Tão logo põe a cabeça para fora do túnel escuro e apertado que o conduz rumo ao amplo salão iluminado, o jovem adulto S., de cinco meses, encara seu destino. Tem só cinco segundos antes que dois eletrodos despejem em seu cérebro 1,3 ampère de eletricidade. Ele ficará inconsciente. O tempo é curto, mas S. pode ver, logo abaixo, uma esteira rolante que leva os corpos de seis outros adultos, jovens como ele. Da altura do coração de cada um, verte um grosso jorro de sangue. S. é o próximo da fila.
A reportagem é de Laura Capriglione e Marlene Bergamo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 27-09-2009.
A massa de ruídos supera os 110 decibéis. São gritos dos animais que estão atrás na fila, barulhos de grossas correntes metálicas movimentando-se em carrossel, de jatos de fogo subindo, de máquinas a pleno vapor.
Quando o corpo rosado de S., aproximados 115 kg, pernas dianteiras esticadas - resultado da contração muscular provocada pela corrente elétrica -, desaba na esteira rolante, encontra o operador de sangria. O homem de olhos azuis, todo de branco como um cirurgião, empunha faca afiadíssima. Um golpe e todos os vasos do coração estão seccionados. Leva um segundo.
O suíno ainda pedala - é o chamado movimento clônico. Não grita mais. Pupilas dilatadas, S. olha para o nada.
O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca toca na córnea do animal. Ele não reage. "Está insensibilizado, estão vendo?", diz Ciocca, que é zootecnista, a uma plateia atenta de 20 homens e mulheres. Para se certificar, aperta o focinho em forma de tomada e dá beliscões na orelha - sem resposta do corpo que sangra.
Todos os dias, o frigorífico Aurora, em Chapecó, no oeste catarinense, abate 4.500 suínos, que, em poucas horas, se transformam em quilômetros de linguiças e salsichas, toneladas de fatias de bacon, presuntos, mortadelas, costelas defumadas, pertences de feijoada - 384 toneladas diárias de produtos industrializados. E carcaças inteiras, voltadas principalmente para a exportação.
O rico mercado europeu é o alvo mais cobiçado. O Brasil nunca foi habilitado para vender carne para a Comunidade Europeia. Ora o argumento era a sanidade da carne. Ora, o preço. Ora, o jeito como os animais são tratados.
Mas isso pode mudar. No dia 20 de outubro, chega a Santa Catarina uma equipe de auditores europeus. Objetivo: avaliar como é produzida a carne suína por aqui e, quem sabe, dar ao país o diploma nunca antes alcançado: exportador para a Europa. O frigorífico Aurora, que representará toda a suinocultura brasileira, precisa chegar ao tal "Dia D" dominando toda a teoria e a prática exigidas pelos examinadores.
O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca, de que se falou acima, trabalha para a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla inglesa), ONG de 28 anos e presente em 156 países. Desde o início do mês, uma força-tarefa de veterinários e zootecnistas especialistas em bem-estar animal a soldo da WSPA (entre os quais Ciocca) está dentro das fábricas.
A proverbial desconfiança que sempre existiu entre as entidades de proteção e a indústria de proteína animal rompeu-se graças a um convênio firmado há um ano entre a entidade e o Ministério da Agricultura. Com o aval do ministério e o interesse nos mercados externos, ficou mais fácil para a WSPA entrar em territórios antes vetados, como eram os abatedouros e os frigoríficos.
"Todos os anos o Brasil abate 40 milhões de bovinos, 30 milhões de suínos e de 4 a 5 bilhões de frangos. São números gigantescos, que poderão ser duplicados, triplicados ou quadruplicados em pouco tempo. E isso só depende de conquistarmos novos mercados. Porque tecnologia para produzir nós já temos. Mão de obra, terra e água também", diz o veterinário Nelmon Oliveira da Costa, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura.
"Na virada do século XIX para o XX, firmaram-se os padrões quanto à qualidade sanitária da carne. Depois, vieram os requisitos quanto à qualidade organoléptica [cor, sabor, odor, textura]. Agora é a vez da valorização da qualidade ética da carne, que inclui o bem-estar dos animais, desde a criação até o abate, além da sustentabilidade ambiental", diz Eliana Renuncio Bodanese, 38, assessora técnica corporativa da cooperativa Aurora. "Não está escrito em lugar nenhum que um animal tenha de sofrer para morrer", afirma ela.
Até o fim do mês que vem, 60 trabalhadores líderes de equipes da Aurora, dos abatedouros de suínos e de aves, receberão treinamento da WSPA. Depois, eles retransmitirão essas práticas a seus subordinados. No total, 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo receberão a equipe da WSPA para treinamento.
A veterinária Charli Ludtke, 33, coordenadora do projeto de abate humanitário pela WSPA, já escutou um sem-número de vezes a pergunta: "Para que dar bem-estar ao animal que vai morrer?". "Sempre respondo: "Se você soubesse que vai morrer hoje, você preferiria morrer sob tortura, agonizando, ou calmamente, sem dor?". A obviedade da resposta é o que nos anima a prosseguir."
A reportagem é de Laura Capriglione e Marlene Bergamo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 27-09-2009.
A massa de ruídos supera os 110 decibéis. São gritos dos animais que estão atrás na fila, barulhos de grossas correntes metálicas movimentando-se em carrossel, de jatos de fogo subindo, de máquinas a pleno vapor.
Quando o corpo rosado de S., aproximados 115 kg, pernas dianteiras esticadas - resultado da contração muscular provocada pela corrente elétrica -, desaba na esteira rolante, encontra o operador de sangria. O homem de olhos azuis, todo de branco como um cirurgião, empunha faca afiadíssima. Um golpe e todos os vasos do coração estão seccionados. Leva um segundo.
O suíno ainda pedala - é o chamado movimento clônico. Não grita mais. Pupilas dilatadas, S. olha para o nada.
O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca toca na córnea do animal. Ele não reage. "Está insensibilizado, estão vendo?", diz Ciocca, que é zootecnista, a uma plateia atenta de 20 homens e mulheres. Para se certificar, aperta o focinho em forma de tomada e dá beliscões na orelha - sem resposta do corpo que sangra.
Todos os dias, o frigorífico Aurora, em Chapecó, no oeste catarinense, abate 4.500 suínos, que, em poucas horas, se transformam em quilômetros de linguiças e salsichas, toneladas de fatias de bacon, presuntos, mortadelas, costelas defumadas, pertences de feijoada - 384 toneladas diárias de produtos industrializados. E carcaças inteiras, voltadas principalmente para a exportação.
O rico mercado europeu é o alvo mais cobiçado. O Brasil nunca foi habilitado para vender carne para a Comunidade Europeia. Ora o argumento era a sanidade da carne. Ora, o preço. Ora, o jeito como os animais são tratados.
Mas isso pode mudar. No dia 20 de outubro, chega a Santa Catarina uma equipe de auditores europeus. Objetivo: avaliar como é produzida a carne suína por aqui e, quem sabe, dar ao país o diploma nunca antes alcançado: exportador para a Europa. O frigorífico Aurora, que representará toda a suinocultura brasileira, precisa chegar ao tal "Dia D" dominando toda a teoria e a prática exigidas pelos examinadores.
O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca, de que se falou acima, trabalha para a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla inglesa), ONG de 28 anos e presente em 156 países. Desde o início do mês, uma força-tarefa de veterinários e zootecnistas especialistas em bem-estar animal a soldo da WSPA (entre os quais Ciocca) está dentro das fábricas.
A proverbial desconfiança que sempre existiu entre as entidades de proteção e a indústria de proteína animal rompeu-se graças a um convênio firmado há um ano entre a entidade e o Ministério da Agricultura. Com o aval do ministério e o interesse nos mercados externos, ficou mais fácil para a WSPA entrar em territórios antes vetados, como eram os abatedouros e os frigoríficos.
"Todos os anos o Brasil abate 40 milhões de bovinos, 30 milhões de suínos e de 4 a 5 bilhões de frangos. São números gigantescos, que poderão ser duplicados, triplicados ou quadruplicados em pouco tempo. E isso só depende de conquistarmos novos mercados. Porque tecnologia para produzir nós já temos. Mão de obra, terra e água também", diz o veterinário Nelmon Oliveira da Costa, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura.
"Na virada do século XIX para o XX, firmaram-se os padrões quanto à qualidade sanitária da carne. Depois, vieram os requisitos quanto à qualidade organoléptica [cor, sabor, odor, textura]. Agora é a vez da valorização da qualidade ética da carne, que inclui o bem-estar dos animais, desde a criação até o abate, além da sustentabilidade ambiental", diz Eliana Renuncio Bodanese, 38, assessora técnica corporativa da cooperativa Aurora. "Não está escrito em lugar nenhum que um animal tenha de sofrer para morrer", afirma ela.
Até o fim do mês que vem, 60 trabalhadores líderes de equipes da Aurora, dos abatedouros de suínos e de aves, receberão treinamento da WSPA. Depois, eles retransmitirão essas práticas a seus subordinados. No total, 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo receberão a equipe da WSPA para treinamento.
A veterinária Charli Ludtke, 33, coordenadora do projeto de abate humanitário pela WSPA, já escutou um sem-número de vezes a pergunta: "Para que dar bem-estar ao animal que vai morrer?". "Sempre respondo: "Se você soubesse que vai morrer hoje, você preferiria morrer sob tortura, agonizando, ou calmamente, sem dor?". A obviedade da resposta é o que nos anima a prosseguir."
Ação é ''apenas anestesia de consciências''
A ativista pelos direitos dos animais Nina Rosa Jacob é o que se chama de "abolicionista" - pela abolição de todas as formas de "exploração dos animais".
A reportagem é de Laura Capriglione e Marlene Bergamo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 27-09-2009.
Para ela, o trabalho desenvolvido pela WSPA é "apenas uma anestesia de consciências". "As pessoas continuarão ingerindo excesso de proteína e de gordura animal, continuarão ingerindo carne impregnada de pavor", diz.
Segundo a militante, o discurso pró-abate humanitário é omisso quanto aos problemas ecológicos relacionados ao consumo de carne: "Até aonde se poderá levar a destruição do ambiente, as queimadas na Amazônia, o desmatamento para abrir pastos? Temos de trabalhar para reduzir o consumo de carne, não inventar pretextos e incentivos para consumir ainda mais".
"Diz-se que o consumo de carne pode ser humanitário. Mas os animais continuarão confinados, privados da liberdade, sofrendo inseminações artificiais, as fêmeas apartadas de seus filhotes com apenas um dia, gritando chamando a cria. Isso é humanitário?"
De acordo com ela, a maioria das pessoas ainda come carne porque não conhece a realidade das fazendas e dos abatedouros. "Os frigoríficos tentam manter esse mundo bem escondido, enquanto vendem a imagem do boi e do porquinho alegres, que só existe na publicidade."
Filósofo influenciou a militância pelos animais
Um dos pais do moderno movimento de libertação dos animais é o filósofo australiano Peter Singer, cujo livro "Animal Liberation", publicado em 1975, influenciou profundamente a militância política em favor dos "não humanos".
O comentário é de Hélio Schwartsman e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 27-09-2009.
Singer é um utilitarista radical. Isso significa que ele não acredita muito em direitos - nem para animais nem para humanos -, mas apenas em interesses, como o de evitar a dor, buscar o prazer. Quando analisados à luz de certos princípios utilitaristas, como o de minimizar o sofrimento, esses interesses podem resultar em regras que devem ser observadas por todos os agentes morais - e isso é o mais perto de "direitos" que podemos chegar.
A ideia central de "Animal Liberation" é que qualquer ser vivo capaz de sentir dor tem interesse em evitá-la. E nós, humanos, não devemos restringir apenas a outros humanos o universo dos beneficiários de uma regra como a que manda não infligir sofrimento desnecessariamente. Todos os seres sencientes, sustenta Singer, são dignos de igual consideração.
Discriminar um animal senciente apenas porque ele não é humano configura um caso de especismo, que o filósofo põe no mesmo patamar do racismo ou do escravagismo.
É claro que nem todos os seres vivos têm os mesmos "direitos". O nível de consideração que cabe a cada qual é uma função direta de sua capacidade de perceber dor, prazer e até de fruir o transcendente -ou seja, de seu grau de consciência.
Numa leitura histórica, o círculo de solidariedade moral da humanidade vem se expandindo. Nos primórdios, o homem ligava apenas para si mesmo e, às vezes, para a sua família. Com o decorrer do tempo passou a preocupar-se também com seus vizinhos, compatriotas, irmãos de fé e, por fim, com todo o gênero humano. Agora, começamos a olhar para os outros bichos com os quais compartilhamos o planeta.
Essa é uma ideia radical que traz implicações radicais: para o filósofo, a melhor forma de não provocar dor evitável é convertendo a humanidade ao vegetarianismo. E vale observar que essa nem é a mais exuberante das teses de Singer.
Consequente com seus princípios, ele também defende o aborto, a eugenia e até o infanticídio. Se o grau de "direitos" está relacionado ao nível de consciência, seres menos conscientes podem, em certas situações, ser sacrificados, seja para reduzir a dor, seja para produzir benefícios maiores.
Outra tese polêmica de Singer é que todos os que já vivem com conforto têm o dever de doar parte de seus rendimentos para eliminar a pobreza do mundo. Ele próprio afirma abrir mão de 25% de seu salário em favor de organizações como a Oxfam e o Unicef. O fundamento de toda ética utilitarista é que os interesses de todos se equivalem: o resultado é um igualitarismo forte.
É claro que, como todo sistema utilitarista, esse também fica à mercê de paradoxos: em princípio, seria ético matar um paciente saudável e, com seus órgãos, salvar a vida de cinco doentes que precisavam de transplante; um porco saudável poderia ser visto como tendo mais "direitos" que uma criança com retardo mental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário