sábado, 4 de outubro de 2014

Por Que as Nações Fracassam

Resenha de “Por Que as Nações Fracassam: as Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza”, de Daron Acemoglu e James Robinson, por Gustavo Resende Mendonça


A busca pela origem do desenvolvimento econômico é um dos inquéritos fundamentais das Ciências Sociais, particularmente da Economia. Em 1776, Adam Smith se debruçou sobre o tema, em “A Riqueza das Nações”, e concluiu que a prosperidade dos Estados deriva de sua capacidade produtiva, não do acumulo de metais preciosos. A noção de que boas políticas – como baixas tarifas aduaneiras – podem acelerar o desenvolvimento permeia o tratado clássico de Smith. Já no século XX, Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, enfatizou os aspectos culturais que favorecem a abundância material. Recentemente, Why the West Rules, de Ian Morris, argumentou que a geografia é o principal determinante das diferenças econômicas entre as nações. As três explicações – cultural, geográfica e política – possuem diversos defensores e permanecem relevantes atualmente. “Por Que as Nações Fracassam”, obra de Daron Acemoglu e James Robinson, no entanto, refuta as explicações anteriores e argumenta que o desenvolvimento econômico é derivado da qualidade das instituições políticas e econômicas das nações.
O argumento central de “Por que as Nações Fracassam” reside na diferença entre instituições econômicas inclusivas e extrativistas. Segundo os autores, instituições econômicas inclusivas são aquelas que permitem que a riqueza seja disseminada pela sociedade, enquanto instituições econômicas extrativistas são aquelas que concentram a renda em uma elite privilegiada. Embora breves surtos de crescimento econômico sejam possíveis na vigência de instituições extrativistas, o desenvolvimento só será sustentável na presença de instituições econômicas inclusivas. Acemoglu e Robinson ilustram as diferenças entre os dois tipos de instituição ao comparar o Norte e o Sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão: o Sul era relativamente mais pobre porque era organizado economicamente em latifúndios e empregava mão-de-obra escrava – instituições altamente extrativistas -, a economia do Norte, por outro lado, era caracterizada pela indústria e pelo trabalho assalariado, instituições mais inclusivas.
O desenvolvimento de instituições econômicas inclusivas, no entanto, depende do surgimento de instituições políticas igualmente inclusivas. Os autores definem instituições políticas inclusivas como aquelas que promovem a pluralidade e a centralização política. Em síntese, as instituições políticas serão inclusivas se atenderem a um conjunto amplo de diferentes interesses e representarem uma grande diversidade de atores políticos. Em contrates, instituições políticas extrativistas são erigidas para proteger os interesses de um elite privilegiada e para restringir a participação política a um grupo seleto de atores. A Inglaterra do Século XIX é um exemplo de organização institucional política relativamente inclusiva, uma vez que o Estado conferia direitos a uma ampla gama de indivíduos e várias coalizões estavam envolvidas no jogo político. A China de Mao Tsé-Tung, por outro lado, era caracterizada por instituições políticas intensamente extrativistas, uma vez que o poder era concentrado em um pequeno grupo (ou mesmo em apenas um indivíduo) e   a ação do Estado não era limitada por direitos individuais de qualquer espécie.
Na construção teórica de Acemoglu e Robinson, a política determina a economia. Os autores rejeitam a “teoria da modernização”, que advoga que o crescimento econômico eventualmente resulta em instituições políticas democráticas. Apontam que, na primeira metade do século XX, países ricos e com sistemas educacionais eficientes – como Japão, Alemanha e Argentina – sucumbiram a ditaduras repressivas, fato que demonstra que as instituições econômicas não determinam as instituições políticas. Organizações inclusivas, por outro lado, promovem instituições econômicas inclusivas porque estimulam a inovação, asseguram os direitos de propriedade e protegem os trabalhadores da exploração e da miséria. Instituições políticas extrativistas, por sua vez, temem a inovação econômica e a “destruição criativa” provocada pelas instituições econômicas inclusivas, uma vez que a riqueza disseminada pela sociedade pode solapar as bases do poder político concentrado na mão de poucos. Os autores argumentam que o crescimento econômico no contexto de instituições políticas extrativistas é baseado na alocação forçada de recursos em atividades rentáveis, não na inovação e na “destruição criativa” (o colapso de alguns setores defasados para que outros mais eficientes possam surgir). Nesse sentido, o crescimento sustentável e o desenvolvimento econômico são possíveis apenas na presença de instituições políticas inclusivas.
“Por Que as Nações Fracassam” argumenta que as bases para o desenvolvimento econômico são a tecnologia, a educação e a estabilidade política. A inovação tecnológica só é viável na presença de instituições políticas inclusivas, uma vez que as autocracias temem a inovação e o impacto desestabilizador da “destruição criativa”. De forma análoga, um sistema educacional de qualidade depende da liberdade de expressão e da livre circulação de informações, ausentes em instituições políticas extrativistas. Por fim, instituições políticas extrativista são, por definição, instáveis, uma vez que o poder concentrado gera riquezas extraordinárias e grandes incentivos para violentas disputas oligárquicas. A natureza instável da política no contexto das instituições políticas extrativista é expressa pela “lei de ferro da oligarquia”, que articula que disputas de poder entre oligarquias quase sempre resultam na manutenção de regimes extrativistas, mesmo que uma nova elite tome o lugar dos antigos oligarcas.
Após estabelecer que a organização política é central para o desenvolvimento econômico, Acemoglu e Robinson procuram demonstrar como as instituições inclusivas surgem. Segundo os autores, o processo histórico, eventos críticos e pequenas diferenças institucionais são fundamentais para alimentar o ciclo virtuoso inclusivo. Por vezes, acontecimentos fortuitos são fundamentais, como no papel desempenhado pela peste negra no processo de extinção do feudalismo. O feudalismo – uma instituição política substancialmente extrativista – era baseado na exploração de um amplo contingente de trabalhadores pelos senhores feudais, cujo poder derivava da posse de escassos suprimentos de terra. Com a peste negra, a mão-de-obra se tornou o fator de produção escasso e a terra abundante, fato que solapou o poder dos barões feudais. Regiões que não foram tão atingidas pela peste negra, como a Europa Oriental e o Japão, seguiram dominadas pelo feudalismo, enquanto a Europa Ocidental, bastante acometida pela doença, se tornou mais livre. O processo histórico também é fundamental, uma vez que pequenas diferenças institucionais geram uma grande diferenciação organizacional ao longo do tempo. Na Inglaterra, por exemplo, a presença de um parlamento e de parcos diretos de propriedade da terra geraram as condições críticas para a disseminação de poder político e para a criação da revolução industrial.
A conclusão de “Por Que as Nações Fracassam” é que o desenvolvimento da economia de uma nação é diretamente proporcional à qualidade de sua democracia. As nações fracassam porque são autárquicas, porque não superaram um modelo político que monopoliza o poder e porque quando a política é um jogo de poucos participantes, a riqueza se concentra. Acemoglu e Robinson avaliam que suas conclusões têm três implicações fundamentais para o mundo contemporâneo. Em primeiro lugar, a ajuda humanitária internacional dificilmente tem o poder de mudar a realidade econômica dos países em desenvolvimento, uma vez que não altera o desenho institucional dessas nações. Em segundo lugar, a percepção de que o autoritarismo pode ser eficiente na promoção do desenvolvimento é ilusória. Embora regimes autoritários possam gerar surtos de crescimento, são incapazes de promover o desenvolvimento econômico sustentável. Por fim, os autores avaliam, de forma controversa, que o crescimento econômico da China eventualmente será solapado pela natureza extrativista das instituições políticas chinesas. Segundo Acemoglu e Robinson, a China tem logrado uma expansão econômica acelerada devido a um modelo que aloca compulsoriamente a mão-de-obra em setores rentáveis, notadamente indústrias voltadas para a exportação. Eventualmente, o déficit educacional e de inovação irá reduzir o crescimento econômico chinês e frustar a jornada do país rumo ao desenvolvimento.
“Por Que as Nações Fracassam” rapidamente alcançou grande relevância internacional. A obra foi eleita como uma das mais importantes de 2012 pela revista The Economist e aclamada por autores como Niall Ferguson, Thomas Friedman e Martin Wolf. A construção teórica de Acemoglu e Robinson, elegante e robusta, tem a grande vantagem de escapar do determinismo cultural e do paternalismo das prescrições de políticas públicas. A obra também é permeada por um grande eruditismo, uma vez que o espectro de exemplos citados pelos autores abrange desde reinos pré-coloniais da África sub-saariana até o Brasil contemporâneo. “Por Que as Nações Fracassam” também ignora fórmulas eurocêntricas e reconhece que o desenvolvimento é um fenômeno singular e marcado por particularidades específicas às diferentes realidades nacionais.
A obra de Acemoglu e Robinson, no entanto, é passível de diversas críticas. Arvind Subramanian, em sua resenha do livro, aponta corretamente que “Por Que As Nações Fracassam” não explica corretamente as diferenças de renda entre China e Índia. A Índia é um país muito mais democrático e inclusivo que a China, mas, no entanto, o PIB e a Rendaper capita indiana são apenas uma fração dos respectivos indicadores chineses. Ademais, embora seja uma obra de grande ambição e alcance, “Por Que as Nações Fracassam” conta com poucos indicadores econômicos e estatísticas comparativas, fato que enfraquece o argumento da obra. Por fim, as explicações de Acemoglu e Robinson para as origens das instituições políticas inclusivas precisam ser suplementadas. De fato, devido ao seu intuito de romper com os paradigmas das explicações geográficas e culturais, os autores podem ter perdido valiosos aportes complementares que ambas as tradições poderiam fornecer.
ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por Que As Nações Fracassam: As Origens do Poder, Prosperidade e da pobreza. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. ISBN: 976-0-307-71921-8
Gustavo Resende Mendonça é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (gustavo.mendonca@itamaraty.gov.br).

sábado, 27 de setembro de 2014

Thomas Piketty e a aposta em um capitalismo humanizado


 
 
"Marx sabia da força dos “grilhões de ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se chegássemos a isso? Impossível dizer", escreve Russell Jacoby, professor de História da Universidade da Califórnia em Los Angeles, autor de The last intellectuals[Os últimos intelectuais] (1987), The end of utopia [O fim da utopia] (1999) e, mais recentemente, Les ressorts de la violence. Peur de l’autre ou peur du semblable?[As molas da violência. Medo do outro ou medo do semelhante?], em artigo publicado pelo jornalLe Monde Diplomatique, 04-08-2014.
 
Eis o artigo.
 
A obra Le capital au XXIe siècle [O capital no século XXI], de Thomas Piketty, é um fenômeno tanto sociológico como intelectual. Ela cristaliza o espírito de nossa época, assim como, em seu tempo, The closing of the American mind [O fechamento da mente norte-americana], de Allan Bloom. [1] Este livro, que denunciava os estudos sobre as mulheres, os gêneros e as minorias nas universidades norte-americanas, opunha a “mediocridade” do relativismo cultural à “busca pela excelência”, associada, na mente de Bloom, aos clássicos gregos e romanos. Ainda que tenha tido poucos leitores (era particularmente pomposo), ele alimentou o sentimento de uma destruição do sistema educacional norte-americano, até da própria América, na falta dos progressistas e da esquerda. Esse sentimento não perdeu nada de sua força, e O capital no século XXI inscreve-se no mesmo campo de forças, exceto pelos fatos de que Piketty vem da esquerda e que o enfrentamento deslocou-se da educação para o campo econômico. Dentro do sistema educacional, porém, o debate centra-se agora, em grande parte, sobre questões econômicas e barreiras capazes de explicar adesigualdade.
A obra traduz um mal-estar palpável: a sociedade norte-americana, assim como as outras pelo mundo inteiro, é cada vez mais iníqua. As desigualdades agravam-se e pressagiam um futuro sombrio. O capital no século XXI deveria chamar A desigualdade no século XXI.
É inútil criticar Piketty por não cumprir objetivos que não eram os seus, mas também não podemos nos contentar em lhe render louros. Muitos comentaristas têm se concentrado em sua relação com Karl Marx, ao que ele lhe deve ao pensador alemão, a suas infidelidades; quando seria preciso, antes de mais nada, questionar de que modo o livro lança luz sobre nossa miséria atual. Ao mesmo tempo, no que diz respeito à preocupação com a igualdade, não é inútil voltar a Marx. Aproximando-se os dois autores, há de fato uma divergência: ambos contestam as disparidades econômicas, mas em direções opostas. Piketty inscreveu suas observações no campo dos salários, da renda e da riqueza: ele deseja erradicar as desigualdades extremas oferecendo – para pastichar o lema da funesta Primavera de Praga – um “capitalismo de rosto humano”. Já Marx se coloca no campo da mercadoria, do trabalho e da alienação: ele pretende abolir essas relações e transformar a sociedade.
Piketty tece uma acusação implacável contra a desigualdade: “Já é tempo”, escreve em sua introdução, “de recolocar a questão da desigualdade no centro da análise econômica” (p.38). Ele adota como epígrafe a segunda frase da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “As distinções sociais só podem fundar-se no bem comum”. (Poderíamos nos perguntar por que um livro tão prolixo deixa de lado a primeira frase: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.) Apoiando-se numa profusão de números e tabelas, ele demonstra que as desigualdades econômicas aumentam e que os mais afortunados concentram uma parte cada vez maior da riqueza. Houve quem tentasse contestar suas estatísticas, mas ele reduziu a pó as acusações. [2]
O autor bate forte e justo quando trata da exacerbação das desigualdades que desfiguram a sociedade, em particular a norte-americana. Ele observa, por exemplo, que a educação deveria ser igualmente acessível a todos e promover a mobilidade social. No entanto, “o rendimento médio dos pais de alunos de Harvard é de cerca de US$ 450 mil” ao ano, o que os coloca entre os 2% das famílias norte-americanas mais ricas. E conclui seu argumento com este eufemismo característico: “O contraste entre o discurso meritocrático oficial e a realidade parece aqui particularmente extremo” (p.778).
Para alguns, à esquerda, não há nada de novo. Para outros, cansados de ouvir o tempo todo que é impossível aumentar o salário mínimo, que não se devem taxar os “criadores de empregos” e que a sociedade norte-americana continua sendo a mais aberta do mundo,Piketty representa um aliado providencial. Segundo um relatório (não citado no livro), os 25 gestores de fundos de investimentos mais bem pagos ganharam, em 2013, US$ 21 bilhões, mais que o dobro da soma dos rendimentos de cerca de 150 mil professores primários nos Estados Unidos. Se a compensação financeira corresponde ao valor social, então um gestor de hedge funddeve valer bem uns 17 mil professores... Nem todos os pais (e professores) devem concordar com isso.
Contudo, a fixação exclusiva de Piketty na desigualdade apresenta limites teóricos e políticos. Da Revolução Francesa ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, passando pelo cartismo,[3] pela abolição da escravatura e pelo sufrágio universal, a aspiração à igualdade já suscitou inúmeros movimentos políticos. Em uma enciclopédia das contestações, o artigo dedicado a ela certamente ocuparia centenas de páginas, remetendo a todas as outras entradas. Ela teve, e continua tendo, um papel positivo essencial. Em tempos recentes, o movimento Occupy Wall Street e a mobilização pelo casamento gaysão prova disso. Longe de desaparecer, a reivindicação ganhou novo fôlego.
O igualitarismo, porém, também implica uma parte de resignação: ele aceita a sociedade tal como é, visando apenas a reequilibrar a distribuição de bens e privilégios. Os gays querem o direito de se casar assim como os heterossexuais. Muito bem, mas isso não afeta em nada a instituição imperfeita do matrimônio, que a sociedade não pode abandonar nem melhorar. Em 1931, o historiador britânico de esquerda Richard Henry Tawney já destacava esses limites, em um livro que, aliás, também defendia o igualitarismo. [4] O movimento operário, escreveu, acredita na possibilidade de uma sociedade que dá mais valor às pessoas e menos ao dinheiro, mas essa abordagem tem seus limites: “Ao mesmo tempo, ela não aspira a uma ordem social diferente, na qual o dinheiro e o poder econômico não sejam mais o critério do sucesso, mas a uma ordem social do mesmo tipo, na qual o dinheiro e o poder econômico sejam distribuídos de modo um pouco diferente”. Aí está o centro do problema. Dar a todos o direito de poluir é um avanço para a igualdade, mas não para o planeta.
Evitar que se pague muito aos universitários
Marx não dá nenhum espaço à igualdade. Não apenas ele jamais considerou que os salários dos trabalhadores pudessem aumentar de maneira significativa, mas também, ainda que isso acontecesse, em sua opinião, a questão não era essa. O capital impõe os parâmetros, o ritmo e a própria definição do trabalho, do que é rentável e do que não é. Mesmo em um sistema capitalista revestido por formas “confortáveis e liberais”, no qual o trabalhador possa viver melhor e consumir mais porque recebe um salário maior, a situação não é fundamentalmente diferente. O fato de o trabalhador ser mais bem remunerado não muda em nada sua dependência; “melhorar o vestuário, a alimentação, o tratamento e aumentar seu peculiumnão abole a relação de dependência e a exploração do escravo”. Um aumento de salário significa, no máximo, que “o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o empregado forjou para si permitem que eles o apertem um pouco menos”. [5]
Sempre se pode objetar que essas críticas datam do século XIX, mas Marx teve pelo menos o mérito de se concentrar na estrutura do trabalho, enquanto Piketty não disse uma palavra a esse respeito. Não se trata de saber qual deles está certo sobre o funcionamento do capitalismo, mas de apreender o vetor de suas respectivas análises: a distribuição paraPiketty, a produção para Marx. O primeiro quer redistribuir os frutos do capitalismo, a fim de reduzir o fosso entre os rendimentos mais altos e os mais baixos, enquanto o segundo quer transformar o capitalismo e colocar um fim em seu domínio.
Desde a juventude, Marx documentou a miséria dos trabalhadores; ele dedicou centenas de páginas de O capital à jornada de trabalho padrão e às críticas que ela despertou. Também sobre isso Piketty não tem nada a dizer, embora evoque uma greve no início de seu primeiro capítulo. No índice da edição inglesa, na entrada “Trabalho”, lemos: “Ver ‘divisão capital-trabalho’”. Isso é compreensível, já que o autor não está interessado no trabalho propriamente dito, mas nas desigualdades resultantes dessa divisão.
Em Piketty, o trabalho resume-se principalmente ao montante de rendimento. Os surtos de cólera que afloram de vez em quando sob sua pena concernem aos ricos. Ele observa, por exemplo, que a fortuna de Liliane Bettencourt, herdeira da L’Oréal, passou de US$ 4 bilhões para US$ 30 bilhões entre 1990 e 2010: “Liliane Bettencourt nunca trabalhou, mas isso não impediu que sua fortuna aumentasse exatamente com a mesma rapidez da de BillGates”. Esse enfoque sobre os mais ricos corresponde bem à sensibilidade do nosso tempo, enquanto Marx, com suas descrições do trabalho de padeiros, lavadeiras e tintureiros pagos por dia, pertence ao passado. A manufatura e a montagem desapareceram dos países capitalistas avançados e prosperam nos países em desenvolvimento, de Bangladesh à República Dominicana. Entretanto, não é porque um argumento é antigo que ele é obsoleto, e Marx, concentrando-se no trabalho, destacava uma dimensão quase ausente de O capital no século XXI.
Piketty documenta a “explosão” da desigualdade, especialmente nos Estados Unidos, e denuncia os economistas ortodoxos, que justificam as enormes diferenças de remuneração pelas forças racionais do mercado. Ele zomba de seus colegas norte-americanos, que “tendem frequentemente a considerar que a economia dos Estados Unidos funciona muito bem e, particularmente, que ela recompensa o talento e o mérito com justiça e precisão” (p.468). Isso, porém, não é de espantar, acrescenta, uma vez que tais economistas estão entre os 10% mais ricos. Como o mundo das finanças, ao qual lhes ocorre oferecer seus serviços, puxa seus salários para cima, eles manifestam uma “vergonhosa tendência a defender seus interesses particulares, dissimulando-os atrás de uma improvável defesa do interesse geral” (p.834).
Para dar um exemplo que não está no trabalho de Piketty, um artigo recente publicado na revista da Associação Americana de Economia [6] pretende demonstrar, apoiado em números, que as grandes desigualdades decorrem de realidades econômicas. “Os maiores rendimentos têm talentos raros e únicos que lhes permitem negociar a preço alto o valor crescente de seu talento”, conclui um dos autores, Steven N. Kaplan, professor de Empreendedorismo e Finanças da Escola de Negócios da Universidade de Chicago. Visivelmente, Kaplan tenta puxar a sardinha para seu lado: uma nota de rodapé nos informa que ele “participa do conselho de administração de diversos fundos comuns de investimento” e que foi “consultor de empresas de private equity e capital de risco”. Eis o ensino humanista do século XXI! Piketty explica no início de seu livro que perdeu as ilusões sobre os economistas norte-americanos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e que os economistas das universidades francesas têm a “grande vantagem” de não serem nem altamente considerados nem muito bem pagos: o que lhes permite manter os pés no chão.
A contraexplicação que ele oferece, no entanto, é no mínimo banal: as enormes diferenças salariais decorrem de tecnologia, educação e costumes. As remunerações “extravagantes” dos “superexecutivos”, “poderoso mecanismo” de aumento da desigualdade econômica, particularmente nos Estados Unidos, não podem ser explicadas pela “lógica racional da produtividade” (p.530-531). Elas refletem as normas sociais atuais, que por sua vez revelam políticas conservadoras que reduziram a tributação sobre os mais ricos. Os chefes de grandes empresas concedem-se salários enormes porque têm a oportunidade e porque a sociedade julga essa prática aceitável, pelo menos nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Marx oferece uma análise muito diferente. Ele se preocupa menos em provar as desigualdades econômicas abissais do que em descobrir as raízes da acumulação capitalista. Piketty explica que essas desigualdades devem-se à “contradição central docapitalismo”: a disjunção entre a taxa de rendimento do capital e a taxa de crescimento econômico. Como a primeira tem necessariamente precedência sobre a segunda, favorecendo a riqueza existente em detrimento do trabalho existente, isso conduz a “terríveis” desigualdades na distribuição da riqueza. Marx talvez concordasse sobre esse ponto, mas, novamente, ele está interessado no trabalho, que considera o local de origem e desenvolvimento da desigualdade. Segundo ele, a acumulação de capital produz, necessariamente, o desemprego, parcial, ocasional ou permanente. Todavia, essas questões, cuja importância dificilmente se poderia negar no mundo de hoje, estão ausentes do trabalho de Piketty.
Marx parte de uma proposta totalmente diferente: é o trabalho que cria riqueza. A ideia pode parecer fora de moda, no entanto, ela assinala uma tensão não resolvida do capitalismo: este precisa da força de trabalho e, ao mesmo tempo, tenta livrar-se dela. Quanto mais os trabalhadores são necessários à sua expansão, mais ele se livra deles a fim de reduzir os custos, por exemplo, automatizando a produção. Marx estudou longamente o modo como o capitalismo gera uma “população trabalhadora excedente relativa”. [7] Esse processo assume duas formas fundamentais: ou se demitem trabalhadores, ou se deixa de incorporar novos. Em consequência, o capitalismo fabrica trabalhadores “descartáveis” ou um exército de reserva de desempregados. Quanto mais o capital e a riqueza aumentam, mais osubemprego e o desemprego avançam.
Centenas de economistas tentaram corrigir ou refutar essas análises, mas a ideia de um aumento da força de trabalho excedente parece verdadeira: do Egito a El Salvador e da Europa aos Estados Unidos, a maioria dos países passa por níveis elevados ou críticos de subemprego ou desemprego. Em outras palavras, a produtividade capitalista eclipsa oconsumo capitalista. Não importa quão perdulários sejam, os 25 gestores de hedge fundsjamais poderão consumir seus US$ 21 bilhões de remuneração. O capitalismo sobrecarrega-se com aquilo que Marx chama de os “monstros” da “superprodução, superpopulação e superconsumo”. Sozinha, a China certamente é capaz de produzir mercadorias suficientes para abastecer os mercados da Europa, África e América. Mas o que será da força de trabalho no resto do mundo? As exportações chinesas de têxteis e móveis para a África subsaariana resultam numa redução no número de postos de trabalho para os africanos. [8] Do ponto de vista do capitalismo, temos um exército em expansão, composto por trabalhadores subempregados e desempregados permanentes, encarnações das desigualdades contemporâneas.
Como Marx e Piketty vão em direções diferentes, é lógico que proponham soluções diferentes. Piketty, ansioso em reduzir as desigualdades e melhorar a distribuição, propõe um imposto global e progressivo sobre o capital, a fim de “evitar uma divergência ilimitada da desigualdade patrimonial”. Embora, como reconhece, essa ideia seja “utópica”, ele a considera útil e necessária: “Muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma perigosa ilusão, da mesma forma como o imposto sobre a renda foi rejeitado há pouco mais de um século” (p.840). Já Marx não propõe realmente nenhuma solução: o penúltimo capítulo de O capital refere-se às “forças” e “paixões” que nascem para transformar o capitalismo. A classe trabalhadora inauguraria uma nova era, na qual reinariam “a cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção”. [9] Em 2014, essa proposta também é utópica – ou até redibitória, dependendo de como se interpreta a experiência soviética.
Não é preciso escolher entre Piketty e Marx. Para falar como o primeiro, trata-se de esclarecer suas diferenças. O utopismo de Piketty – e esse é um de seus pontos fortes – consiste numa dimensão prática, na medida em que ele fala a linguagem familiar dos impostos e da regulação. Ele espera uma cooperação mundial, e até um governo mundial, para pôr em prática um imposto também mundial que evitaria uma “espiral infinita de desigualdade” (p.835). Ele propõe uma solução concreta: um capitalismo à sueca, que enfrentou seus desafios eliminando as disparidades econômicas extremas. Ele não trata da força de trabalho excedente, do trabalho alienado e da sociedade movida pelo dinheiro e pelo lucro; ao contrário, aceita-os e quer que façamos o mesmo. Em troca, dá-nos algo que já conhecemos: o capitalismo, com todas as suas vantagens e menos inconvenientes.
Os grilhões de ouro e as flores vivas
No fundo, Piketty é um economista muito mais convencional do que ele mesmo pensa. Seu elemento natural são as estatísticas sobre níveis de rendimentos, os projetos de tributação, as comissões encarregadas desses assuntos. Suas recomendações para reduzir as desigualdades resumem-se a políticas fiscais impostas de cima para baixo. Ele mostra-se perfeitamente indiferente aos movimentos sociais, que já foram capazes de questionar a desigualdade e poderiam voltar a fazê-lo. Ele parece, aliás, mais preocupado com o fracasso do Estado em reduzir a desigualdade do que com a desigualdade propriamente dita. E, embora convoque com frequência e com pertinência, romancistas do século XIX, comoHonoré de Balzac e Jane Austen, sua definição do capital permanece demasiado econômica e redutora. Ele não leva em conta o capital social, os recursos culturais e oknow-how acumulado com os quais podem contar os mais afortunados e que facilitam o sucesso de sua prole. Um capital social limitado condena tanto à exclusão como uma conta bancária vazia, mas sobre esse assunto Piketty também não tem nada a dizer.
Marx nos dá ao mesmo tempo mais e menos do que isso. Seu questionamento, embora mais profundo e amplo, não oferece nenhuma solução prática. Poderíamos qualificá-lo de utópico antiutópico. No posfácio à segunda edição alemã de O capital, ele zomba daqueles que tentam escrever “receitas para as cozinhas do futuro”. [10] E, ainda que uma certa visão a respeito possa ser apreendida de seus escritos econômicos, ela não tem grandes relações com o igualitarismo. Marx sempre combateu a igualdade primitivista, que decreta a pobreza para todos e a “mediocridade geral”. [11] Embora reconheça a capacidade do capitalismo para produzir riqueza, ele rejeita seu caráter antagônico, que subordina o conjunto do trabalho – e da sociedade – à busca pelo lucro. Mais igualitarismo só faria democratizar esse mal.
Marx sabia da força dos “grilhões de ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se chegássemos a isso? Impossível dizer. A melhor resposta que Marx nos ofereceu talvez esteja em um texto de juventude no qual ele ataca a religião e, já então, os grilhões cobertos por “flores imaginárias”: “A crítica destrói as flores imaginárias que adornam os grilhões não para que o homem carregue seus grilhões sem sonhos e sem consolo, mas para que se livre dos grilhões e colha as flores vivas”. [12]
Notas:
1. Allan Bloom, The closing of the American mind, Simon & Schuster, Nova York, 1987. Essa obsessão conservadora de uma decadência da educação foi sistematizada na França pelo ensaísta Alain Finkielkraut.
2. Chris Giles, “Data problems with Capital in the 21st century” [Problemas nos dados de O capital no século XXI], Financial Times, Londres, 23 maio 2014, e a resposta de Thomas Piketty, “Technical appendix of the book – Response to FT” [Apêndice técnico do livro – Resposta ao FT], 28 maio 2014.
3. Movimento político operário do meio do século XIX, no Reino Unido.
4. Richard Henry Tawney, Equality[Igualdade], Allen & Unwin, Londres, 1952.
5. Karl Marx, Le capital. Livre I [O capital. Livro I], tradução francesa dirigida por Jean-Pierre Lefebvre, Presses Universitaires de France, Paris, 1993, p.693.
6. Steven N. Kaplan e Joshua Rauh, “It’s the market: the broad-based rise in the return to top talent” [É o mercado: o crescimento de base ampla no retorno dos melhores talentos], Journal of Economic Perspectives, v.27, n.3, Nashville, 2013.
7. Ibidem.
8. Raphael Kaplinsky “What does the rise of China do for industrialization in Sub-Saharan Africa?” [O que o crescimento da China faz com a industrialização da África subsaariana?],Review of African Political Economy, v.35, n.115, Swine (Reino Unido), 2008.
9. Karl Marx, op. cit., p.855-857.
10. Ibidem, p.15.
11. Ibidem, p.854.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Colóquio “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra”

Evento,que acontece a partir de segunda e até sexta-feira na Fundação Casa de Rui Barbosa, reúne diversos pensadores brasileiros e estrangeiros para debater novas maneiras de imaginar e ocupar o espaço do mundo, mesclando ciências exatas e humanas.




Gaia em debate


Terra, mundo, Pachamama... Há muitas maneiras de nomear nosso planeta, mas poucas causam mais controvérsia no momento do que o termo Gaia — uma divindade primordial que, no imaginário dos gregos antigos, regia os elementos da natureza. Resgatado nos anos 1970 para ilustrar a hipótese do ambientalista James Lovelock e da bióloga Lynn Margulisde que o planeta é como um ser vivo que se autorregula, o nome está no centro de uma reação intelectual à crise climática, à perda da biodiversidade e à probabilidade de um colapso global.
A reportagem é de Bolívar Torres, publicada pelo jornal O Globo, 13-09-2014.
Gaia ressurge agora como teoria científica e conceito filosófico, um ponto de partida privilegiado para se problematizar as relações entre homem, natureza e tecnologia. Algumas destas propostas estarão em pauta no colóquio “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra”, que acontece a partir de segunda e até sexta-feira na Fundação Casa de Rui Barbosa. Idealizado pela filósofa Déborah Danowski, pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e pelo antropólogo e filósofo francês Bruno Latour, o evento reúne diversos pensadores brasileiros e estrangeiros para debater novas maneiras de imaginar e ocupar o espaço do mundo, mesclando ciências exatas e humanas.
Entre os 29 participantes, há visões divergentes. Para a filósofa belga Isabelle Stengers, que fará a conferência de encerramento do colóquio, Gaia é uma intrusa, que desafia nossas categorias de pensamento, e com a qual nem mesmo as grandes potências mundiais podem negociar. Já para a filósofa francesa Emilie Hache, que participará de uma mesa-redonda na sexta, Gaia coloca de ponta- cabeça o nosso antropocentrismo, alertando que a espécie humana nunca será mais forte do que o planeta, e que a coabitação é mais viável do que a dominação. Embora seja reconhecida pela comunidade científica, a teoria tem detratores — Bruno Latour, que abre o evento com a conferência “O que significa obedecer às ‘ Leis de Gaia’ ao tentar manter o antigo imperativo ‘só se vence a Natureza obedecendo-lhe?’”, já admitiu que foi diversas vezes “aconselhado a não utilizar o termo”, nem a confessar seu interesse pelas ideias de Lovelock.
— Gaia é um dos nomes que vêm sendo convocados em todos os cantos do mundo para se pensar ontológica e politicamente os modos possíveis de enfrentamento e de resistência à radical degradação atual das condições de existência não só dos humanos, mas de uma enorme quantidade de outros viventes sobre (e sob) a Terra — explica Déborah Danowski.
— A urgência de abordar a questão se dá porque simplesmente não podemos viver em um mundo 3 ou 4 graus mais quentes que o atual, não há registro de nada semelhante a isso na história da “civilização”. Entretanto, os governos mundiais, com os seus timidíssimos e até covardes acordos internacionais, têm se mostrado incapazes de fazer qualquer coisa a respeito.
Conexões falhas na universidade
Professor da Divisão de Ecologia Humana da Universidade de Lund (Suécia), o antropólogoAlf Hornborg, que falará terça-feira no evento, confessa ter um certo ceticismo em relação ao nome Gaia, embora acredite que ele possa ser usado em um sentido mais amplo e “menos antropomórfico” para nos lembrar que “o sistema Terra e sua biosfera têm lógicas próprias, indiferentes à espécie humana”. 
— Cabe a nós humanos escolher se respeitamos e nos conformamos a esse sistema ( por exemplo, minimizando o uso de combustíveis fósseis) ou se continuamos a gerar mudanças na biosfera que tornarão difícil a sobrevivência das nossas espécies — sugere o antropólogo, em entrevista por e-mail.
Decisiva para o nosso futuro, a escolha passa, segundo ele, pelo desenlaçamento das redes que fundem as dimensões materiais do ambiente e os processos culturais da sociedade. Para Hornborg, autor do livro “The power of the machine: global inequalities of economy, technology, and environment” (O poder da máquina: desigualdade global da economia, tecnologia e meio ambiente), já é “evidente” que o que acontece com a biosfera está estreitamente conectado com aspectos econômicos e culturais, como nosso padrão de consumo. Apesar de imagens de satélites mostrarem como a distribuição de infraestrutura tecnológica coincide com a distribuição de dinheiro no mundo, e apesar de o desenvolvimento ter comprovadas consequências ambientais, a ecologia, a economia e a engenharia continuam, na avaliação do antropólogo, separadas nas universidades.
— O ponto de vista do mundo dominante falha em ver essas conexões. Uma das razões é que temos tendência em distinguir objetos materiais, como as máquinas, com as relações sociais que os geraram, como a troca desigual de recursos no mercado mundial. Quando o capital se torna tecnologia, ele se torna moralmente neutro e inocente. Outro ponto é que não entendemos as relações entre economia e física. Assim como (o economista romeno)Nicholas Georgescu- Roegen demonstrou há mais de 40 anos, a produção de commodities é, na verdade, a destruição dos recursos. A criação do valor de consumo é, também, a criação de entropia. Ao contrário do que muitos pensam, isso não é inevitável. Isso é a consequência do uso generalizado do dinheiro, uma instituição que precisa ser fundamentalmente repensada.
Segundo Émilie Hache, mestre de conferência e professora do departamento de Filosofia na Universidade de Nanterre (Paris), a questão não é se perguntar “por que” as relações entre ciência, tecnologia e meio ambiente são ignoradas, mas sim “por quem”. Em seu livro “Ce à quoi nous tenons, propositions pour un écologie pragmatique” (Aquilo a que damos valor, propostas para uma ecologia pragmática), Emilie parte da crise ecológica nos anos 1980 para entender seu sentido científico e político. O que implica repensar a dimensão moral da ecologia, já que as ações humanas geraram novas responsabilidades sobre o que será deixado às gerações futuras.
— Não creio que o “mundo” tenha dificuldades de entender as questões ao mesmo tempo econômicas e sociais da nossa relação com o meio ambiente — diz ela. — Mas se aceitarmos esta formulação, diluindo as responsabilidades, então podemos esperar que a civilização desmorone e que daqui a um século, ou dois, historiadores se interroguem sobre a incapacidade do nosso mundo em tomar as medidas necessárias, mesmo tendo todos os dados científicos para isso.
Egoísmo da espécia humana
Uma visão comum entre a maior parte dos convidados do evento é a de que Gaia exige o fim da visão utilitarista que opõe homem e natureza. Bruno Latour defende que esta última não pode ser pensada de forma independente das relações entre os humanos e os não humanos. A natureza não seria um valor em si. Para Émilie, porém, o problema está menos na concepção moderna de natureza, a qual já se tem uma fácil relação crítica, e mais na “dificuldade de substituí-la, de mudar o imaginário”.
— A natureza está em todos os lugares, no direito, nas normas, na biologia, no social... — enumera Émilie. — Não é tanto um conceito, mas um operador, que serve a hierarquizar, desvalorizar e dominar tudo que ele ataca: as mulheres, as pessoas de cor, os outros seres vivos... A natureza não tem nada a ver com a ecologia. Precisamos de articulações que abracem as questões ecológicas em outros problemas: ecologia e feminismo; ecologia e desigualdades sociais; ecologia e racismo; ecologia e etologias...
Os pesquisadores ainda tentam entender por que a espécie humana não cria pontes de colaboração, mesmo diante de uma situação de emergência climática. Parte dessa dificuldade talvez possa ser atribuída à prevalência, no século XX, da ideia de que somente o egoísmo e a competição exerciam um papel na regulação do planeta. Cientista, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)Antonio Nobre acredita que a noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o “enobrecimento do egoísmo” foi um erro grave, que teria bloqueado a visão de outros processos essenciais para o funcionamento do conjunto. Hoje, porém, novas descobertas indicam que, em Gaia, quanto mais rico e complexo um sistema, menor o papel da competição e maior o da colaboração.
— A explicação da seleção natural para a variedade de organismos era sem dúvida melhor do que as explicações anteriores, mas ela não era idêntica em tudo o mais com explicações que viriam depois — explica Nobre, que falará na terça-feira sobre “Os fundamentos belíssimos da vida na regulação planetária”.
— Um vasto campo de complexidade, invisível antes do surgimento da biologia molecular, permaneceu ignorado no auge do desenvolvimento do darwinismo. E suspeita-se que parte maior da complexidade bioquímica na base do funcionamento dos sistemas vivos ainda permaneça oculta. Por exemplo, a explicação mais simples, como aquela na base da teoria da evolução baseada apenas nos mecanismos demonstrados da seleção natural, não dá conta de clarificar o papel da vida na regulação do ambiente planetário. Ademais, existem explicações simplíssimas ilustrando o papel central da colaboração na evolução de complexidade, que são rejeitadas apenas porque não batem com o que tornou-se um dogma excludente, o da competição e da sobrevivência do mais apto.

domingo, 14 de setembro de 2014

Lojas de livros não conseguirão sobreviver’


 
“As pessoas da Amazon não se importam realmente com o que você quer como consumidor.” A frase soa surpreendente ao sair da boca de Jason Merkoski, primeiro evangelista (responsável por disseminar novas tendências) da Amazon e um dos membros da equipe que desenvolveu o primeiro leitor de livros digitais Kindle, lançado em 2007.
A reportagem é de Ligia Aguilhar, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-08-2014.
Fundador da startup Bookgenie451, criadora de um software que identifica interesses de leitura de estudantes para recomendar livros didáticos, Merkoski mistura otimismo com alguma cautela quando o assunto são livros digitais.
Na quinta-feira, 21, ele vem ao Brasil participar do 5º Congresso Internacional CBL do Livro Digital, em São Paulo, no qual vai falar sobre a sua obra Burning the page: The eBook Revolution and the Future of Reading (ainda sem título em português), na qual decreta o fim do livro impresso.
Eis a entrevista.
Você decreta o fim dos livros impressos em sua obra, mas as vendas de tablets e leitores digitais começam a se estabilizar sem que isso tenha acontecido. O que falta para o livro digital se popularizar?
O que mais influencia a popularidade é a seleção de títulos. O que vimos acontecer nos EUAJapão é que, uma vez que as pessoas consigam encontrar 80% dos títulos que buscam no digital, a chance delas migrem para e-books é de 100%.
Quanto tempo demora para essa mudança acontecer?
Cerca de três anos depois que os livros digitais estão disponíveis em um país.
Serviços de streaming podem ajudar nessa popularização?
O problema de serviços de streaming como o da Amazon é que eles têm vários livros no catálogo que as pessoas não querem ler. Um dos desafios é definir um modelo de preços para e-books, que hoje não existe. Até isso ser feito será difícil tornar o streaming uma experiência satisfatória e o seu custo sustentável.
Você esperava esses impactos quando ajudou a criar o Kindle?
Como indústria, acho que revolucionamos o mercado editorial, o que é assustador e maravilhoso ao mesmo tempo. Como dono de uma empresa de livros digitais, digo que é muito difícil trabalhar com editoras hoje, porque o mundo delas está em colapso. É como se elas estivessem no Titanic após bater no iceberg, sem coletes salva vidas, com o barco pegando fogo e naves alienígenas atirando contra o barco. As editoras estão confusas e com medo.
Teremos problemas com a coleta e uso de dados sobre nossos hábitos de leitura?
Certamente. Não vai demorar para começarmos a ver propagandas dentro dos e-books. Mas não estou realmente preocupado com o que a Amazon e o Google vão saber sobre mim porque acho que já aceitei que, inevitavelmente, eles saberão das coisas de algum jeito.
Esses dados também geram recomendações de leitura. Essa facilidade pode ter um lado ruim, como afastar o leitor de clássicos em prol de best-sellers?
Algum conteúdo poderá ser negligenciado com toda certeza. O problema de livros clássicos é que eles não são sexy e não são promovidos na página de entrada da Amazon porque a empresa não vai ganhar dinheiro com eles. O que menos gosto da virada do livro para o digital é a cultura do momento. Recomendamos apenas coisas atuais. Ferramentas de recomendação precisam melhorar.
Você já declarou em entrevistas que é difícil amar a Amazon…
Acho que o papel das empresas maiores não é estar na minha cara enquanto eu estou lendo. Elas podem ser mais sutis e acredito que esse é um papel que a Amazon faz mal. Hoje os varejistas conseguem aprender quem você é. Seria interessante se essas informações fossem repassadas para as editoras criarem conteúdo. Mas os varejistas retêm todos os dados. É por isso que o sistema está quebrado.
O que acontecerá com a palavra escrita?
Eu realmente acho que o futuro da palavra escrita é ser falada, porque a escrita é devagar. Os livros do futuro serão falados porque tudo gira em torno da fala hoje em dia. Aparelhos como o iPhone, com a Siri, permitem que você fale ao telefone o que você quer fazer.
Acredita que bibliotecas e livrarias vão mesmo acabar?
Não acho que o futuro será bom. Meus estudos mostram que nos últimos três anos os alunos gastaram 70% menos tempo nas bibliotecas das universidades. Onde eles estão pegando informação? Na Wikipédia ou em sites. As lojas de livros não conseguirão sobreviver e vão desaparecer. Sobrarão apenas algumas, especializadas em livros impressos, como as que vendem discos de vinil.
Vão permanecer no mercado Google e Amazon, infelizmente. Conheço as pessoas daAmazon. E elas não se importam com o que você quer como consumidor. Elas se importam em como conseguir mais lucro. Uma maneira de fazer isso é empurrando livros populares, negligenciando outros. E infelizmente as pessoas vão aceitar. A curadoria de títulos está na mão dos varejistas

sábado, 6 de setembro de 2014

A NSA tem um programa secreto que funciona sem intervenção humana


 
De acordo com as últimas revelações de Edward Snowden, a Agência de Segurança Nacional estadunidense dispõe de um programa secreto chamado MonsterMind, ele é capaz de responder aos ataques cibernéticos sem intervenção humana.
A reportagem é publicada por Rt.com, 13-08-2014. A tradução é do Cepat.
Em sua última revelação, o ex-funcionário da CIA Edward Snowden disse a revista Wiredque a NSA conta com um programa secreto de funcionamento autônomo chamadoMonsterMind que, além de responder automaticamente a ciberataques, poderia causar um pesadelo diplomático internacional visto que os ataques lançados pelo próprio programa recorrentemente interferem nos computadores de terceiros, alojados em países estrangeiros.
E o mais grave: “Estes ataques podem ser falsificados”, assegurou Snowden. “Poderíamos ter alguém sentado na China, por exemplo, fazendo com que pareça que quem realizou o ataque originalmente esteja na Rússia. E então terminamos “disparando” contra um hospital russo. O que ocorreria depois?”.
Snowden também mencionou que os EUA poderiam ter estado por detrás do apagão massivo da Internet na Síria em 2012, quando o país estava em plena guerra civil. Os EUA teria tentado ter acesso ao trafego do país árabe, e uma falha durante o processo poderia ter causado a avaria.
José Luis Camacho, pesquisador de conspirações e blogueiro, questiona a legitimidade do funcionamento do programa MonsterMind já que – segundo ele -, poderia violar a constituição dos Estados Unidos. “Nos EUA a própria Quarta Emenda proíbe-os de fazer um monitoramento das comunicações particulares e este sistema está infringindo a Quarta emenda”, explica para a RT.
Na última quinta-feira o Serviço Federal de Migração da Rússia aprovou a petição deEdward Snowden de prolongar seu asilo temporal no país, como informa o advogado do ex-funcionário, Anatoli Kucherena. “É impossível à extradição de Snowden aos EUA”, assegurou o advogado.

sábado, 30 de agosto de 2014

Pikettismos: relexões sobre o Capital no Século XXI [1]


Ladislau Dowbor

26 de julho de 2014

O livro de Thomas Piketty está nos fazendo refletir, não só na esquerda, mas em todo o espectro político. Cada um, naturalmente, digere os argumentos, e em particular a arquitetura teórica do volume, à sua maneira. Os números de páginas se referem ao original francês.

1 A desigualdade na mira
A verdade é que Thomas Piketty, com a força da juventude e uma saudável distância das polarizações ideológicas que tanto permeiam a análise econômica, abriu novas janelas, trouxe vento fresco, nos permitiu deslocar a visão. Se bem que o problema da distribuição da renda sempre estivesse presente nas discussões, a teoria econômica terminou centrando-se muito mais no PIB, na produção de bens e serviços, e muito insuficientemente na repartição e nos mecanismos que aumentam ou reduzem a desigualdade.
Esta atingiu níveis obscenos. Quando uma centena de pessoas são donas de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto um bilhão de pessoas passa fome, francamente, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental avançada. Mas para muita gente, trata-se simplesmente de incompreensão, de desconhecimento dos mecanismos.
A lenta dissipação da neblina que cerca o problema da desigualdade vem sendo construída nas últimas décadas. Basicamente, enquanto a partir dos anos 1980 o capitalismo entra na fase de dominação dos intermediários financeiros sobre os processos produtivos – o rabo passa a abanar o cachorro (the tail wags the dog)é a expressão usada por americanos como Joel Kurtzmann – e com isto passa a aprofundar a desigualdade, foram se construindo, com grande atraso, as análises das implicações.
Um amplo estudo do Banco Mundial ajudou bastante ao mostrar que basicamente quem nasce pobre permanece pobre, e que quem enriquece é porque já nasceu bem. É a chamada armadilha da pobreza, a poverty trap. Esta pesquisa mostrou que a pobreza realmente existente simplesmente trava as oportunidades para dela sair. Com Amartya Sen passamos a entender a pobreza como falta de liberdade de escolher a vida que se quer levar, como privação de opções. O excelente La Hora de la Igualdad da CEPAL mostrou que a América Latina e o Caribe atingiram um grau de desigualdade que exige que centremos as nossas estratégias de desenvolvimento em torno a esta questão. Isto para mencionar algumas iniciativas básicas. O livro do Piketty não surge do nada, sistematiza um conjunto de visões que vinham sendo construídas.
E há naturalmente o acompanhamento do desastre crescente através de tantas instituições de estudos estatísticos. Hoje conhecemos o tamanho do rombo, temos dados para tudo, sabemos quem são os pobres. O The Next 4 Billion do Banco Mundial mostra que temos quase dois terços da população do planeta “sem acesso aos benefícios da globalização”, os dados do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2014 do PNUD mostram que 2,2 bilhões de pessoas vivem na pobreza, dos quais um pouco mais de um bilhão na miséria, abaixo de 1,25 dólares ao dia. Temos inclusive os detalhes dos 180 milhões de crianças que passam fome, de 4 milhões de crianças que morrem anualmente por não ter acesso a uma coisa tão elementar como água limpa. O Working for the Few, da Oxfam/UK, apresenta uma visão geral da desigualdade, em particular a da riqueza (patrimônio familiar acumulado), que ultrapassa de longe a desigualdade da renda.
Os nossos dilemas não são misteriosos. Estamos administrando o planeta para uma minoria, através de um modelo de produção e consumo que acaba com os nossos recursos naturais, transformando o binômio desigualdade/meio ambiente numa autêntica catástrofe em câmara lenta. Enquanto isto, os recursos necessários para financiar as políticas de equilíbrio estão girando na ciranda dos intermediários financeiros, na mão de algumas centenas de grupos que sequer conseguem administrar com um mínimo de competência as massas de dinheiro que controlam. O desafio, obviamente, é reorientar os recursos para financiar as políticas sociais destinadas a gerar uma economia inclusiva, e para financiar a reconversão dos processos de produção e de consumo que revertam a destruição do meio ambiente.
Falta convencer, naturalmente, o 1% que controla este universo financeiro diretamente através dos bancos e outras instituições e crescentemente de modo indireto através da apropriação dos processos políticos e das legislações. As pessoas não entendem o que é bilionário, e realmente não é um desafio que faz parte do nosso cotidiano. Mas uma forma simples de entender esta estranha criatura nos é apresentada por Susan George: um bilhão de dólares aplicados em modestos 5% ao ano numa poupança, rendem ao seu proprietário 137 mil dólares ao dia. O que ele vai fazer com este dinheiro? Por mais guloso que seja o bilionário, não há caviar que resolva. O dinheiro, portanto, é reaplicado, e a fortuna se transforma numa bola de neve, gerando os super-ricos, os que literalmente não sabem o que fazer com o seu dinheiro.
Um segundo mecanismo a ser entendido, é a diferença entre a renda e o patrimônio. A renda é anual – resultado de salário, de aluguéis, do rendimento de aplicações financeiras etc. – enquanto o patrimônio (net household wealth, patrimônio domiciliar líquido) – constitui a riqueza acumulada, sob forma de casas, contas bancárias (menos dívidas), ações e outras formas de riqueza. A verdade é que quem ganha pouco compra roupa para os filhos, paga aluguel, gasta uma grande parte da sua renda em comida e transporte, e não compra belas casas, fazendas e iates, e muito menos ainda faz aplicações financeiras de alto rendimento. O pobre gasta, o rico acumula. Sem processo redistributivo, gera-se uma dinâmica insustentável a prazo.
O livro do Piketty não é apenas muito bom, é oportuno. Pois é nesta situação explosiva de desigualdade no planeta, quando até Davos (Davos, meu Deus!) clama que a situação é insustentável, que surge uma explicitação de como se dão os principais mecanismos que geram a desigualdade, como evoluíram no longo prazo, como se apresentam no limiar do século XXI, e em particular como o problema pode ser enfrentado.
O raciocínio básico é simples e transparente: os avanços produtivos do planeta se situam na ordem de 1,5% a 2% ao ano, enquanto as aplicações financeiras dos que possuem capital acumulado aumentam numa ordem superior a 5%. Isto significa que uma parte crescente do que o planeta produz passa para a propriedade dos detentores de capital, que passam a viver da renda que este capital gera, o que justamente nos leva à fantástica concentração de riqueza nas mãos de poucos. E do lado propositivo, esperar que mecanismos econômicos resolvam o desequilíbrio crescente faz pouco sentido: precisamos criar ou expandir, segundo os casos, um imposto progressivo sobre o capital. O que inclusive seria produtivo, pois incitaria os seus detentores a buscar realizar investimentos produtivos em vez de observarem sentados o crescimento das suas aplicações financeiras.
Utópico? Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. E tributar o capital parado nas cirandas financeiras, rendendo sem produção correspondente, é particularmente interessante. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões, e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero, e geraria o equivalente a 2% do PIB europeu (cerca de 300 bilhões de euros), o suficiente para liquidar por exemplo o endividamento público em pouco anos, e tirar os países membros das mãos dos intermediários financeiros. (889). Seria um bom primeiro passo.
Novo? Não, não é novo, mas é apresentado no livro do Piketty de maneira muito legível (inclusive para não economistas), extremamente bem documentada, e com uma clareza na explicação passo a passo que transforma a obra numa ferramenta de trabalho de primeira ordem.
2 O lugar da ciência econômica
Chamar a economia de ciência faz parte do problema. Faz parecer que há leis imutáveis, como as da física, que uma vez descobertas permitem ações racionais. Piketty, citando Josiah Wedgwood, considera que “as democracias políticas que não democratizam o seu sistema econômico são intrinsicamente instáveis”. (821) Democratizar o sistema econômico implica justamente a intervenção do “demos”, do povo, sobre o sistema econômico. O que significa que estamos falando não de mecanismos imutáveis, mas de regras do jogo politicamente definidas e decididas, para que a economia funcione para o proveito de todos, ou, segundo o maior ou menor grau de democracia, o proveito de poucos. Isto também significa que as regras do jogo econômico podem ser alteradas, por serem regras políticas. Reconstitui-se assim o elo entre a economia e os processos democráticos.[2]
Um dos aportes fundamentais do Capital no Século XXI, é o de recolocar a economia no seu devido lugar, como uma das áreas das ciências sociais, voltando com isto a ser “economia política”, como na sua origem, ou seja, o estudo da dimensão econômica dos diversos processos da reprodução social. Com isto, o estudo dos mecanismos econômicos volta a ter pé e cabeça, ao ser compreendido nas suas complexas interações com a política, com os mecanismos de poder sob suas diversas formas, com os valores sociais das diferentes épocas e culturas. A desigualdade deixa de ser vista como o resultado de leis duras mas inevitáveis, mas como uma construção política que pode ser alterada. E a desigualdade que hoje vivemos, vista essencialmente como uma deformação da própria democracia. É o que Irving Fischer chamou de an undemocratic distribution of wealth, distribuição não-democrática de riqueza. (817)
Se isto pode parecer evidente, e para muitos de nós sempre foi, a realidade é que para o mainstream econômico, até ontem, as desgraças do mundo resultavam do fato que as políticas públicas estavam deformando as leis naturais da economia, que tinham a mágica virtude de restabelecerem os equilíbrios. Durante quanto tempo nos foi repetida a fábula da mão invisível? A imensa popularidade de Milton Friedman e da Escola de Chicago não resultou de qualquer criatividade científica particular, mas do fato de terem desenvolvido cálculos destinados a mostrar que a injustiça era de certa forma justa: era conforme às leis econômicas. Vestir a ganância dos interesses dominantes com respeitabilidade acadêmica rende.
Inventar aparências de justificação científica para o enriquecimento maior dos ricos rende muito. Como aparece tão bem no documentário Inside Job (Trabalho Interno), a Alta Academia e Wall Street passaram a trabalhar de mãos dadas, colonizaram o FED e o Tesouro, reduziram pela metade os impostos sobre os ricos, e geraram uma crise planetária. “A taxa marginal do imposto sobre a herança, aplicada aos níveis mais elevados nos Estados Unidos, passou de 70% em 1980 para 35% em 2013”. (811) O mesmo processo foi utilizado relativamente aos países mais pobres: “A partir dos anos 1980-1990, a nova onda ultraliberal vinda dos países desenvolvidos impõe aos países pobres cortes nos setores públicos e coloca no último grau de prioridades a construção de um sistema fiscal propício ao desenvolvimento. (789) É a herança, aliás, que hoje enfrentamos no Brasil.
A crise de 2008 deixou as coisas mais claras. O resgate veio, como em 1929, da volta do Estado como instrumento central de regulação econômica. O que foi a lei de regulação Glass-Steagall após a crise de 1929, hoje tenta-se recuperar com a lei Dodd-Frank. Ambas duramente combatidas, então como hoje, pelo universo de intermediários financeiros, os que vivem de taxar a produção e consumo dos outros. Aqui não há complexidades teóricas da ciência econômica, e sim a luta nua e crua, com propinas, lobbies e ameaças, guerras e derrubadas de governos, pelo enriquecimento dos mais ricos.
“Eu não concebo outro lugar para a economia, escreve Piketty no subtítulo Por uma economia política e histórica, do que como subdisciplina das ciências sociais, ao lado da história, da sociologia, da antropologia, das ciências políticas e de tantas outras…Não gosto muito da expressão ‘ciência econômica’, que me parece terrivelmente arrogante e que poderia nos fazer acreditar que a economia tenha atingido uma cientificidade superior, específica, distinta da ‘economia política’, talvez um pouco velhinha (viellotte), mas que tem o mérito de ilustrar o que me parece ser a única especificidade aceitável da economia no seio das ciências sociais, a saber a visão política, normativa e moral”. (945)
No plano propositivo, trata-se de resgatar o conhecimento histórico: “A experiência histórica continua sendo a nossa principal fonte de conhecimento”(947). Isto leva a um conselho muito saudável: “Os outros pesquisadores em ciências sociais não devem deixar o estudo dos fatos econômicos aos economistas, e devem parar de sair correndo logo que aparece uma cifra, e de se contentar em dizer que cada cifra é uma construção social, o que é naturalmente sempre verdadeiro, mas insuficiente.”(947) Precisamos entender “as instituições, as regras e as políticas que terminam por modelar as evoluções econômicas e sociais. É possível, e até indispensável, ter uma abordagem que seja ao mesmo tempo econômica e política, salarial e social, patrimonial e cultural.”(949) ) Assim, o binômio riqueza e poder só pode ser analisado e entendido como amplo processo social e político, como realidade total e complexa. Aqui, a economia volta ao seu lugar, como economia política, conjunto de ferramentas analíticas que adquirem riqueza e sentido através da articulação com as outras ciências sociais, e onde a ética retoma o seu devido lugar.
3 Renda e patrimônio
Se uma pessoa constrói uma casa, realizou um investimento. Se vendeu a casa e aplicou o dinheiro para render juros, realizou uma aplicação financeira. A construção da casa gerou um novo bem na economia, a aplicação financeira não mudou o estoque de riqueza do país. Houve apenas uma transferência: quem tinha o dinheiro agora tem uma casa, e quem tinha uma casa agora tem o dinheiro. Para os americanos, fica bastante confuso, pois eles usam a palavra investment para tudo, inclusive para atividades especulativas. Em francês fica bem claro, investissementsplacements financiers. No Brasil temos também a distinção, investimento e aplicação financeira, mas os bancos insistem em chamar tudo de investimento, fica parecendo mais nobre, e gera ilusão de serem produtivos. Os bancos podem até financiar um empreendedor que vai criar uma empresa de produtora de móveis, por exemplo, mas aqui o investidor é o empresário, e o banqueiro é um intermediário financeiro que realoca aplicações financeiras. A confusão é desnecessária, e frequentemente proposital. Pode-se jantar numa mesa, não nos papéis que representam o seu valor.
Com o conceito de renda temos um problema semelhante. A minha renda decorre do meu trabalho, descontada na folha pois sou assalariado. Mas quando falamos que alguém “vive de rendas”, não pensamos no seu rendimento como fruto direto do trabalho. É um rentista, na definição do Houaiss “aquele que vive exclusivamente de rendas”. Em inglês, desta vez fica mais claro, pois não se chama tudo de “renda” como no Brasil. Diferencia-se claramente income rent. Em francês, falaremos emrevenu rente, termos igualmente bem diferentes. No Brasil, temos o rentista, mas não temos a palavra “renta”. Seria útil aqui, adotar o conceito de rendimento, no sentido que usa Piketty, ao se referir por exemplo ao rendimento do capital (rendement du capital). (142)
As distinções, aqui, são fundamentais, porque a desigualdade assume diversas formas e tem várias fontes. Fiquemos aqui acordados que para fazer a economia crescer precisamos de investimentos, e que o resultado do crescimento econômico vai se manifestar, ao fim a ao cabo, na capacidade de compra diferenciada de cada família. Esta capacidade de compra é representada pela renda familiar anual, que provém tanto da renda do trabalho, como de rendimentos de diversas aplicações financeiras. Aqui, as coisas ficam bastante mais claras, pois no nível da família, como unidade básica, existe um fluxo anual de renda, e um estoque de patrimônio acumulado, que também chamamos de riqueza.
Os estudos de concentração de renda, que nos dão por exemplo medidas de desigualdade como o coeficiente de Gini, medem essencialmente a renda anual disponível para as famílias, segundo as classes de renda. Mas não nos informam sobre as fontes desta renda. Estudos sistemáticos da desigualdade de riqueza, de patrimônio familiar, são relativamente recentes. O WIDER (World Institute for Development Economics Research), ou o Crédit Suisse, por exemplo, já permitem estudos comparativos relativamente sérios, e Piketty se lamenta do começo ao fim do livro com a impressionante escassez de informações sobre a quem pertence afinal a riqueza que a sociedade cria. Ter de recorrer a fontes de glamourização de fortunas como Forbes para ter informações indispensáveis à análise dos desequilíbrios econômicos é cientificamente lamentável e tecnicamente insuficiente. Tanto se fala em transparência dos serviços públicos, mas sobre o imenso estoque, alocação e usos dos capitais privados estamos simplesmente com um impressionante déficit de informações.
O rendimento do capital, sob suas diferentes formas – juros, aluguéis, dividendos de ações etc. – pressupõe poupança para que o capital se forme, o que com maior frequência surge da herança de um capital que tanto mais facilmente se acumula na família quanto menos filhos as famílias possuem. A realidade básica, é que os dois terços da população mundial simplesmente não auferem renda anual suficiente para poupar e acumular patrimônio. E como não têm patrimônio acumulado, vivem apenas da renda do trabalho, o que raramente possibilita a formação de um capital capaz de reforçar a renda e ir gradualmente acumulando riqueza. O pobre compra roupa, aluga casa, às vezes até consegue comprá-la mas se endivida para pagar durante décadas, ou seja, consome o que recebe.
Um bilionário, para pensarmos grande, parte de outro patamar. Um bilhão de reais aplicados a 5% ao ano, o que não constitui nenhuma remuneração excepcional, rendem ao bilionário 137 mil reais ao dia. Como este rendimento não pode ser absorvido pelo consumo individual, transforma-se em mais aplicações, gerando uma espiral ascendente de enriquecimento, enquanto a renda das famílias na base da sociedade estagna. Gera-se assim um processo cumulativo de desigualdade. A partir de um certo nível, o grosso do ganho resulta não do esforço produtivo, mas do próprio mecanismo de aplicações financeiras.
Nas cifras da tabela acima, do Crédit Suisse, banco que tem tudo para entender de fortunas acumuladas, constatamos que 0,7% da população mundial, 32 milhões de pessoas, se apropriaram de 41% da riqueza do planeta (patrimônio acumulado, não renda), enquanto 68,7%, 3,2 bilhões de pessoas com patrimônio inferior a 10 mil dólares têm apenas 3%. Como ordem de grandeza para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%. Não há como equilibrar politicamente o planeta com esta situação, e muito menos quando está se agravando. Cifras muito mais impressionantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente.[3]
Não só a riqueza se acumula no topo da pirâmide social, mas o rendimento financeiro. Os muito ricos aplicam em papéis que cujo rendimento é muito superior ao crescimento da economia em geral. As grandes fortunas, inclusive, permitem aplicações financeiras de alto rendimento, muito além das pequenas aplicações típicas da classe média, por poderem pagar especialistas na gestão das suas fortunas. Tomando o exemplo do fundo de aplicações da universidade de Harvard, cujos dados são abertos e detalhados no longo prazo, trata-se de rendimentos da ordem de 10% líquidos ao ano, enquanto a economia cresce entre 1,5 e 2%. Aqui não há mistérios: quando uma minoria se apropria sistematicamente de recursos em ritmo muito superior ao crescimento da produção, gera-se um desequilíbrio cumulativo catastrófico. Catástrofes, aliás, que pontuaram os reajustes estruturas das crises e guerras do século passado. É tempo de constituirmos uma política econômica que enfrente esta dinâmica, que já tem sido qualificada justamente deslow-motion catastrophe, catástrofe em câmara lenta.
O fato do livro do Piketty se basear na distinção entre o fluxo anual de renda e o estoque de riqueza acumulada, permite assim deixar muito mais claro o processo cumulativo de desigualdade que se construiu na sociedade moderna. Como além disto o poder político dos mais ricos permitiu passar leis que desregulam a especulação financeira e que reduzem drasticamente o imposto sobre a fortuna ou sobre transmissões de herança, fica clara a falha estrutural do sistema em termos de equilíbrios de longo prazo.[4] “A evolução geral não deixa nenhuma dúvida: para além das bolhas, estamos assistindo sim a um grande retorno do capital privado nos países ricos desde os anos 1970, ou melhor, à emergência de um novo capitalismo patrimonial”.(273)
As projeções para o nosso século, que é o que Piketty busca delinear, mostram a necessidade de intervenções reguladoras: “Uma conclusão parece desde se delinear com com clareza: seria ilusório imaginar que exista na estrutura do crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que levem naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a uma harmoniosa estabilização” (598)
4 Riqueza e merecimento
A riqueza dos ricos é merecida? Quando os gestores ganham 300 vezes mais do que os trabalhadores na base da empresa, distância impressionante e que cresceu dramaticamente nas últimas décadas, podemos sem dúvida nos colocar questionamentos éticos. Eles, naturalmente, não têm 300 vezes mais filhos. Nem produzem 300 vezes mais. Ademais, ninguém precisa de tanto dinheiro, tanto assim que o essencial destes ganhos se transforma em aplicações financeiras, que simplesmente drenam recursos que poderiam dinamizar atividades produtivas para assegurar rendimentos financeiros.
A defesa da desigualdade mais generalizada é a que consiste em desqualificar quem a denuncia: seria um invejoso. O fenômeno provavelmente existe, mas a imensa maioria das pessoas quer simplesmente que o sistema funcione, assegurando a cada qual uma escola decente para os filhos, uma cerveja ou um vinho no fim de semana, a tranquilidade de um sistema de saúde acessível, um ambiente de vizinhança aprazível e razoavelmente seguro, e a redução da permanente ameaça do drama maior: a perda do emprego, o sofrimento e humilhação de não poder sustentar a própria família. François Villon exprimiu isto nesta belíssima prece do século 15º: “Senhor, meu Senhor dos olhos verdes…a cada qual dê um pouco, e não se esqueça de mim.” Nunca é demais recordar que com o que produzimos hoje no Brasil, se fosse repartido de maneira equilibrada, teríamos algo como 7 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Não se trata de inveja, e sim de bom senso e funcionalidade. E de um pouco de justiça também.
Muito mais provável é a vontade de se ver invejado. Desde Veblen sabemos a importância de parecer importante, e em particular de cobrir de coisas caras a nossa eventual falta de importância. As ‘importâncias’ que se tornaram proprietárias de apartamentos de 20 milhões na margem do rio Pinheiros, em São Paulo, têm de viver de janelas fechadas pelo fedor que emana deste esgoto a céu aberto, e enfrentam com ar condicionado a visibilidade do seu status. Inúmeros estudos, nos mais diversos países, mostram que acima de um nível relativamente modesto de renda, dinheiro a mais não aumenta a felicidade. Deverá ser procurada na criatividade, na riqueza do convívio e não das compras, no resgate do tempo livre, por vezes no prazer de um joguinho de praia ou de várzea onde o espaço é gratuito e as pessoas se tornam iguais. O problema não está na inveja, mas na idiotice de pessoas desorganizarem a sociedade através de batalhas comerciais e financeiras sem sentido, e que sequer as deixam mais felizes.
É importante aqui lembrar a imagem inversa: o dinheiro na base da sociedade gera sim muita felicidade. Uma família poder guardar água fresca, comida e medicamentos na geladeira altera muito a qualidade de vida. Ou seja, a compra do básico, o alimento, o acesso a uma casa decente, todos estes elementos não só trazem e multiplicam felicidade, como asseguram a dinamização de um conjunto de atividades econômicas, ampliam a base de empregos, reduzem o impacto dos ciclos de crises econômicas. A este consumo é preciso acrescentar a importância crescente do consumo coletivo: o acesso universal à educação, saúde, infraestruturas de lazer e esporte e outros bens públicos e gratuitos em muitos países ricos assegura economias de escala na sua produção, gera uma igualdade de chances à partida para os mais jovens, e reduz dramaticamente as tensões sociais. O dinheiro é tanto mais produtivo quanto mais se reparte de maneira equilibrada. Um candidato a empresário precisaria sem dúvida de mais dinheiro para poder investir, mas para isto existe o crédito, quando alocado sob forma de fomento econômico e não de complexos mecanismos de especulação financeira.
Um elemento essencial na visão de Thomas Piketty, é que uma parte desproporcional dos recursos termina parando nas mãos de uma ínfima minoria. Aqui estamos falando de menos de 1% da população. Lembremos, como vimos acima, que na pesquisa do Crédit Suisse, 0,7% da população mundial é dona de 41% da riqueza acumulada, 99 trilhões de dólares (o PIB dos Estados Unidos é de 14 trilhões, o PIB mundial da ordem de 80 trilhões). Estamos falando, portanto, não da classe média, e sim dos ricos, os chamados HNWI, ou High Net Worth Individuals.
Uma forma de analisar as fortunas, é ver a que servem. Para já, não para o consumo, ainda que algumas formas espalhafatosas de consumo conspícuo deem na vista. Piketty faz o cálculo seguinte: “Com um capital de 10 bilhões de euros, basta destinarem o equivalente a 0,1% do capital ao consumo para financiar um modo de vida de 10 milhões de euros (aproximadamente 35 milhões de reais por ano). Se o rendimento obtido é de 5%, isto significa que a taxa de poupança sobre este rendimento é de 98%; atinge 99% se o rendimento é de 10%; de qualquer forma, o consumo é insignificante”. Portanto, a quase totalidade do rendimento do capital pode ser aplicada. Trata-se aqui de um mecanismo econômico elementar, mas apesar disto importante, e cujas consequências temíveis são muito frequentemente subestimadas, em termos de dinâmica de longo prazo para a acumulação e a repartição dos patrimônios. O dinheiro tende por vezes a reproduzir-se por si só.”(703)
Portanto, ainda que tenham frequentemente origem numa atividade produtiva, as fortunas acumuladas tendem a aumentar de forma cumulativa, por meio das aplicações financeiras, gerando uma espiral descontrolada. Estes recursos, por sua vez, em mãos dos grandes intermediários financeiros a quem são confiados para a sua administração (bancos, hedge funds e fundos especulativos diversos) conferem ao sistema financeiro um poder radicalmente superior aos próprios sistemas produtivos. Lembremos aqui a pesquisa do ETH, o Instituto Federal Suiço de Pesquisa Tecnológica: no conjunto das grandes corporações do planeta, apenas 147 grupos controlam 40% do total dos recursos, sendo que 75% destes grupos são bancos. Esta concentração, levando à financeirização da economia hoje amplamente estudada, está na origem da crise financeira mundial de 2008 e da desorganização das finanças públicas.[5]
Esta distinção clara que Piketty utiliza no seu estudo, entre rendimentos que resultam de produção e os que resultam do patrimônio acumulado, permite portanto entender por que razão há tanta riqueza acumulada, tantos bilionários, e tão fraca dinâmica econômica. Não são os produtores que manejam o planeta, e sim os grandes intermediários, que cobram pedágio sobre diversas atividades produtivas, e frequentemente mudam as leis, evitam os impostos, desequilibram a economia. Esta compreensão permite por sua vez justificar, questão que veremos mais adiante, um imposto progressivo sobre o capital, obrigando os que o detêm a buscar a sua utilização produtiva, através de investimentos na economia real. “Claramente, nos diz Piketty, a fortuna não é apenas questão de mérito”.
5 – A origem das fortunas
A origem das fortunas, e por sua vez das desigualdades, nem sempre se localiza numa garagem, e muito menos a sua reprodução e ampliação ulterior. Basicamente, se trata de heranças, de aplicações financeiras, e dos mega-saláriosde executivos em algumas grandes corporações. As dinâmicas, naturalmente, são frequentemente articuladas. E tende a jogar um papel importante o controle ou capacidade de pressão sobre os governos.
Piketty nos traz o exemplo de Liliane Bettencourt, a partir dos artigos da Forbes. A sua fortuna, hoje de 23 bilhões de dólares, lhe veio por herança, pois nunca trabalhou. Mas o que herdou inicialmente, foram 2 bilhões de dólares, que devidamente aplicados foram e continuam crescendo ao ritmo de 10% a 11% (descontada a inflação).(702) Temos aqui na origem uma invenção e atividade produtiva, a tecnologia L’Oréal de tintas para cabelo, desenvolvida em 1907, mas depois é só deixar o dinheiro crescer. Quando subimos para o 1% dos mais ricos, o essencial dos rendimentos provém de aplicações financeiras: “As ações e participações empresariais compõem a quase totalidade das fortunas mais importantes”.(408)
“Os empreendedores tendem assim a se transformar em rentistas, não somente na passagem das gerações, mas igualmente no decorrer de uma mesma vida”.(708) O que leva Piketty a uma visão equilibrada: “Por mais justificada que sejam à partida, as fortunas se multiplicam e se perpetuam por vezes para além de qualquer limite e justificação racional possível em termos de utilidade social…Toda fortuna é ao mesmo tempo parcialmente justificada e potencialmente excessiva…Trata-se aqui da razão central justificando a introdução de um imposto progressivo anual sobre as maiores fortunas mundiais, única maneira de permitir um controle democrático deste processo potencialmente explosivo, ao mesmo tempo que se preserva o dinamismo empresarial e a abertura econômica internacional.”(708)
Na dimensão histórica do processo, a principal tendência global observada e amplamente comprovada no livro, é que entre o renda do trabalho e da inovação por uma lado, e os rendimentos patrimoniais por outro, estes últimos se tornaram absolutamente dominantes durante a fase final do século 19º e o início do século 20º, ruíram no processo mundial destrutivo das duas guerras mundiais e da crise de 1929, e voltaram, neste início do século 21º, praticamente ao nível máximo atingido na véspera da primeira guerra mundial de 1914.
Para dar uma dimensão mais concreta ao raciocínio, é útil acrescentar ao exemplo acima de Liliane Betttencourt, com ganhos hoje de aplicações essencialmente financeiras, os exemplos clássicos de Bill Gates e de Carlos Slim, que se revezam no topo das fortunas mundiais.
No caso de Carlos Slim, a Oxfam nos traz uma descrição sumária: “A privatização das telecomunicações mexicanas há 20 anos nos dá um claro exemplo do nexo entre comportamento monopolístico, instituições legais e de regulação insuficiente, e a desigualdade econômico que resulta. Carlos Slim, do México, entra e sai do posto de pessoa mais rica do mundo, possuindo uma riqueza estimada em 73 bilhões de dólares. A enormidade desta riqueza resulta do estabelecimento de um monopólio quase completo sobre serviços de comunicações em linhas fixas, móveis e de banda larga no México…Uma recente pesquisa de políticas e de regulação das telecomunicações no México, realizada pela OCDE, concluiu que o monopólio sobre o setor tem tido um efeito negativo significativo sobre a economia, e ocasiona um custo permanente para o bem estar dos cidadãos que se viram obrigados a pagar preços inflados pelas telecomunicações.”(Oxfam, 24). Para se ter uma ideia, “os rendimentos que a sua fortuna gera poderiam pagar os salários de 440 mil mexicanos.”(Oxfam, 9)[6]
Temos aqui a combinação de renda de monopólio (em inglês seria rent, forma diferenciada de income), com rendimentos financeiros, o que faz com que uma das duas maiores fortunas do planeta tenha origem em iniciativas prejudiciais para a economia (eliminação da concorrência pelo monopólio e esterilização da poupança pelas aplicações financeiras. No caso brasileiro o processo se manifesta no oligopólio Claro, Vivo e Tim. É sempre útil lembrar que formação de cartel é crime claramente definido na nossa Constituição).
No caso de Bill Gates, a sua fortuna é vista como legítimo resultado de criatividade e empreendedorismo. O texto do Piketty é aqui até divertido: “Bill Gates aparece com todas as virtudes do empreendedor modelo e merecedor…Sem dúvida, este verdadeiro culto se explica pela necessidade irresistível das sociedades democráticas modernas de darem um sentido às desigualdades…Por outro lado, imagino que as suas contribuições se apoiaram nos trabalhos de milhares de engenheiros e de pesquisadores em eletrônica e informática fundamental, sem os quais nenhuma das invenções nestes campos teria sido possível, e que não patentearam os seus artigos científicos”.(710) Temos aqui sem dúvida também um efeito monopolístico: temos de utilizar as ferramentas que são mais usadas, sob pena de não conseguirmos comunicar. A renda (no sentido de rent) consiste aqui essencialmente do efeito de dominação, não de concorrência. O exército jurídico da Microsoft é poderoso.
Tomando em particular o caso das grandes corporações norte-americanas, Piketty traz uma extensa análise dos salários de executivos nas empresas americanas, da ordem por vezes de dezenas de milhões de dólares por ano, mas apresentados como resultado de grandes capacidades e correspondendo à produtividade. Naturalmente, não há tanta diferença de capacidades que justifiquem tanta disparidade, mas o problema se agrava justamente porque este tipo de salário, fenômeno bastante recente, resulta em aplicações financeiras de grandes recursos, reforçando a dinâmica da desigualdade. O problema central do fenômeno dos salários dos “super-quadros”, como os define Piketty, é que a alta hierarquia define os seus próprios salários, o que gera uma espiral descontrolada.(498)
A dimensão brasileira é interessante. Na listagem da Forbes apresenta-se os 15 bilionários do país.[7]
1)     Marinho, Organizações Globo, US$ 28,9 bilhões
2)     Safra, Banco Safra, US$ 20,1 bilhões
3)     Ermírio de Moraes, Grupo Votorantim, US$ 15,4 bilhões
4)     Moreira Salles, Itaú/Unibanco, US$ 12,4 bilhões
5)     Camargo, Grupo Camargo Corrêa, US$ 8 bilhões
6)     Villela, holding Itaúsa, US$ 5 bilhões
7)     Maggi, Soja, US$ 4,9 bilhões
8)     Aguiar, Bradesco, US$ 4,5 bilhões
9)     Batista, JBS, US$ 4,3 bilhões
10)  Odebrecht, Organização Odebrecht US$ 3,9 bilhões
11)  Civita, Grupo Abril, US$ 3,3 bilhões
12)  Setubal, Itaú, US$ 3,3 bilhões
13)  Igel, Grupo Ultra, US$ 3,2 bilhões
14)  Marcondes Penido, CCR, US$ 2,8 bilhões
15)  Feffer, Grupo Suzano, US$ 2,3 bilhões

Veja-se que se trata essencialmente de bancos (concessão pública, com carta patente, para trabalhar com dinheiro do público); de meios de comunicação (concessão pública de banda de espectro eletromagnético para prestar serviço de comunicação à população); de construtoras (as grandes, que trabalham com contratos públicos, nas condições que conhecemos); e de exploração de recursos naturais (solo, água, minérios) que são do país e que não precisaram produzir: o Imposto Territorial Rural, por exemplo, praticamente não existe no Brasil. É o divórcio crescente entre quem enriquece e quem contribui para o país. Piketty é claro: “A experiência histórica indica ademais que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm grande coisa a ver com o espírito empreendedor, e não têm nenhuma utilidade para o crescimento”. (944)
Vemos aqui uma vez mais o interesse da base metodológica clara e explícita do autor, ao separar os diversos níveis de renda e fontes de enriquecimento: “Os grupos de 10% e de 1% são definidos separadamente para a renda do trabalho de uma lado, para o rendimento de propriedade do capital de outro, e finalmente para a renda total, que resulta do trabalho e do capital, fazendo a síntese das duas dimensões e que define portanto uma hierarquia social composta que resulta das duas primeiras”.(400)
A força da argumentação, da documentação e da análise trazidas pela equipe de Piketty, com seus 15 anos de trabalho acumulado, é que casa com outras análises que surgiram em diversos setores de pesquisa. O livro, e o banco de dados online e aberto (com todos os dados primários da pesquisa) que lhe dá suporte, surge num momento histórico em que muitos agentes econômicos, sociais e políticos do planeta decidiram que não dá mais para ignorar o elefante no meio da sala, que é o drama da desigualdade. É uma ferramenta que surge no momento histórico certo. De certa maneira, passamos a ter uma arquitetura conceitual muito sólida que nos faz entender os novos desafios e alternativas.
6  A armadilha da dívida pública
O processo tem lógica. No geral, o mundo avança com uma expansão em ritmo aproximado de 1,5% a 2% ao ano, o que é perfeitamente respeitável, graças em particular aos avanços tecnológicos, e também ao aumento da população. A produtividade, no entanto, não tem se transformado em avanço correspondente da remuneração do trabalho. A quase totalidade do aumento de riqueza produzida vai para os 10% mais ricos, e em particular para o 1% superior. Esta renda nas mãos dos mais ricos, a partir de um certo nível, já não tem como se transformar em consumo, e passa a ser aplicada em diversos produtos financeiros, cuja rentabilidade está na ordem de 5% para aplicações médias, mas sobe para 10% para aplicações de grande vulto com gestores financeiros profissionais.
Com o rendimento sobre o capital ultrapassando fortemente os avanços da própria economia, na realidade gera-se um processo cumulativo de enriquecimento relativamente maior dos que já são mais ricos. O desequilíbrio gerado não tem como ser revertido por simples mecanismos de mercado, e na realidade já atingimos o grau de desequilíbrio de um século atrás, quando os mais afortunados “viviam de rendas”, mas em nível e volume superior. Esta é a dinâmica geral, em que os avanços gerados por produtores se veem apropriados por rentistas. É o “capitalismo rentista” que está justamente no centro do raciocínio.
A dinâmica particular que vemos agora, e que aparece na parte final do estudo do Piketty, é que os sistemas de gestão financeira que aplicam as grandes fortunas desenvolveram um segundo mecanismo, que consiste em se apropriar dos recursos públicos por meio da dívida pública. As pressões da direita para ampliar o endividamento público se explica: “Em vez de pagar os impostos para equilibrar os orçamentos públicos, os italianos – ou pelos menos os que têm os meios – emprestaram dinheiro ao governo ao comprar títulos do Tesouro ou ativos públicos, o que lhes permitiu aumentar os seu patrimônio particular – sem por isto aumentar o patrimônio nacional.” (291) O caso italiano aqui é apenas um exemplo, a expansão da dívida pública se generalizou pelo planeta, ao mesmo tempo que se reduziam os impostos sobre as fortunas e as operações financeiras. Os Estados Unidos têm hoje uma dívida da ordem de 15 trilhões de dólares, para um PIB mundial da ordem de 80 trilhões.
Estas operações, naturalmente, representam apenas transferências: “O nível do capital nacional em primeira aproximação não mudou. Simplesmente, a sua repartição entre capital público e privado inverteu-se totalmente”.(294) Na realidade, “a dívida pública não constitui mais do que um direito de uma parte do país (os que recebem os juros) sobre a outra parte (os que pagam os impostos): portanto deve-se excluí-lo do patrimônio nacional e incluí-lo somente no patrimônio privado”. (185) Trata-se de rentismo público (rentes publiques), que tem um impacto particularmente desastroso quando um país enfrenta dificuldades, pois os aplicadores em títulos públicos forçam os juros para cima, agravando a situação, como se viu na própria Itália, na Grécia, Espanha e tantos outros países.
O Estado, neste sentido, transformou-se em mais uma arena do aumento dos patrimônios dos mais afortunados. “Existem duas formas principais de um Estado financiar os seus gastos: pelo imposto, ou pela dívida. De maneira geral, o imposto é uma solução infinitamente preferível, tanto em termos de justiça como de eficácia.”(883) Esta opção pelo imposto é explicitada: “”O imposto sobre o capital põe a carga nos que detêm patrimônio elevado, enquanto as políticas de austeridade buscam em geral poupá-los”. (894) Dadas as relações de força internacionais, a opção geral que se viu, na Europa em particular, foi a da política de austeridade, com restrições das aposentadorias e das políticas sociais, atingindo o elo mais fraco tanto em termos econômicos como políticos.
O caso brasileiro é emblemático, e neste sentido poderia muito bem ilustrar as análises do pesquisador francês. A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, criou a sua justificação ética, a de estar combatendo a inflação: trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem, e a imensa maioria não sabe, a Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo, gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada também é uma inciativa dos governos nos anos 1990. Tipicamente, passou-se a pagar, a partir de 1996, já com inflação baixa, entre 25 e 30% sobre a dívida pública. Os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso aos nossos impostos. Com isto o governo comprava, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos grandes bancos situados no país, inclusive dos grupos financeiros transnacionais. Assim os governantes organizaram a transferência massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.
Amir Khair explicita a origem do mecanismo: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e 10,0% durante um ano.”[8] Se considerarmos, para simplificar, uma taxa de 10%, e um estoque de dívida de dois trilhões de reais, estaremos transferindo para os grandes intermediários financeiros algo da ordem de 200 bilhões de reais por ano, pagos dos nossos impostos, e frequentemente reaplicados para aumentar o estoque da dívida e o volume de ganhos.
Gera-se uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas, que além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazerem investimentos produtivos que gerariam produto e emprego. É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. E realizar investimentos produtivos, financiando por exemplo uma fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, seguimento, enfim, envolve atividades que vão além de aplicações financeiras. É na realidade o que os intermediários deveriam fazer: fomento, irrigar as atividades econômicas, sobre tudo porque estão trabalhando com o dinheiro dos outros. Tecnicamente, o que fazem ao tirar o dinheiro do circuito econômico e transferi-lo para a área financeira, é a esterilização da poupança.
No nosso caso, a justificação política é que se trata, ao manter juros elevados, de proteger a população da inflação. Neste ponto, o argumento de Piketty coincide com o que Amir Khair e outros têm repetido: “A inflação depende de múltiplas outras forças, e nomeadamente da concorrência internacional sobre preços e salários”.(905) Mas para uma população escaldada com inflações passadas, o argumento é poderoso, ainda que falso. Com um massacre midiático impressionante, os juros altos aparecem como bons (nos protegem da inflação), enquanto os impostos aparecem como negativos (inchaço da máquina pública e semelhantes. Os mais afortunados que deveriam pagar os seus impostos, aplicam na dívida pública, e fazem render o que deveriam devolver à sociedade.
As análises que o livro nos traz do problema da dívida pública apontam ainda um outro problema: o caos financeiros gerado. Chipre é parte da União Europeia, e no entanto ninguém tinha informações precisas sobre o tipo de, origem ou interesses dos detentores da sua dívida pública, grupos de certa forma donos de parcelas do sistema público. Revelou-se serem dominantemente oligarcas russos, que desarticularam completamente as tentativas do país de equilibrar as suas contas. E tem mais: de ponta a ponta do trabalho, Piketty nos traz exemplos da ausência geral de transparência sobre os estoques e fluxos financeiros: “os países não dispõem nem de transmissões automáticas de informações bancárias internacionais nem de cadastro financeiro que lhes permitisse repartir de forma transparente e eficaz as perdas e os esforços.”(908) O sistema financeiro atua no planeta, os Estados atuam em espaços delimitados por fronteiras nacionais. As próprias finanças públicas, como resultado, se vêm jogadas na ciranda.
7  O imposto progressivo sobre o capital
Como enfrentar o capitalismo patrimonial globalizado do século 21º? Esta é a questão central colocada no estudo do Piketty. O desafio tende a desanimar. O autor se refere, com coragem, à “utopia útil” que está propondo. Ainda mais que é um realista, plenamente consciente “do grau de má fé atingido pelas elites econômicas e financeiras na defesa dos seus interesses, bem como por vezes pelos economistas, que ocupam atualmente uma posição invejável na hierarquia americana de rendimentos, e que têm frequentemente uma lamentável tendência a defender os seus interesses particulares, sempre dissimulando-se por trás de uma improvável defesa do interesse geral.” O congressista médio nos Estados Unidos teria um patrimônio pessoal da ordem de 15 milhões de dólares, frente ao patrimônio médio do adulto americano de 200 mil dólares. Não vai ser fácil. (834) Vem-nos aqui à lembrança os dilemas de Lincoln ao tentar fazer um congresso constituído por donos de escravos votar o fim da escravidão.
A visão mais ampla em termos propositivos está na linha de um imposto progressivo sobre o capital acumulado. Já que os mecanismos de mercado, neste caso, em vez de gerar equilíbrios, geram um processo cumulativo de desigualdade, com uma espiral descontrolada de enriquecimento cada vez menos vinculado à contribuição produtiva, uma intervenção institucional para organizar a redistribuição torna-se indispensável. “A ferramenta ideal, escreve o autor, seria um imposto mundial e progressivo sobre o capital, acompanhado de uma muito grande transparência financeira internacional. Uma instituição deste tipo permitiria evitar uma espiral de desigualdade sem fim e regular de forma eficaz a inquietante dinâmica da concentração mundial dos patrimônios.”(835)
Não se trata apenas de frear uma dinâmica descontrolada. Trata-se também de recompor e ampliar as políticas sociais, para as quais a ação pública é essencial. Piketty tem total clareza do peso essencial que tiveram as políticas sociais na fase equilibrada de desenvolvimento do pós-guerra. O Estado não é “gasto”, é prestação “de serviços públicos que beneficiam gratuitamente as famílias, em particular os serviços de educação e de saúde financiados diretamente pelo poder público. Estas ‘transferências in natura’ têm tanto valor quanto as transferências monetárias contabilizadas na renda disponível: evitam que as pessoas interessadas tenham de desembolsar somas comparáveis – ou por vezes nitidamente mais elevadas – junto a produtores privados de serviços de educação e de saúde”. Tem também clareza dos aportes de Amartya Sen, de que a políticas sociais, ainda recentemente classificados como gastos, constituem investimentos nas pessoas, com impactos produtivos generalizados.[9]
Piketty é antes de tudo um historiador da economia. A sua análise do longo prazo permite, e isto se sente em toda a extensão do livro, um recuo muito saudável, que permite reduzir as simplificações e reações ideológicas. Ver descritas as declarações indignadas dos ricos, há um século atrás, quando se iniciou a cobrança do próprio imposto de renda, com alguns pontos percentuais apenas sobre pessoas de renda elevada, nos dá inclusive a dimensão de que certas coisas que pareciam absolutamente impossíveis hoje já fazem parte do cotidiano. A expansão da carga tributária na Europa e nos Estados Unidos é que permitiu os avanços civilizatórios: “O desenvolvimento do Estado Fiscal durante o século passado corresponde no essencial à constituição de um Estado social.” (765)
Piketty mostra inclusive que as diversas formas de renda mínima, com grande impacto social, representam custos muito limitados: Os ‘mínimos sociais’, como os denomina, “correspondem a menos de 1% da renda nacional, quase insignificantes na escala da totalidade dos gastos públicos.” Aqui aflora o humanista, e a consciência da guerra ideológica: “Trata-se, no entanto, de gastos frequentemente contestados com a maior violência: suspeita-se os beneficiários de escolherem de se instalar eternamente na assistência, ainda que a taxa de demanda por estes ‘mínimos’ seja geralmente muito mais fraca do que a das outras prestações, o que reflete o fato que os efeitos de estigma (e frequentemente a complexidade dos dispositivos) tenda frequentemente a dissuadir os que a elas teriam direito.” Nos Estados Unidos, o estigma casa com o racismo pouco velado: “Observa-se que este tipo de questionamento dos mínimos sociais tanto nos Estados Unidos (onde a mãe solteira, negra e ociosa joga o papel de rechaço absoluto para os que desprezam o magro Welfare State americano) quanto na Europa.” O autor denuncia o “Estado carcerário” que substitui por vezes o Estado provedor: 5% dos homens negros nos Estados Unidos estão nas prisões.(765)
Há portanto grandes ganhos de produtividade social através da reorientação dos recursos e da taxação do seu uso especulativo e improdutivo. Um outro vetor importante do imposto sobre as fortunas é a transparência criada. Hoje, com as pesquisas do Tax Justice Network e outras fontes sabemos que entre um terço e metade do PIB mundial se esconde em paraísos fiscais, gerando uma desorganização planetária ao deformar os tributos pagos nos países de origem, abrindo inclusive as portas para tráfico de armas e de drogas, além evidentemente da própria evasão dos impostos por parte de quem mais deveria pagá-los.[10]
Daí o caminho das propostas do livro, no sentido de se criar um imposto progressivo mas muito baixo, para começar a organizar o gigantesco caos planetário criado. Esta proposta, na realidade, se aproxima aqui da Taxa Tobin, que seria uma taxação de transações financeiras internacionais, gerando recursos sem dúvida, mas antes de tudo permitindo o registro dos fluxos. Conforme vimos, um exemplo de imposto possível seria de isenção ou 0,1% abaixo de 1 milhão de euros, de 1% entre 1 e 5 milhões de euros, e de 2% entre 5 e 10 milhões e assim por diante.(943)
Mas o argumento mais forte é que a imposição deste capital parado, que rende sem que as pessoas precisem organizar a sua utilização produtiva, rendendo por aplicações especulativas e frequentemente por simples transferência dos nossos impostos (como é o caso da nossa taxa Selic), tanto permitiria reduzir a dívida pública, como financiar mais políticas sociais, e bancar investimentos tecnológicos e produtivos em geral. O imposto sobre o capital já existe de forma incipiente em diversos países, trata-se de dinamizar uma política que se tornou hoje indispensável no nível planetário.
Utópico? Sem dúvida. Mas já foram utópicos o imposto de renda (“os ricos nunca aceitariam”), a renda mínima, o direito de greve e tantas outras impossibilidades até que as ideias encontraram âncoras na mente das pessoas.

8 Uma utopia útil?
Piketty tem uma posição clara contra os excessos da desigualdade, oferece bases empíricas extremamente sólidas para se entender quão nocivo se tornou para a economia e para a política o reinado dos rentistas, sem ceder a ódios nem preconceitos. No decorrer de todo o texto temos o sentimento de estarmos acompanhando um pesquisador que tem cabeça aberta, e profunda compreensão dos mecanismos econômicos, inclusive da hipocrisia com a qual elites justificam as suas fortunas. É claramente um humanista. Mas classificar a sua obra além disto resiste às nossas divisões ideológicas tradicionais. Claramente, ele quer que o sistema funcione, e demostra cabalmente que como está não funciona.
Por outro lado, ao reunir e organizar um volume absolutamente impressionante de dados, com metodologia muito transparente, inclusive com inúmeras advertências quando os números são pouco seguros, traz o que é a meu ver a ferramenta mais útil que surge nas últimas décadas, para compreender as dinâmicas econômicas, sociais e políticas atuais. É realmente uma obra prima. E como é muito bem escrito, junta-se o útil e o agradável. São 15 anos de trabalho reunidos num volume que se lê em um par de semanas, e se lê porque gera o prazer de entender melhor os nossos dilemas mais significativos.
Em termos ideológicos, Piketty claramente foge às classificações. Sabe perfeitamente que o mundo econômico adoraria declará-lo marxista, para não precisar enfrentar os seus argumentos. O Financial Times se lançou em contestar os números, e se deu mal: o trabalho é sólido. Krugman, Stiglitz, até o Economist tão conservador se dizem impressionados. E os que hesitam a fazer a lição de casa e ler o livro, podem também descartá-lo como reformista. Eu francamente, fiz a lição de casa. E conheço suficientemente a minha área para saber quando encontro boa ciência.
A passagem que talvez melhor situe o autor é onde se refere a “uma utopia útil”. Frente à concentração desmedida e cumulativa da riqueza em poucas mãos, e ao caos que progressivamente se instala, ele considera que a desigualdade se tornou o desafio principal, e o imposto progressivo sobre o capital acumulado a principal ferramenta. Frente aos diversos protecionismos, nacionalismos e controles que alguns países adotam, ele vê este imposto como uma alternativa melhor: “Tais ferramentas representam em verdade substitutos bem pouco satisfatórios à regulação ideal que constitui o imposto mundial sobe o capital, que tem o mérito de preservar a abertura econômica e a mundialização, permitindo ao mesmo tempo regulá-la eficazmente e repartir os benefícios de maneira justa tanto dentro dos países como entre eles. Muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma ilusão perigosa, da mesma forma como o imposto sobre a renda era rejeitado há um pouco mais de um século. No entanto, olhando bem, esta solução é mito menos perigosa do que as opções alternativas.”(837)
Ignacy Sachs se declara um adepto da economia mista, e eu mesmo sigo muito esta linha. Curioso inclusive ler o recente documento oficial que traça a orientação atual da China: “O sistema econômico da China se apoia na propriedade pública servindo como sua estrutura principal mas permitindo o desenvolvimento de todos os tipos de propriedade. Tanto a propriedade pública como não pública são componentes-chave da economia socialista de mercado”. Trata-se aqui de uma “economia de propriedade diversificada” (diversified ownership economy).[11] Ultrapassando as grandes simplificações ideológicas do século passado, buscamos hoje articulações inovadoras.
A O “cor” política de Piketty parece se refletir nesta passagem da parte final do livro: “O Estado-Nação permanece sendo um nível pertinente para modernizar profundamente numerosas políticas sociais e fiscais, e também numa certa medida para desenvolver novas formas de governança e de propriedade partilhada, intermediária entre a propriedade pública e privada, que é um dos grandes desafios do futuro. Mas somente a integração política regional permite considerar uma regulação eficaz do capitalismo patrimonial globalizado do século que se inicia”.(945)
Aqui se caracteriza uma fase do capitalismo (patrimonial globalizado), a expressão das diferentes escalas territoriais (o Estado-Nação e a política regional), e a articulação de diversas formas de propriedade, em particular a “propriedade partilhada”. Isto a meu ver caracteriza mais os desafios do que propriamente uma tomada de posição, mas também nos traz toda a complexidade da transição atual, em que a política nacional não consegue regular uma economia que se globalizou, em que o poder financeiro passou a dominar não só a economia produtiva mas os próprios mecanismos democráticos, em que se misturam formas diversificadas de propriedade (pública, privada, associativa), de gestão (concessões, partilhas, cogestão), de controle (competência local, nacional, regional) e de marco jurídico (do local até o global). A propriedade já não é suficiente para definir o tipo de animal econômico que temos pela frente. Podemos ter um hospital de propriedade pública, gerido em regime de concessão a uma cooperativa de médicos, sob controle de um conselho municipal de saúde, no quadro de um marco regulatório estadual ou federal. Ou outras combinações. É a era da sociedade complexa. No entanto, o “norte” permanece: não podemos continuar a destruir o planeta em proveito de uma minoria que desarticula inclusive os processos produtivos.
Em termos teóricos, eu colocaria Piketty na linha relativamente mais próxima, que é a da economia institucional. Ele não busca derrubar o capitalismo, busca devolver ao nível político, que é onde podemos ter uma certa democracia, um papel regulador sobre o conjunto do processo. Eu tenho trabalhado isto na linha da “Democracia Econômica”, ou seja, na visão de que a própria economia tem de ser democratizada, com novos mecanismos de regulação, transparência, participação, controle democrático. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes, no texto Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, tentamos delinear eixos propositivos nesta linha.[12]
O trabalho do Piketty e de sua equipe não é uma proposta revolucionária, mas ajudou imensamente a tornar o meio do campo mais claro. Nos dá instrumentos para pensarmos as ferramentas, as alternativas. Para as novas construções, a sua proposta central, que é de um imposto progressivo global sobre o capital, torna-se um ponto de referência necessário. Acoplada a esta proposta, e explicitada em todo o livro, está a necessidade de gerar os sistemas informativos que permitam gerar luz nesta caixa preta, coisa que pode ser começada em nível nacional, mas que hoje exige um sistema mundial de informação e controle de fluxos. Fica, naturalmente, a grande pergunta: o marco político-institucional presente comporta este tipo de modestos avanços?
Ladislau Dowbor é professor de economia da PUC de São Paulo, consultor de diversas agências das Nações Unidas, e autor de numerosos estudos disponíveis em http://dowb.or.org. Contato ldowbor@gmail.com

[1] Thomas Piketty – Le capital au XXIº siècle – Paris, Seuil, 2013 (edição em inglês e em espanhol disponíveis online, em português prevista para novembro)
[2] Sobre este tema, ver o nosso Democracia Econômica, Ed. Vozes 2012,http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/12-DemoEco1.doc
[3] Sobre estes dados, ver o excelente relatório da OXFAM, 2014,http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2014/01/www.oxfam_.org_sites_www.oxfam_.org_files_bp-working-for-few-political-capture-economic-inequality-200114-en.pdf ; a tabela do Crédit Suisse está na p. 9 do relatório.
[4] Piketty aponta “o interesse em se representar assim a evolução histórica da relação capital/renda e de se explorar desta maneira as contas nacionais em termos de estoque e de fluxo”. Thomas Piketty, Le Capital au XXIº Siècle, p. 305.
[5] Ver Rede de Poder Corporativo Mundial, 2012, http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[8] Amir Khair, O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2012; ver também A taxa Selic é o veneno da economia,http://criseoportunidade.wordpress.com/2014/04/09/a-taxa-selic-e-o-veneno-da-economia-entrevista-especial-com-amir-khair-abril-2014-2p/
[9] Uma sistematização particularmente bem apresentada destas novas tendências pode ser encontrada no documento da CEPAL, das Nações Unidas, La Hora de la Igualdad, com versão abreviada em português.