Por: Felipe Pena*
* Professor Doutor da Faculdade de Comunicação Social da UNESA.
O objetivo deste texto é propor um modelo alternativo para as construções de biografias, que fuja do tradicional formato diacrônico de narrativa, classificado por Pierre Bourdieu como ilusão biográfica, pois tenta ordenar os acontecimentos de uma vida como uma história com começo, meio e fim, formando um conjunto estável e coerente.
Palavras-chave: biografia, complexidade, identidades.
Biógrafos e ilusões
O jornalista é um fingidor. Ele finge não sentir a dor de seu próprio fingimento. Diferente do poeta, ele acredita no compromisso com a realidade, embora estejam ao seu alcance os elementos para perceber que o máximo que pode oferecer é um efeito de real. Espremido pelos deadlines e pelos chefes de reportagem, talvez ele não tenha tempo para refletir sobre esses elementos. Ou talvez não tenha a formação adequada para entendê-los. Quem sabe, não tenha interesse. Afinal, é muito mais fácil oferecer uma suposta realidade (estável, coerente e totalizadora) do que se preocupar com a complexa rede de conexões e indeterminações que se manifestam nesse admirável mundo contemporâneo.
O tema escolhido para este trabalho está diretamente ligado a um filão editorial muito explorado pelos jornalistas: as biografias. Cada vez mais, os profissionais da imprensa enveredam pelo jornalismo não cotidiano, buscando narrativas de fôlego em que (re)constroem histórias e identidades, mas, para isso, utilizam o mesmo referencial epistemológico de sua atividade diária nas redações. O relato biográfico, na maioria das vezes, tenta ordenar os acontecimentos de uma vida de forma diacrônica, na ilusão de que eles formam uma narrativa autônoma e estável, ou seja, uma história com começo, meio e fim, formando um conjunto equilibrado e seguro. É o que Pierre Bourdieu chama de ilusão biográfica, aquela que trata a história de uma vida como “o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção” (Bourdieu, 1998, p. 185).
Para Bourdieu, o biógrafo é cúmplice dessa ilusão. Ele é o responsável pela criação artificial de sentido, já que tem interesse em aceitar a coerência da existência narrada, pois seu discurso baseia-se na preocupação de “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final” (Bourdieu, 1998, p. 185). Ao organizar a vida como uma história linear, o biógrafo fornece uma razão de ser ao seu objeto e tranqüiliza o seu leitor, que se identifica no passeio pela “estrada percorrida”.
Associar a vida a um caminho ou estrada facilita a compreensão, facilita a narração, facilita a venda. O sucesso das biografias no mercado editorial está certamente relacionado à opção da maioria dos autores em reconstruir o passado atribuindo significado aos fatos dispersos de uma vida, alocando-os em ordem cronológica.
Estamos sendo seduzidos pela memória e comercializando a nostalgia, diria Andréas Huyssen (2000, p. 14). Mas tanto a sedução quanto o comércio vivem de um modelo epistemológico anacrônico e não contemplam as transformações na experiência espacial e temporal do mundo contemporâneo. Neste trabalho, defendo a adoção de sistemas complexos como caminho para evitar a ilusão biográfica. Para tanto, proponho a utilização metafórica de estudos provenientes das ciências naturais, como as teorias do caos e dos fractais, responsáveis também pela segunda hipótese deste texto, que consiste em abordar a multiplicidade de identidades do biografado através da recorrência a possíveis simetrias de escala provenientes das referidas teorias.
Ou seja, propor uma possibilidade de ordem no interior da própria desordem, sem deixar de confirmar a fragmentação dos processos identitários e suas articulações em redes flexíveis e inesgotáveis.
Fenômenos caóticos e previsibilidade
No princípio, era o caos. “Havia trevas sobre a face do abismo”.1 Na Bíblia, as palavras caos e abismo têm o mesmo significado, pois a origem etimológica da primeira corresponde à segunda. Caos vem do grego khínein, que significa exatamente abismo. Os próprios gregos trataram de relacionar a palavra com desordem e confusão, opondo-a radicalmente à idéia de organização e estabilidade.
A obsessão em dominar a natureza esconde a verdadeira obsessão do homem: dominar o caos, ou, em outras palavras, ter previsões seguras que evitem a queda no abismo. Para isso, ele inventou a ciência e tratou logo de criar leis deterministas que dessem estabilidade aos fenômenos naturais. A física de Aristóteles, a mecânica de Newton ou a abóbada de Ptolomeu tinham a função primordial de ordenar os acontecimentos da natureza, explicando
suas origens e tentando prever seus movimentos.
Mas a natureza não se mostrou tão previsível. Nas últimas décadas, a instabilidade quântica e a teoria do caos vêm ganhando espaço nos estudos das chamadas ciências da complexidade. Para isso o conceito de caos não é mais associado à ausência de ordem, e sim a sistemas dinâmicos e complexos de informação. A imprevisibilidade está presente nestes sistemas, já que eles podem variar de forma aleatória no decorrer do tempo. Em palestra proferida no XIII Encontro da Anpoll, o físico Fernando Paixão exemplificou os fenômenos da imprevisibilidade, citando o trabalho do meteorologista Edward Lorenz:
Na área de previsão atmosférica, este pesquisador percebeu este fenômeno pela primeira vez por acaso. Utilizava um computador para resolver as equações que simulavam a evolução no tempo das condições atmosféricas. Num certo instante, resolveu parar para observar os resultados intermediários.
Ao retornar os dados ao computador para reiniciar o trabalho, fez um leve arredondamento, e o resultado foi que a evolução temporal cada vez ficava mais distante do resultado obtido sem parar. Este resultado motivou a frase uma borboleta voando em São Paulo pode provocar uma tempestade em Nova Iorque (Paixão, 2000, p. 4).
O efeito borboleta pode não ser tão compreensível para o público leigo, mas há fenômenos mais corriqueiros como o trânsito das metrópoles, por exemplo. Basta um carro parar em uma via movimentada para produzir uma imediata diminuição dos veículos dessa via. E, nas variações do fluxo de trânsito em ruas perpendiculares ou paralelas, poderemos observar o caos momentâneo. Em cidades sem planejamento urbano, o caos pode ser até permanente.
No dia 21 de janeiro de 2002, os brasileiros puderam observar um fenômeno caótico em larga escala. O blecaute que deixou 67 milhões de pessoas no escuro durante cinco horas foi causado por um simples parafuso frouxo. A rede de Furnas tem 1,5 milhão de parafusos distribuídos por 72 mil quilômetros de linhas de transmissão, mas bastou o descuido com apenas um deles para acontecer o apagão. Ou seja, o parafuso constitui-se na rede inteira, assim como a rede resumiu-se a um parafuso, em concordância com as idéias de auto-semelhança e simetria em escala presentes na teoria dos fractais.2
A complexidade do sistema caótico revela-se na teia de conexões que o constitui. Outro exemplo clássico é a bolsa de valores. Ao ver as imagens de um pregão, observamos um grande tumulto de pessoas, falando ao mesmo tempo e movendo-se aleatoriamente. Mas o aparente caos tem uma ordem implícita no sistema dinâmico que rege o pregão: lei da oferta e da procura, medidas políticas, lucro e prejuízo de empresas, informações privilegiadas de acionistas, etc.
Entretanto, até mesmo essas referências ordenadoras transitam pela imprevisibilidade. No ano retrasado, o analista de finanças Mark Goodson e o astrólogo Christeen Skinner participaram de uma experiência promovida pela Universidade de Hertfordshire, na Inglaterra, para testar métodos de análise do mercado de ações.3 Goodson montou uma carteira de investimentos com base em análises de desempenhos de empresa, enquanto Skinner baseou-se no movimento dos planetas. Ao mesmo tempo, um psicólogo da universidade pediu que uma menina de cinco anos também montasse uma planilha de compra de ações. O resultado foi surpreendente. No período dos investimentos, a bolsa de Londres caiu 16%, mas a baixa não atingiu nenhum dos papéis da menina. Ela obteve rendimentos de 5,8%, enquanto os investimentos selecionados pelo especialista Goodson caíram 46,2% e pelo astrólogo Skinner ,6,2%. A menina derrubou as fórmulas de análise do mercado financeiro, e conseguiu fazer escolhas certas durante um ano de instabilidade na bolsa. Com tantos exemplos diferentes, o lado irregular das ciências da natureza, que chamou a atenção do meteorologista Edward Lorenz, passou a interessar também a cientistas de outras áreas, interessados em investigar os fenômenos caóticos. As primeiras experiências começaram ainda na década de 1960 e se intensificaram nos anos 1980. Além de Lorenz, destacaram-se pesquisadores como R.L.Devaney, autor de An introduction to chaotic dynamical systems, e Isabelle Stengers e Ilya Prigonige, que escreveram o livro Order out of chaos, em que defendem a idéia de que há uma ordem de recriação desenvolvendo-se no centro da desordem.
Fractais e identidades
O surgimento de novos paradigmas relacionados ao caos, ligados principalmente a questões como a imprevisibilidade, a teia de conexões da realidade, os sistemas dinâmicos e a complexidade, também o aproximaram das ciências humanas. Além de citar Prigonige e Stengers como exemplos, a pesquisadora brasileira Diana Damasceno (1999) relaciona a teórica da literatura Katherine Hayles, para quem “a linguagem não deve ser entendida como instrumento passivo de transmissão de informação, mas, ao contrário, como um espaço produtivo de complexos processos de comunicação interativos” (Hayles, 1999, p. 23).
Damasceno (1999) aborda a teoria do caos em sua tese de doutorado, que tem como objetivo verificar as possibilidades de construir teorias complexas para representar e traduzir literatura. Fixando-se mais explicitamente nas narrativas biográficas, ela conclui que tais produtos parecem surgir dos e nos espaços caóticos, in-between, gerados por múltiplas formas de organização construtoras de novas ordens, que permitem o cruzamento de linguagens diversas, como a linguagem da informática, a jornalística, a da escrita da história e a literária (Damasceno, 1999, p. 125)
Entretanto, o estudo da narrativa biográfica no interior da complexidade dos sistemas caóticos aplica-se não apenas no cruzamento de linguagens diversas, mas também nas pesquisas sobre as múltiplas identidades. Para isso, o conceito de fractal parece ser o mais apropriado.
O termo fractal foi utilizado pela primeira vez em 19674 , pelo matemático polonês Benoit Mandelbrot. Sua origem etimológica está no latim fractus, que significa irregular, e no verbo, também latino, frangare, que significa fraturar. Mandelbrot queria que a palavra ilustrasse o novo conceito elaborado por ele na análise das formas geométricas. Mas, após a publicação do livro The Fractals Geometry of Nature, em 1982, o vocábulo passou a caracterizar formas irregulares estudadas também em outras áreas, como a geologia e o mercado financeiro.
Na geometria fractal, é possível encontrar números quebrados entre as diversas dimensões espaciais, o que seria impossível na geometria euclidiana, que considera um ponto como dimensão zero, uma linha como dimensão um, um plano como dimensão dois e um volume como dimensão três. É o caso, por exemplo, de uma esponja. O volume tem porosidades e vazios que estão entre a segunda e a terceira dimensão, e não podem ser representados por números inteiros. Para resumir, fractal é uma figura geométrica n-dimensional com uma estrutura complexa e pormenorizada em qualquer escala. Os fractais são auto-similares e independentes em escala, ou seja, cada pequena seção de um fractal pode ser vista como uma “réplica” em tamanho menor de todo o fractal. Isso significa que podemos recorrer a um padrão dentro de outro padrão e assim por diante, partindo da complexidade maior do todo. É a chamada simetria de escala.
Um clássico exemplo da geometria fractal é o copo de neve de Koch.
Ele é obtido ao se inscrever repetidos triângulos dentro de um triângulo equilátero. As novas inscrições devem ser feitas dividindo os lados em três partes iguais e colocando um novo triângulo no terço central. Assim cada nova figura é mais complexa, mas todos os triângulos que a compõem são exatamente iguais ao original.
A revista New Scientist, de 23 de agosto de 1997, publicou extensa reportagem sobre as diversas aplicações da teoria dos fractais, destacando sua utilização na agricultura:
Pesquisadores do estado de Maryland (EUA), especialistas em agricultura, afirmam que a melhor medida da qualidade do solo é dada pela chamada teoria dos fractais. Esta teoria mede a estrutura do solo, conseguindo quantificar as propriedades relevantes dessa estrutura complexa formada de grãos de terra e interstícios de ar. É dela que decorre a quantidade de água que o solo é capaz de reter e a quantidade de ar capaz de atingir as raízes das plantas.5
Com aplicações na agricultura, na meteorologia, na cardiometria, nos mercados financeiros e em outras tantas áreas, a teoria dos fractais revela uma complexidade que também pode ser aplicada nas pesquisas sobre a identidade. Ainda mais quando inserida nos estudos sobre o discurso biográfico. Mas, se definir a identidade do biografado em explicações coerentes e totalizantes torna-se inviável, fracionar essa identidade em múltiplas e similares
identidades, em simetria de escala e recorrência de possíveis padrões, parece ser uma boa opção. A identidade é descentrada e fragmentada. Tem lugar para contradições e esquizofrenias. Classe, gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade, raça e outras tantas nomeações formam uma estrutura complexa, instável e, muitas vezes, deslocada. Nas contradições e deslocamentos estão os fractais da identidade.
No livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall (2001) apresenta três concepções de identidade. A primeira relacionada ao sujeito do iluminismo, um indivíduo centrado, unificado e dotado de razão e consciência. A segunda relacionada ao sujeito sociológico, que ainda mantém um núcleo ou essência, mas cuja identidade é formada pela interação entre o “eu” e a sociedade. E a terceira relacionada ao sujeito pós-moderno, cuja identidade está em mutação. É exatamente este último que interessa ao autor.
Para Hall, “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade estável e unificada, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (Hall, 2001, p. 12). Ele pode assumir identidades diferentes em diferentes momentos e, obviamente, elas não estarão unificadas em torno do “eu” coerente. A segurança e a coerência de uma identidade plena são apenas uma fantasia.
Hall utiliza o conceito de deslocamento segundo Laclau, que considera uma estrutura deslocada aquela cujo centro é deslocado sem, no entanto, ser substituído por um outro, mas sim por uma pluralidade de centros de poder. É nesse sentido que a identidade está sendo deslocada ou “descentrada”. E sem um centro estável, além da desarticulação da coerência do passado, há a possibilidade de novas articulações no presente. Ou seja, a criação de novas identidades.
Para exemplificar a descentralização da identidade, Hall (2001, p. 19) cita a indicação do juiz Clarence Thomaz para a Suprema Corte americana, em 1991: “No julgamento do presidente Bush, os eleitores brancos, que poderiam ter preconceitos em relação a um juiz negro, provavelmente apoiariam Thomaz, porque ele era conservador em termos da legislação de igualdade de direitos”. Fazendo o jogo das múltiplas identidades, o presidente
americano garantiria a sua indicação. Mas o que Bush não contava era com a acusação de assédio sexual ao juiz Thomaz. A partir daí, enquanto alguns negros passaram a apoiá-lo,
baseados na questão da raça, outros se opuseram a ele, baseados na questão sexual. Para as mulheres negras, então, a questão passou a ser ainda mais complexa. Que identidade deveria prevalecer, negra ou mulher? Ou seja, solidarizar-se com a raça ou com o sexo? E ainda havia outras combinações, como homens negros liberais ou mulheres brancas conservadoras. Várias possibilidades de identificação para apenas uma situação.
Com esse exemplo, Hall quer mostrar que as identidades se cruzam ou se deslocam mutuamente, mas também quer dizer que não existe uma identidade mestra, que possa alinhavar todas as outras, independente da circunstância ou do momento. “Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganha ou perdida. Tornou-se politizada”
(Hall, 2001, p. 21).
Deslocamento dos modelos de identificação
Nos fractais biográficos, há a utilização de modelos de identificação. E eles se sobrepõem de acordo com o contexto. Se, por exemplo, a escolha desses modelos recair sobre conceitos tradicionais, como profissão, etnia ou religião, poderá prevalecer o empresário, o negro ou judeu, também a título de exemplo. Tudo vai depender dos deslocamentos do personagem pelo espaço social. Nas palavras de Bourdieu (1998, p. 190), “o sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições no espaço orientado.” Para Bourdieu, a nomeação tem a pretensão de garantir a constância nos diferentes campos sociais. É por isso que nos apresentamos como jornalista, professor ou outro epíteto qualquer, mas as descrições só são válidas por limite de espaço. Em casa, diante de seu filho, o jornalista talvez seja apenas pai. Assim como o professor pode ser apenas o piadista da roda de amigos no bar da esquina. É assim que, na interpretação de Bordieu, o escritor Marcel Proust apresenta seus personagens, sempre revelados como sujeitos fraccionados e múltiplos. As descrições só são válidas no limite de um espaço ou de um estágio. “Eis o que evoca o uso inabitual que Proust faz do nome próprio precedido do artigo definido – ‘o Swann de Buckingham Palace’, a ‘Albertina de então’, a ‘Albertina encapotada nos dias de chuva’” (Bourdieu, 1998, p. 187).
Entretanto, os epítetos estão contidos uns nos outros. São auto-semelhantes como os fractais. Mesmo que um deles, em um determinado limite de espaço ou tempo, tente inscrever-se como dominante, ainda assim não conseguirá evitar que os outros se manifestem. Daí o princípio da independência e da auto-similaridade que, juntos, constituem o conceito de fractal. Em uma biografia construída sob esse conceito, não há limite para o nível de complexidade que se manifesta nas teias de conexões entre os fractais. Ao dividir a narrativa em capítulos nominais, e inserindo nesses capítulos histórias que se refiram a eles, o biógrafo assume o seu papel de interpretador. Mas também reconhece que essas histórias encaixam-se apenas primariamente nos capítulos nominais, podendo estar também em outros capítulos, já que os fractais, apesar de independentes, são auto-semelhantes.
A própria nomeação dos capítulos não pode ser um limitador. No interior de um epíteto, conferido como valor de identidade, surgirão muitos outros, revelados pelas histórias contadas. Ou seja, o triângulo eqüilátero se divide infinitamente, não havendo limite para os fractais da identidade. A multiplicidade não é contida nem mesmo pela inscrição nas páginas, já que a multiplicação continua na interpretação do leitor. A escolha dos epítetos também se revela um fator complexo. Ao nominar as múltiplas identidades, mesmo que de forma primária e consciente, das possibilidades de multiplicação das interpretações no interior dos capítulos, o biógrafo também define valores de identificação. Ao escolher nomes como o judeu e o empresário, para continuar com o exemplo, é evidente a opção pela etnia e pela profissão como referências, embora a organização fractal da narrativa distancie essa opção de uma visão totalizadora da identidade. Na contemporaneidade, não é só o simulacro da monoidentidade que é patente. As categorias para a definição das múltiplas identidades também estão deslocadas. Modelos tradicionalmente vistos como indiscutíveis já não parecem tão plausíveis. Será que os indivíduos ainda se identificam por etnia, nacionalidade, religião ou sexo ? Ou será que as metrópoles produzem novos modelos de identificação? Para Nestor Canclini, a visão da cidade é uma soma de fragmentos ligados à atomização dos indivíduos. E esses fragmentos são rebatizados a cada momento. Canclini (1999) cita como exemplo os bandos juvenis da Cidade do México, cujos nomes revelam novos e múltiplos modelos de identificação:
Sátiros, Ratos Punk, Meninos Idos, Bastardos e Funerais são alguns da Cidade do México. Os bandos juvenis, como o comércio informal e outros tipos de organização fractal, evidenciam a incapacidade das macropolíticas sociais e culturais em dar respostas totalizadoras. A desconfiança de amplos setores em relação a essas políticas e a multiplicidade irredutível de linguagens e estilos de vida, de estratégias de sobrevivência e de comunicação manifesta o modo como se decompõem as grandes cidades. (Canclini, 1999, p. 130)
A periferia, o gosto musical, a revolta e outros tantos modelos de identificação existentes nas grandes cidades contemplam novas formas de organização em grupos. Canclini cita ainda um estudo em Bogotá e São Paulo sobre o ponto de encontro dos habitantes. Enquanto os mais velhos preferem as igrejas, bares e praças, os mais novos optam pelos centros comerciais e estações do metrô. Ou seja, lugares de circulação de bens e pessoas.
Lugares de passagem e de consumo. Lugares sem história. Ou, o nãolugar. Uma opção que “revela uma deslocalização das concentrações urbanas, uma diminuição (não um desaparecimento) do distintivo em benefício do desterritorializado e do des-historicizado.” (Canclini, 1999, p. 135)
A complexidade de atribuir nomes aos modelos de identificação revela-se também nos próprios significados atribuídos às palavras. Como conclui Derrida (1995), as palavras carregam ecos de outros significados. Tudo que dizemos tem sempre um antes e um depois. Ou como explica Hall (2001, p. 41), “existem sempre significados suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis.” Em seu artigo sobre ciências da natureza e jornalismo, o professor Nilson Lage (1998) chama a atenção para a capacidade de uma coisa representar-
se por dois signos diferentes, ou de um signo conter propriedades vagas ou contraditórias e, mesmo assim, continuar a ser utilizado. Para Lage, a possibilidade de linguagem existe a partir de signos de referência genérica, e eles são limitados, pois “não explicam como alguém repele o imperialismo e se entusiasma com a globalização; ou como um rapaz conta com a renda da mulher com quem vai se casar e, ao mesmo tempo, entende que a cozinha, a educação dos filhos e a gestão doméstica são problemas dela” (Lage, 1998, p. 5).
Além da Teoria dos Fractais, Lage utiliza a Teoria das Catástrofes, de René Thom, e a Teoria dos Modelos Mentais, de Johnson Phillip-Laird, para estudar os processos de produção e fruição da informação jornalística.
Ele conclui, entre outras coisas, que só o descontínuo torna a realidade notável, já que a mente dos homens registra como curvas notáveis as descontinuidades do mundo ao redor. Também diz que as palavras só têm significado no interior de seu próprio sistema de referências e na adequação ao universo de fenômenos aos quais se reporta. Mas alerta para o equívoco de utilizar essas conclusões para justificar posições relativistas.
O que parece emergir da lição do professor Lage é, mais uma vez, a responsabilidade do produtor do discurso pela escolha de seus sistemas de referência, mesmo que ele tenha consciência da complexidade do palco contemporâneo. Ou melhor, sendo a complexidade o seu próprio sistema de referências.
Em suma, a opção por uma biografia a partir de pressupostos da teoria dos fractais está diretamente ligada à impossibilidade de reconstruir a identidade como um processo baseado em unidades estáveis e coerentes.
Nas palavras de Merleau-Ponty (in Featherstone, 1997, p. 89), “em cada estágio de nossas vidas somos pessoas separadas que, acidentalmente, habitam o mesmo corpo e cujos vários ‘eus’ distintos tornam-se retrospectivamente entrelaçados por meio de uma falsa narrativa biográfica.” Como afirma R. D. Laing (1982, p. 11), “a humanidade é uma miríade de superfícies refratoras colorindo o branco resplendor da eternidade. Cada superfície refrata a refração das refrações das refrações”. E ainda há a visão do outro sobre o eu, e a conseqüente reconstrução desse mesmo eu, que passa a compor metaperspectivas, misturando a visão que tem de si com a visão que imagina que os outros têm dele.
Além disso, as identidades flanam por redes infinitas, atravessando estruturas de linguagem, referências, virtualidades e até espaços vazios, como as porosidades de Mandelbrot. Sem falar nas identidades moldadas pelas imagens midiáticas, que fornecem modelos e ideais de consumo. Em torno de toda essa paisagem complexa, ao trabalhar com múltiplas identidades inscritas em um nome próprio, a biografia só pode ser “uma reunião de fragmentos a serem dotados de sentido e que elaborarão uma imagem abrangente sobre quem foi aquele sujeito” (Rondelli, 2000, p. 206).
Para finalizar, vale reafirmar a necessidade de inserir o discurso biográfico na complexa teia de conexões e estruturas que o compõem como modelo mais adequado para a sua produção. Nossa proposta, alicerçada pela teoria dos fractais, leva em conta que não há mais lugar para discursos totalizantes que ignorem os conceitos de indeterminação, de complementaridade e até de tolerância às ambigüidades. Mas esses são temas para uma outra reflexão, ainda mais aprofundada, que excederia os limites deste texto.
Por hora, deixamos registrada nossa opção pela complexidade como alternativa para evitar a ilusão biográfica e concluímos que, neste modelo, as identidades são permanentemente construídas e reconstruídas, em um movimento que abandona os conceitos de unidade e coerência e privilegia a fragmentação e a multiplicidade. As identidades são plurais, mixadas, frágeis, instáveis. A coesão perde lugar para uma colagem de estilos e influências,
moldada por imagens midiáticas, modelos de consumo, sensações, aparências e outros infindáveis componentes de um caleidoscópio sem significado definido. Um caleidoscópio desconexo e híbrido, mas, nem por isso, desordenado, já que sua ordem está baseada na permanente recriação no interior da própria desordem.
A biografia em fractais é uma opção para evitar a ilusão do diacronismo e apresentar as múltiplas identidades que se articulam em redes flexíveis e inesgotáveis.
Notas
1 Gênesis, cap. 1, v. 2.
2 Como se verá na próxima seção deste texto.
3 Fonte: Jornal do Brasil, 15/03/2002.
4 O professor Francisco Rüdiger (2000) afirma que Nietzsche é parte do arquivo em se
que funda a concepção de sujeito fractal. Ele também se refere a Jean Baudrillard como
um dos mais freqüentes usuários da expressão, embora deixe claro que o termo é usado
na falta de outro mais adequado.
5 www.intermega.globo.com/alternativaBiografias em fractais:...
Referências
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HALL, S. 2001. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A.
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The objective of this text is to present an alternative model regarding the building of biographies, which bypasses the traditional diachronic format of narrative, classified by Pierre Bordieu as “biographic illusion”, that tries to describe the happenings of a life as a story with a beginning, a middle and an end, constructing a coherent and stable whole. To reach our purpose we borrow some concepts from the natural science, such as
the theory of chaos and of fractals, through a metaphorical transference of their proposals to our analysis. Our model rejects the concepts of unity and coherence used in the study of the processes that forge the identities, and substitutes them for a perspective that offers a privileges to the fragmentallity and the multiplicity.
Keywords: biography, complexity, identities.
Este artículo propone un modelo alternativo para la construcción de biografías fuera del tradicional formato diacrónico de narrativa, clasificado por Pierre Bordieu como ilusión biográfica, pues intenta ordenar los
acontecimientos de una vida como una historia con comienzo, medio e fin, en un conjunto coherente y estable. Para eso, tomamos prestado conceptos de las ciencias naturales, como la teoría del caos e de los fractales, a través de una transferencia metafórica de sus propuestas para nuestra análisis. Nuestro modelo rechaza los conceptos de unidad e coherencia para estudiar los procesos que componen las identidades e los
substituye por perspectivas que enfatizan la fragmentación y a la multiplicidad. La inserción de las identidades en redes flexibles e inesgotables apunta para la aguda percepción de la complejidad como nuestra opción epistemológica.
Palabras-clave: biografías, complejidad,
identidad.
Extraído de:
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