terça-feira, 5 de junho de 2007

Primeiros escritos

Texto para crivo dos amigos, conhecidos ou não.
Arriscando, após as primeiras conversas e as primeiras leituras, umas poucas reflexões cheguei às seguintes questões.
Ora, está mais que diagnosticado que alienação e fetichismo não estão mais circunscritos apenas no mundo do trabalho, principalmente naquele trabalho industrial que Marx tinha diante de si. Ao invés de presenciarmos uma “proletarização” e pauperização que agudizaria a “luta de classes”, o que vimos foi um “aburguesamento” daquele proletariado no qual estavam as expectativas revolucionárias, aburguesamento que o cooptou. Isso não significa que não exista mais um proletariado industrial e que não exista potencial revolucionário na classe operária, mas que é preciso que a esquerda “democratize” esse caráter “revolucionário”.
Aquela alienação “redobrada” que vimos Debord expor aparece em todas as instituições humanas, lembrando que é preciso entender por instituição tudo aquilo que se rotiniza. Não se tratam mais de partidos, de empresas, de aparelhos estatais, mas de relações pessoais. Família, casamento, amor, paixão, sexo, tudo está “institucionalizado”, “estilizado” de tal forma que nos somos vítimas de expectativas e tabus cujo sentido está perdido.
Ir “contra” essas instituições parece ser o caminho mais natural, porém o enfrentamento direto há muito que ganhou ares de uma luta quixotesca. Melhor parece seguir à margem delas, mas isso na maioria das vezes significa seguir “mudo” e “invisível” no mundo. Ora, eu me pergunto se seguir dessa maneira não é abrir mão de uma ação política que tenha mais amplo espectro. Melhor explicar: seguindo sempre à margem os questionamentos serão seguidos e refletidos por aqueles que para lá estão olhando, ou porque para lá se sentem compelidos, ou porque lá já estão. Mas e aqueles que se encontram tão mergulhados no seu cotidiano que não podem “ver” ou “ouvir” esse movimento? Como chegar até eles?
Outra opção parece ser buscar mudanças “apesar” das instituições. Não se trata mais de tentar “demoli-las” mas de torná-las obsoletas ou de perverter-lhes o sentido. Seria algo como ir com a corrente, mas para se chegar no porto que se quer. Isso pode significar que apesar da cotidianidade medíocre existe a possibilidade de se gerar formas de mobilizações e manifestações coletivas, mesmo que discretas, que construam não só uma “outra via”, mas que façam os homens lembrarem que são livres. Nessa ação todos podem estar presentes, não há vanguardas de intelectuais, ou de engajados, ou de politizados, mas donas-de-casa, analfabetos, operários e secretárias, gerentes de banco, contadores e catadores de papel.

7 comentários:

jholland disse...

O ponto de partida desses autores dialoga com aquele tema que discutimos com o Guilherme: se o marxismo “tradicional” apostava nas contradições objetivas engendradas dentro do econômico (“macro”: esferas da produção, da circulação etc), o capitalismo tardio rompe com essa lógica, apoiando-se cada vez mais na ideologia. Isso impõe a qualquer reflexão que se pretenda libertária pensar nos modos pelos quais essa ideologia opera, em sua autonomia e em seus possíveis limites. Daí a volta “ao sujeito” que vc. falou em nossa última reunião. Há consenso de que o capitalismo tem necessidade de produzir desigualdade, o que significa (diferenciação + hierarquia). O capitalismo se alimenta da desigualdade, reproduzindo-a, num movimento cíclico (sistema gerador de escassez etc). Porém, essa desigualdade não se resume à produção de diferenças, mas de um tipo particular de diferença, aquela que implica hierarquia e eliminação do diálogo. Até aqui temos visto que nossos autores chamam a atenção para esse fato: não podemos mais contar apenas com as contradições “sistêmicas”, pois o movimento “macro” apóia-se cada vez mais em processos psíquicos (e lingüísticos), pelos quais a desigualdade se desdobra “ad infinitum”.
Debord tem uma afirmação forte, que é mais ou menos assim: o espetáculo é o fracasso de todo o projeto filosófico do Ocidente. Trata-se de uma afirmação séria e acho que podemos tratá-la em nosso próximo encontro. Não resisto à tentação de adiantar minha reflexão sobre isso: pois, se para ele, esse fracasso diz respeito à postura passiva que a filosofia Ocidental assumiu desde seus primórdios (e que engendrou, ela própria, o estado de coisas atual), cabe perguntar aqui que tipo de passividade é essa. Creio que devemos levar essa idéia o mais longe possível: talvez se trate de uma passividade frente aos próprios pensamentos (ou idéias, ou impulsos...ou ao ID...) que, na sociedade do espetáculo, ditam o rumo do cotidiano. E aqui reencontramos a noção de tempo "pseudo-cíclico" já tratada anteriormente, pois se somos passivos diante de nossos próprios pensamentos e da instância ionconsciente, estamos como que paralisados: despimo-nos do presente. Nesses termos, nenhuma ação´torna-se possível e um dia é sempre igual ao outro. É o "fim da história".

Iansã disse...

Não que eu discorde desse "retorno ao sujeito", mas continuo achando limitante uma abordagem ancorada unicamente no nível da subjetividade. Existe sim, ainda muito forte, um processo de "Economia política", ou seja, de polítca subjulgada a critérios econômicos, em ação. Nesse sentido, ainda existem forças coercitivas encarnadas em Estados que servem como aparato de interesses puramente econômicos.
Sem dúvida, tal ação "coercitiva" só é possível porque o "sistema" se reproduz a partir de sua base, ou seja, os sujeitos. Faz sentido, claro, pensar nesse nível, mas me parece incompleto, e mesmo paralisante, não terem vista essas forças "macros".
Não me sinto confortável com abordagens "psicologizantes", embora me interesse por elas e fique grata de ter vocês, meus colegas, para pensarem nelas. Mas que sejam isoladamente a melhor resposta para as questões do planeta e para busca de ações transformadoras.
O que quero dizer é, acreditar que o sistema entrará em colapso por si só porque gera contradições é ingenuidade, sem dúvida. O que vemos é sua imensa capacidade de viver com elas e, até, viver "graças" à ela. O que me parece útil numa análise sistemica "a la marxismo tradicional" é o diagnóstico sempre atualizado das formas de coerção usadas pelo sistema.
Quanto a ]o "fracasso da filosofia ocidental", mas uma vez a sintonia é incrível, andei pesando muito e para comentar ficaria longo, prometo outro post.
Bem, de qualquer forma, achei que nesse texto tinha conseguido falar um pouco a língua de vocês, focando a ação nos sujeitos, mas parece que não convenci...

jholland disse...

Acho que encontramos (mais) um ponto de convergência. Concordo com vc em praticamente tudo, acho até que temos aqui apenas uma diferença de nuance. Sem dúvida, grandes esquemas de poder atuam também como instâncias produtoras de ideologia ("esfera de produção ideológica", que tal essa ?). Penso, por exemplo, nos grandes sistemas de coerção e, sobretudo, nos meios de comunicação de massa (sempre estes !). No entanto, vc deve ter notado que, mesmo aqui, minha ênfase recai sobre uma "atividade de produção de poder", que também é simbólica. Acho que, no fundo, estamos falando a mesma coisa, a convergência é praticamente inevitável. Pois (me corrija se estiver enganado) o próprio Marx pensou a "mercadoria" como "relação social fetichizada": ou seja, Marx não era, de modo algum, um "economicista": pelo menos essa é a leitura que me parece mais fecunda. Entretanto, essas próprias grandes instâncias de produção simbólica, de caráter hierárquico (Estado, corporações etc) também se apóiam em processos que têm nos sujeitos sua matriz elementar. Enfim, parece que estmos sempre voltando àquela velha questão "bourdiana" do "estruturante que é estruturado que é estruturante".
Entretanto, o que nos interessa aqui é ampliarmos cada vez mais os horizontes, ampliarmos nossa análise, seja direcionando-a para o "macro", seja para o "micro", pois acho que ela ruma para um conhecimento cada vez mais completo, de caráter não excludente.
Mas o que ostaria mesmo é de ver suas idéias a respeito do fracasso do projeto filosófico...

Iansã disse...

Realmente estamos de acordo. Ontem a noite, li o seguinte paragrafo de Castoriadis:
"É fora de dúvida que um sentido econômico latente possa, freqüentemente, ser desvendado em atos que, aparentemente não o possuem. Mas isso não significa que ele seja o único, nem o primeiro, nem sobretudo que seu conteúdo seja sempre a maximização da 'satisfação econômica' no sentido capitalista ocidental. Que a 'pulsão econômica' - se quisermos, o 'princípio do prazer' voltado para o consumo ou a apropriação tome esta ou aquela direção, se fixe sobre tal ou qual objetivo e se instrumentalize em tal ou qual conduta, isso vai depender do conjunto de fatores em jogo. Isso dependerá, particularmente, de sua relação com a pulsão sexual (a maneira pela qual esta se 'especifica' na sociedade considerada) e com o mundo de significações e de valores criado pela cultura onde vive o indivíduo. Seria finalmente menos falso dizer que o homo oeconomicus é um produto da cultura capitalista, do que dizer que a cultura capitalista é uma criação do homo oeconomicus. Mas nenhuma das duas coisas deve ser dita. Existem, em cada ocasião, homologia e correspondência profunda entre a estrutura da personalidade e o conteúdo da cultura e predeterminar uma pela outra não tem sentido".
À margem escrevi o seguinte cometário:
"De acordo. Nem todo conteúdo de uma ação visa a 'maximização econômica', aliás são bem poucos. Mas não podemos esquecer que o sistema no qual 'domina o modo de produção capitalista', ganhou autonômia tal, tal 'fantasmagoria', que acaba por inverter toda ação simbólica em econômica. Ou seja, mesmo a pulsão mais íntima dos indivíduos acaba lhe servindo de alimento".
Você falou bem, Marx não era economicista, mas sim denunciava o economicismo que fetichiza as relações. Mas, começo a perceber que, de fato, Marx não soube olhar para esse outro "universo", que são os indivíduos, limitando-se a dizer que são "sociais". Isso não só nos incapacita de pensarmos ações políticas transformadoras dentro de sua teoria, como nos atermos apenas a ela como diagnóstico do mundo contemporâneo limita nossa análise.
Nesse ponto acho que estou finalmente convencida, embora ainda tema outras indas e vindas nessa maré de incertezas. Se Marx no ajuda a ver a movimentação de Nações, Estados e Corporações, não nos ajuda a ir, como ele mesmo propunha, à raíz da qual essas "mega-construções" se alimentam.
As reflexões sobre a filosofia virão em breve. Na verdade resultam dessa minha "pulsão" de jogar informações diversar dentro de um grande balaio e de lá tirar um "sincretismo" maluco.

jholland disse...

Debord tem uma formulação interessante a esse respeito, na Sociedade do Espetáculo (§§ 51 e 52):

“51
A vitória da economia autônoma deve ser, ao mesmo tempo, a sua perda. As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade econômica que foi a base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econômico infinito, ela não pode senão substituir a satisfação das primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudonecessidades que se reduzem à única pseudonecessidade da manutenção do seu reino. Mas a economia autônoma separa-se para sempre da necessidade profunda, na própria medida em que sai do inconsciente social que dela dependia sem o saber. "Tudo o que é consciente se usa. O que é inconsciente permanece inalterável. Mas uma vez liberto, não cai por sua vez em ruínas?" (Freud).
52
No momento em que a sociedade descobre que ela depende da economia, a economia, de fato, depende dela. Esta potência subterrânea, que cresceu até aparecer soberanamente, também perdeu o seu poderio. Lá onde estava o ça (*) econômico deve vir o je (*). O sujeito não pode emergir senão da sociedade, isto é, da luta que está nela própria. A sua existência possível está suspensa nos resultados da luta das classes, que se revela como o produto e o produtor da fundação econômica da história.”

A indagação fundamental trazida pelos nossos autores é: como restabelecer o diálogo? O que se nota é que as experiências de pura confrontação não surtem, de modo algum, qualquer resultado. Ao contrário, como você mesma observou, a ideologia se nutre delas. Trata-se de uma postura infantil, decorrente do próprio caráter integrado daqueles que se pretendem contestadores dessa mesma ideologia. Há que se dar uma virada na abordagem e penso que o diálogo somente poderá ser restabelecido a partir da compaixão e do amor. Sim, isto poderá trazer um sorriso malicioso junto com algum sentimento de desprezo ou indignação, até; mas tais reações apenas evidenciam o quanto estamos integrados. Pois qualquer atitude verdadeiramente revolucionária será sempre recebida com desprezo ou indignação. Porém, o diálogo se reestabelece a partir de uma postura compreensiva, não fundada na oposição (aqui entendida como negação do “outro”). Naturalmente, é inútl qualquer tentativa de empreender tal ação a partir de um impulso racional, teórico, mas torna-se inteiramente eficaz uma ação dotada de conteúdo subjetivo profundo, de natureza emocional, de aproximação espontânea do Outro. E, naturalmente, para isso, há que se reconstruir a própria subjetividade, a partir de um movimento de pacificação psíquica e de constante auto-modificação operada dentro e a partir dessa mesma prática dialógica (movimento dialético).

Iansã disse...

Acredito nessa "aproximação espontânea" com o outro, acho que quando pensei o texto postado aqui tinha justamente isso em mente.
Também acredito, cada vez mais, nessa "abordagem amorosa" do mundo (que parece estar por trás do seu cometário), e uma grande influência foi meu contato com o romantismo, que apesar de seus possíveis defeitos, tinha uma proposta interessante de relação com o mundo e com os outros.
Acho mesmo que o movimento é ampliar isso que chamamos de "amor" (que não é apenas e tão somente aquilo que cotidianamente assim nomeamos, mas algo mais profundo que diz respeito a uma identidade com outros homens, com a natureza e com o mundo), ele deve sair do nosso círculo de amizade e alastrar-se contagiando outros.
Para esse contágio me parece extremamente necessário o que você chama no comentário de "compaixão". Talvez aquilo que chamo de "democratização do potencial revolucionário" que a esquerda deve tentar realizar seja justamente essa compaixão para com o mundo, ou seja, uma aceitção do outro em sua diferença, uma tentativa de entendê-lo nessa diferença, e talvez assim tanto ele como nós possamos sair desse diálogo um pouco mais livres.

jholland disse...

Para "alargarmos" um pouco mais essa discussão, gostaria apenas de "pontuá-la" melhor: 1) (aparentemente) advogando contra mim mesmo, a discussão acerca dos aspectos "macro-institucionais" não deve ser enterrada - como vc mesma disse. Ao contrário. Não obstante tudo aquilo que eu disse, evidentemente permanece em aberto uma solução político-coletiva (institucional) para o impasse em que o mundo se encontra. Referi-mo, é claro, à aparente falência da ação política como via alternativa e ao possível enfraquecimento do Estado-Nação em favor de uma configuração "imperial" e globalizante. Apenas considero que a crítica deva ser realizada, senão a partir de uma reflexão sobre a ideologia (que é o que estamos fazendo), e que implica pensar os aspectos que condicionam o sujeito, ao menos em consonância com essa reflexão: ou seja, ambas as propostas - "macro-institucionai" (e que dizem respeito à ação política) e de superação ideológica - devem ser pensadas, concebidas, criadas dentro de um único movimento crítico. Estou apenas "pontuando" a discussão...
A outra observação diz respeito àquilo que eu entendo como "diálogo" e que envolve, necessariamente compaixão,(naõ sei se o termo é correto, mas parece implicar uma espécie de "gozo pelo Outro"). Não se trata de teorização ou masturbação mental, nem mesmo uma concepção metafísica. Para exemplificar concretamente esse tipo de inter-relação, estou te mandando um arquivo em PDF (por EMail) que trata de uma situação concreta, a nível muito profundo, e que inclui tudo isso: diálogo, troca simbólica profundíssima e risco de vida - ou seja, compaixão no mais alto grau. Pensei até em colocar esse artigo no Blog, só não sei se é pertinente...