriza interpretações extravagantes, ,mas gosto
disso, porque ao mesmo tempo há a seriedade do aparelho crítico.
A senhora muitas vezes respondeu a consecutivas iniciativas dos chamados“antifreudianos radicais”, como a tentativa de interdição de uma exposição sobre Freudem 1996, processos na justiça por difamação ou obras como “Mentiras freudianas”, deJacques Bénesteau; “O livro negro da psicanálise — Viver, pensar e melhorar sem Freud”, organizado por Catheryne Meyer, ou “O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana”, de Michel Onfray, com quem teve uma acirrada polêmica e que não tardou em atacar este seu último livro sobre Freud. O “antifreudianismo” ainda é forte?
Isto
nunca acaba. Mas depois ter sido um movimento majoritário, se torna
agora minoritário. Assim como os psicanalistas tiveram sua hora de
glória majoritária, hoje são minoritários. Mas eles não vão
desaparecer. Michel Onfray respondeu
que não precisava ler este livro para saber o que havia nele. Quando se
diz isso, é o fim de qualquer debate. Há anos ele recusa qualquer
debate comigo, e nós nos conhecemos muito bem. Ele delirou, disse que eu
o tratei de pedófilo. De qualquer forma, não é apenas em relação a Freud que ele diz qualquer coisa. Fez o mesmo sobre a Bíblia, Albert Camus, Sartre, Sade, e vai continuar. Mas num momento a verdade triunfa. Da mesma forma que caiu a Nova Filosofia,
todas estas besteiras que há 30 anos nos envenenam. Foi uma corrente
não universitária muito sedutora em seu início, jovem, com
personalidades brilhantes. Mas que tinham como maior defeito contar
qualquer coisa, como dizer que o goulag já existia em Marx e Engels.
Isto é uma contraverdade histórica. E de um certo modo a França está
pagando hoje por isto. Hoje, estamos na vingança dos historiadores e dos
filósofos universitários contra os filósofos midiáticos não
universitários. Estamos no fim da Nova Filosofia, do antifreudianismo
radical. Vamos passar à herança real.
A senhora define Freud como um “conservador rebelde”. Por quê?
Sem
dúvida é um conservador rebelde. Ele entrou em rebelião contra os modos
de pensar majoritários de sua época. Ele é um liberal conservador, que
induziu uma revolução do íntimo.
É
contemporâneo do socialismo, do comunismo, do feminismo, de todos os
movimentos de emancipação. Mas sua característica é que retorne sempre
ao Antigo, algo muito típico também de Viena e da cultura alemã. Para
fazer uma revolução do íntimo, vai buscar modelos míticos na tragédia
grega e não na modernidade literária, a qual, aliás, ele não entende
muito bem. Ele tem este aspecto politicamente conservador, vota liberal,
trabalha com os sociais-democratas em Viena, não confunde jamais o
comunismo e o nazismo, mas não acredita que uma revolução social do tipo
marxista vai dar certo. Ele é contemporâneo da Revolução Russa.
Não
é a favor das convulsões republicanas francesas. Mas seu movimento
psicanalítico é aberto, com discípulos de todas as tendências,
progressistas, conservadores. Ele era pela emancipação das mulheres, e
contra a supressão das instituições. Há uma imagem muito justa de Freud: era favorável à morte do pai, ao regicídio, mas a favor de que se recolocasse um rei no trono. Isto é explicado em “Totem e Tabu”. Freud é
regicida na condição de que reinstaure a monarquia depois de ter sido
abolida. Não é republicano no sentido francês. Ele gosta muito de Paris,
mas não é a favor de revoluções do tipo francês. O modelo para ele é
Londres, o modelo econômico liberal inglês, e a cultura do Sul, a Itália
e a Antiguidade romana.; e mais longe, a grega, e mais longe ainda, o Egito. Freud é um homem da bacia mediterrânica em seus sonhos, algo muito austríaco, entre o Norte e o Sul,
e muito ligado ao modelo de monarquia constitucional. E ele é judeu, o
que tem um papel considerável. Não é a favor do sionismo, à criação de
um Estado judeu, prefere a diáspora, mas herdou algo desta rebelião.
Para época de Freud, o inimigo é a religião. Ele é pela ciência. O que faz com que por vezes, em seu debate com o pastor Oskar Pfister (1873-1956),
possa se enganar, confunde religião e fé. Mas para esta geração de
homens sábios, originados do materialismo, o inimigo é o religioso. Ele
tem isto em comum com Marx. Por isso é um conservador bastante singular.
Ele é pela liberdade sexual, contra a pena de morte.
Um dos erros de Freud, segundo a senhora, é o de acreditar na construção de uma ciência.
Não
é uma ciência, no sentido das ciências da Natureza. Ele sabia disto,
por isso que abandonou o modelo fisiológico-neurológico. Mas não soube
inscrever a psicanálise como uma disciplina integral na universidade. O
que fez com que sempre tenha sido ensinada nos departamentos de Psicologia, Antropologia, Sociologia, Literatura e Filosofia.
Teria podido fazê-lo? Não sei, talvez não. Talvez o destino da
psicanálise seja o de não ser uma disciplina à parte. Mas hoje estamos
novamente em um retrocesso, na ideia de que o corpo e o movimento são
mais importantes do que a palavra. Mas isto não vai durar. Estamos numa
encruzilhada, se foi muito longe na explicação estritamente química e
orgânica do inconsciente. A psiquiatria biológica não existe mais como
psiquiatria, ela é química. Há uma contestação. Quando se questiona a os
resultados de Freud com
seus pacientes, sua resposta é a de que a técnica psicanalítica trata
as neuroses, não as psicoses. Durante trinta anos houve um reinado do
“tudo químico”. Isto está acabando. Não por um retorno à psicanálise,
mas como explicação demasiado totalitária, e pela rejeição dos
pacientes.Freud elaborou
uma clínica aplicada em seu início às neuroses. Mas eram neuroses
graves. Ele mudou, a partir de 1914 percebeu a incurabilidade. Depois, o
saber psicanalítico dominou toda a psiquiatria do século 20. Foi uma
boa coisa. Antes do aparecimento dos psicotrópicos, era melhor ir em
clínicas nas quais havia uma abordagem psicanalítica do que ser um
simples sujeito de sanatório. A partir de 1945, os antigos asilos
esvaziaram, foi um enorme progresso. E a ideia de combinar a cura pela
palavra com medicamentos, para as psicoses, é uma bela definição.
Sabemos que para um melhor tratamento da loucura são necessárias três
abordagens, de meio ambiente, psíquica e medical. O problema é que mas
nossas sociedades de hoje, com economias orçamentárias draconianas, não
temos os meios de curar os loucos com os três meios. Então se passou ao
“tudo químico”, que funciona mais rápido, mas que é catastrófico. A
tripla abordagem se tornou impossível. Nas sociedades precarizadas como
as nossas, os doentes mentais e os prisioneiros são muito mal tratados.
No livro, a senhora desconstrói “lendas” como as da autoanálise ou do complexo de Édipo freudianos.
Eu desfaço o complexo de Édipo. Freud não escreveu uma só linha, exceto sobre o declínio do complexo de Édipo. Falou do complexo de Édipo por
tudo, mas não teorizou. A psicologia edipiana não se sustenta. O
complexo de Édipo como psicologia de família não funciona. O genial é
fazer crer a cada neurótico que ele é Hamlet ou Édipo em
vez de um doente mental. É muito melhor ser um herói de teatro do que
um simples doente mental em um sanatório. E ele não foi capaz de
escrever sobre a metapsicologia. A autoanálise não existe, é uma lenda
forte e inventada. O próprio Freud disse que era a “sua autoanálise”, mas não é uma autoanálise, e sim uma passagem pelo erro para se alcançar a verdade. A correspondência com Wilhelm Fliess (1858-1928) não
é uma autoanálise, mas uma errância de sábios. Ele errou no irracional
para conseguir elaborar uma doutrina que sai da fisiologia. A “pulsão de
morte”, um dos momentos fortes de Freud,
não começa em 1919, mas em 1914, quando ele se pergunta, para
introduzir o narcisismo, por que nos autodestruímos. Penso também que Freud tinha
a convicção de que o que acontecia na realidade social já estava no
psiquismo. Isto é apaixonante. E tinha a convicção de que o que ele
mesmo dizia era revelador do inconsciente, e apenas traduzia, e que a
realidade se passava como no inconsciente. Isto não é verdade, mas
quanta audácia!
A senhora aponta como uma das grandes forças de Freud a criação de mitos.
Outra audácia sua foi a de fundar uma ciência fundada nos mitos, na racionalidade do estudo dos mitos. Cada livro de Freud provocou debates no mundo inteiro. Quando ele publica“Totem e tabu”,
que vai na contracorrente da antropologia moderna, o mundo acadêmico
discute este ensaio completamente fora de moda. Isto significa que ele
contribui com algo. Quando escreve seus três ensaios sobre a teoria
sexual, em vez de fazer um tratado se sexologia, o caso de todos seus
contemporâneos, ele se ocupa da teoria sexual das crianças. Para mostrar
que o que se considerava como perversões não o era, e que somos todos
perversos.
O que é a “revolução simbólica” de Freud?
A lenda é a de que Freud inventou
tudo, de que não deve nada a sua época. Não é verdade. Ele inventa algo
da ordem que defini como revolução simbólica, remodelando as
representações de sua época. Nisso ele é inovador. Quando se lê os
psicólogos contemporâneos de Freud, que são válidos, sua superioridade intelectual, literária e imaginativa é evidente. A fraqueza de Freud foi
a de não poder introduzir esta disciplina na universidade. E sua força
foi a de ter feito um movimento. Ele não cria uma seita, mas um
movimento político, revolucionário, platonista. Ele e seus discípulos
têm consciência desde o início de serem portadores de uma revolução
simbólica. A prova é a de que possuem a preocupação da memória e da
história, contrariamente aos psicanalistas. Tinham o pressentimento de
que seu mundo iria desaparecer, o que vai ocorrer primeiro com aPrimeira Guerra Mundial,
e uma segunda vez, com o nazismo. Aprecio nos primeiros freudianos -
que se disputam todo o tempo e que admiram mas não idolatram Freud –
este sentimento de que seu mundo vai perecer. Daí vem a imigração, e o
fato de que se deve levar a todos os países do mundo a lembrança de Viena. O exílio de Freud,
sua casa, suas coleções, é a ideia de que já que tudo vai morrer com o
nazismo, é preciso transportar a memória do movimento. Arquivos,
fotografias, tudo é transportado para Washington ouLondres. É um gesto incrível. Freud não crer acreditar que o nazismo vai engolir Viena. Ele sabe, mas não quer aceitar. Ele espera por Hitler, e face a essa pulsão de morte, personalizada em Hitler, recua até o momento em que é preciso partir.
Entre as ditas “lendas fabricadas”, como senhora diz, estão suposições de Freud teria
sofrido abuso sexual na sua infãncia, vivido uma relação com sua
cunhada, abusado ele mesmo de sua sobrinha-neta ou em seu exílio em
Londres abandonado suas irmãs, depois deportadas e exterminadas pelos
nazistas.
Eu não encontrei nada disso nos arquivos. O que não se sabe é como foi a vida sexual deFreud antes de seu casamento. Ele teve provavelmente a adolescência de um jovem deViena.
Não gostava de prostíbulos, do adultério. As mulheres se casavam
virgens. Não se sabe o que houve antes, mas se sabe o que veio depois.
Ele tinha a necessidade de ter mulheres em seu entorno. Pratica a
abstinência, não quer outro filho. Sua cunhada ocupa um lugar muito
particular. É uma segunda esposa não sexuada, ele mesmo o diz. Mas é
preciso ser completamente louco hoje para colar retrospectivamente o que
é a sexualidade atual sobre o que era naquela época. Não há verdades
ocultas, mas quis invalidar os falsos rumores. Houve pessoas que negaram
a existência do câncer de Freud, o que é fascinante. Ele também não recomendou a Gestapo. Desminto tudo isso. Se construiu uma máquina de fantasias, sejam negras ou douradas, sobre o personagem.
A senhora coloca Freud no mesmo estatuto de Einstein, Darwin, Marx, Sartre, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt ou Michel Foucault: pensadores rebeldes vítimas de rumores e injustiças.
Marx se
tornou um explorador de mulheres, repugnante, responsável pelo goulag.
Há teorias revisionistas sobre Einstein que dizem não ter sido ele o
criador da teoria da relatividade, mas sua mulher. E teria sido um pai
abominável porque tinha um filho psicótico. Tudo isto não se sustenta.
Sobre Darwin também se inventou muita coisa. E sobre Simone de Beauvoirou Sartre, que foi coberto de injúrias. Foucault foi acusado de ser responsável pela transmissão da Aids, e Jacques Derrida, de nazista. Para mim tudo isto deve ser banido. São visões apocalípticas. Sobre Freud,
se discutiu quem teria lhe dado a última injeção. Se pretendeu que se
teria ocultado o seu uso de cocaína, o que não é verdade. Se acusouFreud de introduzir a cocaína no mundo moderno. E o Freud fascista, amigo de Mussolini? Isso nunca. Sim, ele fez uma dedicatória a Mussolini, mas é preciso contextualizar. Há frases que Freud não
pronunciou e que lhe são atribuídas. Há textos interpretados de forma
equivocada, sem o contexto. Há de tudo. Estranhamente, os antifreudianos
radicais não criticaram o que é criticável em Freud.
Por exemplo?
Não notaram muito as errâncias de Freud. Passam seu tempo a valorizar teses aberrantes para melhor criticar Freud. Os antifreudianos radicais pensam que Williem Fliess tinha razão contra Freud. Não sou por Wilhem Reich (1897-1957) contra Freud, por Otto Gross (1877-1920) contra Freud. Não é isto que se deve fazer, mas mostrar como o próprio Freud adota teorias extravagantes. É normal que Fliess seja
hoje esquecido, ele tinha um sistema de pensamento irracional, mas
fascinante. Pode-se ter muita simpatia por Reich, como eu tenho,, mas a
teoria do orgônio é delirante. Os antifreudianos radicais passam todo o
tempo a procurar antiheróis, não usam as verdadeiras críticas que
poderiam ser feitas a Freud.
A senhora vê hoje uma crise do pensamento filosófico e da psicanálise hoje na França?
Estamos numa crise de herança na França, passageira, mas numa crise europeia, mundial do pensamento. Há hoje na França uma
renovação evidente da filosofia, há uma geração de 40 anos que vai ser
conhecida. Há uma renovação da antropologia, da sociologia. Menos para a
psicanálise, porque eles estão acantonados na clínica. Daí a
importância de um retorno de um Freud histórico. Penso que saímos de um período difícil do ódio a Freud,
e hoje é preciso lê-lo de outra forma, como uma necessidade para os
psicanalistas. Há trinta anos, os não psicanalistas leem melhor Freud do que os psicanalistas. O que não quer dizer que sejam maus clínicos. Eles não situam Freud na cultura do tempo de Freud, e assim não sabem situá-lo em nosso tempo. “Em seu tempo e no nosso” quer dizer: Freud que se constrói em seu tempo e que nos ilumina no nosso.