Cineasta: 1939 - 1981
Por: Ivana Bentes
O PÁSSARO DA ETERNIDADE NÃO EXISTE. SÓ O REAL É ETERNO.
QUANDO TUDO ACONTECEU...
"SINTRA É UM BELO LUGAR PARA MORRER" *
Disse isso a Patrick Bauchau, ator que passou por aqui com a equipe de Wim Wenders, filmando O Estado das Coisas. Expliquei ao Patrick que "para a média de idade de um latino-americano, aos 42 anos já vivi bastante".
A doença, a precariedade financeira e as incertezas me levam a pensar que vivo em Portugal meu segundo e último “exílio”, foi o preço que paguei no Brasil pela liberdade artística.
Sintra, 26 de abril de 1981. “Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro... O romancista João Ubaldo Ribeiro está hospedado aqui com a Berenice grávida... As coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado...”
O clima em Sintra é ameno, a paisagem deslumbrante, parece que redescobri o paraíso. Vivo com Paula e as crianças, Ava e Aruak, florescem. “Me sinto reprojetado nas origens”.
Em Paris foi duro, passei o Natal e o Reveillon de 1980 com a família e poucos amigos, acompanhando uma retrospectiva de meus filmes e apresentando A Idade da Terra", mal recebido no Brasil e no Festival de Veneza. Fiquei magoado.
Quero “tempo e calma” para começar um novo filme, mas não vejo uma saída. “Briguei com mais de 200 pessoas no Festival de Veneza”, o júri rejeitou o filme, perdi o chão.
“Não quero mostrar esse filme em Festivais. Talvez no Museu de Arte Moderna. Muitas pessoas comparam A Idade da Terra com Guernica”. Rompi com tudo, é uma obra radical:
"Do filme DI CAVALCANTI para cá eu rompi com o cinema teatral e ficcional que fiz de Barravento até Claro. A Idade da Terra é a desintegração da seqüência narrativa sem a perda do discurso (...)
"Esse filme materializa os símbolos mais representativos do TERCEIRO MUNDO, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santa, das santas em revolucionárias. "Tudo isso está no filme dentro do grande cenário da História do Brasil e das três capitais, Bahia, Brasília e Rio.”.(...) .”
Dizem que estou louco, gastei todo meu patrimônio nesse filme, vendi nossa casa no Rio de Janeiro, o orçamento estourou e o filme é um fracasso de público.
Mas não se trata de loucura, busco um outro cinema: "um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, antiliterário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido.”
Longe do Brasil tento colocar a cabeça em ordem, Sintra ajuda, “o cinema novo foi uma revolução cultural feita por garotos... é difícil aos quarenta anos viver depois da revolução”. O coração parece que vai explodir…
A MÁQUINA DE ESCREVER: UM CAMPO DE BATALHA
Diante do mar Português vejo minha vida desfilar pelo papel. Se fosse um filme, seria a história de um sertanejo de Vitória da Conquista que chegou à compreensão científica do mundo e a exprimiu em cinema e letras e política.”
“Tenho de trabalhar nesta máquina de escrever como se estivesse numa dessas terríveis batalhas ” . Abro os pacotes e malas que me acompanham em todas as viagens: cartas, roteiros, textos.
Dos 13 aos 42 anos, fiz uma auto-análise sistemática através dos escritos. Releio trechos de cartas, rascunhos, poemas roteiros inacabados. Escrevi mais do que filmei.
Aos 13 anos, lia histórias em quadrinhos, X-9, Detetive, as aventuras do Superman, mas também Jorge Amado, Érico Veríssimo, Edgar Allan Poe e R. Kipling. No cinema admirava Chaplin e Jean Cocteau. Na filosofia, Schopenhauer, Voltaire, Nietzsche.
Acredito na eternidade, mas não em Deus. A morte é uma invenção da direita. A família é protestante num país católico em que todos, estou na Bahia, freqüentam os terreiros e praticam o candomblé.
"Nossa cultura é a Macumba e não a ópera. Somos um país sentimental, uma nação sem gravata".
Passei a infância na pequena Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia, onde nasci e cresci lendo a Bíblia e ouvindo histórias do sertão, de matadores de aluguel e cangaceiros, que iriam virar filme. Queria me tornar um escritor, mas só tinha uma certeza "escreverei sobre minha terra. Prefiro os escritores brasileiros aos europeus.”
Amo o poeta Castro Alves, morto aos 24 anos, nascido na Bahia no mesmo dia 14 de março, como eu, e como eu um “amante das antíteses e das hipérboles”. Sofro da mesma exaltação poética! Ao longo da minha vida, a admiração pelo poeta abolicionista só foi superada pela identificação com o cineasta russo Sergei Eisentein, fui até Moscou em 1976, para ver seus arquivos, e tenho verdadeira reverência por Bertold Brecht. Mas "a poesia e a política são demais para um só homem!"
CINEMA COMO GUERRILHA CULTURAL
Maio de 1961. “Saúdo a nova República Socialista Cubana” em nome dos “jovens universitários, operários, artistas brasileiros”. “Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa [Revolução] aqui. (...) Cuba é o máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração do capitalismo. São machos, raçudos, jovens geniais.”
Arte ou revolução? “Não acredito no cinema mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer revolução.” (...) “não credito nada à palavra arte neste pais subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo. Do contrário eu me suicido.”
Um cinema político e esteticamente revolucionário será a nossa resposta, um novo cinema, o Cinema Novo. Cuba, mas também França e Itália são as referências imediata:
“Estão fazendo um novo cinema, possuem uma grande revista [Cine Cubano], vários filmes longos e curtos. Estou articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo política.”
Da Europa e dos festivais recebo cartas igualmente entusiasmadas de Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Gustavo Dahl sobre a contrapartida estética e européia da Revolução Cubana: o neo-realismo italiano em curso, a nouvelle-vague de Godard em Paris, o cinema direto de Jean Rouch, o novo cinema argentino e…o Cinema Novo brasileiro.
O cinema pode dar uma resposta estética para o desejo de revolução social. Paulo César Saraceni escreve do Festival de Santa Margherita, na Itália:
“Hoje conversamos com Jean Rouch - ele nos contou como fez Pirâmide Humana e Moi un noir. Sem dinheiro nenhum, com a câmera na mão. Disse ele, que no cinema moderno não existe mais tripé, que os travellings são feitos com a mão, com o câmera andando, seguindo o personagem. Só a verdade importa".
"UMA IDÉIA NA CABEÇA E UMA CÂMERA NA MÃO"
2 de novembro de 1960. Salvador. Bahia. Estamos na Praia de Buraquinhos, em pleno set de filmagens de Barravento, num dia de finados. Tornei-me diretor de cinema “por acaso e incidentes vários ”.Assumi a direção de Barravento para salvar o empreendimento, estética e economicamente. Barravento quer dizer mudança súbita, reviravolta, revolução. É meu primeiro longa-metragem:
“É um filme gritado. … filme de explosões. … um filme de tensão crescente - um filme místico, ele mesmo? Talvez seja mesmo uma contradição. Espero que no fundo seja um filme. “Estou usando atores negros, fabulosos, vivos, flexíveis, quentes e cheios de violência plástica - sensualismo. O mise-en-scène está fundamentado na coreografia popular dos passos e gingas daqueles capoeiristas latentes. Espero, modestamente, responder, deste selvagem Brasil, alguma coisa à dança de cena do cinema japonês.”
De Barravento, feito na Bahia em 1960, ao Leão de Sete Cabeças (Der Leone have sept cabezas), filmado na África em 1970, vemos Glauber transformar o personagem do negro Aruan, submisso e místico e o malandro Firmino, o negro consciente de Barravento, num Zumbi guerreiro, negro marxista-leninista ou maoísta disposto a fazer a Revolução sem perder um milímetro da sua africanidade e dos seus mitos.
Num ato de paroxismo Glauber começa a construir uma “esquerda” mítica e mística, com sua própria mitologia, e a juntar misticismo e revolução.
FOLHETIM REVOLUCIONÁRIO
Glauber filma Deus e o Diabo na Terra do Sol. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Glauber persegue a fórmula do folhetim revolucionário (épico e didático) que alcança em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e no Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Desejo de popularização que o faz combinar cinema, política e mitologia popular. A história não é contada é cantada, como num cordel nordestino.
Deus e o Diabo na Terra do Sol explode nas telas como uma revelação. Um filme solar. Glauber parte da convulsão e violência da terra sertaneja para chegar a rebeldia em estado puro. Beatos e cangaceiros são os nossos rebeldes primitivos, portadores de uma ira revolucionária difusa, emissários da cólera da Terra para além de Deus e do Diabo.
Glauber parte de todo o imaginário euclidiano de Os sertões, onde a violência, a ferocidade, a fome e a revolta são atributos ou condições do homem e da Terra, mas transforma isso em duelo, dança, western politizado. No filme toda rebeldia, opressão ou fascismo será o embrião de uma ira revolucionária.
Transforma beatos, vaqueiros, matadores de aluguel em agentes da Revolução. Para ele, “somente pela violência e pelo horror, o colonizador pode compreender a força da cultura que ele explora”, escreve no manifesto A Eztetyka da Fome em 1965.
A violência não é um simples sintoma, é um desejo de transformação, é “a mais nobre manifestação cultural da fome”. O marxismo de Glauber tem algo de sádico e histérico. Para explodir, a revolução tem que ser precedida por um crime, um massacre.
"NEGROS, VERDES ANOS": A REVOLUÇÃO QUE NÃO VEIO
Glauber filma Terra em Transe. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Mas, na América do Sul, "a revolução florida entrou pelo cano" e tivemos tortura, perseguições, exílio. Quando o Golpe Militar de 64 estourou, Glauber viajava com Deus e o Diabo em direção a Cannes.
O filme explode internacionalmente e Glauber vai da Europa para o México, Nova Iorque, Los Angeles. As cartas que recebe do Brasil são escritas sob o signo do desespero e da perplexidade. O luto político contrasta com o deslumbramento de toda uma geração diante de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
O próximo filme, Terra em Transe, de 1967 será esse "vômito triunfal" traduzindo a frustração e a impotência pós-64. Delírio de um poeta que morre, delírio e transe de ditadores e governantes na América Latina, transe da câmera, dos atores:
Construção barroca, Terra em Transe é uma “ruptura consciente, parto a forceps, aborto monstro, qualquer coisa que pudesse ser desastrosamente polêmica, em vários níveis, do político ao estético Terra é a minha visão, é o pânico de minha visão.”
Mas pior época da repressão política coincide com o auge da contra-cultura, as experiências com drogas, a liberação sexual, o tropicalismo e também com o prestígio crescente de Glauber dentro e fora do Brasil.
Em 1969 ganha o prêmio em Cannes por O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, e pela primeira vez recebe propostas internacionais para filmar fora do Brasil. O produtor de O Dragão, o francês Claude-Antoine, propõe um filme na África. Pere Fages, produtor em Barcelona, convida Glauber para um filme na Espanha, com total liberdade e cem mil dólares.
Em menos de um ano Glauber faz os dois filmes, Der Leone Have Sept Cabeças, filmando na África, e Cabezas Cortadas, filmado na Espanha e lançados em 1970. Era o início de um novo ciclo.
EXÍLIO 70
O período que vai de 1969 a 1976, os seis anos que Glauber fica fora do Brasil são um quebra-cabeças biográfico e geográfico, com dezenas de viagens, mudanças de endereço, de países, de mulheres, de amigos. Um périplo romanesco, um nomadismo radical e vital e centenas de cartas escritas de quartos de hotel, apartamentos provisórios dos amigos, produtores ou mulheres.
Mas o que poderia significar o exílio quando “o país chamado Brasil está tão dentro da gente que é impossível sair”? Glauber só deixou de vez o Brasil, em 1971, quando a repressão tornou-se insuportável.
Já tinha sido preso em 65, Terra em Transe foi proibido em todo o território nacional em 67, no mesmo ano seu apartamento é desmontado e revirado pela polícia.
Em 1970 as prisões e tortura tornam-se praxe. Com a prisão da equipe do jornal O Pasquim no final de 1970, onde escrevia e o cineasta Walter Lima Jr., Glauber, decide sair do país no início de 71.
Nas cartas do período, fala de uma fossa terrível e antes de deixar o país de vez, num gesto de humor modernista e estratégico contra os críticos do Cinema Novo, Glauber “enterra” o movimento, num artigo para O Pasquim que anuncia: o Cinema Novo acabou.
O “fim” decretado aponta também para um caminho possível, como no filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, obra síntese de tudo o que o Cinema Novo buscou: um filme erudito e popular, com humor fino, político, com retorno comercial e apelo de público.
Também O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber, em menor escala, indicava esse caminho: o do filme popular, comercial, político e ousado na linguagem.
NOMADISMO
No exílio, Glauber iria realizar seus filmes mais "impopulares" e até hoje pouco exibidos no Brasil.
O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas são filmes-colagem, com encenação de conceitos e slogans. Glauber define O Leão , seu filme africano, como uma tentativa de “alcançar a síntese dos mitos históricos do Terceiro Mundo por meio do repertório nacional do drama popular” .
E Cabeças Cortadas, filmado na Espanha e francamente surrealista, como um funeral das ditaduras e ditadores latinos.
Era o início de incontáveis viagens e batalhas. Glauber iria rodar o mundo. Entre 1970 e 1973 suas cartas chegam de Paris, Londres, Nova York, Barcelona, Santiago do Chile, Munich, Roma, Havana. Fala de um “sentimento do mundo” exacerbado por esse nomadismo. Suas cartas tornam-se relatórios minuciosos da sua vida.
Aos poucos vai assumindo uma máscara trágica: “Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo (...).As vezes sinto-me louco e absolutamente feliz dentro de uma infinita solidão “, diz numa carta de junho de 1973, de Paris.
De 1971 a 1976, Glauber faz uma espécie de peregrinação pelos centros do comunismo e da esquerda internacional: o socialismo africano no Congo (onde filmou O Leão), Cuba (onde faria História do Brasil), o Chile de Allende, o Peru de Alvarado, a Roma do PCI, a Paris dos exilados e guerrilheiros brasileiros. Em Paris aproxima-se da ALN (Aliança de Libertação Nacional) de Carlos Marighella. Em 1976 encontra Luís Carlos Prestes em Moscou.
Dessas viagens, dos encontros clandestinos com a elite comunista e socialista brasileira, Miguel Arraes na Argélia, João Goulart em Punta del Leste, Darcy Ribeiro e Luís Carlos Prestes em Paris e Moscou, os guerrilheiros cubanos e exilados em Havana, Glauber vai formar um pensamento político original que rejeita modelos e pensa uma via para a Revolução brasileira.
O exílio torna-se menos amargo na África ou em Cuba, duas Bahias para Glauber. Numa carta de 71 escreve do Marrocos:
“Estou nos desertos d'Oriente! Meu coração é grande demais! Viajando sem parar pelas rotas fantásticas de príncipes e ladrões e guerreiros: raptando princesas e negociando segredos ao sabor das fumaças e ao som dos tamborim.. Não tem volta! É a felicidade que dói de tão boa ”.
Mesmo sentimento de felicidade que o toma em Cuba, onde vive entre 1971 e 1972, casa-se com a jornalista Maria Tereza Sopeña, torna-se um militante de organizações clandestinas de esquerda e produz o filme História do Brasil. Glauber parece encontrar na Cuba revolucionária, o paraíso perdido no Brasil. Mas também seria "expulso" do paraíso, por desentendimentos políticos e liberalidade com as drogas.
Em 1975 realiza em Lisboa um documentário sobre a Revolução de Abril em meio às ruas e ao entusiasmo do povo. Glauber entrevista trabalhadores, donas de casa e o povo de Portugal, Mário Soares ou o líder do Partido Comunista, com a mesma fala desconsertante e hiperbólica que usaria mais tarde no programa de Tv Abertura.
VOLTO PARA CASA
A vinda de Glauber para o Brasil, em 1976, é precedida por uma grande crise, afetiva. O fim do relacionamento com a atriz francesa Juliet Berto, ícone da Nouvelle Vague, atriz de Godard. Crise política, descrença nos modelos socialistas. Crise profissional, não consegue financiar nenhum de seus projetos.
Entre 1974 e 1976, antes de retornar para o Brasil, Glauber queima todas as possibilidades. Percorre a América Latina tentando levantar a produção dos projetos: America Nuestra, A Idade da Terra e O Nascimento dos Deuses.
Viaja entre Paris - Roma - Lisboa - Bagdá - México - Canadá - Georgia - Moscou - New York - Los Angeles. Mas nem na Europa, América Latina, Cuba, Bagdá, Moscou ou Hollywood consegue condições para continuar como cineasta.
Antes de voltar ao Brasil, um escândalo. A declaração, em 1974, para a revista Visão de que o general Globery do Couto e Silva, um dos mentores do Golpe Militar de 64 é "um dos gênios da raça" e os militares “legítimos representantes do povo”.
A idéia, “fora de hora”, “equivocada” para muitos aparece claramente formulada numa série de cartas anteriores a 1974 e está perfeitamente integrada à lógica glauberiana e ao seu messianismo romântico.
Em duas cartas explica por que é “militarista” e via numa elite militar “esclarecida”, que acenava com a “Abertura” do regime militar no Brasil, a possibilidade de uma virada política radical. Não simplesmente a “abertura lenta e gradual”, como de fato aconteceu mas, porque não?, um militarismo revolucionário que realizaria as mudanças que a esquerda não soube ou não pôde fazer.
A idéia não vinha do nada e seduziu um Glauber disposto a encontrar na cultura militar brasileira um líder revolucionário popular, um Antônio das Mortes, personagem de Deus e o Diabo, capaz de mudar de lado, passar de matador e torturador a defensor do povo. Glauber seria "linchado" em praça pública.
“Sou militarista terceiro mundista e comprei uma capa verde numa boutique de Saint Germain. sou sobretudo florianista e acho que o exército é legítimo representante do povo ou não está na cara que Domingo Jorge Velho Antônio das Mortes é a metáfora profética inspirada por Alvarado e Kadafi.”
"EU SOU OU NÃO SOU O INCONSCIENTE COLETIVO?"
A volta de Glauber ao Brasil se dá num clima de esgotamento e descrença. Em carta de Los Angeles, de junho de 1976, para o amigo cineasta Cacá Diegues, se expressa assim:
“Estou cansado desta odisséia... por que estou nesta situação? o que é que há comigo? Tenho planos de filmar aqui, but aqui se pode ganhar facilmente muito dinheiro, but não dá pé... é deserto... é triste... o mundo todo triste... a China morta... Rússia morta... Europa morta... Ásia morta... África pré-histórica... América Latina subdesenvolvida... ah, a única solução é fundar no Brasil um Estado Novo com Cinema Novo... uf, ah.”
De volta ao Brasil, Glauber ocupa simultaneamente todas as páginas dos cadernos culturais dos principais jornais e revistas do Rio, São Paulo, Bahia, Brasília. Seus artigos, entrevistas, rompantes provocam debates apaixonados.
1977. Próximo escândalo. Invade o velório do pintor modernista Di Cavalcanti e narra o enterro como se fosse uma partida de futebol. Protestos e a interdição do filme pela filha do pintor, Elizabeth Cavalcanti.
Glauber teria desrespeitado a memória do pai, invadindo o velório de Di no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com sua equipe. Usando na trilha sonora do filme marchinhas carnavalescas sobre as imagens do cadáver do pintor de mulatas.
Em resposta à proibição, Glauber repete seu credo. “Sou protestante e não choro diante da morte”. Resume o caso de forma anedótica:
“O velório durou só três horas. Podiam ter dado mais um pouco de tempo. E podiam ter levado Di para um lugar menos careta do que o MAM. Talvez se tivessem levado seu corpo para um terreno de umbanda, com música, batucada, dança, energia, as células vivas que ainda restavam nele teriam dado a volta por cima das mortas e o homem poderia até acordar. Tive a impressão que ele ria para mim quando começamos as filmagens. Já tinham estabelecido que ele estava morto e pronto. mas eu acredito na volta por cima ”.
Até o hoje o filme, que ganharia prêmio especial do júri em Cannes, em 77, está proibido judicialmente no Brasil.
Glauber produz revoluções por minuto, as páginas de jornais são o seu quintal e tribuna. A morte trágica de sua irmã, Anecy Rocha, que cai no poço de um elevador em 1977 o deixa transtornado.
Interrompe o romance Riverão Sussuarana e incorpora a morte da irmã à narrativa do livro, publicado em 78.
Sua atuação no programa Abertura da TV Tupi vira referência na Tv brasileira. Fala de política, entrevista os amigos e gente do povo.
A década de 80 começa cheia de impasses. A realização de A Idade da Terra e sua rejeição no Festival de Veneza e no Brasil, a morte do pai, Adamastor, além das incontáveis polêmicas, intervenções, entrevistas e artigos de Glauber na imprensa.
Sua escrita cortante e irada, oracular, nos jornais, sua fala-fluxo, quase um monólogo, como no programa de TV Abertura, adquirem um papel crucial na sua obra.
Esse fluxo desestruturante atravessa seus escritos, correspondência, fala e filmes num mesmo movimento de exorcismo. A obra e a vida de Glauber caminham para um apagamento das fronteiras. Cinema, política, escrita, agitação cultural, afeto & negócios. Transbordamento.
Glauber “desburocratiza” sua vida. Cartas “oficiais” tornam-se confessionais e vice-versa. O que deveria ser prestação de contas e acertos financeiros torna-se diário.
Nos cinco anos de exílio Glauber se afastou da língua portuguesa. Seu nomadismo, filmes, negócios, amizades, mulheres em diferentes países, forjam um idioma singular, translinguístico que marca também os artigos para o Pasquim.
As cartas de Glauber em outras línguas são escritas num idioma selvagem que combina francês, inglês, espanhol com a estrutura do português.
Uma língua descolonizada, truncada e poética que atravessa barreiras, mas ao mesmo tempo o coloca numa posição desconfortável com seu barbarismo lingüístico inculto e belo.
É de 1977 o início da revolução ortográfica a que Glauber submete todos seus escritos, inclusive textos antigos, reescritos substituindo-se algumas letras por X, Y, Z, K.
Mesmo escrevendo em português, Glauber nunca se preocupou com ortografia, sua correspondência e escritos estão cheios de erros, borrões, rabiscos. Um inferno gramatical e ortográfico que nega toda idéia de cultura como correção, disciplina, zelo gramatical, cultura dicionarizada. “Detesto Houaiss”, escreve.
"NÃO CURTO ESSA DE SER MÁRTIR!"
1981. Quando volta ao Brasil, depois de curto período em Sintra e Portugal, está seriamente doente, até hoje não se sabe ao certo de quê. Do avião vai para o hospital e morre no dia 22 de agosto de 1981.
Seu enterro foi um happening, “é preciso fechar essa miserável década”, dizia em 1979. Sua morte foi carnavalizada, como fez no enterro de Di Cavalcanti. O velório no Parque Lage, cenário de Terra em Transe, fechou uma era cultural no Brasil, provocando o transe, a ira, o choro, os últimos discursos inflamados de agosto, as últimas brigas e acusações, as últimas polêmicas culturais.
“O que faltou para Glauber?” “A possibilidade de envelhecer como um patriarca”, escreveu o cineasta português Paulo Rocha. Teríamos então, não o corpo de um revolucionário enterrado em meio a comoção lírica, mas toda uma outra mitologia. “Não curto essa de ser mártir!” dizia Glauber.
Seus textos, filmes, mais de 500 cartas arquivadas no Tempo Glauber, no Rio de Janeiro, a "tumba do faraó" protegida pela mãe, Lúcia Rocha, funcionam como um romance épico-didático, autobiografia, manual de cinema, guia do guerrilheiro cultural, tratado de humor negro, livro teórico, memorábilia, cartilha de história do Brasil.
Lendo essas cartas, revendo cada filme de Glauber, descobre-se que a cultura brasileira, o povo brasileiro é matéria mítica de tão bom estofo quanto outras que flutuam em nosso imaginário.
A fala de Glauber, sua eloquência e oratória, seu brado retumbante, na tradição romântica, popular e populista baiana, é uma ventania que vem desestabilizar os discursos prontos. É uma fala mítica.
Os textos e filmes de Glauber funcionam também como uma reflexão a quente sobre a cultura brasileira contemporânea, capítulo vertiginoso e desconsertante de um romance pan-americano, luso-afro-tropical.
Cronologia
-1939: No dia 14 de março, em Vitória da Conquista, interior da Bahia, nasce Glauber de Andrade Rocha, primeiro filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha.
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(*) Neste trabalho, todas as citações de Glauber foram retiradas de sua correspondência, editada em livro e matérias de jornais.
FILMOGRAFIA
Pátio, curta-metragem. p&b. 1959
Cruz na Praça, curta-metragem. p&b. 1959
Barravento, longa-metragem. p&b 1961
Deus e o Diabo na Terra do Sol. p&b. 1964
Amazonas Amazonas, curta-metragem. cor. 1966
Maranhão 66. Curta-metragem. p&b. 1966
Terra em Transe, longa-metragem. p&b. 1967
1968. média-metragem. p&b. 1968
O Dragão da maldade Contra o Santo Guerreiro, longa-metragem. cor. 1969
O Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have Sept Cabeças), longa-metragem, cor. 1970
Cabeças Cortadas (Cabezas Cortadas), longa-metragem, cor. 1970
Câncer, média-metragem. p&b. 1972
História do Brasil, longa-metragem, p&b. 1974
As Armas e o Povo, média-metragem, p&b. 1975
Claro, longa-metragem, cor. 1975
DI, curta-metragem. cor. 1977
Jorjamado no Cinema, média-metrage. Cor. 1977
A Idade da Terra, longa-metragem, cor. 1981
BIBLIOGRAFIA
Livros de Glauber Rocha:
Revolução do Cinema Novo. Alhambra/Embrafilme. Rio de Janeiro.1981.
O século do Cinema. Alhambra. Rio de Janeiro. 1985.
Roteiros do Terceyro Mundo. Org. Orlando Senna. Embrafilme e Alhambra. Rio de Janeiro. 1985.
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1963
Riverão Sussuarana (romance). Ed. Record. Rio de Janeiro. 1978
Cartas ao Mundo. Glauber Rocha. Organização e apresentação: Ivana Bentes. Companhia das Letras. 1997.
Sobre Glauber Rocha:
BENTES, Ivana. "Transe, Crença e Povo"; "Estéticas da Violência"; "Romantismo, Messianismo e Marxismo"; "Glauber e o fluxo audiovisual antropofágico" :in A Missão e o Grande Show: políticas culturais nos anos 60 e depois. Editora Tempo Brasileiro. 1999. Org. Angela Dias.
GATTI, José. Barravento: A Estréia de Glauber. Ed. Universidade de Santa Catarina. 1987.
GERBER, Raquel. O Mito da Civilização Atlântica: Glauber Rocha, Cinema, Política e a estética do inconsciente. Vozes. Petrópolis.1977.
------.(org.) Glauber Rocha. Ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1977
PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha, Cahiers du Cinéma. Paris. 1987. Glauber Rocha, Ed. Papirus. São Paulo. 1996.
XAVIER, Ismail. Sertão Mar - Glauber Rocha e a Estética da Fome.Ed. Brasiliense. São Paulo. 1983.
REZENDE, Sidney . Ideário de Glauber Rocha. Philobiblion. Rio de Janeiro. 1986.
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