terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Consumismo tecnológico

Minha participação é bissexta, mas ainda continuo acompanhando e tentando acrescentar algo interessante a esse blog. Segue uma entrevista enviada a mim por Ricardo Musse com Fernando Tulo Molina, da Universidade de Quilmes. A Entrevista saiu no Jornal da Ciência de hoje, 20/01/2009, e está disponível em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=61116
Aí vai.
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Notícias
Terça-Feira, 20 de janeiro de 2009

JC e-mail 3682, de 16 de Janeiro de 2009.

12. Falsa neutralidade

Para Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, as crenças de que a ciência e a tecnologia são politicamente neutras e de que as inovações são sinônimo de progresso afastam o conhecimento das necessidades sociais
Fábio de Castro
A ciência e a tecnologia estão longe de ser politicamente neutras e as novas descobertas não correspondem necessariamente a progressos para a sociedade, segundo o professor Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, na Argentina. Para ele, embora façam parte do senso comum, as noções de neutralidade científica e determinismo tecnológico representam obstáculo para uma ciência democrática, capaz de melhorar a sociedade.
Ideias como essas foram expostas por Molina em nove sessões entre agosto e dezembro de 2008, durante o 15º Seminário Internacional de Filosofia e História da Ciência, realizado pelo Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP).
O seminário foi um produto do Projeto Temático Gênese e significado da tecnociência: relações entre ciência, tecnologia e sociedade, Universidade de São Paulo, apoiado pela Fapesp e coordenado por Pablo Rubén Mariconda, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Doutor em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, Molina permaneceu no Brasil como professor convidado do projeto. No evento, discutiu o tema “Controle, rumo e legitimidade das práticas científicas".
Para avaliar as implicações científicas e sociais das práticas tecnológicas, o professor propõe uma distinção entre a “eficácia” e a “legitimidade” dessas práticas – e busca elementos conceituais para a compreensão das origens culturais dessa distinção e da complexidade dos diferentes atores envolvidos.
Segundo Molina, que também é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), na Argentina, “essa compreensão contribuirá para que se encontrem os caminhos que levem ao acordo requerido pelas políticas científicas nos espaços de diálogo das instituições democráticas”.
– Uma das idéias centrais desenvolvidas pelo senhor durante o seminário realizado no mês passado em São Paulo é a de que a ciência não pode ser dissociada da política. Como essa questão foi tratada nos debates?
Molina – As discussões tiveram origem em um Projeto Temático apoiado pela FAPESP dirigido pelo professor Pablo Mariconda, do Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA, responsável pelo seminário. Esse projeto discute a gênese e os significados da tecnociência. Isso envolve questões históricas, filosóficas e sociológicas, mas no fundo tudo está virando uma área importante ligada à política. Tentamos problematizar duas idéias que hoje são muito fortes em nossa cultura: a neutralidade da ciência e o determinismo tecnológico. Essas duas noções estabelecem no imaginário popular uma idéia de que a ciência é neutra, desprovida de política, quando, na verdade, a ciência – e sobretudo a tecnologia – tem muita política.
– Como esse aspecto político se manifesta?
Uma das linhas que está sendo desenvolvida é que essa política pode ser vista com clareza, por exemplo, no chamado código técnico. Esse gravador digital que você está utilizando, por exemplo, possui um design que encerra em si todo o contexto de sua concepção e está ligado a determinadas estratégias. Essas estratégias representam interesses – que, no caso de uma sociedade capitalista, correspondem aos interesses das corporações. São interesses que têm a ver com o consumismo tecnológico. O projeto do gravador já prevê quando ele sairá de linha, isto é, carrega consigo uma estratégia de obsolescência programada. Para que você consuma mais, é preciso que na sua cabeça a aquisição de novos produtos tecnológicos seja entendida como um progresso. Você acredita que está progredindo e tem um aparelho melhor, de última tecnologia. Mas eventualmente os aparelhos mais antigos tinham mais qualidade. Isso é pura política.
– Essa é a idéia do determinismo tecnológico?
Uma crença de que o produto que acaba de ser lançado é necessariamente melhor, mais eficiente e mais desejável? Sim. É uma estratégia de consumo que se baseia na novidade. O produto é um bem cultural que se vale do valor simbólico que tem a “eficácia” na nossa cultura, levando a pessoa a pensar que os produtos desenvolvidos mais recentemente são melhores. Mas isso é uma falácia. Outra falácia está no discurso político oficial dos nossos países: a idéia de que o cientista pode dizer o que é melhor para a sociedade. O cientista não sabe o que é melhor para a sociedade. Não existem nem mesmo elementos conceituais para abordar essa questão. O seminário teve, portanto, a tarefa central de instalar uma discussão e conscientizar sobre alguns erros. Muitos desses erros, como o individualismo, têm origem filosófica.
– Como o individualismo é tratado nessa discussão?
Quando a lógica predominante é a de que alguém só consegue ganhar quando os demais perdem, o resultado é que as pessoas passam a achar que podem ser livres apenas de portas fechadas. O que gostaríamos de opor a essa idéia individualista é a possibilidade de pensar que, ainda hoje, apesar das assimetrias e desigualdades do capitalismo, podemos aprender a nos organizar de um jeito diferente e reaprender a conviver. A convivência é o ponto central da política em um sentido muito antigo, do qual já falava Sócrates. Como todos os atores, tão diferentes, podem conseguir a felicidade e a plenitude no meio de todos, no espaço restrito da pólis? A ideia de democracia que está por trás do seminário é mais profunda que uma noção de igualdade: é a ideia de que somos todos diferentes.
– Qual o efeito desse contexto dominado pelo individualismo sobre o desenvolvimento tecnológico e científico?
Vamos tentar falar do conjunto ciência e tecnologia: a tecnociência. Se as pessoas acreditam que o investimento em ciência e tecnologia leva o país a crescer automaticamente, melhorando a vida da população, temos o determinismo tecnológico. Nesse caso, já que o resultado seria necessariamente bom para todos, o investimento poderia ser feito sem preocupação com a participação da coletividade – esse determinismo tecnológico é favorecido em um contexto individualista.
– Então, sem a participação da coletividade nas decisões científicas e tecnológicas, os avanços do conhecimento não chegam a beneficiar a sociedade?
Acho que é por isso que temos que combater o determinismo tecnológico. Com essa lógica, o investimento não volta diretamente para a população, mas para as corporações. Os investimentos públicos formam técnicos, especialistas e recursos humanos para a universidade e para o sistema tecnológico. Mas essas pessoas poderão desenvolver tecnologias que melhorem as corporações, não necessariamente o país. Se nossa sociedade tem base tecnológica e capitalista, mesmo que se possa desenvolver a melhor tecnologia, ela irá se limitar a desenvolver a tecnologia com melhor custo-benefício. Tudo o que está envolvido com essas tecnologias será avaliado do ponto de vista quantitativo, porque estará orientado pela produtividade. Incluindo as relações com trabalhadores.
– Esse tipo de modelo tecnológico tenderia a agravar o quadro de exclusão social?
Acredito que sim. A tecnologia orientada pela produtividade só é acessível a quem tem determinado poder de consumo. As distâncias sociais que deveriam ser diminuídas por conta da tecnologia começam a aumentar. O crescimento das diferenças sociais agrava a violência. No fim, a tecnologia, que poderia ter um papel de inclusão, acaba fazendo o contrário.
– As tecnologias sociais seriam um possível caminho para contornar esses problemas?
O Brasil tem uma rede muito boa de tecnologia social. Ela tem 700 organizações – a maioria organizações não-governamentais –, sendo 400 muito ativas. Todas pensam em confrontar essa idéia da tecnologia capitalista associada à corporação. Nesse modelo fundamentado na produtividade, não se pode acessar o conhecimento – que deve ser patenteado. O usuário não é dono do meio onde essa tecnologia vai se produzir e não se pode decidir para onde vai o benefício do desenvolvimento.
– Essas tecnologias teriam então mais legitimidade?
As tecnologias sociais têm um papel importante na democratização do conhecimento, mas elas não chegam a garantir a legitimidade da forma como a entendemos. É preciso distingui-la da eficácia. A tecnociência tem eficácia, mas não tem legitimidade social. Esses dois conceitos muitas vezes são confundidos no próprio discurso do desenvolvimento tecnológico, que está baseado na ideia de controle. O que é o controle? Uma coisa é poder controlar a matéria ou a partícula – como pode a nanotecnologia – no espaço e no tempo. Esse é o controle científico, que é necessário e desejável. Mas não suficiente. Outra coisa é poder dar legitimidade a esse controle.
– E como dar mais legitimidade ao controle das práticas científicas?
Para mim, a legitimidade não está no conteúdo das decisões sobre os rumos tecnológicos, mas no jeito como essas decisões são tomadas. Se a decisão foi tomada de maneira coletiva e democrática e daí gerou os rumos e decisões, isso a legitima, não pelo conteúdo, mas pela forma coletiva. O que temos que pensar é quais são os atores em cada âmbito que deveriam participar democraticamente, sendo reconhecidos como diferentes e igualmente importantes, do rumo mais democrático da enorme capacidade tecnológica que já temos. Mas se não conseguimos dar a isso um caráter democrático, então o rumo será tecnocrático e corporativo. A responsabilidade é nossa. A palavra-chave é participação.
– Há propostas para melhorar essa participação?
O controle tecnológico, voltado para o controle da matéria no espaço e no tempo, não tem, em si, nenhuma legitimidade. Propomos dois novos eixos para pensar essa legitimidade: o tempo da educação e o espaço da participação política. Para melhorar essa participação, temos que gerar um espaço de protagonismo social em que os outros atores possam interagir com os cientistas. O especialista tem uma função consultiva importante, um compromisso de indicar as possibilidades, mas não a prerrogativa de ditar os rumos. Com a ajuda dele, o leigo poderia ter a possibilidade democrática de decidir o futuro. Mas isso não acontece. Na nossa organização estamos excluídos de todas as decisões tecnológicas. Não temos o espaço da participação política.
– E quanto ao tempo da educação?
Levamos tempo para educar alguém a ser crítico com a tecnologia e a conhecer sua própria capacidade de decisão e sua autonomia de criatividade. Essa é a dimensão do tempo da educação. Temos que introduzir essa discussão na escola inicial, porque ali as crianças já têm celular, videogames e muitas possibilidades tecnológicas. Seria importante começar a combater cedo a idéia introjetada de que a ciência é apolítica. Ao superar as idéias de neutralidade e determinismo do desenvolvimento tecnocientífico, só nos restará a possibilidade de um desenvolvimento político, democrático, com participação cidadã. Mas esse cidadão crítico ainda não existe, daí a importância dessa dimensão da educação.
– Ainda estamos muito distantes da formação desse cidadão crítico?
Talvez nem tanto. Podemos pensar no que aconteceu com a cultura ecológica. As crianças e as novas gerações já colocam o problema ecológico de forma mais prioritária. Isso ocorreu, entre outros fatores, porque a ecologia começou a ser apresentada às crianças de forma muito forte, desde a escola inicial. Acho que poderia acontecer o mesmo com o problema tecnológico. Para isso temos que começar a refletir com mais clareza sobre lixo tecnológico, obsolescência planejada, qualidade tecnológica, durabilidade, tecnologias para o futuro, tecnologias sustentáveis, tecnologias adequadas aos problemas – e não apenas ao consumo em massa – e tecnologias customizadas, que não impõem uma única solução, como se fôssemos todos iguais.
(Agência Fapesp, 16/1)


OBS: Relacionada a esse assunto, veja ainda a postagem: "A bioética versus o niilismo tecnocientífico"

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O oceano Ártico está bombeando mais calor na atmosfera


Entrevista especial com Mark Serreze


A calota polar do Ártico nunca foi tão pequena quanto atualmente. Um estudo da WWF apontou que em 2008 o nível de cobertura de gelo do Pólo Norte está inferior aos 4,13 milhões de quilômetros quadrados do ano anterior. A espessura do gelo na região é tão fina que já se prevê que, em alguns dias do verão, o Ártico pode ficar praticamente sem gelo. “Em comparação com o resto do Planeta, o Ártico é a via rápida para as consequências das alterações climáticas”, disse-nos o professor de Geografia da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, Mark Serreze. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Serreze explicou qual a situação do Ártico e da Antártida hoje, além de falar sobre como o aquecimento global está atingindo o pólo norte e que consequências isso gera para o Planeta. “A cobertura do gero marinho funciona como uma barreira, um isolante, entre a atmosfera quente e o frio bastante intenso abaixo do oceano de gelo. Quando perdemos essa cobertura de gelo sobre o mar, perdemos o isolador. Com isso, o oceano começa o bombeamento de calor na atmosfera, contribuindo para o aquecimento do Planeta”, relatou ele.

Mark Serreze é pós-graduado em geografia e professor e pesquisador da Universidade do Colorado, nos Estado Unidos. É também cientista sênior do Centro Nacional de Monitoramento de Neve e Gelo (NSIDC). Recentemente, desenvolveu uma pesquisa, juntamente com a professora Julienne Stroeve, em que revelou provas importantes de que as temperaturas da região do Ártico estão se elevando numa velocidade maior do que as do restante do mundo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que situação está, atualmente, o degelo do Ártico?

Mark Serreze
- Em comparação com o resto do Planeta, o Ártico é a via rápida para as consequências das alterações climáticas. Em setembro de 2008, o nível do mar de gelo foi o segundo mais baixo registrado pelos satélites, apenas um pouco mais elevado do que o registrado um ano antes. O mar de gelo da Groenlândia está começando a derreter por baixo, contribuindo para o aumento do nível do mar. O Permafrost [1] (o solo congelado que subjaz as terras do Ártico) está aquecendo e descongelando. Áreas que antigamente eram desarborizadas estão, hoje, tomadas por arbustos. Essa é a situação geral do Ártico, atualmente.

IHU On-Line – O gelo Ártico pode desaparecer?

Mark Serreze
– A capa de gelo do mar Ártico é suscetível ao desaparecimento durante o final do verão e o princípio do outono (nos meses de agosto e setembro) em, provavelmente, 30 anos ou mais. No entanto, ainda haverá gelo no inverno durante séculos, mesmo com o aquecimento global, e este continuará sendo frio e escuro. Porém, o gelo que se forma no inverno vai derreter durante o verão.

IHU On-Line – Por que a temperatura no Ártico sobe mais rapidamente do que o resto do mundo?

Mark Serreze –
Há uma série de razões que explicam o motivo pelo qual a temperatura do Ártico irá aumentar mais do que em outras regiões do Planeta, mas o mais importante é o efeito de perda da capa de gelo marítimo flutuante. A cobertura do gero marinho funciona como uma barreira, um isolante, entre a atmosfera quente e o frio bastante intenso abaixo do oceano de gelo. Quando perdemos essa cobertura de gelo sobre o mar, perdemos o isolador. Com isso, o oceano começa o bombeamento de calor na atmosfera, contribuindo para o aquecimento do Planeta. Isso é conhecido como amplificação do Ártico. Observações que fizemos mostram que a amplificação do Ártico já começou.




IHU On-Line – Num plano mais amplo, qual é a situação dos oceanos?

Mark Serreze –
Como disse antes, o oceano Ártico está bombeando mais calor na atmosfera e, com isso, todos os oceanos estão aquecendo também. O gelo do mar está sendo “machucado” de duas formas: com o clima quente e com a temperatura mais quente do Oceano Ártico. Ambos significam que o verão tende a derreter mais gelo e o crescimento de gelo no inverno será menor.

IHU On-Line – O Pólo Sul está na mesma situação do Pólo Norte? Qual é o estado atual de gelo no sul dos oceanos?

Mark Serreze –
O mar de gelo antártico é o que aumentou ligeiramente, em grande parte em resposta às mudanças na circulação da atmosfera. Não há surpresa alguma nisso. Todos os nossos modelos climáticos mostram que é no Ártico onde os sinais de aquecimento global se apresentarão de modo mais acentuado e que a Antártica vai mudar de forma muito mais lenta. Ao sul, o gelo marinho pode mesmo aumentar por algum tempo. Os céticos com relação às mudanças climáticas gostam de argumentar que, já que a Antártica não está realmente mudando como o Ártico, os cientistas que estudam o clima devem estar errados. Mas são eles quem estão errados, uma vez que, em relação às mudanças climáticas, a Antártida sempre comportou-se muito bem.






IHU On-Line – Em sua opinião, com que perspectiva o homem deve olhar e tratar o ecossistema?

Mark Serreze –
Quanto mais tempo esperarmos para enfrentar as alterações climáticas, o problema será pior. Esta questão não diz respeito simplesmente ao aquecimento, mas como este aquecimento mudará o Planeta (como, por exemplo, nos padrões de precipitação), afetando tanto a parte terrestre quanto os oceanos e os ecossistemas.

IHU On-Line – O sistema político mundial está dando que tipo de resposta para o problema dos oceanos e, sobretudo, o problema do aquecimento global?

Mark Serreze –
Para que finalmente os nossos líderes eleitos nos Estados Unidos aceitem que o aquecimento global é real e que precisamos fazer algo sobre isso. O aquecimento global é um problema mundial e exige uma solução global. No entanto, os Estados Unidos têm de assumir a liderança em relação às soluções para o aquecimento global. Tenho esperança de que agora finalmente fará isso.

Notas:

[1] Permafrost é um termo inglês para nomear o tipo de solo encontrado na região do Ártico. É constituído por terra, gelo e rochas permanentemente congelados. Esta camada é recoberta por uma camada de gelo e neve que, se no inverno chega a atingir 300 metros de profundidade em alguns locais, ao se derreter no verão, reduz-se para de 0,5 a 2 metros, tornando a superfície do solo pantanosa, uma vez que as águas não são absorvidas pelo solo congelado.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A ‘walmartização’ da economia global


Uma entrevista com o autor do livro Por que não nos odeiam. A verdadeira história do conflito de civilização. Uma análise corrosiva e brilhante da globalização e das formas de resistência que se desenvolvem no norte e no sul do planeta. A reportagem e a entrevista são de Benedetto Vecchi e foram publicadas pelo jornal Il Manifesto, 21-05-2008.

Mark LeVine é um jovem estudioso – ensina História Moderna do Oriente Médio na Universidade da Califórnia – para quem o paradigma do conflito de civilização é restrito; na verdade o considera o resultado de uma campanha ideológica real e oportuna para garantir a hegemonia ocidental no planeta. No volume Porque Não nos Odeiam (DerivaApprodi), sustenta que há muitos mais pontos de contato entre um homem de negócios do Marrocos e da Califórnia do que entre um operário de Chicago e um manager wasp da Wal-Mart. Para LeVine, na realidade, a globalização favoreceu o crescimento de uma elite global que compartilha não a religião, mas a mesma tendência de viver como um corpo separado dentro do estado-nação onde nasceram. Para o resto da população mundial, ao contrário, a articulação da identidade, das formas de vida produz uma colcha de retalhos na qual, por exemplo, o Islã convive com a música heavy metal ou o rap.





O senhor escreve muito sobre a difusão global de estilos de expressão, sobre formas artísticas que vêm moldadas segundo os contextos locais. O Senhor quer dizer que a globalização neoliberal está parada, enquanto a cultural não?


Na atual globalização, o social e o econômico foram “culturalizados”. Explico-me: as empresas baseiam seus lucros no poder da marca, enquanto fazem uma rede de empreendimentos externos fazer o trabalho “sujo”. Tudo isso significa que empresas, como Nike ou Microsoft, vendem a idéia de um produto que é produzido por outros. Também, no livro escrevo sobre “walmartização” da economia global. Wal Mart não é somente uma empresa transnacional, mas também um modelo de relação entre capital e força de trabalho oposto àquele normalmente definido como fordista. Nas fábricas automobilísticas de Henry Ford, é sabido, os salários eram relativamente altos, de tal modo que os operários podiam comprar o modelo T que produziam. Wal Mart, ao contrário, paga salários tão baixos que os seus empregados conseguem apenas sobreviver. Essa tendência de rebaixamento salarial vale em todo o mundo. Por exemplo, na Jordânia, as empresas não contratam os trabalhadores jordanianos ou palestinos, mas os homens e mulheres provenientes de Bangladesh ou do Paquistão, porque são “mais baratos”; desse modo, pode-se pagar-lhes pouquíssimo e rapidamente podem ser substituídos a qualquer momento. E isso acontece também em Dubai, em Israel, em qualquer lugar.

Atualmente, Rotana, o gigante saudita do entretenimento, traz à luz produtos culturais dentro de um modo de produção que não é assim tão diferente do que os intelectuais islâmicos denunciavam como orquestração ocidental de eliminar a diversidade cultural do Islã. Ao mesmo tempo, são manifestadas fortes tendências underground em que a hibridização entre o Islã e outras “culturas” é muito acentuada. Por exemplo, os jovens mulçumanos – o grupo demográfico mais importante dos países árabes – produzem artefatos culturais “contaminados”. E, desse modo, existem muitíssimos grupos de jovens islâmicos que tocam Heavy Metal. Essa é a “cultura de interferência”, o lado positivo da globalização que pode ajudar a formação de ações políticas e relações econômicas alternativas àquela proposta pelos extremistas neoliberais ou religiosos.

No volume, a globalização é sinônimo de desigualdade, uma bomba-relógio que pode trazer uma nova guerra global bem mais temível do que aquela preventiva desejada por George W. Bush. Cresce, além disso, a ascensão da China e da Índia. O senhor não acredita que realmente o ingresso fragoroso deles na boa sala de estar da economia mundial trará outro tipo de globalização e que precisará considerar recomposta aquela que o pesquisador Ken Pomerranz chamou de eterna “grande divergência”?



O livro de Pomeranz A grande divergência é importante, porque convida a olhar os eventos atuais dentro de uma perspectiva histórica de longa duração. Pomeranz afirma que até 1750 a China era a sociedade econômica e socialmente mais desenvolvida do mundo. Então, uma combinação de fatores (presença de enormes recursos naturais como o carvão e a madeira unidos ao acesso colonial às minas de prata do Novo Mundo) permitiu a alguns países o velho continente – a Inglaterra, França e mais tarde a Alemanha – conquistar a liderança da economia mundial. Concordo com essa reconstrução, porque ajuda a compreender o fato que o desenvolvimento capitalista europeu, e, mais tarde, o estadunidense, baseou-se sobre o que eu chamo de “a matriz da modernidade”. O colonialismo e o nacionalismo são fenômenos amplamente estudados: sem eles não teria sido possível o desenvolvimento capitalista.

Igualmente estudada é a tendência de reduzir os fenômenos sociais à entidade mensurável. Uma tendência à racionalização usada para construir a ideologia sobre superioridade ética, cultural do Ocidente com relação ao resto do planeta.

A atual relevância da China e da Índia no panorama mundial está seguramente em contra tendência em relação à história dos últimos séculos. Todavia, a realidade que está escondida atrás do “milagre asiático” é menos rósea que contínua. Na China, por exemplo, a democracia permanece uma miragem, ao passo que a opressão em que é mantida grande parte da população e o aumento das desigualdades sociais são os preços pagos pelos chineses pelo desenvolvimento econômico. Para completar esse triste afresco há o deslocamento voraginoso de milhões de camponeses em direção à cidade. A Índia, por sua vez, é com certeza um país democrático, mas com milhões de trabalhadores que recebem salários um pouco acima do nível de pobreza, enquanto se multiplicam as denúncias de corrupção do pessoal político e da burocracia estatal. O milagre econômico chinês e indiano está, sim, mudando o equilíbrio na globalização, mas não representa um modelo alternativo para ela. A China e a Índia constituem-se um exemplo de como funciona hoje a globalização.

Segundo o senhor, o Islã tornou-se uma marca global. Provocação por provocação: não acha que a reivindicação de uma identidade islâmica seja, na realidade, um modo para afirmar uma marca que participa do grande banquete da economia mundial?


Depende de qual Islã se fala. Existem, de fato, inumeráveis expressões da cultura islâmica, muitas das quais estão em conflito profundo, e freqüentemente radical, uma contra a outra. Por exemplo, se é desenvolvida uma cultura islâmica neoliberal, freqüentemente é ridiculariza como o “Islã do ar condicionado”, que é explícita da burguesia muçulmana, uma classe social protagonista na definição das políticas neoliberais dos regimes autoritários como o Egito, o Marrocos, a Tunísia, onde a repressão dos grupos islâmicos e de outros opositores foi particularmente brutal. A elite islâmica neoliberal vive em comunidade fechada, exibem artigos de grife, estão sempre conectados à rede, exatamente como a elite ocidental. Comportamentos e estilos de vida que têm a sua representação na visão distópica proposta na arquitetura de Dubai.

Até eu creio, então, que a elite dos países muçulmanos participa do grande banquete da economia mundial. Há, no entanto, mulheres e homens islâmicos que lutam contra a pobreza em seus países. A verdadeira questão é como todos nós, independentemente de nossa religião ou nacionalidade, podemos sentar-nos a uma mesa em que cada um possa comer segundo sua necessidade. Isso significa achar uma saída do neoliberalismo, antes que os danos sociais, ambientais e políticos desses produtos se tornem irreversíveis.

Um novo consenso é necessário




A superação da crise atual, sistêmica e estrutural, exige a construção de uma nova agenda civilizatória. Para isso, é preciso formar uma maioria política que alie capital produtivo e estratos sociais organizados, como trabalhadores e seus sindicatos, associações de bairros e entidades de classe média. Uma das principais tarefas é a defesa da sustentação das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo.

A análise é de Márcio Pochmann, presidente do IPEA, em artigo publicado pela Agência Carta Maior, 11-01-2009.


Eis um trecho do artigo:

"(...)Neste começo do século XXI, quando se conforma a sociedade pós-industrial que têm mais 70% das ocupações envolvidas com atividades intangíveis, a produtividade que mais cresce é aquela que decorre do trabalho imaterial. A concentração dessa nova e imensa riqueza em poucas mãos é que potencializa a grave crise do capital globalizado. O enfrentamento dessa crise requer receitas novas, contemporâneas com as oportunidades atualmente em curso. A transformação da propriedade em favor de todos, especialmente as decorrentes das propriedades financeira e intelectual, impõe exigências como educação para a vida toda, não mais para as faixas precoces da vida (crianças, adolescente e jovem).

Adultos e velhos necessitam continuar estudando ao longo da vida, especialmente numa sociedade cuja expectativa média de vida deve superar os 100 anos de idade. Para educação de vida toda, em que o exercício do trabalho pode ser realizado em qualquer lugar (casa, praça, aeroporto, rodoviária, entre outros), deixa de ser funcional a velha e rígida divisão fordista da atividade (trabalho) com inatividade (estudo), pois o trabalho material é realizado fundamentalmente no local próprio de trabalho (fábrica, escritório, fazenda, laboratório, etc.).

Com o trabalho imaterial sendo efetuado cada vez mais fora do seu local tradicional, não há razão técnica que justifique as longas jornadas oficiais de trabalho do século 20, pois do contrário o cidadão permanece plugado no trabalho heterônomo quase 24 horas por dia. Aumentar o tempo livre requer financiamento público, como para as ações que envolvam descontaminar o trabalhador das novas doenças profissionais.

Enfim, há oportunidade para que tudo isso pode e deve ser feito nos dias de hoje. Ademais da lutas sociais em termos do embate das idéias que possam revolucionar o projeto de sociedade atual, urge implantar uma profunda reforma do Estado que implique avançar o fundo público para mais de 2/3 do total do excedente econômico, por meio da tributação dos ricos, sobretudo os detentores das novas riquezas imateriais.

Da mesma forma, a ação estatal de novo tipo requer o seu próprio empoderamento para tratar do novo contexto global controlado por somente 500 grandes grupos econômicos, responsáveis por quase 50% do Produto Interno Bruto mundial. A defesa do espaço nacional, com exploração plena de todo o potencial econômica impõe fortalecimento da iniciativa privada, com novas regras que permitam ampliar a competição, mesmo com ação estatal em setores potencializadores da sociedade pós-industrial. Este Estado está ainda por ser constituído. Somente uma nova maioria política poderá viabilizar essa complexa e necessária construção. Que o Brasil lidere esse movimento, assim como na Depressão de 1929 foi um dos protagonistas a adotar o keynesianismo avant la lettre e, por isso, permitiu ser um dos primeiros países a superá-la."

Sem chuva da Amazônia, SP vira deserto





São Paulo tem vocação natural para deserto. Só não é terra seca porque existem os Andes e a Amazônia. "Os Andes não vão sair de lá, a não ser que aconteça um cataclisma. Mas destruir a Amazônia para avançar a fronteira agrícola é dar um tiro no pé do agronegócio." O agrônomo Antonio Nobre, 50 anos, 22 deles vividos na Amazônia e autor da frase acima, tem se dedicado a estudar e dar visibilidade aos trabalhos de colegas sobre o regime de chuvas no país, uma área difícil, de poucos dados, e fundamental no horizonte do aquecimento global. "A Amazônia é uma bomba hidrológica gigantesca que traz a umidade do Oceano Atlântico para dentro do continente e garante que a região responsável por 70% do PIB da América do Sul seja irrigada", continua.

A reportagem e a entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 12-01-2009.

Antonio Nobre vem de família rara. O pai era jogador de futebol, a mãe, pintora. Criaram seis filhos com DNA dominante de cientista. O irmão mais velho é Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas do país. Paulo estuda como a destruição da Amazônia afeta os oceanos e é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde também trabalham Carlos e Antonio. Outro irmão é professor da Fundação Getúlio Vargas, o caçula faz doutorado em ecoturismo no Colorado (EUA). A única mulher do time é psicóloga e astróloga - "faz pesquisa no sutil", diz Antonio, casado com uma pesquisadora do Inpe.

Com mestrado em biologia tropical pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (o Inpa, de Manaus), e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, há cinco anos Antonio é o homem do Inpa dentro do Inpe. Em sua sala em São José dos Campos (SP), rodeado por quadros da mãe, busca conectar a experiência amazônica com o que os satélites enxergam do espaço. Como todos os cientistas que se dedicam à mudança climática, o que vê não é promissor. "Temos cinco ou seis anos para impedir que uma catástrofe maior se estabeleça."

Entre os mais novos estudos que vem recolhendo sobre o regime das chuvas, há dados impressionantes. A Amazônia evapora, em um único dia, 20 bilhões de toneladas de água. "Este rio voador, que sai para a atmosfera na forma de vapor, é maior que o maior rio da Terra", diz Antonio, comparando o potencial de chuvas da Amazônia às 17 bilhões de toneladas de água que o Amazonas lança todos os dias no Atlântico. "Está se descobrindo que a floresta é dez vezes mais importante do que se imaginava", diz ele. "Estudos mostram que, nas regiões com floresta, a chuva continua igual por 500 km, 2 mil km; nas regiões do mundo onde ela foi tirada, dentro do continente é deserto", explica.

O cientista lembra que as primeiras consequências do desmatamento já são sensíveis. Em Tocantins, Pará e Mato Grosso já se detectam temperaturas muito altas. O Rio Grande do Sul está perdendo safras. "Não é para parar com o desmatamento da Amazônia em 2015. Era para parar ontem. Tem que ser zero, nenhuma árvore mais derrubada. Precisamos replantar a floresta."

Na entrevista, Nobre explica como chuvas, ventos, oceanos e florestas estão interligados e por que alterar este equilíbrio pode trazer danos irreversíveis à vida.

Eis a entrevista.

Como o senhor interpreta as chuvas que castigam Santa Catarina, Minas, Espírito Santo?

O único comentário que tenho é que lamentavelmente isso pode ser fichinha diante do que está vindo. Eventos extremos sempre aconteceram, mas a Terra tem mecanismos de atenuação. Agora, como a humanidade tem perturbado esses mecanismos, estamos tendo um aumento de frequência desses eventos. Professores da Universidade Federal de Santa Catarina disseram que o sofrimento que esta chuva produziu é quase 100% responsabilidade da forma como foi feita a ocupação naquela região. É o mesmo que acontece em Minas, no Rio e está sendo imposto na Amazônia. Um sofrimento decorrente de construir em encostas íngremes, de cortar floresta e deixar a região fragilizada. O problema não é da natureza, é humano. Santa Catarina é uma região propensa a esse tipo de evento, infelizmente. Mas também é uma prova da falência do sistema político brasileiro, que só atende ao imediatismo. O Código Florestal, desrespeitado, é de 1965 e nem leva em consideração as mudanças climáticas. Se levasse, seria muito mais restritivo, porque só temos cinco ou seis anos para impedir que a catástrofe maior se estabeleça sem chance de retorno.

O Brasil está enxergando a Amazônia com outros olhos?

O imaginário coletivo coloca nas florestas tropicais de modo geral, e na Amazônia, de modo particular, a sensação de algo de muito valor, de coisa grandiosa, mística. A Amazon.com não escolheu seu nome à toa. As pessoas atribuem esse valor ao sentido de paraíso perdido, de riqueza, de vida. Isso é senso comum. Exceto por um povo no mundo: o brasileiro.

Por quê?

Porque o brasileiro médio acha que está deitado eternamente em berço esplêndido. E ele entende por isso vastas áreas propícias para agricultura, chuvas plenas, clima ameno, rios caudalosos que permitem geração de energia, um eldorado de minerais e agora o petróleo. É um país abençoado. Isso define a visão ufanista de que temos valores extraordinários no Brasil.

E não é assim?

Analise o que falei: área para agricultura, água nos rios para energia, biocombustíveis, minerais, não tem nada vivo! Bem, a agricultura é viva, mas não é natural. O berço esplêndido do brasileiro é a terra aberta, não há registro da nossa herança viva. É a nossa visão cultural. O verde está lá, tremulando na bandeira, mas não o valorizamos.

Por que não?

Várias razões. Uma é a que chamo herança maldita dos invasores. O europeu que chegava aqui, na colonização, era o que tinha de pior naquela sociedade. Mercenários que encontravam uma terra sem lei nem rei, onde havia uma floresta de vigor incrível, ouro, povos sem exército nem pólvora. Toda essa abundância ofertada obscenamente para pilhagem. E com o agravante da Igreja, que dizia que os povos da terra não tinham alma enquanto não fossem batizados. Portanto, o conhecimento da natureza que esses povos tinham valia zero. Assim se removeu o saber indígena do "pool" cultural do brasileiro e o pouco caso com o ambiente passou a fazer parte do nosso caráter.

Como se muda isso?

Primeiro reconhecendo que tem carrapato em cima da vaca. Por que o brasileiro chama floresta de mata? Mata é coisa sem valor. Porque era assim para o invasor e nós perpetuamos a rapina. Continua ativa a mesma mentalidade, hoje disfarçada de direito, que faz parte do nosso sistema de valores, foi incorporada no governo e se disfarçou. Agora se chama desenvolvimento. Temos que reconhecer esse fardo ignaro e pensar positivamente para frente. Parar de brigar ambientalista com desenvolvimentista e redescobrir nossa identidade. O brasileiro tem uma reação forte contra pirataria: "Estão roubando os nossos bens", diz, indignado. Mas um ataque sem precedentes aos biomas, com tratores e correntões, motosserra e fogo não desperta revolta. É claro que temos que desenvolver, precisamos de agricultura. O Blairo Maggi [governador do Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo] perguntou outro dia se queremos árvores ou se queremos comida. É um dilema totalmente falso.

Por quê?

Porque sem árvores não tem água e sem água não tem comida. Uma tonelada de soja consome várias toneladas de água para ser produzida. Quando exportamos soja, estamos exportando água doce para países que não têm esta chuva e não podem produzir. É o mesmo com o algodão, com o álcool. Água é o principal insumo agrícola. Se não fosse assim, o Saara seria verde, porque tem solos fertilíssimos.

As pessoas acreditam que chuva é um fenômeno eterno...

Pois é. Mas pense numa caixa d´água. Se tem só um cano saindo e nenhum entrando, vai esvaziar. Os rios saem dos continentes e vão para o oceano. Precisa ter alguma volta de água ou seca o continente.

De onde vem essa água?

Essa é uma pergunta que ninguém se faz. Aprendemos assim na escola: a água salgada do mar evapora pela ação do sol, o sal fica no mar e a água doce forma as nuvens. O vento sopra a umidade, chove no continente e a água volta para os rios.




Está errado?

Então devia ter água em todos os continentes da Terra, mas existem desertos, não é? É só olhar o globo e ver que em toda a zona equatorial tem florestas. Ou tinha, as estamos destruindo. Mas nas áreas contíguas, a 30 graus de latitude norte e sul, existem desertos. O Kalahari, deserto da Namíbia, o Atacama, o Saara. Isso tem uma explicação, chama-se circulação de Hadley: a parte central do planeta recebe maior radiação solar, ilumina muito, é uma área muito quente, evapora muita água, a evaporação produz chuvas na região. A produção de chuva faz com que o ar circule assim: sobe no Equador e desce a uns 30 graus norte e sul. O ar que sobe, perde umidade, chove; quando desce rouba umidade da superfície e formam-se os desertos. Só há duas exceções, no Sul da China, um lugar atrás do Himalaia, e na região que produz 70% do PIB da América do Sul, o quadrilátero que vai de Cuiabá a Buenos Aires e de São Paulo aos Andes. Toda essa atividade econômica depende de chuva. Se prevalecesse a circulação de Hadley, seria deserto também. Teria floresta na Amazônia e aqui não teria nada.

E por que não é deserto?

Por duas razões. Uma, publicada pelo José Marengo [outro especialista em clima, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Inpe]. Se esta região deveria ser deserto e não é, tem algo na América do Sul que é diferente. O quê? Os Andes, uma parede de 6 mil metros de altura, que corta o continente até a Patagônia. Funciona assim: a massa de ar gira sempre de leste para oeste em cima do Equador e o vento sopra ao contrário na faixa entre a zona equatorial e a polar. A umidade do Atlântico entra sobre a Amazônia, a floresta a mantém, e se não existissem os Andes passaria direto ao Pacífico. Mas o ar bate na cordilheira e no verão consegue chegar ao sul e irrigar o nosso quadrilátero produtivo.

É uma chuva importante?

Significa mais de 90% da chuva que cai na região. A transmissão de umidade da Amazônia para o centro agrícola da América do Sul é o que faz produzir e não deixa a área virar deserto. A condição dos Andes é importante, é por isso que o pessoal diz que o Acre é onde o vento faz a curva. Mas é o segundo fator que considero o mais importante: temos uma esponja verde como cabeceira de água na América do Sul, a floresta amazônica. As árvores conseguem evaporar mais água do que os oceanos por unidade de área.

Como é esta comparação?

Nobre: Uma árvore grande, com copa de 20 metros, chega a evaporar 300 litros de água por dia. No oceano, 1 m2 é 1 m2 de superfície evaporadora. Mas 1m2 de floresta chega a ter 8, 10 m2 de folha. Evapora oito, dez vezes mais que o oceano. A floresta é como um radiador de automóvel, é um evaporador otimizado. As folhas são distribuídas em vários níveis por 40 m de altura. O vento vem, encontra a superfície cheia de galhos, faz turbulência, gira, entra pelo meio. Isso ajuda a remover umidade da superfície. Medimos o quanto a Amazônia evapora, é um número astronômico: 20 bilhões de toneladas de água em um dia. Para ter ideia do que é este volume, o rio Amazonas lança 17 bilhões de toneladas de água por dia no Atlântico. Este rio voador, que sai para a atmosfera na forma de vapor, é maior que o maior rio da Terra.

É por isso que o senhor diz que avançar a fronteira agrícola para a Amazônia é dar um tiro no pé?

Claro. A Amazônia é uma gigantesca bomba de água. A evaporação precisa do sol para acontecer. Calculamos quanta energia seria necessária para evaporar toda aquela água. Quantas Itaipus precisaríamos para evaporar um dia de água da Amazônia? Precisaríamos de 50 mil Itaipus a plena carga.

Como atua essa bomba?

Cerca de 50% da chuva cai de novo na floresta. O fato de ela absorver essa energia toda na superfície e liberar em altitude, onde condensam as nuvens, produz circulação atmosférica. A floresta gera uma bomba que puxa o vento do oceano para dentro da terra. Chega este ar cheio de umidade, chove, a floresta evapora, o ar úmido continua seu caminho para dentro do continente, chove de novo. São 4 mil km até os Andes. Quando alcança os Andes, ainda está carregado de umidade, bate na cordilheira, desce e vai irrigar as plantações de soja do Centro-Oeste, Sudeste, Sul e segue. Estudos mostram que nas regiões com floresta, a chuva continua igual por 2 mil km. Nas regiões onde foi tirada, lá para dentro do continente é deserto. As primeiras consequências do desmatamento já estão disponíveis. O Rio Grande do Sul já está perdendo safras. Se desmatarmos e enfraquecermos a bomba, a região toda vai secar, porque é seu destino natural.




A Amazônia, então, é fundamental para a agricultura?

Está se descobrindo que a floresta é dez vezes mais importante do que se imaginava. Tem outros fatores, também: a floresta faz chover. Essa foi uma descoberta fantástica do projeto LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia). Gotas precisam de alguma coisa sólida para se formarem, é fácil perceber quando se tira uma garrafa de refrigerante da geladeira e formam-se gotinhas em volta. A floresta emite vapores orgânicos para a atmosfera, que funcionam como sementes de nuvens. Mas precisa ser a quantidade certa para chover, se tiver demais não chove. A fumaça das queimadas introduz partículas demais na atmosfera, seca as nuvens e elas não chovem. Durante o período seco, das queimadas, a floresta sempre mantinha uma chuvinha que a deixava úmida e não-inflamável. Agora passam dois meses sem chover. A floresta começa a ficar muito seca e o fogo entra por ela. As árvores da Amazônia, diferente do Cerrado, não têm resistência ao fogo. Um fogo bobo mata todas as árvores que têm raízes rasas, e aquela floresta está condenada. Existem árvores imensas sendo destruídas assim.

Então é um mito que a Amazônia é muito forte?

É forte quando o regime de chuvas está perfeito, mas com fogo, correntão e motosserra fica difícil. Em Tocantins, está dando 40 graus. No Pará e no Norte do Mato Grosso, registramos temperaturas muito altas. Cuiabá é quentíssima. Já está em curso um processo que a gente não sabe se é sem volta e temos que acabar com a hipocrisia que acende esse debate. Não é para parar com o desmate em 2015. Era para parar ontem, zero, nenhuma árvore mais derrubada. Temos que replantar a floresta.

O sr. faz uma espécie de militância científica?

Foi o efeito da floresta no meu espírito. Eu me senti muito frustrado com tudo o que vivenciei na Amazônia. Tive uma fase de militância ambientalista, depois vi que temos que ter pé no chão e não falar só "não pode". Mas, se destruirmos as florestas, vamos estourar o nosso sistema climático. A condição do sistema terrestre hoje é a de já estarmos na UTI com falência múltipla de órgãos. Isso é o aquecimento global. A queima de combustíveis fósseis tem papel importante, mas a destruição dos órgãos de manutenção do clima, florestas e oceanos é o principal fator para o descontrole global. Não adianta todos os carros virarem elétricos se continuarmos a desmatar.

Quem conhece as coisas da Amazônia?

Os povos nativos, intuitivamente. Mas são desrespeitados, não são valorizados. Temos que considerá-los um dia, se quisermos ser uma grande nação. E existe o conhecimento científico disperso em uma enorme variedade de disciplinas. Eu sou um garimpeiro de pérolas, em diferentes áreas. É isso que faço, ligo uma coisa à outra.

O senhor é otimista sobre a nossa mudança de consciência?

Não consigo ver a mudança sem passarmos, infelizmente, por uma catástrofe. Aqui, o crescimento sem controle do agronegócio está danificando o funcionamento hidrológico da América do Sul. Enquanto lá fora se fala em serviços ambientais, aqui é só agronegócio, aço, minério, assuntos do século XX. A gente só chega depois, temos mentalidade de colônia até hoje. Mas o mundo vai depender cada vez mais dos nossos serviços ambientais. O Brasil não é só grãos.




Extraído de: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=19253

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O que Debord diria...?

Ontem e Hoje...


Selecionado, bebê nasce na Inglaterra sem gene para câncer de mama




O primeiro bebê britânico selecionado para não ter um gene relacionado ao câncer de mama nasceu em Londres, informou nesta sexta-feira (9) o hospital do University College. O embrião que deu origem à menina passou por um diagnóstico pré-implante, para evitar que a criança tivesse uma variação do gene BRCA1, que aumenta o risco de câncer de mama ou de ovário.

Em junho do ano passado passado, a mãe, de 27 anos, decidiu recorrer à escolha genética após ver de perto o caso familiar. Três gerações de mulheres de sua família --entre elas sua avó, mãe, irmã e uma prima- tiveram o tumor diagnosticado. O marido também é portador do gene.

O diretor da Unidade de Reprodução Assistida do hospital, Paul Serhal, que não informou a data do nascimento, disse hoje que "a menina não terá que enfrentar o risco desta carga genética do câncer de mama ou câncer de ovário quando for adulta". A identidade dos pais criança não foi anunciada.

Sem a intervenção da ciência, a menina teria entre 50% e 80% de probabilidades de desenvolver o tumor. Por isto, a equipe médica examinou diversos embriões e selecionou os que estavam livres deste gene.

Cerca de mil bebês nasceram até agora se beneficiando deste método de seleção genética para eliminar a carga genética de outras doenças, como a fibrose cística ou a doença de Huntington.


Esse tipo de procedimento está proibido na Alemanha, Áustria, Itália e Suíça. Em compensação, é autorizado na Bélgica, Dinamarca, Espanha e Reino Unido. Na França é permitido apenas para detectar uma doença genética incurável, como a miopatia ou mucoviscidose.

Em 2006, o Reino Unido ampliou a possibilidade de recorrer ao diagnóstico, acrescentando a mutação genética BRCA 1.


Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u488217.shtml


quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Alerta amarelo


"...todos os sem-abrigo que queiram ter uma cama para descansar durante a noite o podem fazer. Mas as estações de metro e a Gare do Oriente também poderão abrir durante a noite para quem não tenha casa, mas só no caso de as condições meteorológicas se agravarem e se se passar para o nível de alerta vermelho, que neste momento é amarelo".


(Extraído de : Blog Farpa Kultural)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Inteligência suicida ?


Inteligência suicida e os ataques dos bandidos



Por: Salvador Nogueira

Então, eu moro em São Paulo.
Uma das coisas que inevitavelmente a gente pensa depois de uma crise de violência como essas --sem precedentes na cidade e no Estado-- é "por que tem de ser assim?". Não sei a sua opinião, mas para mim uma situação como essa, de total descontrole do governo, histeria da população e desfaçatez dos bandidos, agride a minha própria humanidade. Gosto de acreditar que vamos --e estamos sempre a-- progredir. No que diz respeito ao futuro da nossa espécie, na Terra e fora dela, costumo ser um otimista. Mas eventos como esse colocam a incômoda questão: será?

Não se preocupe. O resto da coluna não vai ser sobre a bandidagem -- eu não agüento mais esse assunto e espero que você também esteja se cansando dele, a essa altura do campeonato. Mas acho que surge aqui uma boa oportunidade para discutirmos uma questão transcendente, bem à moda do mensageiro sideral. Então, lá vai ela: estamos sós no Universo?

Esta é a sua deixa. "Ei, peraí", você me diz. "O que a violência urbana tem a ver com vida extraterrestre?" Com vocês, Enrico Fermi, o brilhante físico do século 20.

Cientista italiano radicado nos Estados Unidos, Fermi ficou conhecido por suas pesquisas sobre física de partículas --o famoso Fermilab, em Illinois, ganhou seu nome em homenagem a ele. Mas, no que diz respeito à busca por vida alienígena, ele não era um dos mais entusiásticos apoiadores.

O assunto surgiu na mesa de Fermi e seus colegas num almoço, em 1950. Alguns deles defendiam fortemente a hipótese de inteligência extraterrestre, citando as já conhecidas estatísticas: a Terra é só um planeta, de vários que orbitam ao redor do Sol, que é uma estrela entre 200 bilhões delas na galáxia, que é apenas uma de bilhões e bilhões de galáxias. Como pode, em toda essa quase infinita variedade, haver apenas um lugar com vida inteligente?

Fermi respondeu a seus amigos com uma pergunta. "Muito bem", disse ele. "Mas então onde está todo mundo?"

Pode parecer ingênuo, mas não é. Uns cálculos rápidos mostram que uma civilização inteligente, mesmo num ritmo modorrento (vulgo, abaixo da velocidade da luz), poderia colonizar toda a Via Láctea, com suas incontáveis estrelas, em menos de 1 milhão de anos. Nós ainda não chegamos ao nível tecnológico que permitiria o início dessa colonização. Mas nós só entramos no jogo há uns 160 mil anos (se contarmos apenas a versão Homo sapiens), e a galáxia está aí há uns 13 bilhões de anos. Pelo mesmo argumento estatístico dos entusiastas por alienígenas, alguém deve ter chegado antes de nós. Então, por que ninguém colonizou o Sistema Solar antes que começássemos a explorá-lo? Esse problema ficou conhecido como paradoxo de Fermi --e a resposta para o enigma ninguém ainda tem. (Obrigado pela presença, Enrico. Você pode ir agora.)

Uma possibilidade assustadora é que (e agora você vai entender onde o PCC, Osama bin Laden e outros dessa turma entram na conversa) nenhuma civilização tenha colonizado a Via Láctea ainda simplesmente porque nenhuma civilização consegue sobreviver a si mesma depois que atinge um certo nível tecnológico.

Animais evoluem no ambiente de competição da natureza, e instintos violentos necessariamente fazem parte desse pacote. Ainda que sejamos conscientes e inteligentes, capazes de ações racionais e não puramente instintivas, nossa evolução nos legou esse fardo. Até aí tudo bem --brigas de estádio não têm o poder de destruir civilizações inteiras.
Infelizmente, o tempo dos socos e pontapés está cada vez mais no passado. Civilizações tecnológicas desenvolvem, com o tempo, formas cada vez mais sofisticadas de violência. Basta lembrarmos as duas tecnologias que impulsionaram nossas primeiras idas ao espaço, foguetes poderosos (vulgo mísseis balísticos intercontinentais) e bombas atômicas. Essas duas criações, juntas, podem facilmente propiciar a destruição da civilização. Felizmente, elas são caras o bastante (ainda) para estar apenas ao alcance de instituições governamentais, mas não nas mãos dos terroristas e criminosos de fundo de quintal. Então, salvo a ação de algum maluco (alguém aí pensou GWB?), por ora, a destruição está fora do alcance.

Sir Martin Rees


Mas por quanto tempo? Em seu livro "Hora Final", o astrônomo real britânico, sir Martin Rees, defende que exista uma chance de mais de 50% de uma grande catástrofe capaz de destruir civilizações ocorrer ao longo do século 21. Ele aponta que, somando-se ao temor nuclear, novas tecnologias, como o desenvolvimento de máquinas minúsculas capazes de auto-replicação e de supervírus, estão atingindo maturidade suficiente para ameaçar a humanidade. Mais que isso, Rees ressalta que o uso de algumas dessas novas tecnologias não exige um esforço do tamanho do Projeto Manhattan (que desenvolveu as primeiras armas nucleares americanas). Em vez disso, qualquer pé-rapado com um mínimo de conhecimento, um laboratório de meia pataca, uma conexão à internet e uns poucos equipamentos e suprimentos pode ser suficiente. E o poder de devastação seria tão grande -- ou até maior --que o de uma bomba atômica.

Trocando em miúdos, o poder de fazer grandes estragos está cada vez mais na mão de indivíduos. E há muitos loucos por aí. Será que essa é a reposta ao paradoxo de Fermi?

Gostaria de acreditar que não. E há os otimistas. O astrobiólogo americano David Grinspoon, por exemplo, em seu livro "Planetas Solitários", usa as estatísticas para superar esse temor. Ele acredita que, com muitas civilizações surgindo no Universo, é muito improvável que pelo menos algumas delas não consigam superar esse "gargalo tecnológico" e sobreviver. Fermi entra correndo pela lateral do palco e diz: "Onde elas estão?"

Grinspoon não sabe. Eu também não. Só sei que, quanto mais tempo nós sobrevivermos a nós mesmos, maiores devem ser nossas esperanças de encontrar alguém lá fora e aplacar a nossa solidão cósmica.


Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Os cybermanos e a periferia globalizada


Por: Vladimir Cunha



Apropriar-se da cultura periférica, simplificá-la e revendê-la no menor espaço de tempo para o maior número de pessoas possível. Durante quase cem anos, essa foi uma das estratégias de sobrevivência da indústria do entretenimento. Ainda que não seja visível a olho nu, como nas embalagens de extrato de tomate, existe um prazo de validade que determina a duração de seus produtos. A indústria do entretenimento não é dinâmica. É estática, monocultural e de curta duração. Daí recorrer à periferia quando lhe faltam idéias, reciclando estéticas e movimentos espontâneos, transformando-os em divertimento limpo e seguro para as massas.

O spiritual do final do século XIX resultou no blues. E o blues, ao misturar-se com o country, deu ao mundo o rock'n'roll, que, bem mais tarde, permitiu aos Beatles fragmentarem-se em discos, pôsteres, lancheiras, bottons e desenhos animados, o primeiro produto de massas da música jovem. A literatura beat forneceu a base teórica/comportamental da contracultura norte-americana dos anos 60, posteriormente transformada no movimento hippie e diluída para ser aproveitada pela indústria na moda, no cinema e na televisão. A morte de Jack Kerouac, a prisão de Timothy Leary e Abbie Hoffman na clandestinidade são o contraponto ao desbunde capitalista de Woodstock e a "psicodelia" como tendência de mercado, um filão lucrativo explorado em forma de pastiche em seriados como The Banana Splits e filmes como A Fantástica Fábrica de Chocolate e, mais tarde, de forma ingênua e equivocada pela Jovem Guarda brasileira.

Não que, vez ou outra, manifestações autênticas de rebeldia e inconformismo artístico escapem ao controle dos mass media. O "fuck" dos Sex Pistols na televisão inglesa é um bom exemplo disso. No entanto, a indústria do entretenimento é, sobretudo, baseada no consenso. Ela pode até usar, em maior ou menor grau, conceitos gerados por movimentos periféricos. Ainda assim, tenderá sempre a reduzi-los ao mínimo denominador comum, aproveitando a novidade apenas como forma de edulcorar formatos anteriores já testados à exaustão.

Em conceito, Christina Aguilera é uma atriz de música negra: usa bases de funk e hip-hop, recorre a inflexões vocais características do R&B e renega a assepsia visual dos ídolos adolescentes da classe média WASP norte-americana. Como as cantoras de rap e de R&B, Christina rebola, usa roupas apertadas e simula ter uma sensualidade que a América branca e conservadora condenaria em outras circunstâncias. Mas Christina é, acima de tudo, um produto da indústria do entretenimento, vendida como passatempo seguro, que desperta em seus fãs tanto fantasias de transgressão social e sexual quanto estimula o conformismo ao estabelecer limites para a sua própria "rebeldia". Da cultura negra, ela utiliza apenas uma estética estilizada e branda, que lhe permite um certo verniz transgressor mas não compromete sua aceitação por parte do grande público.

Partido deste princípio, é possível traçar um paralelo entre o método de apropriação utilizado pela indústria do entretenimento e o desenvolvimento das culturas alternativas no Brasil. Ao contrário dos países onde elas se desenvolvem, certas tendências chegam ao nosso país como um produto destinado ao consumo de uma pequena parcela da sociedade, justamente aquela que possui melhores condições financeiras. O conhecimento e o acesso a determinado produto passam a ser não uma bandeira social e cultural e sim um símbolo de status para ser exibido entre um número restrito de iniciados.
Tomemos o exemplo da música eletrônica no Brasil e a cultura dos VIPs, das microcelebridades, do exclusivismo e dos códigos estéticos. Erroneamente, parte dos consumidores da música eletrônica no Brasil associa o estilo à manutenção de um conceito equivocado de modernidade, fechando-se em grupos e subculturas incipientes. É o que possibilita o surgimento dos clubes com política de porta e a tentativas, às vezes bem-sucedidas, de se estabelecer códigos sociais e estéticos.

Porém, o esnobismo exagerado de parte da cultura eletrônica brasileira acaba por eclipsar a verdadeira modernidade. Em sua essência, a palavra "moderno" está ligada ao modo de fazer as coisas. Ser moderno não é ter acesso a fontes de informação antes de todo mundo ou ter a capacidade de seguir tendências. Ser moderno é criar um fazer diferente, é confrontar aquilo que está estabelecido através de caminhos alternativos. Assim, a modernidade não está nas roupas de griffe "feitas para se usar na rave", nos modismos importados e muito menos no name dropping (mania elitista de citar rótulos e nomes na tentativa de impressionar alguém). A modernidade está, por exemplo, na periferia, que numa tentativa de driblar suas próprias deficiências culturais e financeiras acaba se tornando a fonte das mais interessantes e originais manifestações culturais. Do reggae criado em precários estúdios de dois canais nas favelas de Kingston ao rap saído das festinhas barra-pesada do Bronx, da zoeira musical dos punks londrinos as belas melodias que Cartola criou nos morros cariocas.

Isso só reafirma ainda mais a distorção de valores que regem alguns setores da cena eletrônica brasileira. Aqui é negado às classes mais baixas o acesso a uma cultura que, em seu país de origem, saiu exatamente das zonas mais pobres. As raves começaram como festas ilegais nos subúrbios de Londres, feitas por gente que não tolerava a política dos clubes, e o drum’n’bass nasceu nas quebradas de Brixton com influências diretas do reggae e do rap. E mesmo o DJ-artista, incluindo aí a negação ao star system da indústria cultural, tem raízes fincadas nos bairros negros jamaicanos e norte-americanos, especialmente no caso dos primeiros bailes de rap do final dos anos 70.

No Brasil, ao contrário, essa distorção da cultura eletrônica se estabeleceu em dois pontos distintos: no gueto-chic e na simplificação da e-music, exatamente o modelo de apropriação padrão da indústria do entretenimento. Nos dois casos, o que vemos são atitudes equivocadas. A primeira por transferir para eletrônica todos os vícios das elites brasileiras (através de preços altos, política de porta, preconceito e dress code). A segunda por diluir um estilo musical com propósitos exclusivamente comerciais (qualquer eletrônica passa a ser "techno", qualquer roupa extravagante passa a ser "moderna" ou "clubber", toda a festa se transforma em "rave").

Por outro lado, a descoberta de que a eletrônica, antes de ser um estilo musical, é uma ferramenta que possibilita um fazer artístico diferente, permite a periferia recombinar suas referencias sonoras criando assim música barata e, sobretudo, moderna. Dos subúrbios cariocas sai o funk, o amálgama bastardo surgido da semente plantada por Afrikaa Bambaataa e outros mestres da black music e (dizem) de um sonho revelador no qual o DJ Marlboro aprendeu a programar uma drum machine (“O que acontecerá se a cena electro de NY descobrir o Marlboro?”, alguém já perguntou por aí). Na periferia de São Paulo, legiões de cybermanos adaptam o drum`n`bass a realidade brasileira num processo que gerou artistas como Marky e Patife. E em Belém do Pará, o reggae, o raggamufim` e o drum`n`bass misturam-se a ecos de Kraftwerk em nome do tecnobrega, a meta-música das aparelhagens de som e das turmas de dançarinos de rua.

Obviamente, o maior desafio está em aceitar que a modernidade se faz presente também nos subúrbios, que bairros pobres podem produzir uma cultura de rua original e vibrante. Os rígidos códigos de postura e a vontade de se integrar a uma suposta vanguarda impedem que gêneros como o tecnobrega, o funk carioca e o drum`n`bass dos cybermanos recebam o mesmo grau de importância que a musica eletrônica feita na Europa e nos Estados Unidos. E enquanto periferia aprende que computadores podem fazer arte, o gueto chic deslumbra-se com a sua própria alienação, fingindo que ao seu redor nada acontece. Pelo menos até o próximo modismo.


Fonte: http://kfl.blogspot.com/

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Metano sob o Ártico comecou a vazar. Isso é um sério perigo.



Por: Alexandre Mansur

Existe um fenômeno pouco divulgado, que começou a ser identificado pelos pesquisadores. Os gigantescos depósitos de metano, localizados embaixo da camada de solo congelado (permafrost) sob o oceano Ártico, começaram a vazar. E eles podem fazer o aquecimento global mergulhar em um processo de aceleração irreversível. É o que relatam pesquisadores da Universidade do Alasca.

Um grupo coordenado pelo cientista Igor Semiletov descobriu que o metano está borbulhando no mar cada vez mais quente do Pólo Norte. O gás escapa em bolhas de buracos na camada de gelo no leito do oceano. Mais de mil medições feitas para avaliar o metano dissolvido na água na costa da Sibéria, feitas durante o verão, revelaram que os níveis do gás estão altos como nunca.

"As concentrações de metano são as mais altas já medidas no verão no Oceano Ártico", diz Semiletov. Esse vazamento de metano é preocupante por vários motivos.

Primeiro, muitos pesquisadores temem que um grande vazamento de metano do Ártico esteve ligado às transformações climáticas que provocaram uma das maiores ondas de extinção da Terra, há 250 milhões de anos, entre os períodos Permiano e Triássico. Na ocasião, 96% das espécies marinhas desapareceram e 70% dos vertebrados terrestres também sumiram. Um vazamento como esse também é associado a um período extremamente quente há 55 milhões de anos, chamado Termal Máximo do Paleoceno-Eoceno. Foi uma onda de extinções também grande, que abriu caminho para o desenvolvimento dos mamíferos atuais.

A segunda razão para preocupação é que os depósitos de metano sob o oceano são tão grandes e esse gás tem um poder tão alto para aquecer a atmosfera. Segundo alguns pesquisadores, basta soltar uma pequena fração desses depósitos para que qualquer esforço para estabilizar as emissões em níveis não catastróficos fique impossível.

A terceira causa para preocupação é que a agência americana responsável por oceanos e atmosfera, a NOAA, revelou que os níveis de metano na atmosfera da Terra subiram acentuadamente pela primeira vez desde 1998, quando esse acompanhamento começou. Isso indicaria que o vazamento de metano provocado pelo derretimento do Ártico já estaria alterando a química da atmosfera rapidamente.

Esse metano foi gerado pela decomposição de matéria orgânica – plantas e animais – há milhões de anos, em períodos em que a Terra esteve mais quente. E esteve aprisionado sob a camada de gelo embaixo do mar durante todo esse tempo.

Semiletov mede os níveis de metano na costa da Sibéria desde 1994. Nunca havia detectado elevações nos níveis de metano na década de 90. Mas desde 2003 ele diz que vem observando pontos de concentração excessiva do gás no oceano. Segundo ele, o derretimento do permafrost submarine pode ser consequência do crescente volume de água mais quente que vem dos rios siberianos. O volume deles têm aumentado devido ao derretimento do permafrost em terra firme.

A linha vermelha do gráfico abaixo mostra como a descarga de metano do Ártico pode estar provocando uma elevação dos níveis de metano na atmosfera da Terra. A linha vermelha mostra o nível de metano na atmosfera desde 2004. Além da oscilação sazonal de cada ano, há uma clara elevação no último ano medido.

A tradição vence o deserto



Burkina Fasso combate a desertificação e a mudança climática com técnicas tradicionais

Por: Gaëlle Dupont
Enviada especial a Gourcy, Burkina Fasso


Fonte: Le Monde Diplomatique

Um cavalo está amarrado na entrada do quintal de Ali Ouedraogo, no povoado de Gourcy, a 150 km ao norte de Ouagadougou, a capital de Burkina Fasso, em pleno Sael [faixa de campos áridos ao sul do deserto do Saara]. Não é uma coisa banal: um animal é um sinal de sucesso, a prova de que aos 78 anos Ali Ouedraogo vive melhor que seus vizinhos, agricultores como ele. No meio de seu quintal, três paióis circulares estão cheios de sorgo até o topo. Eles contêm o suficiente para alimentar toda a família até a próxima colheita, em setembro, talvez até mais. Quarenta pessoas, entre elas uma fieira de crianças, vivem disso, enquanto outras famílias já enfrentam escassez. Elas terão de sobreviver com babenda, um mingau com gosto de espinafre velho, feito de um punhado de cereais e muitas folhas.

Os campos de Ouedraogo não se parecem com os de seus vizinhos. Aqui o hábito é desmatar, plantar e colher até esgotar o solo, depois recomeçar um pouco mais longe. Os agricultores deixam para trás uma terra estéril, nua como um piso de cerâmica. Com o aumento da população cresce a necessidade de terras e mais se esgota o solo. É a engrenagem da desertificação, agravada pelos fatores climáticos.

Para Ali Ouedraogo tudo mudou em 1983. "Naquele momento a situação era muito dura", ele conta. "Não havia chuva, as colheitas eram ruins, eu pensava em deixar a região." Muitos emigraram. Ele decidiu ficar e cuidar das terras degradadas, que ninguém queria na época. Com a ajuda de uma organização não-governamental dedicada ao combate à desertificação, ele pouco a pouco bateu recordes de produtividade. Hoje colhe em média 1.500 quilos de sorgo por hectare, contra 800 quilos nas melhores terras das redondezas.

Para isso não houve necessidade de máquinas agrícolas, adubos químicos ou sementes milagrosas. Os agricultores não poderiam pagá-los. Nem de represas, pois o relevo não se presta. São necessárias pedras, picaretas, pás, um nível para calcular o sentido do escoamento da água e muita mão-de-obra. O objetivo é impedir a erosão e reter o máximo de água no solo.

"Trata-se de técnicas rurais tradicionais, aperfeiçoadas por agrônomos", explica Matthieu Ouedraogo, que forma os agricultores. Nos campos, fileiras de pedras, batizadas de cordões pedregosos, são feitas ao longo das curvas de nível, desenhando pequenos terraços. Árvores são plantadas aí. Barreiras em forma de meia-lua retêm a água em microbacias. Os "zai", buracos com 20 cm de profundidade onde as sementes são plantadas em esterco, permitem uma infiltração mais profunda da água.

"Todas essas técnicas contêm o escoamento da água", continua Matthieu Ouedraogo. "Pouco a pouco a terra se regenera." E as árvores que crescem nos terrenos fornecerão lenha que não será mais retirada da mata...

"Com essas técnicas podemos deixar o Sael verde de novo", afirma Souleymane Ouedraogo, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente e Pesquisas Agrícolas (Inera). "Contivemos a desertificação, aumentou a fertilidade das terras, e, portanto a produção de cereais e de ração para os animais, a biodiversidade se recupera." Bastam quatro ou cinco anos para obter bons resultados nas terras degradadas.



Por que então todo o Sael não é transformado? Em Burkina Fasso, cerca de 300 mil hectares estariam preparados, ou seja, menos de 9% da superfície cultivável do país. "Essas técnicas não são muito caras, mas é preciso um investimento inicial", explica Bertrand Reysset, engenheiro agrônomo do Comitê Inter-Estados de Combate à Seca no Sael (Cilss), que reúne nove países da região.

O investimento chega em média a 130 euros por hectare. É preciso alugar um caminhão e pagar o combustível para buscar as pedras, comprar um mínimo de material, pagar a mão-de-obra durante os trabalhos. Uma formação e um acompanhamento são necessários. Tudo isso está fora do alcance dos agricultores que trabalham com foice, dobrados em dois nos campos. Os bancos não lhes dão crédito. Os projetos implementados tiveram o financiamento de ONGs.

Essas técnicas, experimentadas desde os anos 1980 no âmbito do combate à desertificação, seriam muito úteis para adaptar-se à mudança climática. "Os modelos climáticos prevêem um aumento da freqüência de acontecimentos extremos, um prolongamento da estação seca, precipitações mais concentradas e torrenciais", explica Edwige Botoni, especialista em gestão de recursos naturais do Cilss. "Isso terá um impacto negativo na produtividade do solo."

A estação de chuvas de 2007 foi um exemplo perfeito disso. Ela começou atrasada e toda a água caiu ao mesmo tempo, em agosto, provocando inundações. "A luta contra a desertificação e a adaptação à mudança climática coincidem em 90%", afirma Reysset.

Todos esperam que a crise alimentar mundial faça mudar as coisas. Eles ouviram o discurso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que apelou para "aplicar esforços na agricultura de sobrevivência subsaariana" em 3 de junho em Roma, durante a cúpula sobre a alimentação. A agricultura é um parente pobre há 30 anos. Ela representa apenas 5% da ajuda pública ao desenvolvimento, e são raros os países que lhe dão prioridade. Ela vem depois dos ambulatórios, escolas, estradas...

Na aldeia de Guiè, ainda no norte de Burkina, a ONG Terra Verde obteve resultados especialmente espetaculares, criando um "bosque saeliano", segundo a expressão de seu fundador, Henri Girard, um engenheiro agrônomo francês. Cercas vivas protegem o solo da erosão. Com uma mecanização mínima, uma pequena dose de fertilizantes químicos, variedades selecionadas e rotações culturais bem escolhidas, a região reverdeceu e a produção é quatro vezes superior à média.

"É a prova de que não há fatalidade, que mesmo com nossos solos e nossos climas tudo é possível", comenta Hamado Sawadogo, agrônomo do Inera. O investimento inicial foi de 400 euros por hectare. Mas a evolução das práticas também exige uma mudança de mentalidade. "As pessoas aqui são fatalistas: se eu sou pobre, se perdi minha colheita, foi Deus quem quis", explica Girard. "Mas alguns se levantam. A cada 50 km há alguém disposto a se mexer."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Fonte: Le Monde Diplomatique

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O filósofo das HQs




Edgar Franco

Entrevista com Edgar Franco



(Extraído de: http://www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br/entrevistas69.htm)

Prolífico colaborador de fanzines e alternativos, Edgar Franco é o artista de quadrinhos herméticos, prenhos de reflexoes filosóficas, numa linguagem poética bem particular, mas que se destaca também por desenhos bem caracteristicos, humanóides de ambos os sexos e/ou hermafroditas, seres mitológicos, paisagens oníricas biomecanóides, que lembram a arte de Moebius, Caza, Bilal, Giger e outros mais.

- Idade, onde nasceu e cresceu, estado civil, filhos, formação acadêmica e profissional.

Estou atualmente com 31 anos, nasci na cidade de Ituiutaba no Triângulo Mineiro (sou extremamente telúrico, tenho que ir para minha cidade natal pelo menos duas vezes ao ano para repor minha energias...), sou casado com Rose já há 4 anos e estamos juntos a 12 (ela é minha conterrânea-alma gêmea), ainda não temos filhos. Sou graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília(UnB), em 2001 conclui o mestrado em multimeios na Unicamp , onde estudei a linguagem das HQs na Internet, o que resultou na dissertação "HQtrônicas (Histórias em Quadrinhos Eletrônicas) – Do Suporte Papel à Rede Internet,- ver artigo - e atualmente faço doutorado em artes na Escola de Comunicações e Artes da USP. Além de criar HQs para revistas & zines, trabalho com ilustração (capas de CDs & Livros), web arte e sou professor dos cursos de arquitetura e urbanismo & ciência da computação da PUC - MG, na unidade de Poços de Caldas, cidade onde resido atualmente.



-O quê e quando iniciou seu interesse pela Literatura, Quadrinhos e Cultura Pop em geral? Na infância você lia muito, tanto HQ quanto Literatura mainstream? Pode citar autores e obras que o influenciou?

Meu pai é um leitor inveterado, tem atualmente uma biblioteca com mais de 5.000 volumes, envolvendo todos os gêneros e assuntos, desde tenra idade eu cresci no meio dos livros, e foi muito natural o meu descobrimento do universo das letras. Meu pai sempre me deixou livre para escolher o que ler e inicialmente tive o meu interesse despertado por contistas como Edgar Allan Poe (meu nome é uma homenagem de meu pai a Poe e Edgar Wallace, dois autores que admirava na época), Guy de Maupassant, O. Henry, Ray Bradbury, isto por volta dos 10-11 anos. Mas desde tenra idade meu pai já comprava gibis pra eu ler, Disney, Brotoeja, Mortadelo e Salaminho, Mônica, durante uma fase li poucos gibis e me concentrei mais na literatura, foi por volta dos 13 anos que comecei a retomar gradativamente o interesse por quadrinhos, isso veio junto com a paixão pelo desenho, e na época um certo apreço pelas temáticas mórbidas, pelo horror. Eu assisti meu primeiro filme de horror aos 4 anos de idade, foi a versão clássica (p&b) de "O Fantasma da Ópera" que passou numa sessão noturna de TV em 1976, meu pai iria assistir ao filme, eu pedi a ele se podia ver também e ele deixou, até hoje ele se lembra bem de meu interesse e atenção, assisti tudo até o fim e nem precisei dormir na cama dos meus pais, he,he. Eu não gostava de super-heróis, não lia mesmo, achava um saco principalmente porque quando tentei ler parece que o gênero vivia uma fase horrível, só tinha herói dando porrada em herói, fui ter interesse novamente em super-heróis na década de oitenta, quando surgiram as obras clássicas de Frank Miller, Alan Moore, Grant Morisson; a única exceção foi o Conan, eu gostava de muitas HQs, principalmente as arte finalizadas pelo Alfredo Alcala. Mas o que eu lia mesmo era terror nacional, colecionava as revistas da D-Arte (que traziam trabalhos maravilhosos de Mozart Couto, Rodval Matias, Colin, Cortez, Ofeliano) e também garimpava nos sebos as antigas Kripta (com quadrinhistas clássicos dos EUA) e as Spektro & Pesadelo da Editora Vecchi. Foi também na década de 80 que vim a tomar contato com a HQ européia, conheci através da revista Animal e me deslumbrei, a partir dali vi que o que eu começava a criar tinha mais semelhanças com aquelas propostas do que com tudo que eu já tinha visto de quadrinhos. Só mais tarde fui conhecer autores como CAZA e DRUILLET dos quais sou grande admirador, mas considero que eles me influenciaram pouco, o meu trabalho já seguia o caminho atual quando me deparei com as obras deles, foi mais um lance de identificação do que uma influência propriamente dita. Eu sou mais influenciado pela literatura, artes plásticas e música do que pelos quadrinhos, gosto de citar como influência sempre o que estou lendo/vivenciando no momento, por isso agora estou sobre a influência do pensamento de Ken Wilber (Escritor e ensaísta americano, um dos criadores da psicologia transpessoal autor de " O Espectro da Consciência"), Rupert Sheldrake (polêmico biólogo que concebeu a "Teoria dos Campos Morfogenéticos"-veja Entrevista), Peter G. Bentley (autor de "Biologia Digital", livro onde eles questiona as noções vigentes do que é real e o que é virtual), Hans Moravec (cientista norte americano, estudioso de robótica e I.A. e autor de "Robot – Mere Machines to Transcendent Mind"), Stelarc (artista australiano que defende a tese de que "O Corpo Humano Está Obsoleto"), Eduardo Kac (que faz experimentos com "arte transgênica") e Stanislav Grof (criador da teoria da "mente holotrópica").



Ken Wilber



Na música tenho experimentado as vibraçoes de bandas como Negura Bunget (da Transilvânia), Rakoth (da Russia), Thee Maldoror Kollective, Napalmed, Recalcitrant, Dismal, Brighter Death Now, Daniele Brusaschetto, entre outros, inclusive tenho um site chamado KREPUSKULUM, onde faço resenhas e entrevistas com bandas underground do mundo inteiro, já está na décima edição, com mais de 700 resenhas de CDs e 90 entrevistas, quem quiser conhecer visite: http://www.geocities.com/krepuskulum/ .

-Como se iniciou profissionalmente no gênero e qual foi sua primeira atividade?

Bem, eu já publiquei HQs esporadicamente em diversas revistas, algumas que tiveram distribuição nacional, como a Metal Pesado e a Quark, mas também tive HQs publicadas em revistas como Quadreca (Eca/USP), Fêmea Feroz, Ervilha e no álbum Brazilian Heavy Metal, além de outras diversas HQs publicadas em revistas underground e alternativas do Brasil e Europa (Alemanha, Romênia, Portugal, Espanha, França e Inglaterra). Mas minha maior produção está concentrada nos fanzines, já publiquei em mais de 400 títulos, incluindo várias edições solo, e já ultrapassei a marca das mil páginas. Comecei a publicar em zines com 13-14 anos, quando criei minha primeira HQ, o nome do zine era Odisséia; o trabalho trazia um horror meio visceral, tinha o título de "O Filho de Lúcifer", mas já dava pra perceber a veia poética contaminando a narrativa.
Falar em "profissionalmente" para artistas dos quadrinhos no Brasil é piada, praticamente ninguém trabalha "profissionalmente" na atualidade...é complicado. Mas meu trabalho também sempre foi motivo de resistência por parte dos editores, é tido como hermético, pretencioso, ou não é considerado como quadrinhos por alguns, ou é tachado de setentista, hippie, ultrapassado, pornográfico, ou vanguardista demais...tenho colecionado dezenas de adjetivos que tentam denegrir minha proposta artística, mas apesar deles vou dando continuidade à obra, pois faço por prazer, por paixão. Se o Brazil tivesse um mercado de quadrinhos, artistas como eu, Gazy Andraus & Antônio Amaral seríamos os últimos da fila a sermos procurados pelos editores, já que não temos esse mercado, temos que nos contentar com a auto-publicação e com as oportunidades esporádicas e com o maravilhoso universo dos zines.




-Quando foi seu primeiro contato com o trabalho de Alan Moore e qual obra lhe causou algum impacto especial?

Comecei com "A Piada Mortal" e depois li o "Monstro do Pântano", fiquei fascinado com a densidade do texto, com as sutilezas do roteiro e a forte veia literária de Moore, são dois trabalhos impactantes, assim como a clássica "Watchmen", que desconstrói os famigerados Super-heróis e trabalha com propriedade os conceitos definidos pela Teoria do Caos (Gian Danton fez sua dissertação de mestrado analisando este aspecto da obra!). Tem um álbum que me foi emprestado pelo amigo Gazy Andraus, "A Small Killing", que é muito pungente, poderoso, um dos mergulhos de Moore na psicanálise Freudiana, implodindo-a em certos aspectos, é um trabalho que me impressionou muito, ainda mais depois que li um artigo de Andraus que desvela todo o subtexto desta obra.

-Preciso ver isto com o Gazy, urgente. Qual trabalho do mago bardo de Northampton que você considera sua obra-prima e porquê?

Como disse, gosto de diversos trabalhos e de maneiras diferentes, "V de Vingança", por exemplo, é muito interessante, mas muito diferente de "A Piada Mortal", ou de "Watchmen", não tenho predileção, são todos obras de uma mente genial, obrigatórios para aqueles que querem conhecer a fundo a importância das HQs enquanto gênero narrativo e artístico.

-Ao seu ver, quais foram as inovações mais importantes do autor? Especificamente sobre Watchmen e sua instigante forma narrativa – já apelidada de O Cidadaõ Kane da Nona Arte – o que tem a nos dizer?

O que mais me impressiona é que Moore parece não ter essa pretensão de ser genial, ele quer só escrever boas histórias, eu não me considero em nada inspirado pelo seu trabalho (pois como disse, ele esbarra muitas vezes no literário, eu gosto disso, mas minha proposta artística caminha em outra direção) que encontra eco no Brasil principalmente na obra de Gian Danton,- veja Entrevista - um fã confesso de Moore. Moore é sempre genial, mas esbarra no problema dos desenhistas, nem sempre eles são tão capazes quanto ele, Dave Gibbons é uma exceção maravilhosa!

-Voce acha que ainda existe espaço para seres musculosos e com super-poderes, metidos em colantes, na verdadeira Cultura Pop, mais madura? Pergunto porque muitos fãs dos super-heróis, ao mesmo tempo que admiram Alan Moore, o detestam por considerar que ele praticamente destruiu o gênero com Watchmen. E você?

Como já disse, nunca gostei do gênero Super-Heróis, se ele acabasse, para mim a cultura humana perderia muito pouco, a cultura pop talvez sofresse um abalo momentâneo...Os Super-Heróis são um produto Norte Americano, é claro que foram influenciados pelos herós clássicos gregos, mas eles são produtos do narcisismo e nacionalismo dos EUA, a megalomania de Tio Sam está refletida nestes tais seres de colante, eles são sua principal metáfora, seu arquétipo pós-moderno, o nacionalismo é um dos últimos bastiões dos idiotas, dos alienados. Mas eles já se infiltraram no inconsciente coletivo do ocidente, são onipresentes, mesmo que as novas gerações não estejam lendo quadrinhos como as anteriores, eles estão renascendo nos blockbusters de Hollywood, nos games para computador, veja estes novos produtos cinematográficos: Hulk, Demolidor, Homem Aranha, X-Men, etc.
Mas como um defensor da pluralidade, não faço uma cruzada contra os super-heróis, quem gosta e quer gastar seu dinheiro com eles, eu respeito, sem neurose nenhuma, só fico preocupado quando vejo os moleques idolatrando esses serviçais que trabalham como operários do traço para os americanos como se fossem "Deuses"...os caras nem sequer podem assinar o próprio nome, isso é se vender sim, não é só se adaptar, é cooptar com a condição de alienado, de operário nos moldes da revolução Industrial...Se fosse assim, uma adaptação apenas, os americanos iriam mudar também o nome dos diretores de cinema estrangeiro que fazem sucesso por lá, assim o Pedro Almodóvar poderia virar "Peter All Mod Over", o que você acha!!!
Mas agora tem também a proliferação virótica dos tais mangás, e dá-lhe lixo descartável no mundo da cultura Pop, é claro que existem bons trabalhos, mas no geral é tudo muito ruim, um negócio de misturar mitologia grega de boutique, com moleques dando voadora & karatê em todo mundo, virando robôs transformers e soltando raio (urghhhhh!), nem os super-herós conseguiram a façanha de serem tão ruins, e têm também aquelas centenas de milhares de páginas que não dizem porra nenhuma, umas sagas que possuem dez mil páginas, para contar histórias que dá pra narrar em 40 (um dos novos álbuns do mestre Shimamoto, conta em 48 páginas a saga de um dos míticos samurais do Japão, já uma série japonesa leva dezenas e dezenas de números de 100 páginas para contar a mesma história...revistas mensais que custam mais de 5 reais cada!!!!). Eu desenvolvi meu processo narrativo sempre em espaços exiguos (os fanzines), normalmente você tem de 3 a 5 páginas para contar uma história, tem que ser breve, ter poder de síntese, o exemplo mais radical desse narrativa enxuta é uma saga chamada Elegia que editei há alguns anos, são 3 volumes de 6 páginas cada, e contam a tragetória de vida de um personagem (vou relançá-la em volume único em breve).

-Tambem tenho o album do mestre Shima sobre o lendario Musashi. E a "vagabond" ja´ parei de comprar,por falta de grana tambem...E From Hell, você acha que Moore conseguiu atingir plenamente seu intento de forjar em uma HQ o caldeirão que nos preparou o Século XX, com toda sua paranóia, conspirações, contradições, horror e beleza?

Eu não li From Hell, ainda não tive grana pra comprar a série, está muito cara, dei uma olhada nos volumes e li muitos bons comentários a respeito, preciso guardar uma grana e comprar essa série, pois sei de sua importância e pungência...

-E a versão para o cinema agradou? Porque? O que espera da de Liga dos Cavalheiros Extraordinários?

Eu vi o filme e gostei sim, sei que ele não tem praticamente nada a ver com os quadrinhos, mas é um bom filme, tem clima, boa narrativa e personagens bem construidos (nesse sentido ele lembra a proposta de Moore, talvez seja por esse motivo que ele manteve seu nome nos créditos!).
Também não li "A Liga dos Cavaleiros Extraordinários"...

-Sei que você tem uma formação eclética, se podemos definir assim.O que pensa da Magia?

Eu penso que a magia permeia tudo, a vida é uma forma de magia, o estudo dos processos físicos e químicos que ocorrem em nosso corpo material não é suficiente para explicar o milagre da consciência; a ciência acadêmica, racional, é realmente digna de pena quando tenta explicar fenômenos naturais como os processos da vida e da consciência, o surgimento do Universo, a Eternidade, o Nada. Eu acredito que de certa forma somos imagens holográficas do Universo, nós contemos o todo e o todo nos contém (teoria holográfica de Stanislav Grof), dessa forma temos uma conexão muito profunda com todas as forças que regem a natureza (o Universo), estamos conectados a tudo e a todos, muitos estudiosos de "magia" e pesquisa da consciência, estudam na verdade canais que nos permitem uma conexão direta com essas forças da natureza, intrínsecas & extrínsecas à existência. Eu me interesso por esses estudos, pela manifestação dessas forças e pelas metáforas que elas envolvem.

-Outra obra interessante sobre isto e´”O Paradigma Holográfico” (Pensamento).E da obra Big Numbers a inacabada magnus-opus de Alan Moore, que através da Teoria do Caos e seus Fractais, a vida de uma comunidade representando o macrocosmo, tentaria explicar o próprio Universo?

Eu me interesso muito pela teoria do caos, e por todas essas novas teorias científicas que abalam a estrutura da física Newtoniana, mostrando que o fluxo dos acontecimentos não pode ser contabilizado em termos de ações e reações de intensidade semelhante, elas exemplificam bem a falência completa da ciência (até o momento) em tentar explicar os fenômenos...O princípio da causa e efeito adquire outras proporções, um simples piscar de olhos pode provocar um deslocamento de elétrons que desencadeará um processo que finalmente culminará em um maremoto na outra extremidade da Terra, ou porque não irmos mais longe, esse piscar de olhos pode provocar o surgimento de uma nova estrela daqui a milhões de anos, nenhum ato, por insubstancial que pareça pode ser desconsiderado. No início dos anos oitenta li uma HQ de Steve Ditko (acho que foi na Kripta), que era pura teoria do Caos, narrava a história de um cientista que desenvolve uma máquina do tempo e vai para o passado, para a pré-história, antes do surgimento do homem, ele desce da máquina para ver melhor o ambiente e sem que perceba pisa em um pequeno lagarto, quando ele retorna para o tempo presente fica assustado, todos os seres humanos tem feições e corpo de lagarto!!!! É simples e muito impactante, a morte de um único lagarto desviou todo o processo de evolução da espécie humana, antes de Moore, Ditko já falava de Teoria do Caos (antes mesmo das bases da teoria terem se solidificado). Mas eu gostaria imensamente de conhecer os volumes publicados de Big Numbers!!! Por acaso você têm??? Se tiver gostaria de piratear uma cópia....

- Eu conheço essa estoria, que e´ um conto clássico da Ficção Cientifica escrita por nada mais nada menos que Ray Bradbury, o poeta do gênero. E se nao me falha a memória, o desenhista (dessa versao da saudosa Kripta) foi o filipino Alex Nino, compatriota do Alfredo Alcala. Você acha que uma HQ tem a capacidade de abarcar tamanha complexidade e ser compreendida?

Eu acredito que as HQs como qualquer outra forma de linguagem têm um potencial ilimitado, elas se prestam a qualquer assunto, gênero, tendência, têm as particularidades que a tornam um meio de expressão único, tão poderoso quanto qualquer outro. O hermetismo de uma obra depende muito do referencial do leitor, acho que o autor deve ter consciência do público com o qual ele quer dialogar, deve ter consciência das pessoas que quer alcançar, se eu faço HQ infantil, tenho que ter em mente o público para o qual o trabalho se destina. No caso específico dos meus quadrinhos, eu tenho consciência de que o meu público leitor será sempre pequeno, eu faço HQs poéticas e filosóficas que exigem uma certa espontaneidade, disposição para o novo, interesse por assuntos que vão da metafísica à biotecnologia, para aqueles que são abertos à trabalhos menos literários e mais poéticos, menos literais e mais sutis, é claro que a compreensão da mensagem dependerá do discernimento desse leitor, de seu referencial, assim existem infinitos níveis de interpretação, mas quando faço uma HQ tenho uma idéia em mente, uma mensagem, uma reflexão a passar, a compreensão ou não dessa mensagem dependerá do leitor, mas eu não acho que o artista deva "esquartejar" o seu ideário ou mastigar a mensagem para que ela fique insonsa e fácil, a não ser que esse seja o seu desejo (normalmente é o desejo dos editores, he, he!). Eu não faço HQ pra vender, eu não me vendo, sou autêntico, tenho consciência do preço a pagar por fazer essa opção. Penso que autores como Moore também têm plena consciência disso e quando criam obras como BIG NUMBERS sabem que o público para elas será exiguo, seleto (é por isso que a série parou de ser publicada...não vendeu, os editores cortam mesmo, se eu fosse o Mooore publicava esse negócio em Fanzine, he,he!!!).

- Mais um esclarecimento: BN nao parou por falta de venda e a editora era do proprio Moore, a Mad Love. Parou porque ele se desentendeu com o artista Bill Sienkiewicz (Bill achou na época o roteiro de Moore muito ditatorial, nao dando margem para o artista fazer nada que o autor não quisesse), seu sucessor Al Columbia simplesmente “endoidou” ao fazer o 4ª numero, tanto que destruiu os originais e desapareceu) e, finalmente, mais por boicote das grandes editoras e distribuidores, o famigerado establishment, a Mad Love quebrou. Mas, ainda nesta direção metafísica, qual é a sua concepção do Tempo? Considera-o a Quarta Dimensão do Espaço, como teorizou Einstein ou tem outra visão?

Uma das últimas concepções sobre o tempo que mais me fascinaram foi a de Ken Wilber, na verdade o tempo não existe, não é outra dimensão, o que existe é um eterno agora, infinito, e nossa existência é infinita pois estamos sempre nesse eterno agora, gravado na essência do Universo, o passado/presente e futuro são prognósticos falsos criados por uma das válvulas de nossa percepção para que possamos compreender o mundo; veja como os nossos processos de pensamento não são lineares (são hipertextuais, damos saltos quânticos a todo momento), mas a nossa concepção de nossa existência é linear, pois ela é baseada nessa noção de tempo linear que corre do passado para o futuro. Eu tenho uma HQ chamada ATEMPORAL (publicado no fanzine Bifa de Marcelo Garcia) que metaforiza isso, o ser coexiste em todos os seus pseudo tempos : infância –maturidade e velhice, mas não existe linearidade/processo, é tudo coexistente, um eterno agora, como no Retroagir da cultura Indu, dos Vedas





-Realmente.Também tenho algumas obras do Wilber,”o careca”, alem de muitos ensaios e lectures baixados da web. E veja você que ate´ a Ciência parece abraçar também essa teoria: o físico britânico Stephen Hawking também considera o tempo como um sólido, onde tudo esta´se passando simultaneamente, portanto, se pudéssemos “se examinados” por um ser “fora do tempo”, ele nos veria como uma gigantesca centopéia, com milhares de pernas e braços e cabeças, se esticando desde de um bebe ate´ um velhinho, por todos os lugares – e tempos – por onde já passamos – mais ou menos como Kubrik tentou visualizar no antológico final de seu “2001”.Como você imagina um ser ou objeto (como o Tesserato) da Quarta Dimensão? (se pudesse aparecer a nos, pobres materializações tridimensionais que somos ?

Este é um grande paradoxo, o paradoxo de nossa limitação perceptiva, é impossível para nós concebermos algo que foge de nosso paradigma perceptivo, H. P. Lovrecaft tinha uma palavra muito certeira e poderosa para descrever as criaturas de seus mitos terroríficos, ele dizia "o inominável", "o indizível", é brilhante. Stanislaw Lem faz a mesma coisa em Solaris, para mim um dos maiores livros de "filosofia" (embalada num pacote de FC)de todos os tempos, ele nos mostra que sempre que falamos em outras vidas, extra terrestres, estamos falando sobre o nosso paradigma, estamos procurando espelhos, será que se essa outra forma de vida aparecesse teriamos percepção para compreendê-la? Será que ela já não existe??...veja a teoria de Gaia (a Terra é um organismo vivo, um ovo em gestação) de Lovelock, é muito interessante, mas para a ciência e para a maioria das pessoas é inconcebível!!! Esses dias vi um filme B que trata dessa questão da quarta dimensão, chama-se "O Cubo 2", vale a pena ser visto, pois apresenta uma visão curiosa para o conceito da quadridimensionalidade.


Ken Wilber




-Me interessei muito! Sou apaixonado por esse instigante tema. Inclusive, num nº de sua “1963”, Alan Moore tenta mostrar justamente como seria essa quarta dimensão se a pudéssemos “exergar”, e e´ muito interessante.Ele brinca inclusive visualmente, com o “mundo bidimensional” que e´ a pagina dos Quadrinhos, mostrando figuras geométricas impossíveis, ilusões de ótica,etc.Já li em algum lugar que você se interessa pela imberbe Teoria do Caos, com seus Fractais e o popular "efeito borboleta". Quais suas considerações a respeito e como acha que esta teoria pode ser aproveitada por exemplo em algum enredo – HQ ou literário?

Tenho pelo menos uma meia dúzia de HQs curtas que tratam da Teoria do Caos, tenho muitas idéias envolvendo esse tópico...

-Dos meus entrevistados ate´ agora, você e´ um dos poucos que leu as obras do matemático-filósofo soviético P.D. Ouspenski, do qual sou estudioso. Qual o seu entendimento para as teorias dele sobre o Tempo e a 4ª Dimensão – ver final do meu artigo Holismo e Caos em Big Numbers – em suas obras – ao meu ver – mais expressivas, Tertium Organum e Um Novo Modelo de Universo (Editora Pensamento)?

Eu li alguns trabalhos de Ouspenski, gosto da forma densa com que desenvolve suas teorias, partindo de uma certa aura acadêmica proveniente de sua formação racionalista de matemático, acho que ele é brilhante em algumas de suas visões, mas peca em outras, discordo em partes em seu entendimento das dimensões, sobretudo pela classificação evolutiva que dá a elas, colocando alguns animais em segundo plano, como menos perceptivos (só com percepção bidimensional), acho que é meio reducionista (ranço racionalista), mas é brilhante na concepção dessa quarta dimensão, e tem solidez matemática para criar a conceituação. O seu mestre Gurdjieff é mais leve, brincalhão, jocoso, vivo, é um verdadeiro mago, no sentido mais profundo que essa palavra engendra, por isso sempre foi tido como charlatão, mas é mais profundo e contundente. Uma das teorias que Ouspenski resgata, a da Lua como organismo que apreende energia da Terra, é assustadora e muito intrigante.

-E a teoria dele de que a reencarnaçao seria na verdade um circulo vicioso, como a serpente mordendo a cauda – ou seja, que na verdade nos sempre nos reencarnaríamos em nos proprios, vivendo a mesma vida eternamente e somente pequeninas modificações e´que, aos poucos, iria nos libertando desta vida material compulsória? (em Tertium Organum).

Pois é, de certa forma essa teoria é muito semelhante à da inexistência do tempo de Ken Wilber, ao "eterno agora", mas o equívoco de Ouspenski está nessa necessidade de acreditar que há uma "evolução", mais uma vez é um ranço da racionalidade cartesiana, onde tudo tem que ter um motivo, um resultado, neste ponto prefiro a visão de Wilber: o "Ouroboros Eterno", pura e simplesmente...

-Alan Moore e´adepto fervoroso da Cabala – inclusive toda a serie Promethea gira em torno dessa “escola”. Como você encara a Cabala? Vê utilização pratica de seus conceitos?

Como muitos outros tratados herméticos de evolução e transcendência a Cabala é um instrumento legítimo para a busca dessa quintessência transcendente, mas existem infinitos caminhos para essa elevação, alguns são pré-estabelecidos, outros são criados pelo navegante, William Blake fez de sua arte o seu "processo alquímico", eu tenho trabalhado neste sentido!

-Verdade? Precismaos falar sobre isto mais.Voltando aos seus escritos, o que você fez que considera o melhor até agora?

O melhor sempre é o que está sendo feito, eu valorizo muito a fluência do momento em que estou concebendo, criando, esse ato criativo (taoísta) é mais importante que o produto acabado, por isso sempre prefiro os trabalhos que estão em gestação. Mas se você me perguntar dos meus trabalhos quais mais gosto, eu destacaria o álbum AGARTHA (que está na sua segunda edição pela editora "Marca de Fantasia"), e as HQtrônicas "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano" (ainda Inédita) e "NeoMaso Prometeu" (Menção honrosa no 13º VIDEOBRASIL –Festival Internacional de Arte Eletrônica) , tem também algumas HQs curtas que selecionei para o meu novo álbum que será publicado pela Marca de Fantasia, e algumas capas de CD que curto bastante, como as do Medicine Death e do projeto Noise for Deaf.

-Por ter se interessado por Historias em Quadrinhos em nível profissional e ser um acadêmico, você sofreu – ou sofre ate´ hoje – alguma especie de preconceito ou discriminação? Como lida com isto?

Faço a minha parte, tenho trabalhado para desmistificar as HQs como coisa de criança, apresentando artigos em congressos, ministrando palestras em Universidades e cursos de HQ de Autor. Mas o preconceito é forte, apesar de que nos últimos anos ele está diminuindo, o número de dissertações e teses sobre quadrinhos defendidas em Universidades do mundo todo é impressionante, talvez esse seja um sintoma do amadurecimento completo da linguagem.

-E atualmente, o que tem escrito?

Tenho diversos projetos em andamento, um álbum só com HQs inéditas & coloridas, uma HQ de 28 páginas para um número especial da coleção Corisco da Marca de Fantasia, um projeto artístico envolvendo Vida Artificial, e uma nova narrativa hipermidiática nos moldes de "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano", além de alguns roteiros para outros artistas...

-Alguma produção em Quadrinhos?

Estou com alguns trabalhos no prelo, o álbum "Transessência" (60 páginas de HQs curtas) que está para ser lançado pela Marca de Fantasia, o álbum "Biocyberdrama" (64 pgs) – parceria com o lendário Mozart Couto (que quadrinizou meu roteiro de forma belíssima) já concluido e que será lançado pela Opera Graphica, além do álbum "Duetos Essenciais" que também já está pronto mais ainda demorará um pouco para ser editado.

-Voce sempre batalhou arduamente por um autêntico Quadrinho nacional. Ele existe?

Acho que o Brasil tem muitos talentos individuais, e chego a acreditar que temos um gênero de HQs que frutificou no Brasil de uma forma muito autêntica e contundente, o gênero que foi batizado pelo crítico espanhol Henrique Torrero de "Fantasia Filosófica" e que inclui artistas como eu, Gazy Andraus, Flávio Calazans(Entrevista) Antônio Amaral, Henry Jaepelt, Al Greco, entre outros, eu estou preparando um artigo sobre esse gênero que praticamente passou despercebido pela HQ maistream pois quase toda a produção desses autores foi publicada nos fanzines, a exceção é a revista MANDALA da editora Marca de Fantasia que é dedicada a esse gênero de HQs e publicou mais de 10 números com trabalhos dos autores referidos. Também gosto muito do ciclo de HQs das revistas de terror da Vechi que abriu espaço para que artistas como Mano (ele era autêntico, divertido, despretensioso), Shimamoto & Colin falassem de elementos e assuntos de nossa cultura.
Mas não sou apegado a esse discurso de que HQ nacional deve falar de assuntos da cultura brasileira, isso é pseudo-culturalismo xiita, eu estou de saco cheio de ler/ouvir/ver histórias sobre o regime militar (parece que existe um saudosismo desse período, todo mundo quer posar de coitadinho - reprimido pelo regime militar), também ficar plagiando os romances de Guimarães Rosa & congêneres e achar que está escrevendo grandes roteiros é babaquice, isso é pastiche, tem muita gente por aí plagiando e dizendo que é homenagem... isso vem acontecendo no cinema, nas artes visuais em geral e também nos quadrinhos.
O bom quadrinho deve ser regional & universal ao mesmo tempo, dialogar com todos os povos e eras.

-Voce citou o Mano (o cariocaElmano), do qual tambem sou fan e procuro ha algm tempo contata-lo. O que você acha que dificulta para o quadrinista brasileiro sobreviver de sua arte? Falta de talento ou de mercado?

Como acontece com o cinema nacional, nos não temos mercado, o produto importado já vem com o marketing incorporado e custa mais barato, por isso há um desinteresse completo de editores pela HQ feita no Brasil, isso é ruim pois a HQ acaba tornando-se um trabalho residual dos artistas, eles têm que conseguir outros meios pra sobreviver e a HQ vira um hobby, o tempo dedicado a ela é menor, o processo de evolução mais lento. Penso também que nós praticamente não temos editores de quadrinhos no Brasil, dá pra contar nos dedos de uma mão os verdadeiros editores, o resto é oportunista, crápula e safado...

-Como nacionalista ferrenho que é , também considera que o nosso artista “se vende” quando passa a publicar no Exterior, nos EUA principalmente, adequando-se ao estilo e mudando até mesmo de nome?

Ops!!! Não sou nacionalista ferrenho de forma alguma, sou cidadão do mundo, holista, esse negócio de pátria e fronteira é coisa de políticos e suas linhas imaginárias, sou sim, telúrico, tenho respeito e amor pela terra onde fui gerado. Como diz minha esposa "cada um, cada um", os caras conseguiram uma forma de ganhar dinheiro desenhando, uma forma de sustento, mas achar que são quadrinistas, isso é hilário, são operários do traço, mão de obra barata do terceiro mundo que não tem nem o parco direito de assinar o nome verdadeiro, se isso é o modelo de "quadrinista" que todos devemos seguir eu passarei longe por toda a vida, isso não me interessa, os trabalhos que vi não valem nada, são muito ruins, cópias de cópias, padronizações industriais, produto descartável para pré-adolescentes ...é realmente lastimável.

-Sobre Telematica e extrapolação cientifica, tenho lido muito dos seus artigos nestas areas, abordando tantas teorias que chega a fervilhar-nos o pensamento – biomidiologia, efeitos subliminares da propaganda e outras mídias, psicologia, psiquiatria, enfim, você demonstra um vasto conhecimento que precisa ser mais explorado, em nosso – seus leitores – beneficio – ver artigo “Quadrinhos e as Novas Tecnologias” Quais autores e obras recomenda para nos dar uma visão mais abrangentes destas areas?

Não tenho um vasto conhecimento, ainda estou engatinhando nesses tópicos e assuntos, mas sou muito interessado e empolgado sempre buscando novas informações, para aquele que está iniciando nessas áreas indico alguns trabalhos que considero seminais (em língua portuguesa):

- "A Mente Holotrópica" de Stanislav Grof (Editora Rocco).

- "A Consciência sem Fronteiras" de Ken Wilber (Editora Cultrix)

- "O Renascimento da Natureza" de Rupert Sheldrake (Editora Cultrix)

- "Criação e Interatividade na Ciberarte" de Diana Domingues (Editora Experimento)

- "Cibercultura – Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea" de André Lemos (Editora Sulina).

- "Teleantropos – A desmaterialização da cultura material, arquitectura enquanto inteligência, a metamorfose planetária" de Emanuel Dimas de Melo Pimenta (Lisboa – editorial Estampa).

- "Biologia Digital" de Peter G. Bentley (Editora Berkeley Brasil).
A relação é enorme, e muitos livros ainda não tem edição em português, mas acho que estes 7 que indiquei são um bom começo.

- E especificamente a Literatura de FC tupiniquim, atualmente capengando sem um “mercado “mas por outro lado bem mais amadurecida, a julgar por recentes contos publicados pelos fanzines, o que você acha que “está faltando “?

É o mesmo problema das HQs, mas nesse caso a coisa é mais grave pois a literatura não tem nem o apelo visual, as novas gerações não conseguem ler, seu processo perceptivo não condiz mais com os procedimentos necessários para a leitura que exige muito tempo de concentração sobre um mesmo assunto/tópico, as mídias interativas têm contribuido gradativamente para essa mudança de perfil cognitivo, a literatura, a longo prazo necessitará cada vez mais da imagem para sustentá-la. Por isso temos escritores de talento que não têm quem os lê. Me diz se o adolescente prefere ir para a Lan House e jogar um game realista 3D de Guerra nas Estrelas, ou ler um livro com a história da saga? O apelo da hipermídia é muito grande, os autores têm que começar a usar dessas mídias para difundir os seus trabalhos, tornarem-se escritores multimídia, ou estarão cada vez mais fadados ao ostracismo. E olha que eu sou apaixonado por literatura de FC, inclusive leio alguns brasileiros, entre os quais destaco o brilhante André Carneiro (Entrevista) com um dos trabalhos mais pessoais e interessantes da FC mundial, uma densidade pouco vista, se escrevesse em inglês já teria pelo menos meia dúzia de filmes baseados em seus escritos. Há anos recebo o zine "Notícias do Fim do Nada" com o qual tenho colaborado periodicamente com ilustrações, gosto muito to trabalho cuidadoso e apaixonado de Ruby Felisbino Medeiros, uma verdadeira enciclopédia humana da FC mundial!!! Também colaboro esporadicamente com capas e ilustrações para o ótimo Megalon, e colaborei com a extinta Quark, tenho lido excelentes contos e novelas de autores nacionais nessas publicações...

-Quais dos nossos autores você julga mais em condições de produzir uma obra de fôlego?

Temos dezenas e dezenas de autores de talento, só faltam as chances para que eles brilhem!!!

-Especificamente sobre desenho Edgar, como começou o seu interesse, quais as influências do início e os artistas que admira atualmente? E nos Quadrinhos?

Quando comecei a desenhar tinha uma aversão à copiar desenhos, nunca copiava nada, sempre tentava desenhar de memória ou recorria a fotos e modelos do real, devido a isso a evolução de meu desenho foi lenta, mas ao mesmo tempo já muito cedo já me "acusavam" de ter um estilo, este estilo frutificou-se mais rapidamente devido à minha insistência em não copiar, eu gosto do meu desenho, apesar de conhecer suas limitações, sempre trabalhei com fantasia e metáforas, por isso não me interesso por criar trabalhos "realistas", minhas referências visuais são sempre simbólicas e fantásticas, ao contrário de muitos desenhistas que com o tempo conseguem ser mais sintéticos no traço, meu desenho fica cada vez mais rebuscado (enquanto o argumento cada vez está mais enxuto), é uma tendência natural que não consigo evitar, com o passar do tempo ao inves de gastar menos tempo em uma página tenho gastado cada vez mais. Sobre influencias, posso dizer que gosto de Bosch & Bruegel, de Doré e Goya, de Giger & Caza, e dos brasileiros Jaime Cortez, Shimamoto, Gazy Andraus, Antônio Amaral e Mozart Couto, considero o Mozart um dos desenhistas mais completos do mundo, é impressionante a capacidade cênica deste artista, o domínio da sombra e da luz, da anatomia, da perspectiva e do movimento, Mozart é um gênio do traço, um monstro sagrado do desenho, tenho certeza que será motivo de estudo por gerações e gerações, mas apesar dessa grande admiração não posso dizer que meu desenho é influenciado pelo dele.

Desenho de Mozart


-Endoso em gênero, numero e grau: Mozart e´ o melhor desenhista do Brasil, o nosso Michelangelo das HQs.E´´ meu amigo de longa-data e sua entrevista uma das mais aguardadas aqui. Como o leitor interessado pode adquirir seus Quadrinhos e livros, quais os que estão disponíveis?

Recentemente foi feita uma segunta tiragem do meu álbum AGARTHA, que pode ser adquirido diretamente com a editora Marca de Fantasia (site: http://www.mdefantasia.hpg.com.br/), também existem vários números disponíveis da revista Mandala (todos contém algum trabalho meu) que podem ser encomendados através do site da Marca de Fantasia, assim como o meu novo álbum TRANSESSÊNCIA que deve estar sendo lançado em breve. Tenho alguns fanzines solo que distribuo, principalmente os da minha série de HQs baseadas no I-Ching, basta que me mandem 2 selos de segundo porte que remeterei dois números para os interessados, meu endereço postal é: Av. Melvin Jones, 265 – Bairro Santa Ângela, Poços de Caldas – MG – 37701-274. Tem HQs minhas em dois números da revista on-line Pixel (que podem ser baixados gratuitamente no site da editora Nona Arte- www.nonaarte.com.br ) , além disso o leitor poderá encontrar HQs, ilustrações e poemas no meu site pessoal (que em breve será totalmente reformulado) Ritualart: http://www.geocities.com/ritualart.geo/, e finalizando o trabalho de História em Quadrinho Eletrônica (HQtrônica) "NeoMaso Prometeu" que pode ser baixado no url: http://wawrwt.iar.unicamp.br/HQtronicas/index.html

-Voce acha que a “sede” do nosso “espírito” – ou essência, ou anima, o nome que se dê - se encontra na mente? Ou tudo não passa de um aperfeiçoamento fantástico de uma verdadeira “maquina orgânica” com seus ilimitados neurônios e suas ligações sinápticas?

Eu tenho dúvidas sobre tudo, não cheguei a uma conclusão sobre esses tópicos, gosto da teoria dos campos morfogenéticos de Sheldrake que propõe que nosso cérebro nada mais é do que um instrumento de captação, uma antena que capta de um outro "logos" nossa consciência, tanto a individual quanto a coletiva, céticos defendem que o humano é só uma máquina natural...eu discuto isso no meu álbum Biocyberdrama (em parceria com Mozart Couto), no fundo a questão central da história é essa, espero que ele seja lançado em breve, e que pessoas que têm esse questionamento legítimo e importante (como você) possam lê-lo para continuarmos o papo...

-O que você acha que é a consciência em si?

É a morada do mistério, a esfinge mais cruel e maravilhosa que emudece a ciência e turva a religião. É nossa condição "Luciferiana", de questionarmos o poder e a razão daquilo que nos gerou!

-Com esta você fechou com chave de ouro, amigo! Militando há tanto tempo “no ramo” você pode dizer que valeu – ou vale – a pena?

Viver vale a pena, é maravilhoso poder ter a percepção do mundo e das coisas, sentir. Eu aconselho a todas as pessoas a tentarem fazer de sua vida um passeio, leve e gracioso, como o vôo da borboleta, levar tudo menos a sério, sorrir muito e principalmente criar. Se eu tivesse somente aberto os olhos, visto o sol e desfalecesse já teria valido a pena, o que dizer então de tantas dádivas que tenho tido nestes anos? Viva a vida!

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Processo Criativo da HQ "Lord Unikorn".


Por: Edgar Franco


A idéia de falar sobre o processo de criação dessa HQ surgiu devido à série de procedimentos intuitivos, aleatórios e racionais que envolveram o seu desenvolvimento, mesmo para mim que há muito venho tentando trabalhar com novas formas para o já desgastado conceito tradicional de histórias quadrinhos, ela funcionou como quebra de alguns paradigmas. Meu processo usual é partir de um argumento inicial, o conteúdo chave da história, e deixar as imagens fluírem a partir desse argumento, assim ele acaba sendo modificado e acrescido, mas sempre será de certa forma uma chave para desvendar o "Big Bang" deflagrador do processo.
Em LORD UNIKORN as coisas foram bem diferentes, para início de conversa, não existia uma intenção inicial de criar uma HQ. Fui convidado por uma amiga artista plástica para participar de uma exposição de "Livros de Autor", um conceito muito amplo envolve essa tal categoria artística (mais uma dentre tantas criadas pelo racionalismo acadêmico), no final das contas optei por uma espécie de caderno de rascunhos como sendo meu "Livro de Autor", comprei um livro de notas daqueles antigos, com 500folhas brancas e capa dura e resolvi tratá-lo como um "Grimoire Intuitivo de Autor", passei então a criar imagens livres para preencher as páginas desse álbum e adotei total liberdade para desenvolvê-las, usei para a confecção das mesmas um pincel japonês muito macio deixando o traço inicial direcionar a imagem sem censurá-la, muitas delas foram sendo feitas diretamente a tinta, outras tiveram um rascunho feito com lápis 6B, mas sem nunca usar borracha, pois o ato de apagar acaba tirando a espontaneidade cósmica-arquetípica da imagem e trazendo-a para os processamentos racionais do lado esquerdo do cérebro. Para desenhar sempre colocava um fundo musical que podia variar muito dependendo do meu estado de espírito do momento, podendo ir do rock progressivo ao doom metal . Em pouco tempo tinha já prontas cerca de 50 imagens, mas devido aos compromissos da vida "mundana" tive que parar. Como tinha como meta conseguir fechar o livro, isto é, completá-lo com imagens, decidi não apresentá-lo na primeira exposição de minha amiga, e prometi incluí-lo numa próxima.
Guardei o "Grimoire" e fiquei sem olhar para suas imagens por quase 3 meses, voltando a ele, descobri imagens realmente muito fortes de sentido, um certo lirismo que transcende em força boa parte da minha produção de HQs, resolvi então fotocopiá-las para utilizá-las como capas ou contracapas de fanzines de amigos, selecionei dentre todas umas 20 que me pareceram mais simbólicas, considero essa seleção uma ação mútua entre o lado direito (intuitivo) e o esquerdo (racional) do cérebro. Depois disso aconteceu um fato interessante, fui convidado por um editor de zines para fazer a capa de sua nova produção, quando vi a proposta de seu zine decidi enviar uma das imagens que tinha fotocopiado para a capa e aconteceu um fato raro de se ver no universo zinístico, tive o desenho censurado pelo editor, que de forma amena tentou me dizer que aquela imagem era "um pouco agressiva demais" para figurar na capa de seu zine. Já estou calejado de receber recusas de editores de revistas que usam milhões de argumentos e subterfúgios para não publicar o meu trabalho ("é datado", "é setentista", "é meio Metal Hurlant, né?", "mas isso não é HQ!", "até que é bonito, mas é poesia ilustrada", "mas cadê os quadrinhos e os balões?", "tem muita mulher pelada!" etcetera e tal), mas no meio zineiro foi uma novidade ser censurado, ainda mais sendo o editor em questão um cara de mente aberta com quem
já tinha feito várias parcerias, detalhe importante: a imagem censurada é aquela que posteriormente tornou-se a página sete da HQ estudada neste artigo.
Esse acontecimento fez-me reavaliar o valor dessas imagens e passei a mostrá-las para alguns amigos que sempre se assustavam ou gargalhavam com algumas. Arrisco dizer então que algumas delas funcionam como Koans, para usar um conceito detalhado na dissertação de mestrado "Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos?(ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas)",
desenvolvida pelo quadrinhista e pesquisador Gazy Andraus, onde ele esclarece-nos o que é um Koan: "O koan, é uma forma de pergunta, em forma de enigma indecifrável pelos padrões lógicos racionais vigentes. Uma forma de pergunta, para a qual não possui resposta imediata racional, que busca derrubar toda a estrutura condicionada da mente racional. Na verdade o koan seria apenas um desafio aos arraigados hábitos de nossa mente, ao seu modo de pensar e então agir.(1)" Na dissertação Gazy demonstra-nos que os Koans podem surgir na forma de questionamentos filosóficos, poemas, problemas da física quântica e é claro em HQs. Na minha opinião algumas dessas imagens criadas para o meu "Livro de Autor" têm esse potencial de provocar certos deslocamentos em nossa lógica
racional.
Diante dessa conclusão decidi fazer mais uma seleção escolhendo as imagens que ao meu ver fossem mais "Koânicas"(2), para a partir delas criar uma HQ, chegando finalmente a 9 imagens, entretanto uma delas já havia sido utilizada para outro fim, como capa para a demo-tape de uma banda de Death Metal de uns amigos meus, o mais interessante desse fato é que além de ser convidado para desenvolver o desenho da capa, também fui incumbido de escolher um nome para a banda, chegando a LORD UNIKORN quando lia alguns verbetes de um dicionário de ciências ocultas, o nome me chamou a atenção por sua sonoridade e curiosamente por remeter-me a uma das imagens de meu "Grimoire" (e menos por seu significado: trata-se de um demônio que chefia 29 legiões), imediatamente procurei a minha imagem e desenhei o logotipo que criei para a banda sobre ela, o trabalho agradou muito aos músicos. Como a capa da demo-tape fazia parte das 9 imagens selecionadas, optei por usá-la como primeira página da HQ, adotando como título para a mesma o nome LORD UNIKORN (com a concessão de meus amigos da banda homônima). Para impedir que o lado racional criasse critérios para ordenação lógica das demais páginas, entreguei-as a minha esposa e pedi para que as embaralhasse e me devolvesse, essa "ordem aleatória" foi a utilizada na HQ. E ela veio repleta de
sincronicidades, uma ordem gerada no caos do processo criativo.
O texto/roteiro da HQ surgiu em poucos minutos e foi escrito diretamente sobre as páginas, na primeira ele é apenas uma frase descritiva, mas nas seguintes ele fluiu liricamente fundindo-se às imagens e redobrando seus significados, tendo como foco central questionamentos sobre eternidade, ego e vazio e certas alusões aos Koans, ao Taoísmo, ao Zen e ao oráculo milenar chinês I-Ching. Aquilo que parecia não deflagrar uma seqüência de ligações lógicas, acabou gerando seqüências aleatórias interessantes, reparem nas 3 primeiras páginas, os personagens estão de perfil e olhando para o lado direito da folha, além disso todos têm um objeto nas mãos (crânio, relógio e espada), já a penúltima e a última página apresentam relações simbólicas com a sexualidade e os genitais.
Todas essas sincronicidades, coincidências e convergências intuitivas levam-me a refletir sobre o conceito do artista como veículo de forças transcendentais, o artista talvez seja o pincel do Universo e a arte a forma mais profunda de ciência, envolvendo a inexpugnável e maravilhosa intuição. O ato criativo um orgasmo cósmico puro e eterno!


Notas:

(1) In ANDRAUS, Gazy - Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos? (ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas), Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 1999 no Instituto de Artes da UNESP- Universidade Estadual Paulista, São Paulo.
(2) Koânico - Neologismo criado pelo pesquisador Gazy Andraus para designar os gêneros narrativos e obras de arte que contém Koans.