Por: Gabriel Cohn
(Nota do autor: Esta é uma versão ampliada de um artigo originalmente publicado na revista ApArte, n. 2. 1968, e reproduzido em N. KATAN, J. BAUDRILLARD. E. MORIN, T. NAIRN, P. RIESSMAN e G. CORN, Análisis de McLuhan, Buenos Aires, Editorial Tiempo Contemporáneo. 1969.)
(Nota do Blog: este artigo, extraído da coletênea "Comunicação e Indústria Cultural", foi publicado antes da morte de Marshall McLuhan, ocorrida em 1980)
"A nova interdependência eletrônica recria o mundo da imagem de um vilarejo global."
McLuhan, The Gutenberg Galaxy
"O mito é a contração ou implosão de qualquer processo, e a rapidez instantânea da eletricidade confere a dimensão mítica à ação industrial e social comum atual. Vivemos miticamente. mas continua¬mos a pensar fragmentàriamente e em planos isolados."
Mcluhan, Undertanding Media
"Quando se fizer o levantamento da expansão das mitologias pós.einsteineanas. McLuhan terá o seu lugar de relêvo. Ele está nas fronteiras."
Times Literary Supplement
Ser qualificado como "o mais importante pensador desde Newton, Darwin, Freud, Einstein e Pavlov" pelo New York Herald Tribune dificilmente terá causado muita estranheza a Marshall McLuhan. Menos do que surpreender-se com o caráter bizarro dessa associação de vultos ilustres, esse canadense de meia-idade, diretor do Center for Culture and Technology da Universidade de Toronto (e, quando este artigo foi escrito, contratado pela universidade católica Fordham, nos EUA) possivelmente terá sentido a falta de um nome nessa lista: o de Pasteur, com quem ele mais de uma vez se identificou em seus escritos. O Pasteur em que pensa McLuhan é o espírito penetrante e solitário, que vislumbra entidades reais, presentes no próprio meio vital do homem, enquanto os seres humenos comuns não percebem nada, e que sustenta a sua posição contra a cegueira e a incredulidade gerais, até lograr impô-la: o visionário explorador do reino do “invisível” que circunda o homem, mais do que o cientista sóbrio e sistemático.
O que Pasteur fêz com relação às bactérias, McLuhan se propõe fazer em relação aos meios - os media - que o homem engendra ao articular o processo bbásico constitutivo da sociedade, que é o da comunicação. Os meios de comunicaçao - isto é, tudo aquilo que serve para vincular o homem ao homem, desde a fala comum até a TV, passando pelos meios de transporte e a moeda e parando longamente na palavra impressa - são, para McLuhan, "extensões do homem": formam o meio ambiente. no qual ele se move, se projeta e se forma. Aos diversos sentidos - visão, audição, tato, olfato - correspondem outras tantas e diversificadas "extensões" possíveis. O telefone é extensao do ouvido, o livro o é da visão, assim como a roda amplia e modifica as funções do pé humano. O ambiente criado pelo homem - o seu environment - é uma segunda natureza, e forma o próprio homem, ao moldar os seus padrões de percepção do mundo e de si próprio.
Mas, ao contrário da imagem de Pasteur que toma como modelo, McLuhan não está só contra o mundo: seus admiradores e aliados são muitos e, em regra, mais influentes do que os seus também numerosos críticos. Numa polêmica que já dura anos, os seus críticos pouco mais têm conseguido do que tornar mais eloqüentes os seus defensores. Vale a pena, então, examinar um pouco melhor o conteúdo básico da obra desse autor, a procura da resposta para o problema da sua extraordinária ressonância. Desde logo, convém chamar a atenção para mais um ponto significativo: a obra de Mcluhan encontra os seus maiores adeptos e desperta as maiores polêmicas nos paises de fala inglêsa, em especial nos EUA. Sua influência, contudo, não se estende da mesma forma à Europa continental, onde se defronta com uma crítica cerrada. Para a importante revista Communications, por exemplo, McLuhan não mereceu mais do que uma resenha sóbria do seu livro principal (Understanding Media), na qual o seu valor se vê reduzido à formulação de algumas sugestões de eventual, mas não segura, relevância científica. Não menos severa, ainda que sóbria, é a crítica que lhe dirige um especialista em problemas de comunicação como Edgar Morin, nas páginas de La Quinzaine Littéraire (16-31 de março de 1969). Também isso faz parte daquilo que McLuhan tem de significativo; a sua obra é, como veremos, expressão típica de uma certa civilização, que circunscreve o seu apêlo mais profundo. É nos EUA que McLuhan pôde tornar-se tema de um artigo de capa da revista Newsweek, ou ser proclamado "uma das maiores influências intelectuais do nosso tempo" ao público empresarial leitor de Fortune ou, ainda, ser indicado como uma espécie de porta-voz do mundo novo configurado pela juventude universitária: "McLuhan está muito perto de dizer aquilo que os estudantes gostariam de dizer", comenta um jovem professor do Antioch College (Newswee.k, 4-12-1967).
No que consiste, afinal, a importância da obra desse autor controvertido? Podemos resumi-la, no essencial, em três pontos.
Em primeiro lugar, está a idéia de que o elemento fundamental para a compreensão dos efeitos sociais mais amplos de um meio de comunicação qualquer reside na natureza mesma desse meio: em última análise, em suas características específicas, de estrutura e funcionamento, que determinam as peculiaridades das mensagens que emite. Assim, um jornal veicula mensagens de modo significativamente diverso daquele de um aparelho de rádio, e essas diferenças são independentes do conteúdo das mensagens emitidas. O mesmo conteúdo, transmitido através de meios diferentes, terá efeitos sociais diversos. É a isso que se refere a conhecida fórmula: The medium is the message. É nessa pequena "revolução copernicana" do estudo da comunicação, deslocando-o da análise dos conteúdos para o exame dos media, que reside a maior contribuição de McLuhan.
O suporte seguinte da sua obra deriva diretamente dessa intuição básica (cuja fonte o próprio McLuhan atribui ao economista canadense H. A. Innis). Postulada a importância decisiva do meio de comunicação como tal na articulação do universo de mensagens veiculadas numa sociedade, e atribuído à forma de transmissão desse conjunto de mensagens um papel predominante na estruturação do modo de perceber o mundo e os homens e, por essa via, da própria ação social, abre-se a McLuhan o caminho para estudar a História moderna - ou a História tôda - em função das mudanças básicas nos meios de comunicação dominantes, e a fazer previsões para o futuro próximo na mesma base. Por isso mesmo, não falta quem lhe atribua toda uma filosofia da História, e o confronte com Spengler, Toynbee e até mesmo Marx (como o faz Anthony Quinton, na New York Review of Books de 23-11-1967) ou também com Teilhard de Chardin (como o faz Milton Klonsky, na New American Review, n. 2, janeiro de 1969). Na obra de McLuhan, esse tipo de análise se manifesta na ênfase dada à importância da passagem de uma civilização moldada segundo os padrões de comunicação pela palavra impressa (analisada no livro The Gutenberg Galaxy) para uma outra, nossa contemporânea, cujo ponto focal é a dominância dos meios de comunicação de base eletrônica, De uma comunicação fragmentada, linear, de propagação lenta e de caráter individualizante (à qual corresponde, no plano sócio-político, o Estado nacional moderno e, no plano econômico, a Revolução Industrial) passa-se para outra, integrada, não-linear e de propagação instantânea (mítica) e de caráter comunitário (todos participam da vida de todos, e o envolvimento social é global: é a fase da sociedade mundial no plano sócio-político e da automação no plano econômico). O mundo transforma-se num grande "vilarejo"; há uma "tribalização" em escala ecumênica.
Por fim, chega-se ao terceiro ponto focal da obra de McLuhan, que só aparentemente tem um caráter mais circunstancial: a distinção famosa entre meios "quentes" e "frios" (media hot and cool). Aqui, ainda mais do que em outras partes de sua obra, McLuhan é impreciso e mesmo obscuro. O ponto de apoio para a distinção entre os meios "quentes" e os "frios" está dado pela natureza específica do impacto de cada um deles sobre a organização perceptual humana. Em outros termos: um meio será "quente" ou "frio" conforme a maneira como são percebidas e incorporadas as mensagens que veicula. O rádio, que satura um sentido isolado - a audição - com mensagens ricas de "informação" perceptual (com dados de audição) sem deixar margem a qualquer esforço de complementação por parte do ouvinte, é um meio "quente": a participação do ouvinte na percepção da mensagem (no reconhecimento daquilo que está sendo transmitido) é mínima. Já a televisão, que oferece uma imagem relativamente "pobre" em "informação" perceptual (apenas uma pequena parcela dos pontos formadores de imagem de um vídeo de TV é efetivamente utilizada) exige do espectador uma certa "participação" no ato mesmo de perceber a mensagem. Esta não se lhe impõe de modo acabado e "evidente", mas sua forma só se revela ao cabo de um certo esforço insconsciente de participação na sua própria formação. (Um psicólogo reconheceria nisso uma versão muito livre daquilo que a teoria da Gestalt chama de "fechamento" perceptual). Assim, a TV é o protótipo do meio "frio".
Posto isso - que implica, evidentemente, em um alto grau de imprecisão e até mesmo em uma certa dose de arbitrariedade: somente se consideram os diversos media no estado de desenvolvimento tecnológico em que se encontravam no início da década de 1960, e se postula que uma TV "quente" já não seria mais TV - McLuhan parte para um verdadeiro tour de force de prestidigitação conceitual. Agora, já não são apenas os media que se distinguem em "quentes" e "frios": essa qualificação das características dos meios de comunicação, de caráter puramente metafórico, é transposta para o plano dos seus efeitos sôbre os consumidores das mensagens que eles veiculam. Tem-se, então, que a exposição a meios "frios" também "esfria" (cool down) os indivíduos e grupos sociais, ao passo que o efeito dos meios "quentes" é no sentido de um "aquecimento" (hot up). Esta é, sem dúvida, a parte mais vulnerável da obra de McLuhan; mas é também aquela em que reside o segredo último do apelo que ela exerce. Por essa via, passa-se de um salto do plano de uma duvidosa filosofia da História para aquele de uma não menos duvidosa, mas fascinante, técnica de controle social.
McLuhan insiste seguidamente no caráter "subliminar" dos efeitos dos meios de comunicação. É perfeitamente ilusório tentar controlar esses efeitos com base no conteúdo daquilo que cada meio veicula. Para defender-se de um meio, somente recorrendo a outro, diz ele em Understanding Media. Para contrabalançar os efeitos da exposição à imagem de TV, é necessário recorrer a outro meio: por exemplo, a palavra impressa. Por aqui ainda se vislumbra uma certa possibilidade de controle dos efeitos dos diversos media pelos próprios consumidores das mensagens que eles veiculam. Mas logo transparece que essa possibilidade tem muito pequeno peso no pensamento de McLuhan. Os meios de comunicação, diz ele em Understanding Media, são o "ponto arquimédico", o fulcro do mundo moderno. Somente quem os controla pode ter o domínio dos seus efeitos; o que é claramente um corolário da fórmula the medium is the message, de vez que esta estabelece que os efeitos de um meio de comunicação são inseparáveis do próprio meio.
Significa isso que os efeitos, globais e profundos, dos meios de comunicação, são incontroláveis? Seguramente não, e nisso reside o núcleo prático da obra de McLuhan: os efeitos dos meios de comunicação são suscetíveis de controle, mas somente através daqueles que detêm o domínio dos próprios media, e não do lado dos consumidores das mensagens que eles veiculam. Seguramente estamo-nos aproximando, diz êle em Understanding Media, de um "mundo automaticamente controlado a ponto de se poder dizer: 'menos seis horas de rádio na Indonésia na próxima semana, ou haverá uma forte queda de atenção literária', ou: 'podemos programar 20 horas de TV a mais para a África do Sul na próxima semana, a fim de esfriar a temperatura tribal, elevada pelo rádio na semana passada'. Culturas inteiras poderiam então ser programadas para manter o seu clima emocional estável, da mesma forma como estamos em vias de conhecer algo a propósito da manutenção do equilíbrio nas economias comerciais do mundo".
Aqui, finalmente, atingimos o núcleo mesmo do fascínio que a obra de McLuhan exerce sobre um público como o norte-americano. Efetivamente, por detrás da construção obscura das suas obras, McLuhan compôs uma 'utopia tecnológica', que retoma e articula os temas mais íntimos da mentalidade de uma nação cuja grandeza tende a se confundir com o domínio da técnica, e que vê o seu destino como aquêle do mundo todo.
No mundo esboçado por McLuhan, o problema do contrôle dos meios de comunicação pelo homem, que parecia ser o tema inicial da sua obra, em breve se converte na questão do contrô!e dos homens através dos media, e das condições de "programação" dessa forma nova e profunda de domínio global a um nível planetário. O ecumenismo de McLuhan, anunciado na sua antecipação de um mundo tornado comunitário pela ação instantânea e onipresente dos meios de comunicação eletrônicos, tem o seu fascínio último no fato de ser controlável. Se é a obscura previsão de um mundo unido ao sabor da tecnologia da comunicação que atrai a tantos intelectuais e jovens estudantes, e se é o manifesto desprezo de McLuhan pelos managers comerciais dos meios de comunicação que lhe vale a simpatia de tantos artistas e intelectuais envolvidos nos mass media e na propaganda, é a possibilidade de programar esse mundo novo que dá substância à obra de McLuhan. Essa programação se daria, de modo imediato, através da tentativa de utilizar desde logo as suas sugestões básicas no planejamento de campanhas de propaganda; de modo mediato e menos aparente, pela possibilidade que se abre de vislumbrar um ecumenismo criado ao gosto daqueles que detêm o contôle dos media e que, por essa via, estão aptos a moldar o ambiente - o environment - humano em sua nova fase. Não é por acaso que esse tema aparece, com matizes diferentes, naqueles intérpretes que, por suas vinculações e pela sua formação intelectual, são especialmente sensíveis ao problema do poder: os marxistas, ou influenciados pelo marxismo (eu ja reação tende a ser negativa) e aquêles vinculados à Igreja Católica (que tendem a uma visão positiva de McLuhan - por sinal, êle próprio convertido ao catolicismo).
Por aí também fica marcado o caráter "localizado" da obra de McLuhan: seu fascínio dificilmente atingiria com a mesma intensidade um público não-norte-americano, mesmo que se justificassem as suas reivindicações absurdas, à luz daquilo que se produz, por exemplo, na França - de que 75% daquilo que escreve é novo.
Mas há outro aspecto a ser assinalado, e dos mais importantes. É que a "moda" de McLuhan não é espontânea: foi desencadeada, nos EUA, através de uma operação profissional, dirigida por um escritório de assessoria de emprêsas de São Francisco, "Generalists, Inc.", de Gossage e Feigen (dos quais o primeiro publica um artigo revelador na coletânea de Stearn, citada acima). Como revela D. W. Harding, num artigo fundamental, publicado na New York Review of Books (2-1-1969), esses profissionais não só trabalharam no sentido de desencadear o "culto" de McLuhan como influenciaram a própria trajetória da sua obra, ao desacreditarem o seu primeiro livro de envergadura, publicado em 1951 (The Mechanical Bride) no qual os mecanismos da propaganda nos EUA eram dissecados e submetidos à crítica. Com isso, se não provocaram, ao menos reforçaram a tendência de McLuhan no sentido de passar de uma visão crítica dos media e da indústria da propaganda à melancólica condição de candidato a "filósofo favorito da Madison Avenue".
Do ponto de vista interno à sua obra, essa trajetória do pensamento de McLuhan torna-se possível a partir do momento em que ele abandona a idéia que parecia ser o seu ponto de partida, de que os homens devem tomar consciência da real natureza dos media - vejam-se suas alusões a Pasteur - e envereda por um tratamento do problema em termos da percepção das mensagens veiculadas pelos diversos meios de comunicação, conforme as características de cada um desses meios. Ao substituir o tratamento do problema da consciência social de um fenômeno por aquele dos mecanismos de percepção individual - que, ainda quando explicados, seguem sendo "subliminares" - McLuhan fechou o seu campo de análise e parou a meio caminho de uma solução social (no limite, política) ao nível da ação consciente dos grupos sociais envolvidos, para ficar no plano de uma soluçao técnica (ainda que também tendencialmente política) do problema do controle dos efeitos dos media.
É por isso que se torna ingênuo atribuir a McLuhan uma "filosofia da História". A partir do momento em que a ênfase é posta nos mecanismos de percepção, condicionados por um ambiente criado pelo homem mas "invisível" e, sobretudo, "subliminar", fecham-se as portas da história e fica-se no remo da natureza. Não se trata, é claro, de contrapor a McLuhan soluções que lhe são alheias, mas de demonstrar as limitações da sua concepção dos problemas que propõe, por mais sugestivas que sejam muitas de suas formulações. Afinal, as idéias básicas de McLuhan não são tão novas, por mais que ele reclame isso. A noção de "ambiente técnico" está claramente formulada por um psicólogo como Henri Walton e por um sociólogo como Georges Friedmann, entre outros; a análise histórica de formas de percepção está, por exemplo, em Pierre Francastel; finalmente, uma visão mais ampla de todos esses problemas está dada por aqueles autores que se apóiam numa concepção de história mais rica e não a abandonam no decorrer da análise. "O tipo e o modo de organização da percepção sensorial humana - o meio em que ela se dá - é determinado não apenas natural mas também historicamente", diz o esteta marxista Walter Benjamin, no seu estudo sôbre "A Obra de Arte na Época da Sua Reprodução Mecanizada". Ao pôr ênfase no caráter histórico dos modos de percepção, é possível a um autor como W. Benjamin ir muito além de McLuhan, apesar de partir de proposições mais modestas, e mostrar como a crise da própria produção e percepção da obra artística na época da produção em massa tem raízes sociais que implicam alterar a sua própria função, num sentido que a torna suscetível de apoiar uma ação tendente à expansão da consciência social.
Entre essas concepções polares - aquela que põe ênfase no impacto irresistível dos media sobre os homens e aquela que tende a vê-los como objetos históricos que bem compreendidos, podem ser incorporados para fazer frente a uma forma de dominação social dada, há um longo caminho.
É nesse caminho que param aquêles que vêem em McLuhan o "oráculo da era elétrica" (Life).
(artigo extraído da coletânea Comunicação e Indústria Cultural - Org. por Gabriel Cohn)
Por fim, chega-se ao terceiro ponto focal da obra de McLuhan, que só aparentemente tem um caráter mais circunstancial: a distinção famosa entre meios "quentes" e "frios" (media hot and cool). Aqui, ainda mais do que em outras partes de sua obra, McLuhan é impreciso e mesmo obscuro. O ponto de apoio para a distinção entre os meios "quentes" e os "frios" está dado pela natureza específica do impacto de cada um deles sobre a organização perceptual humana. Em outros termos: um meio será "quente" ou "frio" conforme a maneira como são percebidas e incorporadas as mensagens que veicula. O rádio, que satura um sentido isolado - a audição - com mensagens ricas de "informação" perceptual (com dados de audição) sem deixar margem a qualquer esforço de complementação por parte do ouvinte, é um meio "quente": a participação do ouvinte na percepção da mensagem (no reconhecimento daquilo que está sendo transmitido) é mínima. Já a televisão, que oferece uma imagem relativamente "pobre" em "informação" perceptual (apenas uma pequena parcela dos pontos formadores de imagem de um vídeo de TV é efetivamente utilizada) exige do espectador uma certa "participação" no ato mesmo de perceber a mensagem. Esta não se lhe impõe de modo acabado e "evidente", mas sua forma só se revela ao cabo de um certo esforço insconsciente de participação na sua própria formação. (Um psicólogo reconheceria nisso uma versão muito livre daquilo que a teoria da Gestalt chama de "fechamento" perceptual). Assim, a TV é o protótipo do meio "frio".
Posto isso - que implica, evidentemente, em um alto grau de imprecisão e até mesmo em uma certa dose de arbitrariedade: somente se consideram os diversos media no estado de desenvolvimento tecnológico em que se encontravam no início da década de 1960, e se postula que uma TV "quente" já não seria mais TV - McLuhan parte para um verdadeiro tour de force de prestidigitação conceitual. Agora, já não são apenas os media que se distinguem em "quentes" e "frios": essa qualificação das características dos meios de comunicação, de caráter puramente metafórico, é transposta para o plano dos seus efeitos sôbre os consumidores das mensagens que eles veiculam. Tem-se, então, que a exposição a meios "frios" também "esfria" (cool down) os indivíduos e grupos sociais, ao passo que o efeito dos meios "quentes" é no sentido de um "aquecimento" (hot up). Esta é, sem dúvida, a parte mais vulnerável da obra de McLuhan; mas é também aquela em que reside o segredo último do apelo que ela exerce. Por essa via, passa-se de um salto do plano de uma duvidosa filosofia da História para aquele de uma não menos duvidosa, mas fascinante, técnica de controle social.
McLuhan insiste seguidamente no caráter "subliminar" dos efeitos dos meios de comunicação. É perfeitamente ilusório tentar controlar esses efeitos com base no conteúdo daquilo que cada meio veicula. Para defender-se de um meio, somente recorrendo a outro, diz ele em Understanding Media. Para contrabalançar os efeitos da exposição à imagem de TV, é necessário recorrer a outro meio: por exemplo, a palavra impressa. Por aqui ainda se vislumbra uma certa possibilidade de controle dos efeitos dos diversos media pelos próprios consumidores das mensagens que eles veiculam. Mas logo transparece que essa possibilidade tem muito pequeno peso no pensamento de McLuhan. Os meios de comunicação, diz ele em Understanding Media, são o "ponto arquimédico", o fulcro do mundo moderno. Somente quem os controla pode ter o domínio dos seus efeitos; o que é claramente um corolário da fórmula the medium is the message, de vez que esta estabelece que os efeitos de um meio de comunicação são inseparáveis do próprio meio.
Significa isso que os efeitos, globais e profundos, dos meios de comunicação, são incontroláveis? Seguramente não, e nisso reside o núcleo prático da obra de McLuhan: os efeitos dos meios de comunicação são suscetíveis de controle, mas somente através daqueles que detêm o domínio dos próprios media, e não do lado dos consumidores das mensagens que eles veiculam. Seguramente estamo-nos aproximando, diz êle em Understanding Media, de um "mundo automaticamente controlado a ponto de se poder dizer: 'menos seis horas de rádio na Indonésia na próxima semana, ou haverá uma forte queda de atenção literária', ou: 'podemos programar 20 horas de TV a mais para a África do Sul na próxima semana, a fim de esfriar a temperatura tribal, elevada pelo rádio na semana passada'. Culturas inteiras poderiam então ser programadas para manter o seu clima emocional estável, da mesma forma como estamos em vias de conhecer algo a propósito da manutenção do equilíbrio nas economias comerciais do mundo".
Aqui, finalmente, atingimos o núcleo mesmo do fascínio que a obra de McLuhan exerce sobre um público como o norte-americano. Efetivamente, por detrás da construção obscura das suas obras, McLuhan compôs uma 'utopia tecnológica', que retoma e articula os temas mais íntimos da mentalidade de uma nação cuja grandeza tende a se confundir com o domínio da técnica, e que vê o seu destino como aquêle do mundo todo.
No mundo esboçado por McLuhan, o problema do contrôle dos meios de comunicação pelo homem, que parecia ser o tema inicial da sua obra, em breve se converte na questão do contrô!e dos homens através dos media, e das condições de "programação" dessa forma nova e profunda de domínio global a um nível planetário. O ecumenismo de McLuhan, anunciado na sua antecipação de um mundo tornado comunitário pela ação instantânea e onipresente dos meios de comunicação eletrônicos, tem o seu fascínio último no fato de ser controlável. Se é a obscura previsão de um mundo unido ao sabor da tecnologia da comunicação que atrai a tantos intelectuais e jovens estudantes, e se é o manifesto desprezo de McLuhan pelos managers comerciais dos meios de comunicação que lhe vale a simpatia de tantos artistas e intelectuais envolvidos nos mass media e na propaganda, é a possibilidade de programar esse mundo novo que dá substância à obra de McLuhan. Essa programação se daria, de modo imediato, através da tentativa de utilizar desde logo as suas sugestões básicas no planejamento de campanhas de propaganda; de modo mediato e menos aparente, pela possibilidade que se abre de vislumbrar um ecumenismo criado ao gosto daqueles que detêm o contôle dos media e que, por essa via, estão aptos a moldar o ambiente - o environment - humano em sua nova fase. Não é por acaso que esse tema aparece, com matizes diferentes, naqueles intérpretes que, por suas vinculações e pela sua formação intelectual, são especialmente sensíveis ao problema do poder: os marxistas, ou influenciados pelo marxismo (eu ja reação tende a ser negativa) e aquêles vinculados à Igreja Católica (que tendem a uma visão positiva de McLuhan - por sinal, êle próprio convertido ao catolicismo).
Por aí também fica marcado o caráter "localizado" da obra de McLuhan: seu fascínio dificilmente atingiria com a mesma intensidade um público não-norte-americano, mesmo que se justificassem as suas reivindicações absurdas, à luz daquilo que se produz, por exemplo, na França - de que 75% daquilo que escreve é novo.
Mas há outro aspecto a ser assinalado, e dos mais importantes. É que a "moda" de McLuhan não é espontânea: foi desencadeada, nos EUA, através de uma operação profissional, dirigida por um escritório de assessoria de emprêsas de São Francisco, "Generalists, Inc.", de Gossage e Feigen (dos quais o primeiro publica um artigo revelador na coletânea de Stearn, citada acima). Como revela D. W. Harding, num artigo fundamental, publicado na New York Review of Books (2-1-1969), esses profissionais não só trabalharam no sentido de desencadear o "culto" de McLuhan como influenciaram a própria trajetória da sua obra, ao desacreditarem o seu primeiro livro de envergadura, publicado em 1951 (The Mechanical Bride) no qual os mecanismos da propaganda nos EUA eram dissecados e submetidos à crítica. Com isso, se não provocaram, ao menos reforçaram a tendência de McLuhan no sentido de passar de uma visão crítica dos media e da indústria da propaganda à melancólica condição de candidato a "filósofo favorito da Madison Avenue".
Do ponto de vista interno à sua obra, essa trajetória do pensamento de McLuhan torna-se possível a partir do momento em que ele abandona a idéia que parecia ser o seu ponto de partida, de que os homens devem tomar consciência da real natureza dos media - vejam-se suas alusões a Pasteur - e envereda por um tratamento do problema em termos da percepção das mensagens veiculadas pelos diversos meios de comunicação, conforme as características de cada um desses meios. Ao substituir o tratamento do problema da consciência social de um fenômeno por aquele dos mecanismos de percepção individual - que, ainda quando explicados, seguem sendo "subliminares" - McLuhan fechou o seu campo de análise e parou a meio caminho de uma solução social (no limite, política) ao nível da ação consciente dos grupos sociais envolvidos, para ficar no plano de uma soluçao técnica (ainda que também tendencialmente política) do problema do controle dos efeitos dos media.
É por isso que se torna ingênuo atribuir a McLuhan uma "filosofia da História". A partir do momento em que a ênfase é posta nos mecanismos de percepção, condicionados por um ambiente criado pelo homem mas "invisível" e, sobretudo, "subliminar", fecham-se as portas da história e fica-se no remo da natureza. Não se trata, é claro, de contrapor a McLuhan soluções que lhe são alheias, mas de demonstrar as limitações da sua concepção dos problemas que propõe, por mais sugestivas que sejam muitas de suas formulações. Afinal, as idéias básicas de McLuhan não são tão novas, por mais que ele reclame isso. A noção de "ambiente técnico" está claramente formulada por um psicólogo como Henri Walton e por um sociólogo como Georges Friedmann, entre outros; a análise histórica de formas de percepção está, por exemplo, em Pierre Francastel; finalmente, uma visão mais ampla de todos esses problemas está dada por aqueles autores que se apóiam numa concepção de história mais rica e não a abandonam no decorrer da análise. "O tipo e o modo de organização da percepção sensorial humana - o meio em que ela se dá - é determinado não apenas natural mas também historicamente", diz o esteta marxista Walter Benjamin, no seu estudo sôbre "A Obra de Arte na Época da Sua Reprodução Mecanizada". Ao pôr ênfase no caráter histórico dos modos de percepção, é possível a um autor como W. Benjamin ir muito além de McLuhan, apesar de partir de proposições mais modestas, e mostrar como a crise da própria produção e percepção da obra artística na época da produção em massa tem raízes sociais que implicam alterar a sua própria função, num sentido que a torna suscetível de apoiar uma ação tendente à expansão da consciência social.
Entre essas concepções polares - aquela que põe ênfase no impacto irresistível dos media sobre os homens e aquela que tende a vê-los como objetos históricos que bem compreendidos, podem ser incorporados para fazer frente a uma forma de dominação social dada, há um longo caminho.
É nesse caminho que param aquêles que vêem em McLuhan o "oráculo da era elétrica" (Life).
(artigo extraído da coletânea Comunicação e Indústria Cultural - Org. por Gabriel Cohn)
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