A Revista IHU-On Line dedicou seu último numero (IHU-On Line, n. 265) à análise do Nazismo. Sob o título "Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie", a revista traz uma série de entrevistas exclusivas com diversos intelecttuais brasileiros e estrangeiros, enfatizando a abordagem filosófica e psicanalítica do fascismo alemão.
Coletei alguns trechos - selecionando passagens das entrevistas concedidas por Ricardo Timm, Michel Stürmer, Vladimir Safatle, Saul Kirschbaum e Mário Fleig - sobretudo por trazerem à luz aspectos que se relacionam de perto com a realidade contemporânea (a aproximação da "esquerda" com a "extrema-direita", o discurso exclusivista e politicamente correto porém essencialmente intolerante etc).
I) Ricardo Timm (1)
IHU On-Line - Como a marca do ódio do homem contra o homem deixada pelo nazismo perpassa e inspira Lévinas a construir um sistema em que a Ética e alteridade são os pilares principais? Podemos falar numa ética da diferença? O que seria ela?
Ricardo Timm - A Ética da Alteridade - que, em sentido lato, é uma ética das diferenças, assim mesmo, no plural - se constitui essencialmente em uma resposta à violência contra a vida e a Alteridade, o Outro, que não apenas o Nazismo significou de modo eminente, mas que todos os sistemas opressores da humanidade (e mesmo dos animais e da natureza em geral) vêm significando ao longo dos séculos. Consiste essencialmente em mostrar que a ética não é subsidiária de nenhum conhecimento ou saber prévio, mas condição vital-temporal de todo saber e conhecimento, ou seja, prima philosophia. Observe-se que Lévinas não “nega” o Ser; para Lévinas, o Ser é o lugar, o espaço onde o encontro com o Outro e a responsabilidade por ele se devem dar na construção do sentido humano-ecológico.
IHU On-Line - Filosoficamente, que outros autores, além de Lévinas, construíram respostas ao horror nazista?
Ricardo Timm - É difícil conceber que algum filosófo que tenha vivenciado diretamente ou indiretamente o horror nazista não tenha sido influenciado por este acontecimento maior na história contemporânea, mas, se algum filósofo não o foi, eu duvido muito que permaneça merecendo essa designação de “filósofo”. Assim, a totalidade dos grandes pensadores que vivenciou o período foi obrigado a sobreviver a este trauma radical. Todavia, eu destacaria nesse universo um pensador em particular - Theodor W. Adorno - que elabora, a partir da crítica filosófica a um tal estado de coisas e em articulação com um diagnóstico interdisciplinar extremamente sofisticado da sociedade e cultura contemporâneas, um modelo de pensamento que propõe alternativas sólidas à violência que Auschwitz e tudo que se lhe assemelha significa. Temos em Adorno a fundamental reconfiguração do imperativo categórico da tradição: para ele, é imperativo “impedir que Auschwitz se repita”.
IHU On-Line - A Filosofia mudou depois de Auschwitz? Em que aspectos?
Ricardo Timm - Definitivamente, se quiser merecer continuar sendo chamada de Filosofia. A Filosofia é obrigada, pelo horror e pelo imperativo de sua evitação, a se encontrar com seus fundamentos éticos de sentido. O problema não é mais questionar pelo Ser, mas questionar pelo sentido que o Ser deve assumir na construção de um mundo em que “Auschwitz” não tenha lugar.
IHU On-Line - Hitler dizia ter lido, entre outros, Hegel e Nietzsche, além de se declarar um wagneriano convicto. Em que medida Hitler compreendeu e distorceu o pensamento desses filósofos e compositor?
Ricardo Timm - Nem Hegel, nem Nietzsche, nem mesmo o polêmico Wagner permitiriam, apenas pela leitura de suas obras ou de parte delas, inferências tão baixas que sustentassem uma doutrina do teor do nazismo. Outra questão é saber se nesses pensadores - Wagner incluído - não se encontram elementos da grande tradição logocêntrica ocidental que permitiram, por alguma metamorfose doentia, alguns aspectos daquilo que se pode ler como uma certa base “filosófica” de aspectos da doutrina nazista.
IHU On-Line - De que forma o agir político de Hitler se entrelaçou com a filosofia de pensadores como Heidegger e Carl Schmitt ?
Ricardo Timm - Carl Schmitt é um pensador singular, essencial para a compreensão da filosofia política contemporânea independentemente de seu viés político explícito. Todavia, ao meu ver, permanece, apesar de tudo, um pensador, ou seja, alguém capaz de dialogar até mesmo com um Walter Benjamin. Há que saber distinguir o que, de Schmitt, nos dá hoje o que pensar. Já o caso de Heidegger me parece bem mais complicado; não é segredo para ninguém que ele, durante certo período crítico, abraçou o nacional-socialismo, havendo perdido posteriormente várias chances de se retratar. De qualquer forma, é possível - e tem sido realizada, especialmente na Alemanha, mas não apenas lá - uma exegese de seus textos que indiciam que sua proximidade com o referido ideário era mais intenso, até mesmo visceral, em relação ao que se depreende apenas, por exemplo, da leitura do “Discurso do reitorado”.
IHU On-Line - Como podemos entender que, em pleno século XX, e com amplo apoio da população alemã e de outras partes do mundo, se chegou ao terror nazista?
Ricardo Timm - Através de uma rigorosa arqueologia da razão ocidental. Pensadores como os filósofos da Escola de Frankfurt, Derrida e Lévinas, entre outros, nos mostram que estranho seria se o caminho que vai “da funda à bomba atômica”, no dizer dos frankfurtianos, não fosse trilhado, uma vez que a obsessão pelo ser e o desprezo pela temporalidade confluem necessariamente em um delírio ontológico-instrumental no qual a ética como realidade propriamente dita não tem, ou apenas tem dificilmente lugar.
IHU On-Line - Na Alemanha e no mundo atual, há espaço para esse tipo de político ditador? As pessoas, em pleno século XXI, apoiariam uma política como aquela?
Ricardo Timm - As condições permanecem. Devemos perder a ingenuidade e entender que a crença em uma idéia linear de “progresso moral” não se justifica nem historicamente, nem filosófica, política ou sociologicamente. Enquanto a racionalidade instrumental permanecer ditando as regras maiores do mundo, como hoje o faz sob a forma capitalista, na transformação da qualidade em quantidade pela anulação das diferenças, da Alteridade, nada nos garante que as massas não venham a aderir ao suicídio coletivo que significam doutrinas aberrantes em relação à vitalidade e à saúde dos seres humanos individuais, das comunidades e dos ecossistemas.
II) Michel Stürmer (2)
IHU On-Line – Qual era a situação dos partidos de direita e esquerda no período entre as guerras? De que modo esta situação política contribuiu para o advento do nacional-socialismo?
Michael Stürmer - A República de Weimar foi uma civitas sitiada, desde o início, de ambos os lados: a guerra civil da esquerda, que no início foi forte, e a da direita, que no final venceu. Mas o nacional-socialismo é ambas as coisas: direita e esquerda – isto não se pode esquecer, caso se queira explicar o seu êxito.
IHU On-Line –Quais foram as influências intelectuais de Hitler? Até que ponto ele realmente entendeu os autores que ele afirma ter lido? Na mesma entrevista ao La Repubblica, o senhor considera que “o completo niilismo de sua vontade de poder não foi levado a sério”.
Michael Stürmer - Hitler foi leitor compulsivo e autodidata. Mas, sobretudo um possuído pelo poder. Somente uma edição crítica de seu Mein kampf poderá dar informação mais exata a essa pergunta.
IHU On-Line – Alguns autores afirmam que o fenômeno do nazismo não seria uma anomalia social ou uma patologia cultural, mas uma síntese do pensamento reacionário europeu. Qual é seu ponto de vista?
Michael Stürmer - Sobre isto, dou duas respostas. Quem se prepara para a guerra de ontem, vencerá a de amanhã. Mas a radical combinação de esquerda-direita, impulsionada pela crise social e de recursos, pode retornar e já é observável em alguns lugares. Os humanos aprendem pouco.
IHU On-Line – Na Alemanha e no mundo atual, ainda há lugar para tal tipo de ditador político? As pessoas que vivem em pleno século XXI ainda apoiariam tal política?
Michael Stürmer - Não. As tentações são sempre diferentes, sempre novas. O estado do bem-estar torna todos nós imaturos. A história é mais rica em suas variações do que em deixar-se influenciar por pura repetição. Hoje em dia, as tiranias chegam via Tecnologia de Informação, via estado do bem-estar, estado econômico etc. Como poderia você acreditar que o nível de moral ou de sabedoria seria hoje mais alto do que nos anos 1970, 1980?
IHU On-Line – Que razões explicam a maciça adesão da juventude à proposta de Hitler?
Michael Stürmer - Juventude é embriaguez sem vinho. A capacidade de sedução é enorme. O desejo do parricídio também.
IHU On-Line – Após 75 anos desde a ascensão de Hitler ao poder, como os alemães lidam com o passado?
Michael Stürmer - Sempre falar disso, jamais pensar nisso.
III) Vladimir Safatle (3)
IHU On-Line - Nesse aspecto, o Iluminismo seria a exacerbação do logos e o ocaso definitivo de nossos aspectos dionisíacos, nietzschianamente falando? O homem se transformou num ressentido, num rato de subsolo (como dizia Dostoiévski ) que se compraz em arquitetar o mal, deixando de lado sua “crueldade inocente”?
Vladimir Safatle - Na verdade, tenho uma certa dificuldade em entender o que pode significar “o mal” neste contexto. Não creio que ele seja realmente um conceito ou um princípio que funda uma certa lógica própria da ação. Normalmente, dizemos que o mal está vinculado ao prazer de fazer o outro sofrer e de destruí-lo. Não seria difícil mostrar que este não é um prazer que funda um modo de conduta, mas é uma espécie de prazer derivado da hipóstase de princípios de auto-conservação. Mais aterrador não é o prazer de destruir o outro, mas a destruição do outro sem prazer, feita a partir de um formalismo levado às últimas conseqüências, um pouco como aquela máquina de “Na colônia penal”, de Kafka, que de tanto escrever a Lei no corpo dos condenados acaba por mutilá-los “em nome da Lei”.
IHU On-Line - O homem contemporâneo é suscetível de se deixar levar por outros ditadores como Hitler?
Vladimir Safatle - Há um aspecto do fascismo que acabamos por esquecer. No entanto, ele é para mim o mais aterrador. Tendemos a acreditar que o fascismo era uma ditadura no velho estilo Law and Order. No entanto, ele era uma situação social onde, no fundo, ninguém acreditava na ideologia bricolada e inconsistente dos líderes. Na verdade, encenava-se a crença, agia-se como se todos acreditavam. Esta era a única maneira do sistema funcionar.
Pensando nisto, peguem alguém como Silvio Berlusconi. Trata-se de um caso extremamente interessante. Primeiro porque, do ponto de vista econômico, a Itália votou contra seus próprios interesses. Desde que Berlusconi subiu ao poder, a Itália estagnou. Meios de comunicação conservadores como The Economist e Financial Times fizeram campanha contra ele devido a sua mais completa inépcia econômica. No entanto, ele ganhou pela terceira vez, mas agora com um discurso francamente racista e xenófobo.
O que é interessante em seu caso é como sua figura de fora-da-lei notório, misto de malandro boa praça e mafioso empresarial, acaba por encarnar o desconforto e a ira da maioria contra uma Lei que, até agora, foi apenas a vontade do mais forte. Berlusconi representa a revolta contra a Lei social. No entanto, esta revolta está agora associada a demandas de “segurança”, que a suspensão pura e simples da Lei não traria. Por isto, pedimos ao fora-da-lei que, ao mesmo tempo, suspendam e cumpram a Lei com dureza. Cumpram não contra nós, mas contra os outros, contra estes invasores, parasitas, estes que não gozam como nós, sejam eles os judeus de ontem ou os árabes de hoje. Tanto faz quem ocupa o lugar dos que representam a insegurança contra o Todo social.
Berlusconi é a melhor figura do totalitarismo: alguém que mistura, de um lado, o sorriso maroto da criança que não quer se submeter à Lei e que, com isto, ganha a simpatia destes para quem a Lei tem gosto de opressão e que traz na sua mão o porrete implacável da polícia que não se deixa enganar pela ingenuidade destes que são complacentes com a insegurança e com os que burlam a lei de imigração. Um criminoso duro contra o crime. Alguém que não pede para acreditarmos nele, mas para apenas fingir que acreditemos nele.
IV) Saul Kirschbaum (4)
IHU On-Line - Em Mein kampf, Hitler afirma ter lido Hegel e Nietzsche, além de se declarar um admirador de Wagner. Em que medida Hitler compreendeu e distorceu o pensamento desses filósofos e compositor?
Saul Kirschbaum - A idéia de “distorcer” conota uma intencionalidade perversa. Por outro lado, qualquer texto é suscetível de múltiplas leituras, dependendo da ótica do leitor. Certamente, não se pode afirmar que Hegel e Nietzsche tenham sido nazistas, ou proto-nazistas, ou mesmo simpatizantes do nazismo (ao contrário de Wagner, cuja recuperação e interpretação dos mitos germânicos foi instrumental para a elaboração do ideário nazista, e por quem a admiração de Hitler era notória). Mas, se o nazismo, o totalitarismo, a barbárie, são possibilidades concretas, apesar de extremas, da Civilização Ocidental, então deve ser possível encontrar aspectos que corroborem essas possibilidades em muitos pensadores. Neste sentido, talvez Hitler não tenha, propriamente, distorcido o pensamento dos filósofos, mas apenas compreendido em uma dimensão que nos aterroriza; para nos tranqüilizarmos, precisamos pensar que ele distorceu.
IHU On-Line - Além do extermínio físico, os nazistas promoveram um verdadeiro extermínio moral por onde passaram. De que forma a mentalidade nazista pôde ser aceita numa Europa evoluída? Por que as pessoas não se levantaram contra esse totalitarismo?
Saul Kirschbaum - O extermínio físico somente foi possível por ter sido precedido pelo extermínio moral. Os judeus, ciganos, homossexuais, foram primeiro desumanizados, desindividualizados, rebaixados a números, condenados à exclusão pelo fato mesmo de pertencerem a um determinado grupo. O regime, totalitário, se encarregou de criar uma imensa burocracia, recrutada e treinada para suprimir quaisquer considerações éticas a respeito das tarefas recebidas. Uma gigantesca máquina de propaganda recebeu a atribuição de convencer a população de que as dificuldades vividas pela Alemanha eram conseqüência da presença maléfica dos grupos que estavam sendo excluídos, pois impediam a caminhada da Alemanha rumo ao seu futuro glorioso, de outra forma garantido pela supremacia racial dos alemães; ao mesmo tempo, a prática da brutalidade contra os adversários do regime, do fato consumado, espalhou o terror, impedindo que as pessoas se levantassem. Muitos intelectuais, reduzidos à impotência, optaram por emigrar.
IHU On-Line - O nazismo é uma expressão da pós-modernidade ou é sua própria essência, representando a falência de valores e o niilismo moral?
Saul Kirschbaum - É necessário um consenso prévio sobre o significado da expressão “pós-modernidade”. Se a entendermos como a constatação do fracasso dos “ismos” do século XIX (comunismo, socialismo, liberalismo, positivismo), que prometiam um futuro jubiloso de progresso material permanente e a conseqüente melhoria moral da humanidade, então, sim, o nazismo é a própria essência da pós-modernidade, é a expressão máxima dessa aterradora e sempre presente possibilidade da Civilização Ocidental, a irrupção da barbárie; é a possibilidade do Campo de Concentração em escala internacional.
IHU On-Line - Como a marca do ódio do homem contra o homem deixada pelo nazismo perpassa e inspira Lévinas a construir um sistema em que a Ética e alteridade são os pilares principais?
Saul Kirschbaum - O ponto de partida da reflexão levinasiana é que a primazia da liberdade do sujeito, constitutiva da ontologia ocidental, serve de suporte para a postulação da plena realização do Eu. O Outro se apresenta, então, como um obstáculo ao desenvolvimento do Eu em todo o seu potencial, e deve, por isso, ser suprimido. A liberdade é assassina, e a relação entre os homens é marcada pelo ódio. Esta reflexão inspira Lévinas a propor “a ética como filosofia primeira”, e a infinita responsabilidade pelo Outro em lugar da primazia do Eu.
IHU On-Line - Em que aspectos o pensamento de Lévinas é uma resposta e uma contraposição à filosofia nazista? A dominação do Ser na filosofia ocidental cede espaço ao Outro na filosofia Lévinasiana?
Saul Kirschbaum - Lévinas já havia percebido, em seu ensaio de 1934, “Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlérisme”, que “a filosofia do hitlerismo [...] põe em questão os próprios princípios de uma civilização”. Como assinalou Miguel Abensour, no ensaio que acompanha aquela obra, “[t]rata-se de uma civilização, ou antes de uma anti-civilização instalada na brutalidade do fato de ser, na brutalidade do fato consumado. [...] Daí a advertência final de Lévinas em De l’évasion: ‘Toda civilização que aceita o ser, o desespero trágico que ele comporta e os crimes que ele justifica, merece o nome de bárbara’” [traduções minhas]. A grande lição do nazismo, a barreira moral até então intransponível que ele derruba para a Civilização Ocidental, é a demonstração prática de que é possível matar milhões de pessoas, bastando, para isso, que elas sejam previamente desumanizadas, privadas de seus direitos mais elementares. A constatação de que essas possibilidades extremas residem na aceitação do Ser (e, conseqüentemente, na desumanização do Outro, reduzido a corpo “matável”) tem como decorrência, para Lévinas, que somente uma filosofia baseada na infinita responsabilidade pelo Outro, no pleno reconhecimento de sua alteridade, será capaz de se opor à barbárie.
V) Mário Fleig (5)
IHU On-Line - É possível afirmarmos que no nazismo a perversidade se converteu na norma?
Mário Fleig - A norma no nazismo estaria, penso eu, na negação de qualquer diferença, a começar pela afirmação de uma única raça pura, e a proposta de um único Reich para toda a humanidade. A norma, nesse caso, é a afirmação constante de apenas e somente um Um. Isso que significa o sistema exacerbado, que tem a pretensão de conter tudo, inclusive a si mesmo. É a imanência plena e completa. Por isso é que a dimensão da alteridade não tem lugar em tal sistema e, em decorrência, desaparece o pensamento, se o considerarmos como a operação da diferença ou da polêmica, como já propunha Heráclito , por meio do polemos.
IHU On-Line - Como podemos entender que, enquanto algumas pessoas pensam no mal e não o executam, outras o concretizam em campos de extermínio, por exemplo? Somos todos um pouco perversos?
Mário Fleig - Quando não conseguimos ver claramente um fato social, talvez seja porque, de algum modo, fazemos parte dele. Parece que assim se passa com a perversão, pois temos indícios de que o funcionamento social hoje certamente é muito mais regido pela perversão, isto é, a recusa em fazer da subjetividade daquele com quem lidamos o menor entrave ao exercício de um poder ou de um gozo, não importando o fato de que ele exista. O que importa é que ele realize sua tarefa e isso sem nenhum limite, sem nenhuma barreira, sem nenhuma fronteira. Esse tipo de dispositivo parece fazer parte de nossa organização social, ao ponto de que não sabemos muito bem de que modo estamos imerso na perversão. Ou seja, os funcionamentos perversos tende a passar por normais e o questionamento que alguém possa levantar é visto como inconveniente. O império do politicamente correto, que estaria dentro da lógica da perversão comum que perpassa nossa cultura, determina que qualquer discordância àquilo que é suposto aprovado pelo consenso seja mal visto e reprovado.
Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana. Precisaríamos nos perguntar o que produz o ódio ao outro e qual é o futuro de nosso futuro do ódio. A partir disso, por que os modos de recalcamento do ódio têm sido tão ineficientes na contemporaneidade?
IHU On-Line - Como caracterizaria o tipo psicológico de Hitler?
Mário Fleig - Não creio que seja algo produtivo fazer a psicologia de figuras públicas, ainda menos de Hitler. Penso que seja mais produtivo prestar atenção ao que se manifesta no discurso. Ressalto um elemento no caso de Hitler, que contraria a hipótese de se tratar alguém situado na perversão: a insistência em ocupar o lugar de exceção em nome próprio. Sabemos que o perverso tende a agir sempre fazendo uso do outro, especialmente de seu nome. O célebre “Burlador de Sevilha”, de Tirso de Molina, o Don Juan, costumava realizar suas conquista se apresentando no lugar e em nome de outro. Não é o caso deste senhor que exigia que todos declarassem incessantemente: Heil Hitler.
IHU On-Line - Como é possível compreender a adesão dos intelectuais ao nacional-socialismo? Nesse contexto, como se situa Heidegger e sua filosofia?
Mário Fleig - Acredito que uma posição intelectual não implica necessariamente uma proteção contra o totalitarismo, a segregação e a maldade. Os intelectuais estão tão sujeitos a serem seduzidos pelas promessas perversas e paranóicas quanto o homem comum. Heidegger certamente não soube identificar os sinais de maldade que já se descortinava na proposta política nazista. Por que não conseguiu ou por que caiu na sedução que lhe prometia uma radical renovação da universidade? É uma pergunta que teria de buscar respostas dentro do pensamento do filósofo, assim como examinar a oposição à ideologia nazista posterior à renúncia ao posto de reitor da Universidade de Freiburg. Poderíamos levantar a hipótese de que o pensamento veiculado em sua obra principal Ser e tempo (1927) estava excessivamente centrado na perspectiva da subjetividade, sem suporte para a crítica dos fenômenos sociais. É após sua renúncia ao lugar político dentro da administração nazista que Heidegger inicia a elaboração dos fundamentos da crítica ao império da técnica e ao discurso objetivante calcado na raça. Não concordo com seus críticos que fazem uma equiparação injustificada entre sua filosofia e o nazismo. Bem pelo contrário, se Heidegger tivesse se ancorado de modo mais firme do que já fizera em seu antecessor, Kierkegaard, propulsor incansável do valor do indivíduo contra o sistema, talvez não tivesse se enleado tão desastrosamente na teia paranóica nazista. Sugiro, para esse debate atual, a lúcida discussão de vários colegas franceses em Heidegger, à plus forte raison (Paris: Fayard, 2007).
Notas
(1) Timm é graduado em Instrumentos, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Estudos Sociais e Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Também cursou o mestrado em Filosofia, pela mesma universidade, e doutorado em Filosofia, pela Universität Freiburg (Albert-Ludwigs) com a tese Wenn das Unendliche in die Welt des Subjekts und der Geschichte einfällt - Ein metaphänomenologischer Versuch über das ethische Unendliche bei Emmanuel Lévinas. Escreveu inúmeros livros, entre eles, Sujeito, Ética e História - Lévinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999), A condição humana no pensamento filosófico contemporâneo (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Em torno à diferença - Aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). É também um dos organizadores de Alteridade e Ética - Obra comemorativa dos 100 anos do nascimento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008).
(2) Desde 1973, Stürmer é professor adjunto de estudos europeus e professor emérito de história medieval e moderna da Universidade Friedrich-Alexander, Erlangen-Nürnberg. Estudou História, Filosofia e Línguas na London School of Economics e Ciências Políticas na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Marburg. Foi conselheiro político do chanceler Helmut Kohl nos anos 1980. Desde 1989, é diretor de redação do jornal alemão Die Welt. Escreveu, entre outros, Bismarck und die preussisch-deutsche Politik, 1871-1890 (München: Deutscher Taschenbuch-Verlag, 1970), Die Reichsgründung: deutscher Nationalstaat und europäisches Gleichgewicht im Zeitalter Bismarcks (München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1984) e The German Empire, 1870-1918 (New York : Random House, 2000).
(3) Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Comunicação Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Vladimir Safatle é mestre em Filosofia, pela Universidade de São Paulo, e doutor em Lieux et transformations de la philosophie, pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne. Professor da USP, atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na Filosofia do século XX e Filosofia da Música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
(4) Kirschbaum é graduado em Engenharia Elétrica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Administração, pela Fundação Getúlio Vargas São Paulo (FGV-SP), e mestre e doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica, pela Universidade de São Paulo. Sua tese intitulou-se Ética e literatura na obra de Samuel Rawet. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros é um dos organizadores de Dez Ensaios para Samuel Rawet (Brasília: LGE Editora, 2007
(5) O psicanalista e filósofo Mário Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França.
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