sexta-feira, 25 de julho de 2008

Ernst Bloch, utopia e revolução


Por: Voltaire Schilling (*)




Ele foi uma espécie de exceção na filosofia dos começos do século XX, visto que o que o atraiu sua reflexão não foram os ascendentes aspectos científicos e tecnológicos, como no caso dos marxistas evolucionistas ou dos neopositivistas em geral. O que fascinou Ernst Bloch, pensador judeu-alemão falecido em 1977, foram os elementos imaginativos, os "sonhos diurnos" de todos nós, e como eles tinham o poder de modelar o comportamento e a cultura dos homens. Filósofo de tendência marxista, tratou de ressaltar o quanto à doutrina de Marx, ainda que produto histórico do iluminismo e da revolução industrial, foi também herdeira dos movimentos cristão-milenaristas da Europa Ocidental.




Marxismo e Messianismo

Todo o esforço teórico de Karl Marx e de Friedrich Engels foi apresentar a doutrina do Materialismo Dialético como que amparada nos foros da revolução positivista do século XIX. O socialismo deles - ao contrário dos socialistas "utópicos" como Saint-Simon, Owen, Fourier, ou de tantos outros delirantes pregadores de sociedades ideais - era "científico", e queriam a máxima distância das fantasias igualitárias que reformadores sociais, seus contemporâneos, faziam. Assim sendo, "utopia" para a dupla era algo pejorativo, produto de mentes bem intencionadas mas imprecisas, que nada possuíam de valor prático. Ao tempo em que implicavam com a utopia, denunciaram ainda mais a "ideologia", cortina de idéias e sutis pretextos outros usados pelas classes dominantes para justificarem o seu domínio e a exploração a que submetiam as massas. Somente a proposta deles, extraída de rigoroso estudo da economia-política capitalista, da história e da sociedade em geral, é que realmente tinha valor, o "socialismo científico". Para Marx, a catástrofe do capitalismo com o subseqüente fim do domínio da burguesia, a ocorrer mais adiante, não era uma previsão escatológica mas resultado da essência interna do sistema por ele detalhadamente examinado com rigor de um dissecador de laboratório.
Pois nada disso Ernst Bloch levou em consideração, fazendo com que se deixasse seduzir exatamente pelo que Marx e Engels mais repeliam, isto é, aquelas fabulações de querer implantar na terra o Reino dos Céus, ainda que em sua versão secularizada. Bloch, afastando-se da pretensão científica do marxismo, procurou enfatizar o conteúdo messiânico e salvacionista que a doutrina revolucionária era portadora. Seguramente, para ele, o atrativo dela estava nos seus elementos emocionais-redentores e não nos racionais-evolucionistas.
Por isso, o Marx de Bloch é o dos Frühschriften: os escritos juvenis de Marx, os "Manuscritos econômico-filosóficos", a "Sagrada Família", a "Ideologia Alemã", as "Teses sobre Feuerbach", e tantos outros ensaios dos anos de 1844-5, tempo em que ele não era marxista, quando o gosto do pensador era ainda envolver-se com idéias, com ideologias, e não com estatísticas ou índices de produção econômica que predominam no Das Kapital.
Deste modo, a utopia, que Marx e Engels botaram aos empurrões para fora do movimento socialista do século XIX, ressurgia nos começos do século XX para ocupar o âmago da reflexão filosófica e política de Bloch. Na verdade ele realizou uma complexa e uma tanto estranha síntese que envolvia o messianismo judaico-cristão com o marxismo, tudo interpretado ao viés da filosofia hegeliana.


O retorno da utopia

Antes de se dar prosseguimento, importa esclarecer o uso do conceito utopia por Bloch, utilizado por ele de maneira bem mais ampla e genérica do que comumente é conhecida. Na terminologia das ciências sociais e políticas, a palavra utopia é sempre associada à descrição de uma sociedade inexistente, a algo ainda não concreto e que jamais houve de fato, a não ser na dialética imaginativa de Platão ("República") ou na narrativa de Thomas More ("Utopia"), e tantos outros narradores imaginativos. Para Bloch não. Este uso, apesar de ser o mais corriqueiro e célebre, parece-lhe limitado, é apenas um dos aspectos de como o fenômeno utópico aparece.
A utopia de Bloch é algo superdimensionado. É, por assim dizer, todo e qualquer pensamento maravilhoso que brota da mente humana. Pode ser a constituição de uma sociedade perfeita, arquitetura intelectual de uma infinidade de reformadores religiosos e de filósofos sociais, ou um simples desejo de que ocorram coisas melhores no futuro. Pode por igual surgir nos versos do poeta, no sonhar acordado de um Goethe, de um Klopstok, de um Hölderlin,ou ainda nos castelos no ar das histórias infantis e das aventuras de Karl May, e os tantos "sonhos diurnos" que nos acometem em diversos instantes ao longo da vida.(*)
Ela, a utopia, é uma manifestação intelectual "do pressentimento da esperança", um quadro imaginário e impreciso do porvir, e que ao contrário de manifestar-se como uma inconseqüente fabulação, é fato fundamental na construção do futuro.
(*) "O sonho acordado", diz Pierre Furter, um dos seus comentadores, "manifesta uma verdadeira fome psíquica pelo qual o homem imagina planos futuros e outras situações em que supere os problemas, as dificuldades e as obrigações de um hoje onipresente. Assim, os sonhos acordados nos dão uma primeira forma tosca, vaga, talvez ilusória, do que será, numa fase mais elaborada, a utopia" (in "Dialética da Esperança", cit. p/ Suzana Albornoz, 1985)





O reaparecer das utopias

Com a modernidade, as utopias reapareceram como forma peculiar de conhecimento e processo secularizado das experiências milenaristas ocorridas no passado. O ardor dos anabatistas e demais seitas igualitárias do comunismo medieval, que lutaram para impor na terra o Reino dos Céus, apresentava-se agora, nos tempos atuais, não mais por meios transcendentais, senão que se utilizando os recursos racionais colocados à disposição pela Revolução Iluminista do século XVIII e levadas a diante pelo Movimento Socialista. Ainda assim a utopia continua presa a sua Dimensão Escatológica, inerente ao seu conceito (ver Thomas Münzer als Theologe der Revolution, livro de Bloch, de 1923).
O utópico encontra-se espalhado por todos os lados, não há uma só cultura conhecida que ignore a sua presença visto que se converteu numa "dimensão antropológica essencial". Uma sociedade sem utopia é tão impossível como a um ser humano não sonhar.
Todavia foi inegável que a sua primeira obra relevante, redigida numa prosa marcadamente expressionista, Geist der Utopie, "Do Espírito da Utopia", publicada em 1918, nasceu sob o impacto da Revolução Russa de 1917 e pelo clima de insurreição geral que começou a predominar na Europa nos anos derradeiros da Primeira Guerra Mundial. A realidade da explosão revolucionária atiçou-lhe a busca pelo significado mais profundo e diverso da utopia.

Uma filosofia do futuro

Bloch observou que Marx provocara uma quebra e uma reviravolta no que até então era a fixação básica da filosofia ocidental. Desde a rememoração, a amnésia de Platão, até o tardio vôo da coruja de Hegel, ela tinha sua atenção voltada para o que já sucedera: o grego para a viagem que a alma realizava em direção ao arquétipo, bem antes do corpo nascer, e o alemão para a história do espírito visto pelo pássaro de Minerva, com os olhos voltados para o que ocorrera. Marx foi o primeiro pensador moderno a colocá-la, a filosofia, como um poderoso instrumento capaz de vir a escrutar o Zukunfts, o futuro, abrindo assim o caminho do novo, para a "problemática do novum", incluindo uma reflexão mais elaborada e precisa do que nos aguarda pela frente.
Coube-lhe sobrepujar os horizontes estreitos da mentalidade tradicional considerando as transformações das condições existentes numa possível realidade. É a doutrina que incluiu o futuro (a implantação da sociedade socialista) como fator essencial para a compreensão do passado e o entendimento do presente.
Neste momento da análise da contribuição do marxismo, Bloch faz uma advertência sobre os dois tipos de futuro. Recorrendo à expressão de Heidegger, define um deles como "inautêntico": o que continua velho, puramente cronológico, que não apresenta nada de novo, uma repetição monótona do mesmo, ao qual ele contrapõe o futuro "autêntico", positivo, onde "floresce a esperança, em que não há falsidade", o futuro como realização da utopia formadora de um ser distinto.(*)


(*) Bloch, que viveu os anos de guerra exilado nos Estados Unidos, deixou a América para atender ao convite da Universidade Karl Marx, em Leipzig, na Alemanha Oriental. Todavia, seu humanismo não demorou a entrar em choque com o neo-stalinismo que imperava no lado comunista. Em 1961, aproveitando uma viagem para o lado ocidental, ele e sua família não retornam, radicando-se em Tübingen, na Suábia, onde ele veio a falecer em 4 de agosto de 1977.


Bibliografia


Albornoz, Suzana – Ética e Utopia. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985.
Bloch, Ernst – L´Esprit de la Utopie. Paris: Gallimard, 1977.
Bloch, Ernst - Thomas Münzer, teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
Bloch, Ernst - O Principio Esperança. São Paulo: Contraponto, 2006, 3 v.
Furter, Pierre - Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974



(*)Quem é Voltaire Schilling
:

Nascido em 1944, é professor de História e Mestrando na UFRGS, responsável pelo Projeto Cultural do Curso Universitário. Escreveu 8 livros (*) e mais de 40 polígrafos, a maioria sobre História e História das Idéias Políticas.

É professor do Curso de Jornalismo Aplicado da RBS-RS e palestrante da AJURIS-RS. Fez o Curso de Língua e Cultura alemã em Berlim em 1986, onde foi palestrante na Universidade Livre. Representou o Brasil na Feira Internacional do Livro de Jerusalém, em 1991.
É articulista da Zero Hora-RS na página de “Opinião”, colaborador do Caderno de Cultura ZH e, também, foi comentarista de assuntos internacionais, culturais e políticos do programa “Câmera 2” na TV Guaíba-RS.


Livros


O Nazismo: breve história ilustrada, Editora da Universidade Federal/RS, Porto Alegre, 1988, 85 págs.

Confrontos: o pensamento político alemão, Editora da Universidade Federal/RS, Porto Alegre, 1996, 93 págs.

Estados Unidos versus América Latina: as etapas da dominação, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1991, 78 págs.

A Revolução Chinesa: colonialismo/Maoísmo/ Revisionismo, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1984, 119 págs.

Momentos da História: a função da história na conjuntura social, Editora Tchê, Porto Alegre, 1988, 148 págs.

Tempos da História, Editora Solivros, Porto Alegre, 1995, 357 págs.

As Grandes correntes do pensamento, Editora AGE, Porto Alegre, 1998,159 págs.

O conflito das idéias, Editora AGE, Porto Alegre, 1999, 199 págs.




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