terça-feira, 8 de abril de 2008

Monocultura da cana provoca genocídio indígena



O holocausto Guarani. 'Está em curso um processo de genocídio desse povo'. Entrevista especial com Egon Heck


No início, a proposta era outra. Os senhores do agronegócio pretendiam plantar cana-de-açúcar apenas nas terras degradas do Mato do Grosso do Sul. Mas, com uma perspectiva de lucro cada vez mais alto, eles mudaram de idéia e brigam agora pelas melhores terras da região, as áreas Guarani-Kaiowá. Nas localidades menos produtivas, explica Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário -Cimi - MS, “se consegue produzir de 70 a 80 toneladas de cana-de-açúcar por hectare. Já nas áreas Guarani-Kaiowá se produzem até 120 toneladas por hectare”. E é nessa região, enfatiza, que os fazendeiros e as multinacionais estão se instalando.

Enquanto isso, mais de 25 mil índios Guarani-Kaiowá vivem confinados em comunidades indígenas, no estado do Mato Grosso do Sul. Se não bastasse essa situação humilhante, ainda persiste o agravante de uma mentalidade adversa aos indígenas. A elite do agronegócio tem “verdadeiro ódio dos Guarani e, sem dúvida, a perspectiva dela é de que os índios não mais existissem”, revelou Heck, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do estado do Mato Grosso do Sul, que está progredindo economicamente, através do plantio da monocultura de cana-de-açúcar, mas, ao mesmo tempo, tem sua população indígena morrendo de fome e desnutrição?

Egon Heck –
Essa situação é dramaticamente contrastante . De um lado, se tem um dos estados de economia mais florescentes do País, baseado na monocultura de milho, na criação de gado e, agora,a monocultura da cana-de-açúcar está entrando com muita força. E, por outro lado, há muitas populações expulsas do campo, dentre elas principalmente as indígenas. Essas são as mais afetadas, pelo fato de suas terras se situarem, em geral, nas áreas mais férteis que são as de mata Atlântica, no extremo sul do estado, as terras Guarani-Kaiowá. Hoje, na região, existem mais de 20 milhões de cabeça de gado que dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça, enquanto os índios Guarani-Kaiowá não chegam a ocupar um hectare por índio. Assim, com falta de terra, centenas de sem terras indígenas são obrigados a se deslocar para a beira das estradas. Essa é uma situação calamitosa para essas populações, além de gritante em termos de injustiça para com os povos indígenas e os trabalhadores sem-terras.

IHU On-Line – Com o destaque econômico do Mato Grosso do Sul e a construção de novas usinas de açúcar, o senhor acredita que os índices de opressão entre e contra os índios tendem a aumentar?

Egon Heck –
Sem dúvida, o plantio de cana-de-açúcar, que hoje está em torno de 150 mil hectares e em cinco anos chegará a 1 milhão de hectares, com a implantação de mais de 60 usinas de cana-de-açúcar, trará um agravamento muito grande para os índios Guarani-Kaiowá. Para se ter uma idéia da gravidade do que vem ocorrendo no Mato Grosso do Sul, apenas neste ano 50 índios foram assinados no Brasil. Desses, 40 moravam no estado. Então, mais de 60% dos assassinatos de índios no País acontece no Mato Grosso do Sul, e com os Guarani-Kaiowá. Esses dados têm aumentado. Os números de suicídios, por exemplo, ficam em torno de 50 a 60 por ano, e o número de crianças que morrem por desnutrição chegou a mais de 30, desde 2005.

Aldeias ou campos de concentração?

Em pequenas áreas indígenas como Dourados, quase 13 mil índios dividem 3,5 mil hectares de terra. Em Amambai, 1,6 mil hectares são utilizados por 6,5 mil índios. Em Caarapó (Tey Kue), aproximadamente cinco mil índios dividem 2,4 mil hectares, e, em Porto Lindo, outros 4 mil índios convivem em 2,5 mil hectares de terra. Com o exemplo dessas quatro comunidades, pode se ter uma idéia do confinamento em que eles são submetidos. Hoje, chamamos esses locais de campos de concentração, um holocausto Guarani, onde, de fato, está em curso um processo de genocídio desse povo.

Com o exemplo dessas comunidades, pode se ter uma idéia do confinamento em que eles são submetidos. Hoje, chamamos esses locais de campos de concentração, um holocausto Guarani, onde, de fato, está em curso um processo de genocídio desse povo.

Kaiowá-Guarani: a pedra no sapato do agronegócio

Se não bastasse essa situação de confinamento, ainda há o agravante de uma mentalidade extremamente adversa aos índios. A maioria da elite do campo e do agronegócio tem verdadeiro ódio dos Guarani e, sem dúvida, a perspectiva dela é de que os índios não mais existissem. Essa posição será agravada com o plantio intensivo da monocultura de cana-de-açúcar, nesses próximos anos. Aliás, esse processo já está aceleradamente em curso, o que faz com que os índios, em primeiro lugar, se tornem vítimas do próprio trabalho escravo da cana-de-açúcar. Multinacionais e grandes usineiros já declararam sua preferência pela mão-de-obra indígena, por ser ela mais submissa ao trabalho escravo e, ao mesmo tempo, mais empenhada na própria produção.

Hoje, para que uma pessoa que trabalha com cana-de-açúcar tenha uma renda razoável de R$ 500,00 por mês, ela precisa produzir, no mínimo, 12 toneladas de cana, por dia. Esse ritmo de trabalho garante uma vida útil de 12 a 13 anos, o que é inferior inclusive à época do início da escravidão, em que os índios também foram utilizados no trabalho de usinas. Naquela ocasião, eles viviam, no trabalho, em torno de 15 a 17 anos.

Em segundo lugar, com a plantação exacerbada de cana-de-açúcar, as terras ficarão mais valorizadas. Num dos debates que realizamos na região, eu lembro que um dos fazendeiros do agronegócio chamou a atenção para o fato de que a rentabilidade na cana-de-açúcar seria até 12 vezes mais do que, por exemplo, o mesmo número de hectares ocupados por gado. Hoje, os fazendeiros cobram o dobro no arrendamento de um hectare de terra utilizada para o plantio de cana-de-açúcar, referente ao mesmo espaço que arrendam para a plantação de soja. Realmente, isso desencadeia uma corrida frenética em direção às melhores terras. Quanto a isso, faço outra observação: falava-se muito que a cana-de-açúcar iria ocupar as áreas degradadas, no estado. Áreas degradadas nada! Nessas terras, se consegue produzir de 70 a 80 toneladas por hectare. Já nas áreas Guarani-Kaiowá, nas melhores terras, se produzem até 120 toneladas de cana-de-açúcar por hectare. E é nessa região que os fazendeiros, senhores do agronegócio e multinacionais vão se estabelecer, aliás, já estão se estabelecendo. Grandes grupos multinacionais, nesse aceno do lucro certo, estão comprando terras que lhes dão uma possibilidade de controle estratégico de uma das grandes riquezas da região, que é a água, tanto do Aqüífero guarani como de todas as bacias de água que existem na região.

IHU On-Line - Além da briga pela demarcação de terras, quais serão os próximos problemas a serem enfrentados pelas comunidades Guarani-Kaiowá?

Egon Heck –
A dificuldade deles com a terra é o problema da fome. O sistema da economia Guarani, que é uma economia de reciprocidade, voltada para a vida, é totalmente chancelado. Eles não têm, muitas vezes, nem um quintal para plantar um pé de mandioca. Dourados é hoje, praticamente uma favela indígena confinada. Essa realidade da fome tende a se agravar, porque a dependência deles vai ser cada vez maior. Atualmente, em torno de 90 a 95% das famílias Guarani-Kaiowá estão sujeitas à dependência de cestas básicas, distribuídas pelo governo. Se houver qualquer problema com a distribuição dessas cestas, eles passam fome. Por isso, resolver as questões da fome, da recuperação da terra, de políticas públicas integrais articuladas na parte da produção, da recuperação ambiental, pedem medidas urgentes. Os índios costumam dizer que tiveram suas terras com mata, animais, frutas roubadas, e ganharam de volta o capim, ou seja, terra morta. Essa terra terá que passar por um processo de tentativa de recuperação para que eles possam voltar a viver com o mínimo de dignidade.

IHU On-Line – Qual é a reação do governo perante a carta enviada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que reivindica ações urgentes para a população indígena? Vocês já obtiveram alguma resposta?

Egon Heck –
A resposta mais imediata foi recebida no dia seguinte, quando a Polícia Federal foi em Ñande Ru Marangatu e fez apreensões de meia dúzia de armas de grosso calibre e fuzis, que são exclusivos das forças armadas, mas que estavam nas mãos dos pistoleiros, nas fazendas. Esse foi um primeiro momento, mas que não surtiu um efeito mais substancial, porque, nos dias seguintes, os pistoleiros continuaram dando tiros por cima das comunidades. Então, nosso apelo, com o envio da carta, foi no sentido de que haja um julgamento imediato da ação que paralisou a homologação das terras. O Lula aprovou a demarcação ainda em 2005, e, em março do mesmo ano, o então ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, passou liminarmente a homologação. Esse processo, que se esperava que fosse julgado ainda em 2005, se arrasta até hoje. Ao mesmo tempo, esperamos ações eficazes da Funai e da Polícia Federal, no sentido de coibir essa brutal violência, que tem como intuito atemorizar os índios, para que eles não continuem na terra. Assim, julgamos fundamental a reversão desse quadro, para dar paz a essas comunidades que estão, desde a morte de Marçal, em 1983, até hoje, submetidas a uma permanente situação de fome, violência, despejos, mortes.

IHU On-Line – O povo Guarani-Kaiowá chegou a ocupar 3 milhões de hectares do atual território do Mato Grosso do Sul. Hoje, essa área se reduziu a 40 mil hectares. Quem é o maior oponente dos indígenas, e como a situação da terra chegou a tamanhas proporções?

Egon Heck –
Isso é fruto, em parte, do processo histórico da ocupação econômica dessas terras na região, e da própria mentalidade Guarani, para quem, de certa forma, não fazia sentido ser dono da terra. O povo Guarani-Kaiowá sempre entendeu que as terras foram feitas para se viver. As matas e os animais eram vistos como seus recursos naturais. Mas eles acabaram trabalhando na consolidação do sistema de fazendas e da erva mate. Nessa época, os índios ainda conseguiam viver na mata. Mas, com a chegada do agronegócio, tudo foi transformado em pasto e plantação de soja. Assim, os índios acabaram sendo carregados em caminhões, para esses confinamentos. Esse processo de ocupação histórica da região e a ocupação da terra fizeram com que eles efetivamente acabassem nessa situação de ficarem sem terras de não terem, hoje, condições objetivas de uma sobrevivência com dignidade.

IHU On-Line – Como está se dando a mobilização indígena para agilizar a demarcação das terras?

Egon Heck –
Os índios estão lutando pelo reconhecimento e pela retomada das terras tradicionais, onde moravam as comunidade que foram expulsas. Esse processo está em curso. Eles estão se mobilizando, e na semana passada estiveram em Brasília. Tem crescido também, entre os Guarani-Kaiowá, a realização de grandes assembléias para pensar estratégias de recuperação da terra. O problema é que esse processo é lento. Nesse ano, apenas uma terra foi retomada, em kurusu Amba, no mês de janeiro. Sem dúvida, o grande desejo dos Guarani-Kaiowá é voltar a viver o “nade reko”, ou seja, o jeito de viver guarani, que é profundamente espiritual, ligado à integralidade e à harmonia com a terra.

IHU On-Line – O senhor já presenciou algum ato de violência nessas comunidades, ou tem relatos das explorações que eles vêm sofrendo nas aldeias?

Egon Heck –
Sim, são vários. Essas situações de violência são quase que diárias. Eu acompanho mais de perto as ligações telefônicas do pessoal. Eles nos telefonam desesperados, da beira das estradas, e relatam principalmente as mortes de fome. Nós tentamos acionar algumas instâncias, como a assembléia legislativa, mas o atual governo suspendeu e destruiu as 11 mil cestas básicas no início do ano. Isso criou uma situação ainda mais caótica nas comunidades. Em janeiro e fevereiro desse ano, eles passaram fome.

Diretamente, nas comunidades, eu não tenho estado nos momentos em que ocorrem as agressões, mas, sempre que visitamos as aldeias, eles contam histórias de suicídio e de assassinatos. Em Dourados, por exemplo, ocorrem os maiores índices de violência, que são agravados pelo alcoolismo, pela droga e também pelo trabalho escravo, na plantação de cana-de-açúcar. Hoje, a gravidade maior está relacionada ao processo de desintegração social do povo Guarani-Kaiowá. Os homens, geralmente, vão para a usina e ficam lá até 70 dias, enquanto mulheres e crianças ficam nos barracos, se sustentando com R$100,00 de adiantamento que eles recebem pelo serviço.

IHU On-Line – Muitos jovens indígenas estão se suicidando. O que essa atitude significa para o senhor? Ela representa o ponto máximo de desespero das pessoas?

Egon Heck –
Os jovens são os que mais vivenciam esse drama, porque, por um lado, existe a perspectiva de futuro, mas ao mesmo tempo, a raiz do passado está bastante fragilizada pelo processo de relações, dos contatos, das necessidades geradas. Então, tudo isso faz com que os jovens Guarani-Kaiowá representem 80% das mortes, atualmente. Embora os jovens tenham um sistema educacional bem montado, entre eles, esses dados revelam a situação de desesperança no futuro, que retratam, por sua vez, uma situação de falta de identidade, que começa a tomar conta dessa juventude. Alguns professores Kaiowá-Guarani também se suicidam. Isso mostra que não basta ter um emprego público, como professor ou agente de saúde ou trabalhar na usina. Parece que o horizonte está se fechando perigosamente. Só será possível arejar essa perspectiva de futuro, na medida em que terra, identidade e condições dignas de vida possam ser recuperadas.

IHU On-Line – E como falar de direitos humanos nestas circunstâncias?

Egon Heck –
Isso é algo que nos questiona profundamente, enquanto sociedade. O Brasil não só tem dívida com esses povos, mas uma culpa muito grande, na medida em que estamos permitindo que se implante um tipo de sistema que nega e que fecha as portas para a realidade dos povos. Além disso, é um sistema que concentra tremendamente as riquezas e os bens nas mãos de uns poucos, enquanto os demais fiquem cerceados minimamente em suas condições de vida. Eu sempre digo que o nosso trabalho precisa ser mais eficaz, não só junto aos índios, mas junto à sociedade, na perspectiva de uma transformação e de uma ruptura mais profunda, em termos de modelo de direitos humanos.
A declaração universal dos direitos dos povos indígenas, que foi aprovada pela ONU, no dia 13 de setembro , caiu num certo vazio nessa região, e permanecerá assim enquanto não houver um esforço do estado brasileiro de reverter esse quadro.

IHU On-Line – Como o senhor percebe os projetos de lei que tratam da exploração de recursos minerais em terras indígenas, principalmente na Amazônia?

Egon Heck –
Desastroso. Várias áreas na Amazônia estão loteadas pelas grandes mineradoras nacionais e multinacionais. Quando esses projetos forem aprovados, será uma desgraceira para esses povos. Na melhor das hipóteses, eles vão ficar com algumas migalhas, e a grande maioria dos índios será submetida a um açoite civilizatório de espoliação, de valores. O que os Guarani-Kaiowá vêm passando no Mato Grosso do Sul irá se repetir com vários povos da Amazônia, especialmente da calha norte, que é a região em que existem mais jazidas minerais. O grande problema é que lá as empresas pretendem fazer mineração dentro das terras indígenas. Mesmo nas terras demarcadas, serão regularizadas explorações.

IHU On-Line – A capacidade que os índios vêm buscando, através das universidades, garantirá um futuro diferente para eles e poderá mudar o histórico futuro dessas comunidades?

Egon Heck –
Essa é uma das ferramentas que os povos estão utilizando hoje. Eles costumam dizer que também estão combatendo os problemas com a caneta e, principalmente, com a sabedoria própria do povo, unindo a ciência e a técnica aprendida da sociedade não indígena. Assim, eles conseguem elaborar ferramentas eficazes de luta pelos seus direitos. Infelizmente, grande parte dos universitários indígenas talvez acabem sucumbindo a interesses individuais de conseguir um melhor estado de vida, se distanciando, muitas vezes, das comunidades de seu povo. Mas creio que, tendencialmente, o próprio movimento indígena consegue fazer com que seus estudantes tenham compromissos com suas comunidades, ao mesmo tempo que se adequem, cada vez mais, às próprias instâncias do conhecimento, como escolas e universidades indígenas, respeitando e valorizando o que é do próprio do seu povo. Isso tudo me parece ser um dos grandes acenos e contribuições da criação de novos modelos de sociedade, de novas perspectivas de países, que nós vemos, com bastante otimismo, na América do Sul.
Esse modelo indígena que passa pelo processo educacional tem contribuído no sentido de construir novas forças, elementos organizativos e perspectivas de administrar com autonomia seus territórios. No entanto, num processo mais amplo, é necessário revitalizar os valores, as religiões, as culturas desse povo.

IHU On-Line – O governo do estado tem discutido, junto ao Governo Federal, alternativas para resolver os problemas dos povos indígenas da região, tanto no que se refere à demarcação das terras, como às violências sofridas pelos índios?

Egon Heck –
Infelizmente, a impressão que se tem e o que nós temos visto por aqui é que esse é um diálogo meio de surdos, porque as coisas não se dão de uma maneira muito clara e eficaz como deveriam ser, para chegar a entendimentos e conclusões mais efetivas com relação a esses problemas. Por exemplo, existe, na questão da terra, uma responsabilidade do governo estadual com relação à desapropriação de áreas e à titulação de áreas que eram indígenas e que acabaram sendo transferidas para propriedades particulares, pelo governo do Mato Grosso, e depois pelo governo do Mato Grosso do Sul. Essa responsabilidade precisa ser assumida pelos governos e pela sociedade sul matogrossense, porque foram eles que de alguma maneira propiciaram essa espoliação das terras indígenas.

IHU On-Line – Qual é o maior desafio para os povos indígenas do Mato Grosso do Sul?

Egon Heck -
O grande desafio hoje é pensar a questão indígena, não como uma forma isolada, mas como um grande desafio nacional e do Mato Grosso do Sul, que conclama a todos nós a uma ação urgente e eficaz a curto prazo. A longo prazo, é necessária uma perspectiva sábia e inteligente, além de uma ação com justiça e equidade solidária para a reconstituição desses espaços de vida e felicidade do povo Kaiowá-Guarani em suas terras.

A articulação dessas instâncias fará com que nós tenhamos a coragem histórica de mudar as nossas mentalidades e as nossas estruturas sociopolíticas, econômicas. Assim, abriremos espaço de oxigenação para que esses povos possam respirar, e não só continuar as suas lutas, mas contribuir na construção de uma nova história, com justiça e solidariedade.




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Os Guarani Kaiowá e Ñandeva



Parte do texto a seguir faz parte da pesquisa de Antonio Brand (BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre na tradição kaiowá/guarani. Os difíceis caminhos da Palavra . Tese de doutorado, História, PUC/RS, 1998).


Os Guarani estão divididos em três parcialidades que vivem no Paraguai, na Argentina, no Uruguai e no Brasil: os Mbyá, com uma população estimada em 10 a 11 mil; os Avá-Chiripá, com cerca de 9 mil; e os Pài/Kaiowá, com 35 a 40 mil pessoas. A população Guarani que habita a região sul do estado de Mato Grosso do Sul é de cerca de 25 mil e, na sua grande maioria, corresponde à parcialidade Kaiowá e, em menor número, aos Ñandeva. Os Ñandeva se auto-denominam Guarani e, portanto serão tratados desta forma no presente texto. Embora em menor número, eles estão presentes em várias aldeias Kaiowá, por isso o uso da designação Kaiowá/Guarani para referir-se às duas parcialidades. "Há, contudo, entre os subgrupos Guarani-Ñandeva, Guarani-Kaiowa e Guarani-Mbya existentes no Brasil, diferenças nas formas lingüísticas, costumes, práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as situações em sua história e em sua atualidade"(cf. http://www.isa.org.br/pib/epi/terena - Instituto Sócio Ambiental - Acessado em 31/01/06).




Os Kaiowá habitavam uma região de difícil acesso na serra de Amabai, atual fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai e, por isso, permaneceram praticamente isolados até meados do século XIX. Após a guerra do Paraguai, que teve como parte do cenário de batalha o território Kaiowá, estes passaram a ter cada vez mais contato com os não indígenas. O cultivo e extração da erva-mate, explorada em grande intensidade na região a partir da década de 1880, passou a incorporar significativo número de Kaiowá e Guarani como mão-de-obra.




LOCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO GUARANI / K AIOWÁ NO MS




Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá Guarani, NEPPI, UCDB (2005)




Em 1882, o Governo Federal arrendou a região para a Cia Matte Larangeiras, que iniciou a exploração da erva-mate em todo o território Kaiowá/Guarani. Ainda em pleno domínio desta Companhia, o SPI demarcou, em 1915, a primeira Reserva com 3.600 ha para usufruto dos Kaiowá. Até 1928 são demarcadas para os Kaiowá/Guarani, em toda a região Sul do Estado, um total de oito Reservas, totalizando 18.297 ha . Inicia-se então, com o apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e relativamente violento de confinamento da população Guarani nestas Reservas.




Com o desmatamento da região e a implantação das fazendas de gado e das Colônias agrícolas, em especial a CAND - Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a partir da década de 40, dezenas de aldeias Kaiowá/Guarani tiveram que ser abandonadas pelos índios, sendo suas terras incorporadas pela colonização. A população dessas aldeias foi aleatoriamente "descarregada" nas Reservas. Esse processo de redução e confinamento compulsório seguiu inexorável, à revelia de toda a legislação já existente e a favor da proteção dos direitos indígenas à terra, até o final da década de 70. É necessário ressaltar que entendemos por confinamento compulsório a transferência sistemática e forçada das diversas aldeias Kaiowá/Guarani para dentro das oito Reservas demarcadas pelo governo entre 1915 e 1928 (Brand, 1998).A partir de 1978, algumas comunidades, com o apoio de setores da sociedade civil e dispostas a não aceitarem perder suas terras tradicionais, iniciam, com êxito, a luta para interromper essa prática histórica, comum em toda a região, pois enquanto eram necessários como mão-de-obra nas fazendas, os Kaiowá/Guarani podiam permanecer em suas aldeias, porém, concluído o desmatamento, eram expulsos, cabendo, em muito casos, aos órgãos oficiais a tarefa de efetivar a transferência para as Reservas.




Áreas indígenas Kaiowá Guarani e Terena no Estado de Mato Grosso do Sul :





Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá/Guarani, NEPPI, UCDB (2005)



A transferência de inúmeras aldeias e famílias extensas para dentro das Reservas demarcadas entre os anos de 1915-1928, não significou apenas o deslocamento geográfico dessas aldeias e a correspondente perda das terras. A vida dentro das Reservas impõe aos Kaiowá/Guarani profundas transformações na relação com o território tradicional, pois, ao perder a sua aldeia, eles são obrigados a disputar um lote cada vez mais reduzido dentro das mesmas. A crescente imposição do trabalho assalariado surge como alternativa de subsistência, mas atinge as bases tradicionais de sua economia, reforça a exploração como mão-de-obra barata e desqualificada, obrigando os índios a passarem meses distantes de suas famílias. As oito usinas de álcool e açúcar em funcionamento no Estado, assinaram, no ano de 1999 e em fevereiro de 2000, o denominado "Pacto Social" (acordo firmado entre órgãos públicos e entidades não governamentais) que visa regularizar as relações de trabalho mediante o registro dos trabalhadores indígenas. Porém, com esta medida, oficializou-se a permanência dos índios fora de suas aldeias, em contratos sucessivos de 90 dias, durante seis a oito meses em cada ano.




Finalmente, temos as alterações no sistema de chefia, com a imposição (pelo SPI) da figura do capitão. Tudo isto vai se refletir na gradual inviabilização da religião tradicional, entendida aqui como as prática e crenças, por intermédio das quais expressam a sua relação com o sobrenatural, que, ao mesmo tempo, constituem-se em referenciais básicos indicativos de cultura. O impasse maior para a manutenção do modelo cultural Kaiowá/Guarani está, justamente, nas Reservas demarcadas até 1928. É nelas que se verificam, inclusive, significativos índices de suicídios.




A partir dos anos 1970, com a mecanização e a especialização em torno da soja e do gado de corte, a presença da mão-de-obra indígena deixou de ser indispensável e, em alguns casos indesejável. Por essa época as famílias que localizavam-se nas fazendas da região foram transferidas para oito reservas que haviam sido demarcadas entre as décadas de 1910 e 1940 pelo Serviço de Proteção ao Índio, próximas à cidades da região, como Caarapó, Amambaí e Dourados. A exigüidade das terras para o número total de indígenas tem sido um grave problema. Hoje, cerca de 30 mil Kaiowá e Guarani no estado ocupam um área de cerca de 40 mil hectares.




Segundo classificação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a situação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul é a seguinte: 17 registradas, 5 homologadas, 3 declaradas, 3 identificadas, 10 a identificar, 8 reservadas e 74 sem providências. A terra indígena mais recentemente demarcada é a Taquara, situada no município de Juti, onde os Kaiwá de Taquara passam a possuir 9.700 hectares reconhecidos pela legislação.

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20/8/2007

O impacto do etanol sobre as populações indígenas.

Entrevista especial com Antonio Brand

Há uma semana, mais uma criança indígena morreu por desnutrição no Mato Grosso do Sul. Em 2005, na mesma reserva, mais de 20 crianças morreram por subnutrição. Enquanto isso, o governo ressalta que a taxa de mortalidade entre as crianças indígenas reduziu 82% de 2006 a 2007. “Efetivamente não interessa, não é um dado relevante que o governo consiga, momentaneamente, reduzir o índice de desnutrição. O que nos preocupa é que não há qualquer sinal de que se queira efetivamente encontrar uma solução para o problema”, afirmou o pesquisador Antonio Brand em entrevista, por telefone, à IHU On-Line.


Na conversa, Antonio fala da mortalidade infantil e do problema da fome que assola as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. Fala também do problema da perda da autonomia dos índios e do evento que está organizando, intitulado Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas. “Com ele, pretendemos contribuir para que os índios possam ingressar, permanecer e concluir bem os cursos escolhidos dentro das universidades”, disse.


Antonio Brand é graduado em História pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Tem mestrado e doutorado na mesma área pela PUCRS. É professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, MS, onde desenvolve a pesquisa “Território e tradição nos processos históricos dos Kaiowá-Guarani no Mato Grosso do Sul”.


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o senhor analisa as mortes das crianças indígenas que têm ocorrido por causa da fome?
Antonio Brand –
Aqui no estado, já estamos no quinto ano dessa política de fornecimento de cestas básicas como ação de combate à fome dos Kaiowá-Guarani. No entanto, como a ação do governo tem se restringido basicamente ao fornecimento de cestas básicas, a partir do momento em que há qualquer interrupção ou qualquer problema no fornecimento sistemático regular dessa política, você tem o retorno da fome. Esse é o problema. O que temos criticado e reivindicado muito é que outras ações seriam absolutamente necessárias para combater a fome. O fornecimento do programa é pensar uma política de segurança alimentar, assentada fundamentalmente no fornecimento de cestas básicas. Só que isso realmente é um absurdo quando estamos falando de povos indígenas.
Como o estado tem restringido muito o fornecimento dessas cestas básicas, temos um problema que não se resolve, ou seja, a fome irá retornar sempre, e de forma cada vez mais grave. Por essa razão, sempre temos acentuado de que sem a ampliação das terras e sem um programa de assistência técnica de oferecimento de apoio, no sentido de devolver a esses povos a sua capacidade de produzir o seu alimento, o problema da fome permanecerá. Essa, repito, é a questão. A tendência, atualmente, é que, de tempos em tempos, nós tenhamos que enfrentar essas crises que levam à morte de crianças e muito mais.


IHU On-Line – Como o senhor analisa as políticas assistenciais do governo Lula em relação aos indígenas brasileiros? O “Bolsa Família” está chegando até essas famílias?
Antonio Brand –
Eu creio que todas as políticas assistenciais do governo são de caráter emergencial e sem qualquer perspectiva de se traduzirem em autonomia. São medidas que aumentam a dependência dessas populações. Nesse sentido, creio que elas não apresentam respostas ao problema. Insistentemente, os povos indígenas têm reivindicado de que, junto com as ações de emergência de combate à fome, é preciso retomar o processo de demarcação de território. E o governo Lula, infelizmente, não tem atendido a esse pedido. O governo Lula tem dado poder, respeitado e atendido às demandas das elites regionais que não querem a demarcação das terras indígenas. Então, o problema das políticas assistenciais vem apenas agravando a situação dos povos indígenas.


IHU On-Line – E, com isso, como o senhor recebe a afirmação de Lula, quando esteve em Campo Grande, dizendo que a imprensa não deve apenas denunciar, mas também destacar a taxa de 82% da redução da mortalidade das crianças guaranis?
Antonio Brand –
Os órgãos públicos têm insistido muito nesses dados estatísticos em que comparam a situação atual com o ano de 2005, quando morreram não sei quantas crianças. Agora, em 2006 e 2007, há efetivamente melhoras no que se refere à diminuição da desnutrição entre os índios. O problema é que no momento em que ocorre uma interrupção, como aconteceu no início deste ano, por problemas de divergências no governo ou questões administrativas, isso se traduz imediatamente em mortes por desnutrição. Efetivamente não interessa, não é um dado relevante que o governo consiga, momentaneamente, reduzir o índice de desnutrição. O que nos preocupa é que não há qualquer sinal de que se queira efetivamente encontrar uma solução para o problema. Parece que o governo está querendo manter essas práticas, tendo em vista a satisfação das necessidades dele de uma política assistencialista. Como o sujeito que recebe a cesta básica depende totalmente dela, temos indivíduos totalmente dependentes da boa vontade do governante de plantão.
Parece que é isso que está se pensando: ter um universo de pessoas que dependam absolutamente da boa vontade de um governante, seja ele quem for. Nesse sentido, a continuidade desse assistencialismo depende do voto, ou seja, é uma massa de manobra, tendo em vista as eleições, porque não há como explicar de outra maneira a atitude do governo. O dinheiro gasto nestas políticas é elevado: não são poucos os recursos que o Governo Federal vem investindo nas populações aqui no estado. Nós precisamos reconhecer que o volume de recursos vem aumentando, mas com essa característica da qual falei. Hoje, as populações Kaiowá-Guarani estão totalmente dependentes do fornecimento de cestas básicas e do salário que recebem das usinas das usinas de açúcar e álcool. Os indígenas formam um povo que não temos o direito de reduzir a pedinte.


IHU On-Line – Como o senhor analisa, então, a questão da autonomia dos índios quanto aos seus territórios?
Antonio Brand –
O grande problema, hoje, dos povos indígenas, especialmente aqui no estado de Mato Grosso do Sul, diz respeito à perda dos territórios. São povos que estão confinados. Eles têm áreas de terra absolutamente insuficientes para sua vida. Portanto, não há terra que garanta a autonomia econômica e a produção de alimentos. Há uma outra questão, muito mais grave, decorrente deste processo histórico de confinamento, que diz respeito à organização social dessas populações. Veja só: nos últimos anos, nós verificamos um aumento assustador da violência interna nessas comunidades. Levantamentos feitos pelo Cimi – Conselho Indigenista Missionário - sobre mortes violentas em comunidades indígenas dão conta de que, no Mato Grosso do Sul, a grande maioria delas decorrem de conflitos internos. Isso mostra um profundo mal-estar e, ainda, que os mecanismos internos da comunidade e sua organização social não conseguem mais dar respostas aos problemas que enfrentam.
Essa certamente é a conseqüência mais nefasta, mais grave desse processo de perda da terra, e diz respeito diretamente à questão da autonomia. Não podemos mais pensar nos povos indígenas como povos isolados. Eles são povos integrados, participam do cotidiano da sociedade, têm relações econômicas e tudo mais. O problema da autonomia econômica diz respeito fundamentalmente à possibilidade de eles decidirem seu destino e sua vida. Para isso, é fundamental a organização social de cada povo. É necessário que ele possa seguir se orientando e decidindo suas questões a partir de sua forma própria de organização social.
Nesse sentido, eu entendo que o radical confinamento a que os Kaiowá-Guarani estão submetidos hoje está inviabilizando a vida e a organização social dessas populações. O sintoma mais grave desse problema é o crescimento da violência, mas também o de outros problemas, como, por exemplo, o consumo de álcool, de drogas, os suicídios, entre outros. Então, todos esses problemas são muito mais graves do que a própria falta de alimentos e, por isso, gerou-se essa crítica ao governo, que só tem buscado atender a demanda por alimentos. A situação, no entanto, é muito mais complexa.


IHU On-Line - E o que o senhor pensa da política de demarcação de terras deste governo?
Antonio Brand –
Nós, na verdade, estamos mais preocupados porque o Mato Grosso do Sul tem se destacado como o estado que oferece, na opinião dos empresários e do governo, as melhores condições para a produção de álcool combustível. Então, nós já temos funcionando no estado 11 usinas de açúcar e álcool. Esse número deve saltar para algo em torno de 70 usinas em poucos anos. Em conseqüência disso, a terra, logicamente, está muito valorizada e, assim, a pressão contra a demarcação das terras indígenas tende a crescer bastante.
Então, nós, que trabalhamos com os povos indígenas, estamos profundamente preocupados com isso, pois o governo não só tem se omitido frente aos problemas, como tem sinalizado, e está oferecendo todo o apoio à indústria de açúcar e álcool, isso antes de definir a questão dos indígenas. A tendência é que esse problema se agrave. Enquanto isso, os povos indígenas estão se movimentando e pressionando cada vez mais. A esperança é que a indústria, a sociedade brasileira e setores do governo não queiram que, por muito tempo, siga uma situação que possa ser caracterizada em dois tipos de manchetes que nós encontramos hoje na imprensa regional, nacional e fora do país. Existe um tipo de manchete dando conta que o Mato Grosso do Sul é o melhor lugar para se investir na produção de açúcar, mas ao lado dela existe outra, dando conta de que os índios estão morrendo de fome.
Já há setores fora do país se movimentando, no sentido de exigir que o governo atenda minimamente às questões ligadas ao meio ambiente e aos povos indígenas. Há outros setores da sociedade civil, e até de fora do País, que certamente se sensibilizam com essas questões, diferentemente do Governo Federal. Eles vêm se posicionando favoravelmente às demandas indígenas, porque não podemos esquecer com quem estamos lidando, olhando o volume de terra e a riqueza que está sendo produzida. Se levarmos em conta os enormes investimentos que estão sendo feitos neste momento, tendo em vista a expansão sucroalcooleira e a regularização das terras indígenas, saberemos o quanto isso representa um quantidade de recursos mínima e que não há qualquer argumento razoável para que não se faça essa demarcação, essa ampliação territorial.
A reivindicação dos Kaiowá-Guarani é de pequenas parcelas de seu território original que, em absoluto, inviabilizam o desenvolvimento regional. Os tecnocratas do governo hoje parecem estar mais encantados com a possibilidade de exportar álcool e esquecem dos povos indígenas. Confesso que minha percepção, atualmente, não é tão otimista, embora os povos indígenas estejam se articulando um pouco melhor, especialmente aqui no estado. Nos últimos dois anos, os índios estão buscando se capacitar melhor, buscando acesso às universidades com muita determinação. Nós temos hoje, no estado, um número já bem elevado de acadêmicos índios e podemos destacar como esses acadêmicos já vêm com uma preocupação clara de retorno às suas comunidades. Há sinais, demandas, posicionamentos, por parte dos povos indígenas, que eu creio que sejam extremamente significativos e que sempre abrem um caminho em termos de soluções.


IHU On-Line – Um dilema que tem preocupado os indígenas são as coincidências entre terras indígenas e unidades de conservação...
Antonio Brand –
Mato Grosso do Sul tem uma área que está bastante preservada: a região do Pantanal. Os Kaiowá-Guarani ocupam a região sul do estado, que é a parte em que, desde o início da colonização, se estruturou a agricultura mais moderna. É uma região extremamente propícia à agricultura e onde os recursos naturais foram completamente destruídos. Nela, inclusive, não há unidades de conservação preservadas. Até hoje, isso é um dado muito interessante: as regiões onde ainda se conserva a maior biodiversidade são, efetivamente, aqueles que compreendem as terras indígenas. Mesmo que tenhamos hoje uma população intensa nesses espaços reservados aos povos indígenas, é neles que encontramos uma maior diversidade ambiental ainda. Novamente, vemos aí a necessidade de demarcação de terras, como uma estratégia de buscar preservar a biodiversidade. O fortalecimento das culturas em extinçao que temos no estado é um fator que favorece também a biodiversidade. Porque, sob a ótica do agronegócio, o meio ambiente está perdido, mas se hoje há restos ambientais, neles estão os povos indígenas.


IHU On-Line – E qual é a relação que você faz entre a produção de etanol e os povos indígenas?
Antonio Brand –
Poucas áreas têm espaço para plantar cana. Mas, certamente, essa será a proposta naquelas poucas áreas indígenas onde há certa disponibilidade de terras. É difícil você se posicionar contra isso, porque os povos indígenas estão numa situação em que não há qualquer alternativa. Então, o plantio de cana-de-açúcar, mesmo nos restos de suas terras, será algo bastante certo e difícil de ser questionado, no contexto em que as coisas estão agora. Porque, como já falei, a única sinalização que o governo tem dado aos povos indígenas, nos últimos anos, é no sentido de fornecer esse tipo de programa. Agora, ao introduzir nas aldeias o eventual plantio da cana-de-açúcar, já sabemos todos, inclusive o Governo Federal, que isso trará problemas, pois irá comprometer a biodiversidade dentro dessas áreas.

IHU On-Line – Já se descobriu os motivos pelos quais uma mulher e um líder indígena foram assassinados na região de Dourados neste anos? Qual é o significado dessas mortes para o povo indígena do Mato Grosso do Sul?
Antonio Brand –
A mulher morreu em janeiro e o homem mais recentemente. No Brasil, nós temos duas justiças: se o agressor é uma pessoa pobre, ele vai preso sob todos os rigores da lei; se o agressor é um não-índio, uma pessoa com poder, um grande proprietário, nada acontece. Então, nós tivemos alguns casos aqui onde os índios aparecem como agressores, e então os rigores da lei se fazem sentir de toda maneira. Por sua vez, nenhuma pessoa dita poderosa, pelo que sei, está presa. Os únicos que estão presos ainda são as lideranças indígenas da comunidade, acusadas de estarem roubando um trator. Mas os que mataram não estão presos. Normalmente, o que nós verificamos é que matar um índio ainda segue como um crime de menor importância.


IHU On-Line – A polícia em área indígena precisa de preparo diferenciado?

Antonio Brand – Teoricamente, é a Polícia Federal que deve dar conta das questões ligadas aos povos indígenas, segundo a Constituição. Mas, quando envolve os crimes comuns, a Polícia Civil não tem preparo nenhum. Então, há muitos problemas porque eles vêm marcados por um forte preconceito. O maior deles é que as relações entre os povos indígenas e não-indígenas nessa região são perpassadas historicamente pelo conflito da terra.


IHU On-Line – Como o senhor analisa os programas de permanência para os estudantes indígenas nas universidades?
Antonio Brand –
Nós estamos muito engajados em projetos dessa linha. Eu penso que é uma demanda das comunidades. Agora, de novo, só isso não será solução. Nós sabemos que hoje não basta a universidade garantir muita coisa em termos de “espaço ao sol”. Se o acesso à universidade significar que não se precisa demarcar terras, à medida que os índios vão disputar o mercado de trabalho, pouca coisa será alterada. O acesso deve significar a vontade de eles construírem melhores condições de vida e de recuperarem a sua autonomia.
Na prática, muitos projetos já se orientam nesse sentido. Outros não. Na nossa equipe, estamos muitos engajados em diversos projetos desse tipo. Essa é uma perspectiva importante enquanto estiver articulada com o esforço das populações indígenas. O acesso às universidades por parte dos indígenas não é um projeto individual de um ou outro deles em busca de um emprego.


IHU On-Line – O que se pretende com o Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas, que o senhor está coordenando?
Antonio Brand –
Esse curso tem a duração de um ano, com mais de 300 horas de atividade. O programa está dentro de um projeto mais amplo, que se denomina Rede de Saberes. O Rede de Saberes é um programa bastante amplo, desenvolvido com a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que tem como meta apoiar a permanência de indígenas nas universidades. Ele faz parte de um conjunto maior de ações direcionadas para os acadêmicos índios. Com ele, pretendemos contribuir para que os índios possam ingressar, permanecer e concluir bem os cursos escolhidos dentro das universidades.
Esse projeto específico de estudo do direito indigenista tem como objetivo oferecer aos acadêmicos índios que pretendem formar-se advogados nas diversas instituições de ensino superior do estado uma informação sobre uma área do direito que normalmente os cursos formais ignoram, que é o direito indígena. O evento também tem como objetivo suprir uma lacuna grave dos nossos cursos de direito. Ele pretende, ainda, contribuir para que esses estudantes se articulem e desenvolvam reflexões a partir da sua visão e das suas comunidades. Também para que, ao concluirem o curso superior, consigam fazer uma diferença enquanto grupo de advogados indígenas. Nós temos, no estado, 24 acadêmicos índios que estão fazendo direito. Nossa perspectiva é estender esse tipo de iniciativa para outros campos, para que eles possam retornar às suas comunidades e prestar um serviço eficaz.


IHU On-Line – O senhor tem noção de quantas lideranças indígenas são, hoje, pesquisadores e professores/as nas universidades brasileiras?
Antonio Brand –
Não. Esse dado geral eu não tenho como te dizer, mas eu sei que são muito poucos. Nós temos na pós-graduação aqui do estado um índio que é doutor em agronomia e que trabalha na Embrapa. No Brasil todo, não chega a dez o número de índios que estão cursando doutorado, mas já temos um número maior de mestrandos. Aqui, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, há três índios que concluíram mestrado em desenvolvimento local e educação, além de outros três ou quatro que estão cursando nesse momento. Então, ainda o número é muito reduzido. Essa busca pela universidade é um fenômeno muito recente, mas ela tende a crescer. No entanto, inserir os índios nas universidades da forma como elas estão organizadas hoje traz alguns problemas, pois a questão não é só o acesso e a permanência. As universidades precisam saber lidar com as lógicas indígenas e as suas formas específicas de produção de conhecimento.



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