terça-feira, 19 de agosto de 2008

Geni e o Zepelim

Uma vez criei aqui um marcador "vidas revolucionárias". Queria poder usar o mesmo marcador para vidas ficcionais; trata-se de Geni.
Acredito que isso tem a ver com o que conversamos ontem: Geni é mais inteira do que eu, mais feliz e mais rica...


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Geni e o Zepelim



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir


Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni


Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni


Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

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Comentários de jholland - em 19/08:

Permita-me fazer alguns comentários no próprio corpo da postagem, correndo o risco, talvez, de ser redundante.
Para mim, o tema central da discussão de ontem - o próprio ponto de partida para o Grupo de Estudos - é a imobilidade: como caracterizá-la, qual o seu alcance, como superá-la ?
S. Zizek tem um texto em que dialoga com a famosa frase cristã: "Perdoai-os Senhor, pois eles não sabem o que fazem". Para Zizek, não se trata mais de refletir sobre a ignorância - que nos leva à imobilidade - mas saber porque, sabendo de tudo, continuamos imóveis.
Isso me leva a dar o passo seguinte: creio que a imobilidade resulta de uma particularidade da Filosofia Ocidental - pois, tal como voce observou ontem, talvez todo o Ocidente esteja alicerçado em um grande equívoco. Qual é esse equívoco? A renúncia a uma cosmologia, associada à alienação de si mesmo.
Explico.
Se antes um certo equilíbrio resultava de uma cosmologia religiosa, o Iluminismo tratou de desmontar o edifício metafísico que sustentava essa cosmologia. (O processo, no entanto, foi lento, durou quase 2 séculos). A partir de meados do século XIX até meados do século XX, tivemos o período áureo da Política. Nesse período, a Utopia socialista conseguiu - bem ou mal - aproveitar os escombros dessa metafísica para mobilizar corações e mentes, tentou fundar uma espécie de cosmologia sem Deus (o sistema hegeliano-marxista é um exemplo disso, mas não o único). Entretanto, o que sobreveio a esse período - o fim da Política - não é propriamente uma ruptura, mas talvez uma continuidade desse movimento iniciado pelo Iluminismo. Em outras palavras, a filosofia ocidental, a postura do homem ocidental moderno, levou-o à crítica niilista, cujo resultante é a imobilidade.
Qual seria o cerne dessa postura ? Como disse acima, ela tem a ver com a conceitualização do próprio mundo, que elimina a possibilidade de nos relacionarmos e vermos a realidade como ela é. É o império do conceito e do simulacro. Volto, então a repetir o que já disse em outra ocasião: construímos uma auto-imagem, uma persona, e, através dela, pensamos ver o mundo, quando na verdade estamos apenas olhando no espelho. Essa é a razão pela qual, penso, a maioria esmagadora do mundo não se importa, assenta-se confortavelmente no sofá e espera apenas se distrair da melhor forma possível até que a morte lhes sobrevenha. Não há um sentido real de vida e do Outro.
Essa é a raiz da imobilidade.
Ainda que alcançemos postos importantes em uma burocracia qualquer, na esperança de "fazer o mínimo pelo outro", o que provavelmente ocorrerá é que, no processo cotidiano, seremos engolfados pelos jogos de poder, pelos jogos do ego, pelos jogos de linguagem, pelas seduções do consumo, do amor ou do sexo e, principalmente, pela premente necessidade de uto-preservação que essa auto-imagem nos impõe e que nos escraviza até quando sonhamos.
Não somos aquilo que pensamos ser; não somos a imagem que fazemos de nós mesmos e que tão ciosamente tentamos preservar. Para termos uma pequena idéia do que somos, devemos começar a observar o que fazemos. Isso nos dará apenas uma pequena avaliação, uma primeira aproximação, porém ela, por si mesma, já nos revela o quão distantes somos em relação àquilo que pensamos que somos.
Creio, então, que a questão volta a ser a ignorância, porém num registro mais profundo. Pois somos ignorantes de nós mesmos e, portanto, do Outro e do próprio Mundo. O que vemos - assim, como a definição de nossos prórpios problemas e prioridades - não advém de um conhecimento genuíno sobre nós e o Outro, mas apenas das interações com nosso espelho quebrado, nossa pobre auto-imagem.
Sobre esse assunto, ver por exemplo, a postagem no Metamorficus: http://metamorficus.blogspot.com/2008/08/conhece-te-ti-mesmo.html

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