O Paraguai plantou, em 2008, mais de 2,6 milhões de hectares de soja, segundo dados da Câmara Paraguaia de Exportadores de Cereais e Oleaginosas (Capeco). Com rendimento de 2,2 toneladas de soja por hectare, a produção do grão alcançou quase seis milhões de toneladas durante o ano. A exportação foi o destino de 74% dessa produção.
Na comparação com os dados de 1996, a área plantada de soja teve um impressionante crescimento de 275% – o mesmo período ainda registra um aumento de 247% em toneladas produzidas. Analisando de outra forma: desde 1996, as lavouras de soja foram tomando, por ano, nada menos que 129 mil hectares de terra agricultável no Paraguai.
A reportagem é de Daniel Cassol e publicada no jornal Brasil de Fato, 15-06-2009.
O ritmo da escalada elevou o país a um dos maiores produtores do grão no mundo. Segundo um estudo publicado em 2007 pela organização Base-Is, o Paraguai ocupava a quarta posição mundial entre os países exportadores de soja e a quinta posição em relação à produção da oleaginosa.
Jogados a esmo, esses números podem dar uma idéia de pujança econômica puxada pelo agronegócio.
Porém, para pessoas como a agricultora Petrona Villasboas, a grandiosidade das cifras tem outro significado. Nos primeiros dias de 2003, o filho de Petrona, Silvino Talavera, então com 11 anos, morreu após ser atingido duas vezes pela fumigação de agrotóxicos em uma lavoura de soja próxima à casa da família no departamento de Itapúa, no sudeste do país. No dia 2 de janeiro daquele ano, Silvino voltava do mercado, de bicicleta, quando um avião agrícola jogou veneno por onde passava. O garoto foi internado e, quatro dias depois, já em casa, outra vez os fazendeiros – um brasileiro e um alemão – lançaram veneno sobre a casa. “De madrugada, Silvino não podia dormir. Se queixava de dor nos ossos. Vi meu filho e seu corpo estava todo coagulado. Comecei a chorar e disse ao meu marido que ia buscar ajuda”, conta Petrona. Após uma peregrinação por postos de saúde sem condições de atender o caso, Silvino não resistiu.
Militante da Coordenação Nacional de Organizações de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Indígenas (Conamuri), Petrona acredita que seu filho foi alvo de uma represália dirigida à família. “Eu andei analisando muito, eles queriam assustar a família. Sempre lutamos, participo de um grupo de mulheres. E muitos na comunidade já não gostam de agrotóxico. Minha análise é de que foi de propósito”, afirma.
Os dois produtores de soja foram condenados em primeira instância, mas não estão presos. Petrona conta que recebeu ofertas de dinheiro para não levar a demanda judicial adiante. “Se eu aceitasse o dinheiro, no outro dia ele voltaria a fumigar nossas casas. Eu queria justiça”, diz.
Vários casos
Emblemático por ter gerado uma série de mobilizações contra o uso indiscriminado de agrotóxicos no Paraguai, o caso de Silvino Talavera tampouco é único. “São terríveis as conseqüências da aplicação deste modelo agroexportador no Paraguai, que arrasa com nosso território”, sustenta Magui Balbuena, dirigente da Conamuri.
Moradora de um assentamento localizado próximo ao lago da Usina de Itaipu, no departamento de Alto Paraná, Magui Balbuena diz que famílias da localidade vêm sofrendo constantes envenenamentos. “Os sojicultores brasileiros estão cultivando soja sem barreira de proteção à comunidade, tampouco ao lago de Itaipu. Em várias ocasiões, os peixes amanheceram mortos”, afirma a dirigente. A Conamuri já encaminhou denúncia à secretaria do meio-ambiente do governo do Paraguai, relatando 14 casos de cultivo de soja transgênica, sem barreira de proteção, nos departamentos de Caaguazu, San Pedro e Itapúa.
O número de casos de doenças e mortes provocadas pelo contato com agrotóxicos em lavouras é uma das conseqüências do avanço da cultura de soja no país. A organização Base-Is registrou, a partir do noticiário da imprensa, 367 casos de denúncias de organizações contra violações praticadas pelo agronegócio entre 2003 e 2008. A maioria delas – 48,9% do total – diziam respeito a denúncias de comunidades contra o impacto dos agrotóxicos. No último caso registrado, de março de 2008, moradores de uma comunidade no departamento de Canindeyú relatavam a morte de animais domésticos e a infecção de dezenas de pessoas devido ao contado com praguicidas.
Uma das comunidades mais afetadas pela cadeia do agronegócio, porém, está na zona urbana. A comunidade do bairro Los Naranjos, da cidade de Ñemby, localizada na região metropolitana de Asunción, contabiliza 14 mortes desde 2006 – só em 2008 foram seis –, possivelmente decorrentes do contato da população local com a fumaça e com os dejetos da fábrica de agrotóxicos Chemtec, instalada na localidade desde 2002.
Nas casas simples próximas à fábrica todos têm uma história para contar. “Você é do Brasil?”, pergunta Serafin Espinoza, cuja casa dá de frente para o muro da Chemtec. “Pois diga que isso é uma vergonha. Vivemos na miséria e estão envenenando nossos filhos”, completa. É da Chemtec que sai boa parte dos produtos químicos utilizados nas lavouras de soja do Paraguai. Apenas uma rua separa os terrenos de experimentações da fábrica da escola da comunidade, que vem recebendo reformas com ajuda da empresa. No dia em que a reportagem visitou o bairro, a escola havia inaugurado uma cozinha com apoio da Chemtec.
Segundo a moradora Elena Florentín, a Chemtec costuma aproveitar os dias de chuva forte para despejar seus resíduos em um arroio próximo. O resultado: uma série de doenças entre os moradores da vizinhança que, muitas vezes por pressão da empresa, não são registradas como casos de intoxicação. As famílias com melhores condições já não usam água da torneira para beber ou cozinhar.
Depois de diversas denúncias ao Ministério Público e aos órgãos de governo ligados à saúde e ao controle fitossanitário, os moradores conseguiram a garantia de que a empresa deve sair do bairro até outubro. Os moradores, porém, não acreditam que a empresa vá respeitar a determinação.
Êxodo rural
A quatro horas dali, os moradores do assentamento San Isidro, município de Cruce Pastoreo, departamento de Caaguazu, enfrentam outro problema ocasionado pelo avanço da soja. É o esvaziamento da comunidade. Há quatro anos, a escola Virgem de Fátima tinha 95 alunos, da pré-escola à sexta série, de acordo com o diretor, Cesar Caballero. Hoje são menos da metade: apenas 41 e a escola corre o risco de ser fechada, em razão do pequeno número de estudantes.
Ao entrarem na produção de soja, muitos camponeses paraguaios acabaram se endividando e mudando-se para a cidade. Outros foram simplesmente expulsos pelo avanço das lavouras. “Aqui há muito trabalho, mas poucas condições de uma vida digna”, disse um grupo de jovens estudantes do ensino médio. A maioria já estava planejando mudar-se para as cidades próximas ou mesmo para a capital Asunción.
Dona Cristina de las Gracias, por exemplo, vive sozinha em seu casebre. Todos os seus sete filhos estão fora, a maioria em Ciudad del Este, e não querem voltar. Considerada um símbolo de resistência na comunidade, ela conta com a ajuda para impedir novas fumigações de veneno no entorno de sua casa. A poucos metros da sua porta, cerca de 25 hectares de terra estão sendo preparados para o plantio de soja. Mas a comunidade deve se organizar para evitar o plantio.
“Aqui há mais gente organizada e isso nos ajuda a barrar o avanço da soja”, afirma Barcilício Ruiz, integrante do Movimento Camponês Paraguaio (MCP). Há dois anos, a comunidade realizou uma mobilização “em defesa da colônia camponesa”. Hoje já enfrentam menos problemas com os produtores de soja. Barcilício relata que, no município de Mariscal Lopez, há até mesmo uma parceria com os chamados brasiguaios, para manter livre de soja três mil hectares de terra. O problema, diz ele, não é a nacionalidade dos agricultores, mas sim o modelo agrícola implantado na região, que vem afetando toda uma cultura.
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