quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Um sonho de Breton (Nadja...)

Andre Breton



Breton havia acabado de descrever a peça Détraquées e as impressões profundas que ela lhe havia impregnado...

"A falta de indicações suficientes sobre o que acontece depois da [cena] da caída da bola na sala, sobre Solange e sua parceira poderem perfeitamente ser a presa e se transformarem em soberbas predadoras, continua até hoje, por excelência, o que mais me confunde. De manhã, ao despertar, tive mais trabalho que de costume para me desvencilhar de um sonho bastante infame, que não vejo a menor necessidade de transcrever aqui, pois decorre em grande parte de conversas que tive ontem, sobre um assunto inteiramente diverso. Esse sonho me pareceu interessante na medida em que era sintomático da repercussão que tais lembranças, por menos que a elas nos entreguemos com violência, podem ter sobre o curso do pensamento. É notável, desde logo, observar que o sonho de que se trata não expunha senão o lado penoso, repugnante, ou mesmo atroz, das considerações a que eu me entregara, destruindo cuidadosamente todo o fabuloso valor que essas considerações representam para mim, tal como um extrato de âmbar ou de rosa que atravessasse os séculos. Por um lado, é preciso admitir que se eu me desperto, vendo com extrema lucidez o que aconteceu por último: um inseto verde-musgo, de uns ciquenta centímetros, que havia tomado lugar de um velho, e avança em direção a uma espécie de aparelho automático; põe uma moeda na ranhura, uma em vez de duas, o que me parece constituir uma fraude particularmente repreensível, a tal ponto que, como que por descuido, lhe ter dado uma bengalada e tê-lo feito cair na minha cabeça - tive tempo de perceber as bolas de seus olhos brilharem na aba de meu chapéu, depois me engasguei, e custaram a retirar da minha garganta duas de suas patas aveludadas, enquanto eu sentia uma repugnância inexprimível -, é claro que, superficialmente, isto guarda uma relação sobretudo com o fato de existir, no forro do estúdio onde fiquei nesses últimos dias, um ninho, em torno do qual se agita um passarinho meio assustado com a minha presença, a cada vez que traz lá dos campos, piando, alguma coisa como um gafanhoto verde, mas é indiscutível que na transposição, na intensa fixação, na passagem, de outra forma inexplicável, de uma imagem desse tipo do plano da observação sem interesse para o plano emotivo, concorrem em primeiro lugar a evocação de certos apisódios de Détraquées e a volta àquelas conjecturas de que havia falado. Porque a produção de imagens de sonho depende sempre pelo menos desse duplo jogo de espelhos, nela encontramos a indicação do papel muito especial, sem dúvida eminentemente revelador, no mais alto grau "supradeterminante", no sentido freudiano, que certas impressões muito fortes são chamadas a desempenhar, nada contamináveis pela moralidade, verdadeiramente percebidas "acima do bem e do mal" no sonho e, em seguida, no que lhes opomos muito sumariamente sob o nome de realidade."
(André Breton: Nadja, pags. 54-55)

2 comentários:

Iansã disse...

Mais um post sobre sonhos e vou relatar mais uma experiência minha.
Há alguns dias comentei que tenho sonhado COM sonhos lúcidos - não sonhado sonhos lúcidos - o que é algo bizarro.
No meu último sonho, da noite retrasada, estávamos nós, membros aqui desse Blog - incluí no sonho algumas outras pessoas com quem temos contato mas que não estão aqui - sonhando juntos sonhos lúcidos e testando, então, suas possibilidades. Como não tenho a disciplina suficiente de escrever os sonhos logo depois que acordo - já perdi as contas de quantas vezes tentei fazer isso - não lembro exatamente o que aconteceu, mas lembro que falávamos frase do tipo: "Como isso é um sonho lúcido podemos fazer isso, ou aquilo outro"; "E se experimentássemos fazer não sei o que". O fato é que, primeiro, só falávamos, não fazíamos o que propunhamos. Segundo eu me via participando, mas não me sentia participando, o que faz com que esse não seja um sonho lúcido, mas um sonho SOBRE sonhos lúcidos. Estranho, não?

jholland disse...

Hmmmm...diria que seu sonho é a própria explicação do porquê vc talvez não esteja sonhando lucidamente. "Estar sem participar...", "falar sobre..." ao invés de "fazer...". Esta nossa reflexão torna-se uma "meta-reflexão". Quando comecei a pensar e escrever sobre sonhos (dê uma olhada em minha primeira postagem sobre isso, aqui mesmo neste Blog), não sabia que o simples pensar sobre a estrtura onírica (na verdade, a estruturta da consciência) poderia me levar a um estado alterado de consciência (no caso, o sonho lúcido). O que quero dizer é mais ou menos o seguinte (ainda estou desenvolvendo isso...): a consciência, ela própria, constrói a si própria. Quando vc. assume o distanciamento necessário para "pensar" e "sentir" sobre o próprio "pensar e sentir", isso significa que a consciência está refletindo sobre ela própria, o que produz um efeito, digamos, "dialético", de construção de si mesma. E assim, a consciência se amplia, e se altera. É mais ou menos como aquela figura do Escher que colei ao lado, em que uma mão desenha a outra e vice-versa. O "pulo do gato" está em "assumir o distanciamento adequado", ou seja, uma certa perspectiva.