sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Rorty: a dignidade em forma de vida

Richard Rorty
Transcrevo abaixo um belo texto de Jurandir Freire Costa escrito por ocasião do falecimento do filósofo Richard Rorty, ocorrido em 08/Junho/2007.

Por: Jurandir Freire Costa

Fonte:Portal Brasileiro da Filosofia (http://www.filosofia.pro.br/)


Jurandir Freire Costa


(Jurandir Freire Costa é Psicanalista. Coordena o Grupo PEPAS, na UERJ.)

Há 20 anos, exatamente, deparei-me, por acaso, com A filosofia e o espelho da natureza de Richard Rorty. O choque da leitura foi fulminante. Fiquei boquiaberto. Poucas vezes um livro me causou tamanha curiosidade, admiração e inquietação. Obviamente, não ignoro que espanto deveu-se, em grande parte, a ignorância. Por ser psiquiatra e psicanalista de formação, jamais tive muita familiaridade com a literatura filosófica.
Mas o fascínio se explicava por algo além do embasbacamento do neófito. Dois outros ingredientes favoreceram o encantamento de que fui tomado ao ler Rorty. Primeiro seu talento magistral para verter em termos claros e simples os mais complexos problemas e conceitos herdados da filosofia analítica de língua inglesa; segundo, o recado cristalino que fluía de sua escrita. Como Michel Foucault ou Hannah Arendt, Rorty não escreveu apenas para filósofos ou especialistas em filosofia. Escreveu para quem quisesse ouvir o que ele tinha de fundamental a dizer, e que poderia resumir-se em duas grandes injunções:

1) “a dor física e a humilhação é o que de pior podemos fazer a nosso próximo”;

2) “estender tanto quanto possível a referência do pronome nós” é o que de melhor podemos fazer uns aos outros.

Hoje, tendo tido conhecimento de sua morte, é difícil dizer o que é mais doloroso perder, se o filósofo Rorty ou a pessoa humana Rorty. De um lado, queria testemunhar que suas elegantes e originais teses sobre o pragmatismo lingüístico, epistemológico, e, principalmente, ético sobre a “verdade”, o “conhecimento” e o “sujeito” me marcaram de forma indelével. Não poderia resumir, em duas páginas, o enorme impacto que elas tiveram na minha compreensão da prática e da teoria psicanalíticas. Do mesmo modo, tudo que pude aprender com ele sobre o respeito à pluralidade de idéias, o culto ao debate democrático e a abertura intelectual para a diferença de opiniões não se mede em palavras.
De outro lado, entretanto, algo em Rorty me impressionou de modo especial. Tive, com ele, apenas três encontros: dois no Rio e um em Belo Horizonte. Em todos, a mesma surpresa e a mesma emoção. Enfim, tinha conhecido alguém que agia como pensava; alguém que procurava, honesta e generosamente, aproximar-se dos ideais de vida nos quais acreditava. Rorty foi um dos pensadores que mais me fez acreditar que pensar não é uma tarefa inútil, ociosa, feita para adornar a fútil vaidade dos “sábios” ou a impiedade dos que pensam com ácido nos dedos ou cheques na cabeça.
Ao vir ao Rio, depois de duas conferências, não quis receber a parca remuneração que eu e meu colega Benilton Bezerra Jr. tínhamos a lhe oferecer, dizendo: “Não, o que já me pagaram em outro lugar, é suficiente”. Depois, ao almoçarmos em um boteco da Urca e jantarmos em um restaurante à beira da Baía de Guanabara, não quis que pagássemos sua conta e a de sua mulher: “Não, ganhei dinheiro no Brasil e vou gastá-lo no Brasil”. Finalmente, depois de duas caipirinhas, ouvindo-nos, a mim e aos outros colegas, chamá-lo o tempo todo de “professor Rorty”, disse: “Por favor, me chamem de Dick”. Dias depois de sua partida, chegou-me pelo correio um livro enviado por ele. O livro tratava de um assunto que, em conversa, havia dito que me interessava. Eu já tinha esquecido da conversa; “Dick”, não!
Para Rorty, pensar era um modo particular de viver, e viver era estar atento ao Outro. Era um exercício constante de colocar-se em seu lugar e imaginar o que poderia torná-lo mais livre ou mais submisso, mais feliz ou mais miserável, para, então, decidir o que era humanamente útil, e, conseqüentemente, moralmente verdadeiro. Embora agnóstico, é impossível não escutar em suas palavras e atitudes ecos da fé cristã de Agostinho, que traduzo, com “licença rortyana”, como: “Quem sou eu” e, “Quem eu amo quando amo o Outro”. Embora irônico, e, às vezes, brincalhão e provocador, é impossível não ouvir no que ele disse os rastros da “infinita responsabilidade pelo Outro” de Lévinas. Embora um asceta do pensamento, cuja sobriedade resistia à sedução de quaisquer piruetas conceituais, é impossível não ver o espectro do insaciável desejo de justiça de Derrida, sublinhando, suavemente, tudo o que escreveu. Em suma, o pensamento rortyano é um condensado, um magnífico breviário do que melhor se produziu em matéria de ética no domínio da ética ocidental. E, apesar de ser ele avesso à mitificação ou á mistificação dos grandes nomes da Antigüidade filosófica, não há como deixar de comparar sua obra com o que disse o estóico Sêneca: “Se a sabedoria só me for concedida na condição de a guardar para mim, sem a compartilhar, então, rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não partilhada dê satisfação”.
Rorty foi um exemplo de dignidade em forma de vida. Infelizmente, estou certo de que nenhuma gratidão sentida pode estar à altura da dádiva recebida. Resta, então, dizer novamente com Sêneca: “nada nos pertence daquilo que o acaso nos traz”. Mas acrescentar com Freud que fazer o luto dos seres queridos significa guardá-los no coração e na memória para fazê-los viver além da morte. Adeus Rorty. Ou melhor, adeus “Dick”.

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