quarta-feira, 7 de abril de 2010

A gigantesca corrida pela terra e pela água





Pelo menos 20 países africanos estão vendendo ou arrendando terra para cultivo intensivo em uma escala chocante, que pode se tornar a maior transferência de propriedade – para bilionários e megacorporações – desde a era colonial.

O artigo é de John Vidal está publicado no Jornal Brasil de Fato, edição de 18 a 24 de março de 2010. A versão integral do artigo foi publicado no jornal Mail & Guardian, da África do Sul, em 11-03-2010.

Saímos da estrada principal para Awassa, passamos pelos seguranças e dirigimos por 2 km através de terra vazia até encontrar o que em breve será a maior estufa da Etiópia. Localizado abaixo de uma escarpa do Vale do Rift, o projeto está longe de terminar, mas o plástico e a estrutura de aço já se estendem por 50 hectares – o tamanho de 20 campos de futebol.

O administrador da fazenda nos mostra milhões de tomates, pimentas e outros legumes que estão sendo cultivados em fileiras de 457,2 metros, em condições controladas por computador. Engenheiros espanhóis estão construindo a estrutura de aço, uma tecnologia holandesa minimiza o uso de água de dois poços e mil mulheres colhem e empacotam 50 toneladas de alimentos por dia. Em 24 horas, estes viajaram 400 km até Addis Abeba e percorreram 2 mil km de avião para chegar às lojas e restaurantes de Dubai, Jeddah e outras partes do Oriente Médio.

A Etiópia é um dos países mais famintos do mundo, com mais de 13 milhões de pessoas necessitadas de ajuda alimentar, mas, paradoxalmente, o governo está oferecendo pelo menos 7,5 milhões de acres de suas terras mais férteis para os países ricos e alguns dos indivíduos mais ricos do mundo, para exportação de alimento a suas populações.

Os 2.500 acres de terra que englobam as estufas Awassa estão arrendados por 99 anos a um empresário bilionário saudita, nascido na Etiópia: o xeique Mohammed al-Amoudi, um dos 50 homens mais ricos do mundo. Sua empresa, a Arabia Star, planeja gastar, nos próximos anos, até 2 bilhões de dólares para a aquisição e desenvolvimento de 1,25 milhão de acres de terra na Etiópia. Até agora, ele comprou quatro fazendas e já está cultivando trigo, arroz, verduras e flores para o mercado saudita. E espera, eventualmente, empregar mais de 10 mil pessoas.

Mas a Etiópia é apenas um dos 20 ou mais países africanos cuja terra está sendo comprada ou arrendada para a agricultura intensiva em escala gigantesca, o que pode significar a maior transferência de propriedade desde a época colonial.

Corrida pela terra

Uma pesquisa do Observer estima que até 125 milhões de acres de terra foram adquiridos nos últimos anos ou estão em vias de ser negociados por governos e investidores ricos que trabalham com subsídios do Estado. Os dados utilizados foram coletados pelas entidades Grain, International Institute for Environment and Development, International Land Coalition, ActionAid e outros grupos não governamentais.

A corrida pela terra foi provocada pela escassez de alimentos no mundo inteiro que se seguiu ao aumento acentuado do preço do petróleo em 2008, à crescente escassez de água e à insistência da União Europeia para que 10% de todos os combustíveis utilizados em transportes sejam provenientes de agrocombustíveis em 2015.

A China, por exemplo, assinou um contrato com a República Democrática do Congo para cultivar 7 milhões de acres de óleo de palma para ser usado como agrocombustível. Em muitas áreas, tais negócios causaram despejos, protestos e queixas de “grilagem”.

Segundo Nyikaw Ochalla, um indígena Anuakda da região de Gambella, na Etiópia – que vive na Grã-Bretanha, mas mantém contato regular com os agricultores na sua região – , “toda a terra está sendo utilizada. Cada comunidade possui e cuida de seu próprio território, rios e terras agrícolas. Dizer que existe terra improdutiva é um mito propagado pelo governo e por investidores para afirmar que existe terra sobrando ou que ela não está sendo utilizada. As empresas estrangeiras estão chegando em grande número, privando as pessoas da terra que elas têm usado por séculos. Não há nenhuma consulta à população indígena. As ofertas são feitas secretamente. A única coisa que a população vê são pessoas chegando com tratores para invadir suas terras”.

Os compradores

Liderando a corrida, estão empresas internacionais do agronegócio, bancos de investimento, fundos hedge, comerciantes de commodities e fundos soberanos, bem como fundos de pensões do Reino Unido e fundações e indivíduos atraídos pelas terras mais baratas do mundo.

Juntos, eles estão varrendo o Sudão, Quênia, Nigéria, Tanzânia, Malaui, Etiópia, Congo, Zâmbia, Uganda, Madagáscar, Zimbábue, Mali, Serra Leoa, Gana e outros. Somente na Etiópia, já foram aprovados 815 projetos financiados com investimento estrangeiro desde 2007. Qualquer terra que os investidores não conseguiram adquirir está sendo arrendada por aproximadamente 1 dólar por ano cada 2,5 acres.

A Arábia Saudita e outros emirados do Oriente Médio, como Catar, Kuwait e Abu Dhabi, são os maiores compradores. Em 2008, o governo saudita, que era um dos maiores plantadores de trigo da região, anunciou que vai reduzir sua produção de grãos em 12% ao ano para conservar sua água. E destinou 5 bilhões de dólares em empréstimos com taxas de juros preferenciais para as empresas do país que quiserem investir em nações com forte potencial agrícola.

Enquanto isso, a Foras, empresa saudita de investimento, apoiada pelo Banco de Desenvolvimento Islâmico e ricos investidores sauditas, planeja gastar 1 bilhão de dólares adquirindo terras e cultivando 7 milhões de toneladas de arroz para abastecer o mercado interno nos próximos sete anos.

A empresa diz que está estudando a possibilidade de adquirir terras em Mali, Senegal, Sudão e Uganda. Ao voltar-se para a África com o objetivo de cultivar seus alimentos de primeira necessidade, a Arábia Saudita está economizando o equivalente a centenas de milhares de galões de água ao ano. A água, afirma a ONU, será o recurso determinante nos próximos 100 anos.

Um novo colonialismo

Devlin Kuyek, pesquisador da ONG Grain, uma das entidades que pesquisam a aquisição de terras africanas, diz que investir na África hoje é visto por muitos governos como uma nova estratégia de abastecimento alimentar. “Os países ricos estão de olho na África não somente pelos grandes retornos de capital, mas também como uma apólice de seguro. A escassez de alimentos, os protestos em 28 países ocorridos em 2008, o abastecimento de água em declínio, as alterações climáticas e o enorme crescimento populacional tornaram as terras atrativas. A África tem a maior parte das terras do mundo e, se comparadas com outros continentes, são baratas”.

“As terras agrícolas na África subsaariana está dando 25% de retorno em um ano, e as novas tecnologias podem triplicar o rendimento das culturas em um curto espaço de tempo”, afirma Susan Payne, diretora executiva da Emergent Asset Management, um fundo de investimento britânico que pretende gastar 50 milhões de dólares em solo africano. “O desenvolvimento da agricultura não é apenas sustentável, é o nosso futuro. Se não tivermos muito cuidado e atenção para aumentar a produção de alimentos em até 50% antes de 2050, enfrentaremos globalmente uma séria escassez”, conclui. Mas muitas dessas aquisições são amplamente condenadas por ONGs e ativistas locais como um “novo colonialismo”, que tira as pessoas da terra e leva os escassos recursos para longe delas.

Nos encontramos com Tegenu Morku, um agente fundiário, em um café de beira de estrada a caminho da região de Oromia, na Etiópia, para onde ele se dirigia com o intuito de procurar 1.250 acres para um grupo de investidores egípcios. Eles planejam investir em gado de engorda, plantar grãos e temperos e exportar o máximo possível para o Egito. Segundo Morku, era preciso ter disponibilidade de água, e ele esperava que o preço estivesse em torno de 1 dólar por cada 2,5 acres ao ano – menos de um quarto do custo da terra no Egito e um décimo do preço da terra na Ásia.

“A terra e a mão de obra são baratas, e o clima é bom. Todos – sauditas, turcos, chineses, egípcios – estão procurando. Os agricultores locais não gostam porque acabam sendo deslocados, mas eles podem encontrar terra em outro lugar e, além disso, recebem uma compensação equivalente a 10 anos de rendimento da terra”, diz.

Fome fabricada

Oromia é um dos centros da corrida pela terra na África. Haile Hirpa, presidente da Associação de Estudos de Oromia, escreveu recentemente uma carta de protesto ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em que alerta que a Índia adquiriu, na região, 2,5 milhões de acres; Djibuti, 2.500 acres; Arábia Saudita, 250 mil acres; e que investidores egípcios, sul-coreanos, chineses e nigerianos estavam bem ativos. “Esta é a colonização do século 21. Os sauditas estão desfrutando da colheita de arroz enquanto os oromos estão morrendo de fome, causada diretamente pela a ação do homem”, afirmou.

O governo etíope nega que os acordos estão causando fome e afirma que as negociações de terra estão gerando centenas de milhões de dólares de investimentos estrangeiros e dezenas de milhares de empregos. Um porta-voz governamental afirmou: “A Etiópia tem 187 milhões de acres de terra fértil, dos quais apenas 15% estão sendo usados atualmente – principalmente pela agricultura de subsistência. Das demais terras, somente uma pequena porcentagem – 3% a 4% – é oferecida a investidores estrangeiros, que nunca recebem terras pertencentes aos agricultores etíopes”.

A realidade, na prática, é diferente, segundo Michael Taylor, um especialista em políticas do International Land Coalition. “Se a terra na África não tem sido plantada, provavelmente há uma razão. Talvez seja usada para pastagem de gado ou deliberadamente deixada em repouso para evitar o esgotamento dos nutrientes e a erosão. Quem quer que tenha visto essas áreas identificadas como sem uso entende que não há terra na Etiópia que não tenha proprietários e usuários”.

Monocultura

A ecologista indiana Vandana Shiva disse em Londres recentemente que a agricultura industrial em grande escala não somente expulsou as pessoas para fora da terra como também requer produtos químicos, pesticidas, herbicidas, fertilizantes, o uso intensivo de água, transporte em grande escala, armazenamento e distribuição que, no seu conjunto, transformaram paisagens inteiras em enormes plantações de monocultura.

Já Lorenzo Cotula, pesquisador sênior do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, afirma que acordos bem estruturados poderiam garantir empregos, melhor infraestrutura e melhores safras. Mas, se mal conduzidos, podem causar grandes danos, especialmente se a população local for excluída das decisões sobre a alocação de terras e se os seus direitos à terra não forem protegidos.

A questão da água também é controversa. Autoridades locais etíopes disseram ao Observer que as empresas estrangeiras que instalaram fazendas de flores e outras grandes fazendas de produção intensiva não estavam pagando pela água. “Nós gostaríamos, mas o negócio é feito pelo governo central”, disse um deles. Em Awassa, o consumo de água da fazenda al-Amouni é equivalente ao de 100 mil etíopes.


A África dá as suas terras em troca de nada



As aquisições de terras em países pobres, última tendência entre corporações, fundos de investimento e países importadores de alimentos, supõem para os mais pobres enfrentar o possível desalojamento de suas terras e ao acesso às mesmas e aos seus recursos, como a água. É isso que se depreende de um estudo encarregado pela FAO (Organização para a Agricultura e a Alimentação) e o PNUD (Programa para o Desenvolvimento), ambos ligados à ONU, apresentado nesta segunda-feira. A reportagem é de Lali Cambra e está publicada no jornal espanhol El País, 26-05-2009. A tradução é do Cepat.

O documento pontualiza que as aquisições (de modo geral feitas na África mediante contratos de aluguel de meio século ou um século inteiro pelo que nada se paga) podem constituir um benefício ao supor investimentos estrangeiros. Também pode acarrear atração tecnológica, incremento da produtividade agrária e criação de emprego e de infra-estrutura. Mas, assim como estão sendo levados a cabo, com precárias consultas à população local, falta de transparência e sem garantir nos contratos os compromissos de investimento, emprego ou desenvolvimento de infra-estruturas, supõe colocar em risco o modo de vida de milhares de pequenos agricultores ou pastores, cuja existência depende da terra.

O estudo, realizado pelo Instituto Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED), enfatiza a necessidade primeira dos governos africanos de garantir os títulos de propriedade da população local, para protegê-la, evitar que seja desapropriada arbitrariamente e, assim mesmo, possibilitar que obtenha benefícios maiores dos hipotéticos investidores.

Os autores do relatório analisaram os contratos de diversos países africanos com corporações, fundos de investimento e países importadores de alimentos como os do Golfo Pérsico, do Sudeste Asiático e da China. À vista destes documentos alertam para o fato de que existe entre os investidores a crença de que a África (e a América Latina) tem terra em abundância disponível, erma ou abandonada, “mas é preciso ir com cuidado com estes termos”. Opinam que são usados para equipará-las a terras não produtivas, quando talvez sejam usadas intermitentemente (são deixadas de barbecho) por pequenos agricultores ou por pastores ou por caçadores-coletores. Esta situação já teria se dado na Tanzânia, Etiópia ou Moçambique, onde terras que estavam sendo usadas teriam sido alugadas como “abandonadas”.

Se o abastecimento de terras para empresas investidoras estrangeiras poderia ter benefícios, algo que os autores enfatizam, esses não estão tão claros quando se revisa os acordos assinados com os governos africanos (foram estudados investimentos na Etiópia, Gana, Quênia, Madagascar, Moçambique, Sudão, Tanzânia e Zâmbia), onde se constata a falta de transparência e a impossibilidade do público de ter acesso aos contratos.

A terra em si ou se dá de graça ou tem um cargo nominal (entre 5 e 10 euros o hectare em Mali). Os governos esperam benefícios como infra-estruturas ou criação de empregos. Mas os contratos – “de modo geral curtos e simples” – carecem de explicações sobre riscos ou benefícios, sobre o tipo de negócio a realizado na terra (se será uma plantação típica, se haverá um negócio conjunto com a população local) ou sobre a contratação.

Os autores do estudo reclamam a necessidade de consultas transparentes à população (apontam que em alguns casos estas consultas se limitam aos anciãos dos povoados, aos oficiais e à elite do governo municipal). Questões como a segurança alimentar no próprio país também são, em muitas ocasiões, passadas por alto.

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