Entre a repressão do neoliberalismo e a imaginação utópica dos povos.
Entrevista com Boaventura de Sousa Santos
Enquanto os chefes de Estado da Europa e da América Latina se reuniram em Lima, “protegidos” por grades e milhares e milhares de policiais, para a 5ª Cúpula Oficial entre as duas regiões, a Universidade Nacional de Engenharia foi o cenário da Cúpula dos Povos Enlaçando Alternativas 3. Ativistas das duas regiões se reuniram para discutir alternativas ao neoliberalismo, para a criação de um mundo mais justo, democrático e solidário. O ativista-pesquisador português Boaventura de Sousa Santos foi um dos participantes mais conhecidos e queridos.
“A América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global”, diz Sousa, para em seguida completar: “Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque”.
Para Sousa Santos, “o chamado Pós-Consenso de Washington é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global”.
O sociólogo português aposta na radicalização da democracia. “Devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais. Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida”.
Sousa Santos teme que a perversão do processo de reestruturação neoliberal desemboque naquilo que ele chama de “fascismo social”, isto é, “o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas”.
Boaventura de Sousa Santos é Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde também é professor de Sociologia. Trabalha como Distinguished Legal Acholar na Universidade de Wisconsin, Madison, e integra o Conselho Consultivo do Programa Democracia e Transformação Global, em Lima. Além disso, está profundamente envolvido nos processos do Fórum Social Mundial e da Universidade Popular de Movimentos Sociais.
Foi entrevistado por Raphael Hoetmer, do Programa Democracia e Transformação Global. A entrevista encontra-se no sítio ALAI, América Latina en Movimiento, 9-06-2008. A tradução é do Cepat.
Como caracteriza o cenário atual na América Latina?
As mudanças no mundo são rápidas, e mostram muitas contradições devido à associação de eventos políticos que nos impactaram muito nos anos recentes. Exemplos disso são as mudanças no Equador e na Bolívia, e recentemente no Paraguai. Nestes países ganharam um economista progressista, um camponês indígena e um sacerdote da Teologia da Libertação, materializando a resistência contra as políticas neoliberais das últimas décadas.
Por outro lado, a América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global. É preciso entender que o sistema capitalista sempre necessita de novos espaços para gerar ganhos econômicos. Desta maneira, a expansão do mercado chegou a converter a água, os serviços de saúde, e a educação em mercadoria. Algo que anteriormente era impensável. Neste momento, a mercantilização dos recursos naturais é a estratégia fundamental para a acumulação de capital a médio prazo, pondo a enorme biodiversidade da América Latina no centro das atenções.
Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque. Os Estados Unidos viram que durante sua relativa ausência em sua backyard, se haviam produzido mudanças na América Latina, que apresentaram dois problemas para a sua agenda. Em primeiro lugar, os processos sociais haviam avançado fora de seu controle, e para além de seus planos, resultando em governos progressistas, e em movimentos sociais fortes. Em segundo lugar, estes movimentos chegaram ao poder através da democracia, numa época em que os Estados Unidos estão usando o discurso da luta pela democracia para justificar suas intervenções ao redor do mundo.
Neste cenário se desenvolve uma nova estratégia de contra-insurgência, que consiste numa mescla entre as estratégias da Aliança para o Progresso com uma política consciente de divisão dos movimentos, e especificamente do movimento indígena. Por outro lado, se intensificou nos últimos anos, de maneira brutal, a criminalização dos protestos, como também se aprofundou a militarização.
No cenário que você descreveu, permite dar-se conta de algumas mudanças no paradigma neoliberal. Você acredita que podemos falar de uma modificação deste paradigma para um paradigma de segurança?
Sim, me parece que isto é a perversão final do processo de reestruturação neoliberal. Efetivamente, o neoliberalismo tenta substituir todos os conceitos existentes, como os de desenvolvimento e da democracia, pelos conceitos de controle e de segurança, depois de sua incapacidade de gerar um apoio popular sólido.
Isto é conseqüência do aprofundamento da exclusão social, da miséria e da crescente desigualdade sob o capitalismo neoliberal, que implica a emergência de um fenômeno que chamo de “fascismo social”. Este não é um regime político, mas uma forma de sociabilidade de desigualdades tão fortes, que uns têm capacidade de veto sobre a vida de outros. Corremos o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.
O melhor exemplo desta lógica é o doloroso aumento da fome no mundo, que mostra a contradição entre a vida (a produção de alimentos acessíveis para a população mundial), e os ganhos (a produção dos rentáveis biocombustíveis). A emergência do “fascismo social” mostra que a modernidade como projeto fracassou, porque não cumpriu suas promessas de liberdade, igualdade e solidariedade, e já sabemos que não vai cumpri-las.
Neste cenário, se apresenta então a contradição entre o paradigma da segurança, e da luta contra o território, por um lado, e de outro, os Estados que reivindicam sua soberania, os movimentos sociais, e especificamente as lutas dos povos indígenas. É nos territórios indígenas que se encontra 80% da biodiversidade latino-americana. As organizações, como a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas (CAOI), a Confederação Nacional de Comunidades do Peru Afetadas pelas Empresas de Mineração (Conacami), e a Coordenadoria Nacional de Ayllus e Marqas (Conamaq), são, neste sentido, um perigo para o status quo.
O chamado Pós-Consenso de Washington então é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global. Exemplos claros disto podemos ver em Santa Cruz de la Sierra, onde paramilitares colombianos treinam os grupos privados de segurança da oligarquia cruzenha, que está decidida a defender o status quo.
Nesta reorganização do mapa político continental, que correntes reconhece?
É evidente que emergiram governos com uma lógica diferente ao estado capitalista neoliberal no continente. Em suas gestões econômicas podemos assinalar duas vertentes diferentes. Por um lado, os governos de Lula, Cristina Fernández Kirchner e Michelle Bachelet mantêm a macro-economia neoliberal, mas aprofundam a proteção social nas margens da sociedade. Outros governos, como os de Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez, procuram mudar o sistema econômico. A partir de uma lógica de maior soberania, aplicam diferentes estratégias, como a nacionalização, a recontratualização da exploração dos recursos naturais, ou a entrega desta exploração a pequenas empresas nacionais.
Em todos os casos, se vê uma maior sensibilidade em relação à questão social, como também, de maneiras diferentes, um questionamento das empresas transnacionais e suas atividades. A resposta das empresas a isso é a invenção da responsabilidade social. Constroem escolas e hospitais para suas relações públicas para dar a impressão de que elas também estão preocupadas com a desigualdade, em sociedades cada vez mais desiguais. O Tribunal Permanente dos Povos, que aconteceu durante esta Cúpula dos Povos em Lima, evidencia claramente que por trás desta cara humana persistem as violações estruturais dos direitos humanos por parte das transnacionais.
É um processo confuso e contraditório, mas sustento que podemos ver a emergência de uma solidariedade regional, com maior abertura e tolerância para com as diferenças políticas. Não obstante, a maioria destes governos se dirige por conceitos tradicionais do estado e do desenvolvimento, o que efetivamente limita sua capacidade de transformação.
Por outro lado, Peru e Colômbia representam o status quo neoliberal e a agenda dos Estados Unidos na região. Me dá a impressão de que atuam, além disso, desde uma complementaridade. A Colômbia representa a lógica militar, que busca a criação de conflitos e tensões que criam condições para a crescente militarização e intervenção na região. No Peru está se impulsionando uma lógica similar, com a forte criminalização das organizações sociais. Este sempre é o primeiro passo que prepara a militarização posterior. De fato, existem indicações muito claras de que a base de Manta no Equador poderá ser transferida para a Amazônia peruana.
Como já disse, estes processos de criminalização e militarização buscam assegurar o livre acesso e a mercantilização dos recursos naturais. Obviamente, neste modelo econômico, o Peru joga um papel central, devido às suas enormes reservas de hidrocarbonetos, minerais e metais preciosos. E as elites políticas e econômicas do Peru estão muito dispostas a assumir este papel de exportador de recursos naturais na divisão mundial do trabalho, já que eles ganham com isto. Não obstante, a maioria dos peruanos não ganhou nada nos últimos anos de crescimento econômico espetacular, e logicamente buscarão alternativas para o atual governo.
O caso da Bolívia luziu por muito tempo, como o processo mais transformador da região, mas agora entrou em crise. Como você analisa o cenário boliviano e o processo de regionalização subnacional que se está reivindicando no país?
A regionalização subnacional foi promovida pelo Banco Mundial, na forma de descentralização, que apontou para o desmonte do Estado central através da transferência de responsabilidade do Estado central aos níveis locais. Na Bolívia havia uma posição de descentralização dirigida pelas autonomias indignas, desde uma visão política e cultural sólida, que permitiu que os indígenas ganhassem algo com as políticas de descentralização, impulsionadas pelo Banco Mundial.
Mas a bandeira da descentralização foi assumida agora pelas oligarquias, em resposta à sua perda de controle do Estado central. Eles sempre foram centralistas, mas agora tinham que tomar a bandeira da autonomia para defender seus privilégios econômicos. Na minha opinião, a declarada autonomia de Santa Cruz é ilegal, já que não podem fazer isto sob a velha constituição. Na realidade, a decisão das autonomias caberia ao Congresso, depois que se implementasse a nova constituição.
Eu defendi na Bolívia a distinção entre autonomias ancestrais e as da descentralização. Proponho entender as autonomias indígenas como extraterritoriais em relação às autonomias departamentais. Quer dizer, deveriam se basear no controle total de seu território, fora da governabilidade descentralizada, já que são anteriores ao processo de descentralização.
Em todo o caso, o debate atual é sumamente perigoso, já que existem desejos recíprocos de enfrentamento armado. As oligarquias não querem deixar seus privilégios, e os indígenas não vão deixar pacificamente que se divida o país. É muito interessante, já que seriam eles os que defenderiam o país.
Em todo este cenário, qual é o papel da Europa?
Em nível dos contatos entre as organizações sociais das duas regiões há coisas muito positivas. Um processo como o Enlaçando Alternativas mostra a profunda solidariedade que existe entre os povos de ambos os continentes e a vontade das organizações européias de aprender das lutas latino-americanas.
Mas em nível dos governos, vejo algo muito diferente. Crescentemente, a Europa busca seguir as políticas dos Estados Unidos, enfocadas no acesso aos recursos naturais, para manter sua posição competitiva no mundo. Isto me repugna ainda mais, já que a Europa tem uma dívida cultural, social e ecológica histórica muito grande com a América Latina, devido ao saque dos recursos naturais do colonialismo e do genocídio dos indígenas. Portanto, me parece inaceitável implementar na atualidade políticas neocoloniais, que dão continuidade ao mesmo saque. Não obstante, tudo indica que as empresas transnacionais européias atualmente definem a agenda da União Européia, impossibilitando uma posição européia que fortaleceria a democracia, os direitos humanos e a redistribuição social no continente.
Neste mundo tão confuso, no qual parecem se chocar diferentes projetos territoriais, como você vê o futuro?
Está claríssimo que estamos entrando numa fase histórica de polarização. Por um lado, as políticas de mercantilização buscarão o livre acesso aos recursos naturais, e a continuidade dos privilégios econômicos das elites. Por outro lado, existe um imaginário radicalizado nas forças progressistas do continente, que desenvolveram concepções distintas de democracia, de desenvolvimento, dos direitos e de sustentabilidade, que são compartilhadas por cada vez mais pessoas e organizações. Me dá a impressão de que as forças dominantes já não podem cooptar este imaginário radical, com suas propostas de proteção social. E por isto a repressão. Então, vemos a confrontação entre a repressão e a imaginação utópica. É difícil dizer para onde vamos. Como sociólogos prevemos bem o passado, mas não tanto o futuro.
Para mim, o horizonte continua sendo a democracia e o socialismo, mas um socialismo novo. Eu tenho dito, em diferentes ocasiões, que o novo nome do socialismo é democracia sem fim. Minha aposta é na democracia radical, já que ela representa uma alternativa a duas idéias fundamentais. Não creio que se possa mudar o mundo sem tomar o poder, mas tampouco creio que podemos mudar algo com o poder existente. Então, afirmo que devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais.
Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida. Da cama até o Estado, como dizem as feministas. Mas também com as gerações futuras e com a natureza, o que nos urge a parar a destruição do planeta que atualmente se está produzindo.
Nosso objetivo é sair de uma democracia tutelada, restringida, de baixa intensidade, para chegar a uma democracia de alta intensidade, que realmente faça com que o mundo seja cada vez menos confortável para o neoliberalismo. Mas a realidade não muda espontaneamente. Em política, para chegar a algo é preciso ter sempre duas condições: é preciso ter razão a tempo, no momento oportuno; e é preciso ter força para poder impor a razão.
Enquanto os chefes de Estado da Europa e da América Latina se reuniram em Lima, “protegidos” por grades e milhares e milhares de policiais, para a 5ª Cúpula Oficial entre as duas regiões, a Universidade Nacional de Engenharia foi o cenário da Cúpula dos Povos Enlaçando Alternativas 3. Ativistas das duas regiões se reuniram para discutir alternativas ao neoliberalismo, para a criação de um mundo mais justo, democrático e solidário. O ativista-pesquisador português Boaventura de Sousa Santos foi um dos participantes mais conhecidos e queridos.
“A América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global”, diz Sousa, para em seguida completar: “Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque”.
Para Sousa Santos, “o chamado Pós-Consenso de Washington é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global”.
O sociólogo português aposta na radicalização da democracia. “Devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais. Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida”.
Sousa Santos teme que a perversão do processo de reestruturação neoliberal desemboque naquilo que ele chama de “fascismo social”, isto é, “o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas”.
Boaventura de Sousa Santos é Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde também é professor de Sociologia. Trabalha como Distinguished Legal Acholar na Universidade de Wisconsin, Madison, e integra o Conselho Consultivo do Programa Democracia e Transformação Global, em Lima. Além disso, está profundamente envolvido nos processos do Fórum Social Mundial e da Universidade Popular de Movimentos Sociais.
Foi entrevistado por Raphael Hoetmer, do Programa Democracia e Transformação Global. A entrevista encontra-se no sítio ALAI, América Latina en Movimiento, 9-06-2008. A tradução é do Cepat.
Como caracteriza o cenário atual na América Latina?
As mudanças no mundo são rápidas, e mostram muitas contradições devido à associação de eventos políticos que nos impactaram muito nos anos recentes. Exemplos disso são as mudanças no Equador e na Bolívia, e recentemente no Paraguai. Nestes países ganharam um economista progressista, um camponês indígena e um sacerdote da Teologia da Libertação, materializando a resistência contra as políticas neoliberais das últimas décadas.
Por outro lado, a América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global. É preciso entender que o sistema capitalista sempre necessita de novos espaços para gerar ganhos econômicos. Desta maneira, a expansão do mercado chegou a converter a água, os serviços de saúde, e a educação em mercadoria. Algo que anteriormente era impensável. Neste momento, a mercantilização dos recursos naturais é a estratégia fundamental para a acumulação de capital a médio prazo, pondo a enorme biodiversidade da América Latina no centro das atenções.
Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque. Os Estados Unidos viram que durante sua relativa ausência em sua backyard, se haviam produzido mudanças na América Latina, que apresentaram dois problemas para a sua agenda. Em primeiro lugar, os processos sociais haviam avançado fora de seu controle, e para além de seus planos, resultando em governos progressistas, e em movimentos sociais fortes. Em segundo lugar, estes movimentos chegaram ao poder através da democracia, numa época em que os Estados Unidos estão usando o discurso da luta pela democracia para justificar suas intervenções ao redor do mundo.
Neste cenário se desenvolve uma nova estratégia de contra-insurgência, que consiste numa mescla entre as estratégias da Aliança para o Progresso com uma política consciente de divisão dos movimentos, e especificamente do movimento indígena. Por outro lado, se intensificou nos últimos anos, de maneira brutal, a criminalização dos protestos, como também se aprofundou a militarização.
No cenário que você descreveu, permite dar-se conta de algumas mudanças no paradigma neoliberal. Você acredita que podemos falar de uma modificação deste paradigma para um paradigma de segurança?
Sim, me parece que isto é a perversão final do processo de reestruturação neoliberal. Efetivamente, o neoliberalismo tenta substituir todos os conceitos existentes, como os de desenvolvimento e da democracia, pelos conceitos de controle e de segurança, depois de sua incapacidade de gerar um apoio popular sólido.
Isto é conseqüência do aprofundamento da exclusão social, da miséria e da crescente desigualdade sob o capitalismo neoliberal, que implica a emergência de um fenômeno que chamo de “fascismo social”. Este não é um regime político, mas uma forma de sociabilidade de desigualdades tão fortes, que uns têm capacidade de veto sobre a vida de outros. Corremos o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.
O melhor exemplo desta lógica é o doloroso aumento da fome no mundo, que mostra a contradição entre a vida (a produção de alimentos acessíveis para a população mundial), e os ganhos (a produção dos rentáveis biocombustíveis). A emergência do “fascismo social” mostra que a modernidade como projeto fracassou, porque não cumpriu suas promessas de liberdade, igualdade e solidariedade, e já sabemos que não vai cumpri-las.
Neste cenário, se apresenta então a contradição entre o paradigma da segurança, e da luta contra o território, por um lado, e de outro, os Estados que reivindicam sua soberania, os movimentos sociais, e especificamente as lutas dos povos indígenas. É nos territórios indígenas que se encontra 80% da biodiversidade latino-americana. As organizações, como a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas (CAOI), a Confederação Nacional de Comunidades do Peru Afetadas pelas Empresas de Mineração (Conacami), e a Coordenadoria Nacional de Ayllus e Marqas (Conamaq), são, neste sentido, um perigo para o status quo.
O chamado Pós-Consenso de Washington então é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global. Exemplos claros disto podemos ver em Santa Cruz de la Sierra, onde paramilitares colombianos treinam os grupos privados de segurança da oligarquia cruzenha, que está decidida a defender o status quo.
Nesta reorganização do mapa político continental, que correntes reconhece?
É evidente que emergiram governos com uma lógica diferente ao estado capitalista neoliberal no continente. Em suas gestões econômicas podemos assinalar duas vertentes diferentes. Por um lado, os governos de Lula, Cristina Fernández Kirchner e Michelle Bachelet mantêm a macro-economia neoliberal, mas aprofundam a proteção social nas margens da sociedade. Outros governos, como os de Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez, procuram mudar o sistema econômico. A partir de uma lógica de maior soberania, aplicam diferentes estratégias, como a nacionalização, a recontratualização da exploração dos recursos naturais, ou a entrega desta exploração a pequenas empresas nacionais.
Em todos os casos, se vê uma maior sensibilidade em relação à questão social, como também, de maneiras diferentes, um questionamento das empresas transnacionais e suas atividades. A resposta das empresas a isso é a invenção da responsabilidade social. Constroem escolas e hospitais para suas relações públicas para dar a impressão de que elas também estão preocupadas com a desigualdade, em sociedades cada vez mais desiguais. O Tribunal Permanente dos Povos, que aconteceu durante esta Cúpula dos Povos em Lima, evidencia claramente que por trás desta cara humana persistem as violações estruturais dos direitos humanos por parte das transnacionais.
É um processo confuso e contraditório, mas sustento que podemos ver a emergência de uma solidariedade regional, com maior abertura e tolerância para com as diferenças políticas. Não obstante, a maioria destes governos se dirige por conceitos tradicionais do estado e do desenvolvimento, o que efetivamente limita sua capacidade de transformação.
Por outro lado, Peru e Colômbia representam o status quo neoliberal e a agenda dos Estados Unidos na região. Me dá a impressão de que atuam, além disso, desde uma complementaridade. A Colômbia representa a lógica militar, que busca a criação de conflitos e tensões que criam condições para a crescente militarização e intervenção na região. No Peru está se impulsionando uma lógica similar, com a forte criminalização das organizações sociais. Este sempre é o primeiro passo que prepara a militarização posterior. De fato, existem indicações muito claras de que a base de Manta no Equador poderá ser transferida para a Amazônia peruana.
Como já disse, estes processos de criminalização e militarização buscam assegurar o livre acesso e a mercantilização dos recursos naturais. Obviamente, neste modelo econômico, o Peru joga um papel central, devido às suas enormes reservas de hidrocarbonetos, minerais e metais preciosos. E as elites políticas e econômicas do Peru estão muito dispostas a assumir este papel de exportador de recursos naturais na divisão mundial do trabalho, já que eles ganham com isto. Não obstante, a maioria dos peruanos não ganhou nada nos últimos anos de crescimento econômico espetacular, e logicamente buscarão alternativas para o atual governo.
O caso da Bolívia luziu por muito tempo, como o processo mais transformador da região, mas agora entrou em crise. Como você analisa o cenário boliviano e o processo de regionalização subnacional que se está reivindicando no país?
A regionalização subnacional foi promovida pelo Banco Mundial, na forma de descentralização, que apontou para o desmonte do Estado central através da transferência de responsabilidade do Estado central aos níveis locais. Na Bolívia havia uma posição de descentralização dirigida pelas autonomias indignas, desde uma visão política e cultural sólida, que permitiu que os indígenas ganhassem algo com as políticas de descentralização, impulsionadas pelo Banco Mundial.
Mas a bandeira da descentralização foi assumida agora pelas oligarquias, em resposta à sua perda de controle do Estado central. Eles sempre foram centralistas, mas agora tinham que tomar a bandeira da autonomia para defender seus privilégios econômicos. Na minha opinião, a declarada autonomia de Santa Cruz é ilegal, já que não podem fazer isto sob a velha constituição. Na realidade, a decisão das autonomias caberia ao Congresso, depois que se implementasse a nova constituição.
Eu defendi na Bolívia a distinção entre autonomias ancestrais e as da descentralização. Proponho entender as autonomias indígenas como extraterritoriais em relação às autonomias departamentais. Quer dizer, deveriam se basear no controle total de seu território, fora da governabilidade descentralizada, já que são anteriores ao processo de descentralização.
Em todo o caso, o debate atual é sumamente perigoso, já que existem desejos recíprocos de enfrentamento armado. As oligarquias não querem deixar seus privilégios, e os indígenas não vão deixar pacificamente que se divida o país. É muito interessante, já que seriam eles os que defenderiam o país.
Em todo este cenário, qual é o papel da Europa?
Em nível dos contatos entre as organizações sociais das duas regiões há coisas muito positivas. Um processo como o Enlaçando Alternativas mostra a profunda solidariedade que existe entre os povos de ambos os continentes e a vontade das organizações européias de aprender das lutas latino-americanas.
Mas em nível dos governos, vejo algo muito diferente. Crescentemente, a Europa busca seguir as políticas dos Estados Unidos, enfocadas no acesso aos recursos naturais, para manter sua posição competitiva no mundo. Isto me repugna ainda mais, já que a Europa tem uma dívida cultural, social e ecológica histórica muito grande com a América Latina, devido ao saque dos recursos naturais do colonialismo e do genocídio dos indígenas. Portanto, me parece inaceitável implementar na atualidade políticas neocoloniais, que dão continuidade ao mesmo saque. Não obstante, tudo indica que as empresas transnacionais européias atualmente definem a agenda da União Européia, impossibilitando uma posição européia que fortaleceria a democracia, os direitos humanos e a redistribuição social no continente.
Neste mundo tão confuso, no qual parecem se chocar diferentes projetos territoriais, como você vê o futuro?
Está claríssimo que estamos entrando numa fase histórica de polarização. Por um lado, as políticas de mercantilização buscarão o livre acesso aos recursos naturais, e a continuidade dos privilégios econômicos das elites. Por outro lado, existe um imaginário radicalizado nas forças progressistas do continente, que desenvolveram concepções distintas de democracia, de desenvolvimento, dos direitos e de sustentabilidade, que são compartilhadas por cada vez mais pessoas e organizações. Me dá a impressão de que as forças dominantes já não podem cooptar este imaginário radical, com suas propostas de proteção social. E por isto a repressão. Então, vemos a confrontação entre a repressão e a imaginação utópica. É difícil dizer para onde vamos. Como sociólogos prevemos bem o passado, mas não tanto o futuro.
Para mim, o horizonte continua sendo a democracia e o socialismo, mas um socialismo novo. Eu tenho dito, em diferentes ocasiões, que o novo nome do socialismo é democracia sem fim. Minha aposta é na democracia radical, já que ela representa uma alternativa a duas idéias fundamentais. Não creio que se possa mudar o mundo sem tomar o poder, mas tampouco creio que podemos mudar algo com o poder existente. Então, afirmo que devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais.
Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida. Da cama até o Estado, como dizem as feministas. Mas também com as gerações futuras e com a natureza, o que nos urge a parar a destruição do planeta que atualmente se está produzindo.
Nosso objetivo é sair de uma democracia tutelada, restringida, de baixa intensidade, para chegar a uma democracia de alta intensidade, que realmente faça com que o mundo seja cada vez menos confortável para o neoliberalismo. Mas a realidade não muda espontaneamente. Em política, para chegar a algo é preciso ter sempre duas condições: é preciso ter razão a tempo, no momento oportuno; e é preciso ter força para poder impor a razão.
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