terça-feira, 27 de abril de 2010

EUA travam ''guerra de videogame





A mais de 10 mil quilômetros do Paquistão e do Afeganistão, confortavelmente sentados em suas poltronas, em centros de controle nos Estados Unidos, soldados americanos estão travando uma guerra de controle remoto.

A reportagem é de Patrícia Campos Mello e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-04-2010.

De uma base militar em Nevada, a uma hora de Las Vegas, e do quartel-general da CIA, em Langley, esses americanos pilotam Predators e Reapers - as principais aeronaves de pilotagem remota (RPAs) - que sobrevoam zonas tribais do Paquistão e confins do Afeganistão. Segundo o Pentágono, boa parte da liderança do Taleban e da Al-Qaeda foi morta com mísseis e bombas disparados por essas aeronaves. O problema é que esses ataques não são cirúrgicos.

Embora sejam seguros para os americanos e eficientes contra a Al-Qaeda, os danos colaterais são enormes: segundo entidades de direitos humanos, entre 30% e 70% das mais de 1.000 vítimas dos ataques desde 2006 são civis inocentes.

Há mais de 7 mil RPAs americanas sendo usadas no Afeganistão, Paquistão e Iraque. É difícil precisar, mas calcula-se que a vida de milhares de soldados americanos foi salva com o uso desses jatos, disse ao Estado Peter Warren Singer, diretor do Centro de Defesa do Século 21 no Brookings Institution.

Mas os desafios morais e éticos representados por essa guerra de videogame são enormes. O sentimento antiamericano na região está crescendo por causa dos ataques dos RPAs. Uma música de rock popular no Paquistão diz que os americanos travam uma guerra sem honra, na qual nem arriscam suas vidas nem lutam cara a cara.

Esse sentimento antiamericano e as centenas de mortes de civis levam as populações locais a apoiarem os insurgentes - o que acaba minando os esforços dos EUA para ganhar a guerra.

Investimento

Mesmo assim, a disseminação dos RPAs é inexorável, diz Singer. Um terço do futuros aviões da Força Aérea dos EUA será não tripulado. O avanço da guerra de videogame não se restringe aos EUA - 43 outros países também estão construindo, comprando e usando RPAs, entre eles, o Irã. Um MQ1, nome técnico do Predator, tem 8 metros de comprimento, tipicamente carrega dois mísseis Hellfire, um embaixo de cada asa, cada um pesando 45 quilos. O sistema todo custa US$ 20 milhões. Um MQ9, ou Reaper, tem 17 metros, pode levar entre 2 e 4 bombas de 230 quilos cada uma, ou mísseis Hellfire. Custa US$ 53 milhões. O orçamento de 2010 do Departamento de Defesa aloca US$ 3,5 bilhões só para RPAs. Houve um aumento de 800% no número de RPAs desde 2004.

No caso da Força Aérea, a grande maioria das missões de RPAs é para reconhecimento e vigilância. Em poucos casos, os Predators e Reapers atacam com mísseis e bombas inimigos identificados por forças americanas no fronte.

Já os ataques contra insurgentes no Paquistão são conduzidos pela CIA. Trata-se de uma guerra clandestina, cuja existência não é abertamente admitida pela Casa Branca, que não precisou pedir autorização ao Congresso e nem presta contas disso.

Em texto para a revista Foreign Affairs, Daniel Byman, diretor do Centro de estudos de Segurança da Universidade Georgetown, diz que os ataques de RPAs vêm reduzindo a ameaça da Al-Qaeda pelo menos temporariamente, e por isso são a "alternativa menos ruim" no momento. "Mas apesar de todas as precauções, ataques contínuos de Predator vão matar civis inocentes, além do inimigo", disse Byman.

Philip Alston, investigador especial do conselho de Direitos Humanos da ONU, elaborou um relatório sobre as mortes de civis causadas por ataques de RPAs americanos em 2009. "O governo americano deveria monitorar o número de civis mortos em seus ataques com aeronaves não tripuladas e limitar danos colaterais", afirmou Alston. Segundo ele, o uso "cada vez mais frequente" de RPAs pelos EUA é "preocupante".


''Isso aqui não é videogame. Essas aeronaves podem matar''


David Sullivan, comandante do 17º Esquadrão de Aeronaves de Pilotagem Remota, foi entrevistado por Patrícia Campos Mello para o jornal O Estado de S. Paulo, 25-04-2010.

D. Sullivan foi piloto de caças como o F15-C Eagle e F-117 Nighthawk, em lugares como Kosovo, Sérvia, e Okinawa, no Japão. No fim de 2005, Sullivan mudou-se para Nevada, onde assumiu como o comando do 17º Esquadrão de Aeronaves de Pilotagem Remota (RPAs, na sigla em inglês). Ele pilota caças de controle Reapers (MQ9) e Predators (MQ1), que voam no Afeganistão e no Iraque.

Eis a entrevista.

Você já pilotou caças convencionais e aeronaves de pilotagem remota. Qual é a diferença?

Nos de controle remoto, não temos a sensação de movimento e nem visão tridimensional. Ficamos na estação de controle olhando para duas telas de computador a nossa frente, uma acima da outra, e duas ao nosso lado. Mas eu cheguei à conclusão que o cérebro humano consegue se projetar em um cenário. Apesar de estarmos a quase 13 mil quilômetros do local, quando o rádio começa a funcionar e passamos a ouvir as tropas no fronte, fazendo patrulhas e dirigindo comboios, passo a ter as mesmas reações fisiológicas e emoções que eu tenho quando estou pilotando um caça.

São exatamente a mesma adrenalina e ansiedade?

Temos sensações muito parecidas, as palmas das mãos ficam suadas, a audição fica mais sensível, particularmente quando soldados no fronte estão sendo atacados ou estão chegando perto do local onde o inimigo está. Quando determinam que eu devo disparar um míssil ou jogar uma bomba, as sensações são iguais a quando eu tive de disparar mísseis na Bósnia ou em Kosovo.

A diferença é que você está sentado na base em Nevada, tomando um cappuccino, em vez de estar dentro do caça desviando de inimigos.

Mesmo nos centros de controle das bases, não dá tempo de fazer nada que se pareça com relaxar. Os pilotos não estão tomando cappuccinos, não estão batendo papo com os colegas, estão muito ocupados e sérios. Aliás, a gente fica até mais ocupado do que pilotando um caça tradicional, porque você não pode olhar pela janela nem para checar o tempo, você tem várias telas de computadores e várias pessoas falando com você ao mesmo tempo, pelo fone de ouvido, mandando mensagens instantâneas, tipo chat.

Você usa um joystick?

Sim, joystick e manete de aceleração, como em um caça normal.

Apesar da tecnologia, muitas vezes há enganos e mortes de civis.

Ás vezes as armas não são previsíveis, elas são mecânicas, quebram, estilhaços causam mortes. E outras vezes, o ataque é em lugares tão apertados e fechados, que para salvar vidas de americanos, temos de usar armas que podem atingir civis. E, por fim, erros acontecem. Às vezes, pessoas no fronte identificam um alvo como inimigo, mas se enganam.

Você acha que essas máquinas vão substituir totalmente os caças com pilotos?

Acho que a Força Aérea será composta predominantemente de estruturas que terão um caça principal, com piloto, e todos os outros caças da formação serão pilotados remotamente. Mas para as missões mais complexas, sempre será necessário ter um humano.

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