Transcrevo abaixo dois pequenos trechos de um trabalho publicado na Revista de Psiquiatria Clínica acerca dos condicionamentos que os sistemas de crenças exercem sobre a cognição, bem como algumas alterações clinicamente demonstráveis durante estados meditativos - espécies dos chamados Estados Alterados de Consciência (EAC).
O texto completo pode ser obtido em http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol34/s1/136.html.
Espiritualidade, Religiosidade e Psicoterapia
Espiritualidade, Religiosidade e Psicoterapia
(fragmentos do artigo)
Autores:
Julio Fernando Prieto Peres
Doutor em Neurociências e Comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e membro do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos (NEPER).
Manoel José Pereira Simão
Mestre em Neurociências e Comportamento pela USP e membro do Neper.
Antonia Gladys Nasello
Doutorado pela Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, e pela USP. Professora adjunta do Departamento de Ciências Fisiológicas da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Crenças, subjetividade e percepção
A neurociência tem revelado que o mundo percebido por cada indivíduo não é uma reflexão exata do mundo físico e aspectos e características essenciais do mundo percebido não estão, de fato, presentes no mundo físico (Ramachandram e Gregory, 1991). Estudos realizados sobre percepção visual revelam como é realmente pequeno o nível de informações que o cérebro assimila enquanto observamos o mundo, em relação à abundância de informações por ele fornecidas. As discussões desses achados apontam que a riqueza da experiência individual é imensamente subjetiva. Os comportamentos cotidianos dependem pouco do que se enxerga e muito do trabalho de projeção treinada (Ramachandran e Gregory, 1991; Yarrow et al., 2001). Qualidades da percepção, valências emocionais e interpretações relativas aos eventos experimentados não têm uma contraparte única correspondente aos eventos físicos. Isto é, a percepção de mundo está sujeita às crenças do indivíduo e a seu histórico de vida, afetando a sensibilidade para estímulos específicos, os critérios de escolha e o limiar de observação (Metzger, 1974). Além disso, experiências subjetivas alteram o arranjo sináptico na rede neural (Kandel et al., 2000, p. 34) e os perceptos constituídos por experiências objetivas e subjetivas podem determinar o estímulo ao qual o indivíduo vai reagir (Metzger, 1974). Um exemplo do importante impacto da subjetividade no sofrimento psicológico é demonstrado no estudo de Creamer et al. (2005). Conforme os critérios do DSM-IV, a definição de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) inclui componentes objetivos (A1) e subjetivos (A2) (American Psychiatric Association, 1994). Os autores estudaram a prevalência do critério A2 e sua associação com memórias traumáticas e a psicopatologia seguida a eventos traumáticos em 6.104 adultos. A maioria dos indivíduos (76%) preencheu o critério A2, com maior prevalência em mulheres (81%) que em homens (69%). Apenas 3% dos indivíduos que não preencheram o critério A2 apresentaram memórias traumáticas persistentes. Os autores sugerem que o processamento subjetivo que envolve as memórias traumáticas pode ser o mediador decisivo da psicopatologia seguida ao trauma. O estudo reforça a importância de o tratamento psicoterápico abranger os diálogos internos subjetivos e respectivos sistemas de crenças (Peres et al., 2005a).
Outros achados da neurociência sugerem que o imaginário tenha um valor neurofisiológico parecido com o que desempenhamos em comportamentos objetivos (Williamson et al., 2001). Entre outros estudos, Kraemer et al. (2005) revelaram que a condição imaginária de audição e visualização obedeceu a reciprocidades neurais similares à condição real de ouvir e visualizar os mesmos eventos. Técnicas de visualização ativa têm sido empregadas em psicoterapias com resultados satisfatórios, ainda que o tratamento não seja eficiente para todos os pacientes (Menzies e Taylor, 2004). Em proveito da natureza subjetiva da percepção humana, a habilidade de reconstrução emocional e reinterpretação a eventos dolorosos pode ser também utilizada com eficácia na psicoterapia (Peres et al., 2005b). Desenhos experimentais poderão testar se a religiosidade e a espiritualidade podem compor um enquadre cognitivo – imaginário – provedor de amparo para superação de dificuldades psicológicas.”
(...)
Neuroimagem da religiosidade e estados alterados de consciência
James (1890) foi um dos primeiros psicólogos que chamou a atenção sobre os outros estados de consciência diferentes do estado de vigília. Metzner (1995) define estado alterado de consciência (EAC) como uma mudança temporária no pensamento, no sentimento e na percepção, em relação ao estado de consciência ordinário, e que tem início, duração e fim. Para Weil (1995), a percepção da realidade se dá em função do estado de consciência do indivíduo. Estados alterados de consciência induzidos pela prece e meditação têm sido estudados com métodos de neuroimagem funcional. Especialistas em meditação submetidos a estímulos dolorosos durante a prática meditativa revelaram que não vivenciaram a dor tal como em estado de vigília. Durante o EAC, observou-se predominância de freqüência alfa com picos máximos de 10 Hz nos lobos occipital, parietal e nas regiões temporais, sugerindo estado de relaxamento profundo sem caracterização do sono. Convergindo com achados anteriores sobre a representação da percepção sensorial/emocional da dor (Rainville et al., 2002), o estado meditativo revelou significativa diminuição da atividade no tálamo, no córtex somatossensorial secundário, na ínsula e no córtex cingulado quando comparado com o estado não meditativo. Uma vez que a dor é uma experiência sensorial e emocional complexa, esse, entre outros estudos com métodos eletrofisiológicos e de neuroimagem, esclareceu que estados alterados de consciência podem gerar mudanças na atividade dos circuitos relacionados à percepção da dor (Kakigi et al., 2005; Rainville et al., 2002). Mudanças no fluxo sangüíneo cerebral foram também observadas durante as preces (verbais repetitivas) de freiras franciscanas. Em comparação à linha de base, o EAC decorrente das preces mostrou atividade aumentada no córtex pré-frontal, nos lobos parietais inferiores e frontais (Newberg et al., 2003). Achados similares foram observados por Azari et al. (2001), que estudaram as reciprocidades neurais da experiência religiosa investigada como um fenômeno de atribuição cognitiva. Durante a recitação religiosa, observou-se aumento da atividade do circuito frontoparietal, composto dos córtex parietal frontal e medial pré-frontal e dorsolateral. Estudos prévios indicam que essas áreas são subjacentes à sustentação reflexiva do pensamento e os autores discutem que a experiência religiosa pode ser um processo cognitivo e não apenas uma vivência emocional imediata. Lans (1996) confirmou que a religiosidade pode ser uma fonte rica para encontrar propósitos de vida, assim como para formular orientações cognitivas para avaliações e geração de comportamentos diante de situações vitais ou traumáticas. A evocação espontânea ou voluntária de memórias traumáticas ocorre em EAC com expressiva manifestação sensorial e emocional (Peres et al., 2005b). Indivíduos traumatizados submetidos a terapia de exposição e reestruturação cognitiva construíram narrativas resilientes, com novos significados e atribuições ao evento traumático, e atenuaram as respostas emocionais mediadas pela maior atividade do córtex pré-frontal, do hipocampo esquerdo e parietais nos exames de neuroimagem pós-psicoterapia (Peres et al., 2007b). Tart (1990) e Metzner (1995) estudaram os EACs e seu uso em psicoterapia, revelando que as experiências durante tais estados podem influenciar mudanças de comportamento. Diversos autores demonstram que a utilização do EAC para a percepção de imagens mentais pode ser uma ferramenta efetiva na formação de novos padrões de pensamento, sentimento e comportamento (Kasprow e Scotton, 1999). Diferentes estados de consciência podem promover novas percepções a respeito de um mesmo fenômeno e, conseqüentemente, novos estados emocionais favoráveis a superação de dificuldades e sofrimentos no âmbito psicológico (Dietrich, 2003). Teoricamente, práticas religiosas/espirituais subjetivas, como preces, contemplações e meditações, podem alterar o estado de consciência, influenciando a mudança da percepção de um evento que desencadeie sofrimento. Mesmo que a hipnose seja conhecida por promover EAC com objetivos terapêuticos (Eslinger, 2000), o estudo e a aplicação dos EACs talvez possam ser um dos caminhos para a integração da espiritualidade e da religiosidade à psicoterapia, visando ao atendimento das pessoas que valorizam, em seus sistemas de crença, essa instância subjetiva. Como exemplo, a psicoterapia transpessoal aborda tópicos como a importância da espiritualidade para reconquista da saúde e do bem-estar do cliente, assim como a utilização dos EACs para promoção de relaxamentos e visualizações com impacto terapêutico (Walach et al., 2005).”
(Peres, J.F.P. et al. / Rev. Psiq. Clín. 34, supl 1; 136-145, 2007)
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