Por: Luiz Felipe Pondé
"Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?", escreve Luiz Felipe Pondé, professor da PUC-SP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2008. E continua perguntando: "Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto".
Eis o artigo.
Leitores apressados identificam em mim um culto da escuridão. Pensam que me faltaria luz. Daí meu "pessimismo". Não, isso é um engano. Suspeito, sim, que levar as "luzes" a sério demais é sinal de pouca luz.
Confesso, não sou muito moderno. "Seria este colunista um retrógrado?", indaga-se o leitor apressado. Respondo: não se deve ter medo de ser anacrônico. Muitas vezes ser extemporâneo pode ser uma forma de consciência. Hoje, em meio à pressa do cotidiano, gostaria de partilhar com o leitor um desconforto. Há uma relação perigosa entre políticas de saúde e a estupidez das massas: chantagem emocional, humilhação moral, procedimento estatístico, opressão burocrática, constrangimento legal. O leitor apressado, movido por seus vícios, pensará que sou "contra" a saúde, mas não se pode fazer muito contra os vícios. Sei disso porque os tenho aos montes.
Enfrentaremos nos próximos anos novas formas de eugenia que a saúde de massa assumirá ao atingir o formato legal. A violência é invisível quando é legal. Recentemente li nesta Folha uma pequena nota que falava de um projeto da Organização Mundial da Saúde propondo políticas mais agressivas contra a Aids. Ironicamente diria que aí está um alerta para jantares inteligentes: jamais questione políticas como essa; melhor contar, entre dois goles de vinho, sua vida sexual com um pastor alemão.
Cientistas cogitam uma lei que obrigaria toda pessoa acima de 15 anos a fazer todo ano exame de HIV. Já vejo o documento do "HIV zero" com validade de um ano sem o qual você não tira passaporte, não saca dinheiro, não faz seguro de saúde, não casa, não herda. Por que não fazer o mesmo com doenças genéticas e diabetes? As empresas adorariam "administrar" a qualidade da saúde de seus funcionários.
Como nos diz Zygmunt Bauman em seu livro "Modernidade e Holocausto", o mal-estar é um traço da consciência moral moderna. Diante do constrangimento causado pela burocracia da saúde de massa, seriam os incompetentes uma esperança? Sabemos que, num campo de concentração, um soldado bêbado ou corrupto salvaria vidas. Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?
Nunca foi possível abortar e depois ir ao cinema. O avanço da ciência nos impõe impasses éticos antes impensáveis. Avanços dramáticos são aqueles que demandam definições do tipo "o que é o humano?". Novas formas de barbárie invisível podem surgir da relação entre avanços científicos e definições jurídicas. Chama-me a atenção a fúria como as campanhas pró-aborto repetem o movimento de desumanização, agora, do feto: "Feto não é gente, pode jogá-lo fora". Campanhas assim (de definição do "humano") já foram realizadas em outros momentos da história e aplicadas com sucesso a outras vítimas.
Só tolos crêem que juízes possam evitar essa forma de violência invisível. Ao contrário, eles podem ser os agentes dela porque são submetidos ao próprio processo de acomodação que o imaginário cultural produz ao longo do tempo. Um juiz não tem autonomia em relação ao seu momento histórico.
Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto.
Antes de tudo, é necessário desumanizar o feto para atingir o afeto vazio que caracteriza o aborto sem culpa. Sem a agonia moral não existe moral. O leitor apressado, agora também irritado, suporá que nego a possibilidade de uma pessoa ter vida moral sem sofrimento. Confesso, nisso ele está certíssimo. O coração da vida moral é o sentimento de culpa.
Temo que dentro de cem anos essa discussão se acabe. A própria identificação entre sexualidade e reprodução estará extinta. A reprodução será, como tudo mais, mediada pelo mercado, aquele das tecnologias da reprodução. A sexualidade será, por sua vez, algo assim como ir ao cinema.
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