quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Crítica da vida cotidiana: breve comentário do primeiro capítulo




Não sei se alguém aqui já leu esse importante livro de Henri Lefebvre, livro que foi de grande influência nos primeiros momentos da Internacional Situacionista. Estou na metade do livro e gostaria de fazer alguns comentários, principalmente no que diz respeito ao primeiro capítulo.

Embora ainda esteja na metade do livro, já dá pra notar que a proposta é importantíssima e deve ser levada a sério ainda hoje. Acredito que afirmações como, “nós buscamos o humano muito longe, ou muito ‘profundamente’, nas nuvens ou nos mistérios, sendo que ele nos espera e nos cerca em toda parte”; ou ainda, “a história, a psicologia, a ciência do homem devem tornar-se um estudo da vida cotidiana”, descrevem muito bem o projeto de Lefebvre.
O tom desse estudo crítico da vida cotidiana será marxista, é claro; e esse marxismo já se anuncia no primeiro capítulo, quando Lefebvre faz uma crítica um tanto mordaz da filosofia, da arte, da prosa e da poesia, desde finais do século XIX até seus dias. Um de seus primeiros alvos é André Breton e o surrealismo. O que Lefebvre critica é o fato desses movimentos, ao tentarem colocar o maravilhoso no cotidiano, nos objetos familiares, acabaram por negar o mundo real, e não por transformá-lo de fato. Além disso, afirma que a crítica colocada por movimentos como o surrealismo era leviana e alucinada demais para que dela se tirasse alguma análise lúcida. Para ele todos esses movimentos tinham como objetivo viver fora do real.
São também alvos de Lefebvre Heidegger e o círculo existencialista. Vale citá-lo:
“(...) A angústia, o mistério (o sentimento do mistério) são irredutíveis às teorias, impossíveis de se por em teoria. A angústia verdadeira, aquela de uma criança perdida, de um primitivo perdido na floresta, de um ser completamente frágil e desarmado diante da natureza, essa angústia nos escapa. (...) Mesmo nesse momento, a ação, o trabalho, o amor, o pensamento, a busca da verdade e do belo criam realidades que ultrapassam o indivíduo perecível. E não é porque essas afirmações tornaram-se banais e porque foram muito usadas – às vezes aos piores fins – que cessaram de ser verdade. Ao contrário... reergamos as certezas na comunidade humana, renovemos, restabeleçamos em sua força e sua juventude esses elementos do humano. Filósofos, metafísicos, vocês uivam à morte como cães! Mas não, perdão, vocês fazem pose. Vocês têm da morte uma idéia sofisticada da qual podem fazer uso, a qual podem repetir e misturar a todos os momentos de suas vidas; e vocês me convidam a seguir-lhes, a aceitar esse último fantasma. Mas esse ‘outro’, essa ausência, esse sentimento trágico da existência, essa consciência absurda, eu as encontro nos homens que levam suas vidas com bastante habilidade e sucesso; discorre-se sobre a angústia nas salas de conferência, diante de um público mundano, e ela se tornar um tema de dissertações escolares; escreve-se sobre a angústia nos Cafés ou nas redações de jornais; e se escreve de forma engenhosa, fina, técnica, com vocabulário refinado. As flores que se joga à morte não são mais que retórica. Os metafísicos “existencialistas” mais profundos... não impediram a degradação e o deslocamento da angústia. A angústia bruta, primitiva, se distancia de nós; e a reencontramos, não mais que num momento de fraqueza, e ela não nos leva a nada de ‘autêntico’ ou a uma profundidade abissal”.

A crítica prossegue, sem misericórdia, contra Rimbaud, contra Baudelaire, contra a poesia, contra os neo-românticos... todos culpados de um culto injustificado do fantástico, do misterioso e do mágico. Na verdade não compartilho inteiramente com Lefebvre, acho que ele se esquece de que o mágico, o fantástico e o misterioso estão presentes sim na vida cotidiana. O fantástico em Hoffmann, por exemplo, não desvia nossos olhos do real, mas os abre mais ainda e enxergamos coisas que antes pareciam escondidas. Eu acredito na força do mágico e do fantástico. Mas é preciso concordar que Lefebvre tem um bom argumento: de fato, muitas vezes, esquecemos de colocar esse mágico e esse fantástico em ação; esquecemos de transformar o mundo de acordo com nossos sonhos mais loucos; resignamos-nos em sonhar. Vale, então, acabar com uma extraordinária afirmação do autor:
"Não é na vida cotidiana que o homem deve realizar sua vida de homem? A teoria dos momentos sobre-humanos é inumana. Não é na vida de cada dia que é preciso ter a verdade em uma alma e em um corpo? O homem será cotidiano ou não será”.
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Comentário de jholland, em 24/01/2007, às 10:27 hs


Estou inteiramente de acordo com voce.

De fato, a importância desse filósofo marxista está em resgatar o cotidiano dentro da reflexão filosófica - o que também ocorreu no âmbito da historiografia, como atestam as histórias das mentalidades, do cotidiano etc - algo muito bem aproveitado pelos situacionistas. E esse tipo de reflexão guarda toda sua importância e atualidade (vide a esse respeito, a postagem "O Senso-comum e a Vida Cotidiana" de 18/07/2007, neste Blog, que traz um artigo de José de Souza Martins). Na minha opinião, é claro, os situacionistas foram mais longe, incluindo as experiências surrealistas dentro das preocupações de Lefebvre e agindo de acordo com elas ("devemos viver poeticamente", "a arte deve se fundir ao cotidiano" etc).

Tudo isso, na verdade, tem implicações profundas e penso que não devemos subestimar a importância dessa questão, muito bem frisada pelos próprios situacionistas e pelas vanguardas da primeira metade do século XX. Pois se ao trazermos o mistério, o fantástico, o não-domesticável para o cotidiano e para a reflexão, incorporando-o, rompemos, na verdade, com a própria razão e com as cisões do aparelho psíquico. Ou seja, trata-se de uma crítica à razão levada ao seu grau mais alto - e devemos lembrar aqui as reflexões de Deleuze, para citar um exemplo. Libertar o cotidiano pressupõe não apenas o rompimento das amarras detectadas pela razão egóica (por exemplo, pelo marxismo), mas uma ruptura interna, dentro do sujeito, o que, evidentemente, implica em uma reformulação epistemológica, uma transmutação do próprio ser e do pensar (que não mais é pensar, mas sentir, perceber , intuir e agir, tudo isso fundido). E aqui acho realmente que Lefebvre está "aquém" do desafio que até mesmo aquelas vanguardas já haviam percebido.
Por isso, tenho a impressão que Debord concordaria com voce, naquilo que se refere à dimensão do fantástico e do mistério. E também por isso, vejo nesse resgate das dimensões mais inconscientes, misteriosas e incontroláveis, promovido pelos movimentos de vanguarda, um distanciamento em relação ao marxismo. Talvez seja essa a razão pela qual Debord iria desferir duríssimos ataques contra Lefebvre posteriormente, chamando-o (injustamente, penso) de stalinista etc.

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Comentários u.s.w, 24 de janeiro de 2008, 11h00

Realmente sinto que faltou a Lefebvre, agora tendo lido mais dois capítulos, ousar na sua exposição e na sua proposta. No fundo, escondido no texto, ele deixa escapar momentos de poesia e alumbramento, mas tem sempre o cuidado de voltar para um “marxismo científico” muito correto. Acho que temia exatamente – e nesse sentido acho que sua crítica tem certa fundamentação – a perda de contato com o mundo das ações políticas que o delírio das vanguardas acabou trazendo, o que significa um abandono do real e não sua transformação. Unir o delírio à ação política foi o objetivo dos situacionistas e, pelo pouco que sei, foram bem sucedidos. Entretanto, Lefebvre, numa entrevista que você já enviou pra gente, faz algumas boas críticas a Debord, aproximando-o, no final, a Breton: segundo Lefebvre, Debord tornou-se quase que dogmático. Não conheço muito, ainda, dos situacionistas para avaliar essa crítica, talvez você possa falar mais.
Acho que vou postar a entrevista aqui no Blog.

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Comentário de jholland, de 24/01/2008, às 11:35 hs

Eu tenho uma posição clara nesse debate: creio que o marxismo está "aquém", por se inserir, ainda, dentro do que chamei de uma razão-egóica. Acho que Lefebvre já representa um avanço, um início de uma crítica a esse paradigma. Mas ainda se encontra um tanto indeciso em "dar o salto". As vanguardas do início do século XX, por sua vez, já iniciam esse salto, afastando-se bem mais dessa mesma "razão-egóica" - o que, aliás, já havia sido anunciado pelas vanguardas do final do século XIX (aquelas mesmas criticadas por Lefebvre !) - e por Nietzsche e a psicanálise. Debord retoma a crítica contundente das vanguardas, reavivando-as. Discordo de voce no tocante à crítica das vanguardas (promoveram um "afastamento" da ação "política": para as vanguardas, não há ação "política", pois as esferas "política", "artística" etc. se dissolvem...). Acho que o projeto delas era muito mais revolucionário que o de Lefebvre, por exemplo. A crítica deste àquelas é bem sintomática de sua perspectiva "racional-egóica", não compreendeu que a ação não somente deve ser pensada e executada, mas deve ser intuida e já "elaborada" dentro de pressupostos completamente impensáveis e inconcebíveis se o próprio ator-sujeito (ou seja, Lefebvre) não mudar de paradigma (no caso, o paradigma dele, falando aqui do ponto mais pessoal possível). Acho que Debord avançou muito nesse ponto, mas também ele não atingiu o "ponto de transmutação" necessário - pois senão teria se transformado em um Buda ou algo assim !

Mas devemos reconhecer o seguinte: o "quantum" de energia liberada pelas vanguardas e pelo Situacionismo já foi suficiente para detonar um terremoto sem precedentes no mundo, cujos reflexos abalaram a filosofia e o cotidiano até hoje. Tanto assim que o sistema neo-dadá teve que se transformar profundamente para absorver esse choque promovido por meia dúzia de pessoas ! Isso dá uma dimensão do que pode acontecer quando começamos a liberar as energias represadas no inconsciente e a romper as cisões psíquicas...

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Comentário de u.s.w, 24/01/2008, 14h01

Sabia que você tinha mais pra falar.

Tenho muito que refletir sobre isso.

Tenho algumas idéias/metas para esse ano que significam mudanças mínimas de comportamentos cotidianos, mas que podem fazer certa diferença.

Só tenho um senão: tal salto radical deixa de fora muita gente. Eu tenho sempre em mim essa vontade de aceitação maior - talvez, concordo, por me sentir de fora de um processo de emancipação tão contundente - da vida prosaica. Gosto de pensar que mesmo a dona de casa mais conformada é capaz de pequenas revoluções, pequenas liberdades... Repito: talvez seja uma esperança comigo mesma, algo que me justifique...

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Comentário de jholland, em 25/01/2008, às 11:00 hs

Gostaria de acrescentar somente duas observações:

1) acho sua intuição corretíssima, importante e que deve ser levada a sério. Em primeiro lugar, pelas razões que coloquei acima e que são de ordem pessoal, em relação a você mesma. Coerentemente, quando você começa a se levar a sério, suas intuições emergem, e voce deve também levá-las a sério, como parte do projeto de "transmutação" pessoal do qual também fazem parte qualquer reflexão teórica e prática política etc. Tudo vem junto e voce deve estar atenta a si própria o tempo todo, a fim de que voce não exclua nada, absolutamente nada. Assim, se voce tem "uma vaga impressão" de que algo não é bem assim, ou que "falta algo" ou que "não cai bem" etc etc., você deve levar isso que chamei de intuição muito a sério e deve analisar, sentir e vivenciar esse sentimento com todo cuidado e delicadeza, incorporando-o, sempre que possível, na sua reflexão, no seu viver etc. Portanto, minha percepção é de que voce deve ir em frente.

Por outro lado, concordo também com voce, pois essa transmutação - que ocorre também no nível epistemológico, discursivo, teórico etc etc - deve ser sempre INCLUSIVA, ou seja, deve não apenas incluir todas as manifestações da psiqué (da sua própria psiqué, como abertura e quebra das cisões, superação dos recalques etc), como também ter como princípio a inclusão do Outro (como consequencia daquelas superações internas). Toda ação-reflexão deve ser um exercício de compaixão (não só para consigo mesmo mas para com o outro). E é também nesse sentido que reafirmo o avanço dos movimentos de vanguarda do final do século XIX e início do XX, incluindo aí os Situacionistas. Tudo bem que Debord talvez fosse sectarista...é uma questão ainda em aberto. Mas ele estava consciente desse problema - e talvez não tivesse se auto-transformado o suficiente...

2) a segunda observação diz respeito à própria entrevista do H. Lefbvre, acima. Chamou-me muito a atenção o início da entrevista. Pois, embora eu não conheça o contexto dela, é muito significativo que ele tenha feito questão de puxar o assunto "situacionismo", como se fosse uma ferida ainda aberta dentro dele. Hmmm...a entrevista foi dada muitos anos após esses eventos, já no final da vida desse importante filósofo. É interessante notar que o situacionismo já era questão passada na trajetória de Lefevbre, pois no final dos anos 60 e anos 70 ele se ocupou de sociologia agrária e outras questões. Por que teria levantado esse assunto tantos anos depois ? Acredito que ele não tenha "resolvido" a questão dentro dele por um motivo muito importante e que tem a ver com tudo o que dissemos acima. Por se tratado de uma experiência radical - da qual o próprio H. Lefebvre tem orgulho de ter co-participado, por algum momento - ele reconhece intimamente a validade e a atualidade das questões levantadas, tendo mesmo mexido com o inconsciente dele e de toda a coletividade !

2 comentários:

TV Eye disse...

olá, eu procuro loucamente por esse livro e não encontro. você leu em português? queria saber se existe a tradução.
obrigada,
nicole.

jholland disse...

Até onde sei, não foi editado ou traduzido para o português.
Boa sorte !