sábado, 17 de outubro de 2009

Dieta saudável pode ajudar a reduzir o consumo de energia e de alimentos nos EUA






Estudo constata que uma dieta saudável e um regresso à agricultura tradicional podem ajudar a reduzir o consumo de energia e de alimentos nos EUA.

A notícia é de Henrique Cortez e publicada por EcoDebate, 30-09-2009.

Estima-se que 19 por cento do total da energia utilizada nos EUA é consumida na produção e distribuição de alimentos. A energia norte-americana é, majoritariamente, de origem fóssil, cada vez mais cara e escassa, além de ser a principal fonte de emissão de carbono nos Estados Unidos.

No estudo “Reducing energy inputs in the US food system“, publicado na revista Human Ecology, David Pimentel e seus colegas da Universidade de Cornell, em Nova York, apresentam uma série de estratégias que poderiam cortar o consumo de energia fóssil utilização na produção e distribuição de alimentos em 50 por cento .

O primeiro argumento é que as pessoas comam menos, especialmente considerando que o americano médio consome um número estimado de 3747 calorias por dia, contra um consumo recomendado de 1200-1500 calorias. A alimentação do americano médio, é, tradicionalmente, baseada em dietas com quantidades elevadas de produtos de origem animal e de alimentos processados, que, pela sua natureza, utilizam mais energia do que a necessária para a produção de alimentos, como a batata, arroz, frutas e legumes.

Só pela redução de consumo de produtos de origem animal já teria um enorme impacto sobre o consumo de combustível, bem resultaria na melhora da sua saúde.

Outras economias são possíveis na produção de alimentos. Os autores sugerem que se produzam no sentido mais tradicional, a agricultura biológica ou agroecológica, métodos mais convencionais, que demandam menos energia. A seleção de culturas mais eficientes também reduziria a utilização de adubos e pesticidas, aumentando da utilização de estrume e observando as rotações de cultura, para a melhoria da eficiência energética.




Por último, as alterações dos métodos de processamento de alimentos, embalagem e distribuição também poderão ajudar a reduzir o consumo de combustível. Um produto processado, do campo ao consumo, percorre uma média de 2400 km antes de ser consumido.

Este estudo defende veementemente que o consumidor está na posição central para uma redução da utilização de energia. Como indivíduos, ao abraçar um estilo de vida “ecológico” , com a tomada de consciência das suas escolhas alimentares, podemos influenciar os recursos energéticos. Para isto basta comprar produtos locais e evitar alimentos processados, embalados e de qualidade nutricional inferior. Isto levaria a um ambiente mais limpo e a uma saúde melhor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sobre a transposição do Rio São Francisco



Manifestantes criticam as obras de revitalização do São Francisco e são barrados






Panfletos que foram apreendidos durante a manifestação


Cerca de 50 manifestantes, na cidade de Buritizeiros (MG), tiveram panfletos e faixas apreendidos, no momento em que se dirigiam para o palanque onde o presidente Lula e a comitiva que o acompanha discursavam a respeito das obras de esgotamento sanitário que tem sido feito na região. As obras fazem parte do programa de revitalização do São Francisco, projeto que tem sido executado pelo governo federal e que é alvo de várias críticas do Comitê da Bacia do São Francisco e da sociedade civil organizada.

A reportagem é de Ingrid Campos, da Articulação Popular do São Francisco, e publicada por EcoDebate, 15-10-2009

O Governo, com um forte aparato policial, tentou a todo custo impedir qualquer manifestação contrária ao seu discurso eleitoral. O grupo que dirigiu em marcha para o local, foi barrado por duas vezes pela polícia militar, que a todo o tempo afirmava que estava apenas organizando as ruas para receber a comitiva do governo.

No local, a polícia tentou impedir o acesso dos manifestantes, que insistentemente reivindicaram o direito de entrar. Todos foram revistados e tiveram os seus panfletos e faixas apreendidos. Afirmando que tal ato era para garantir a segurança pública, ficaram sem resposta para o alerta dos manifestantes sobre o bóton da presidência que estava sendo distribuído para todos na entrada. Preso com alfinete, a ponta do bóton oferecia perigo maior que o panfleto dos manifestantes. “Um grande esforço foi feito com o objetivo de banir, antidemocraticamente, toda reação contrária à pseudo-revitalização”, protesta a agente da CPT/MG e integrante da Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, Letícia Rocha.

Os manifestantes que conseguiram entrar, todo o tempo proclamavam: Lula, que traição povo não quer transposição! / O projeto da transposição reforça a indústria da seca. Conviver com o sem-árido é a solução!/ Lula, você mentiu a reforma agrária não saiu!

Irritado, o presidente retomou seu velho discurso de transposição para os pobres do nordeste e pediu a imprensa para anotar e dar ênfase aos números das obras do PAC, que começou a ler. Cada dado lido, no entanto, foi respondido pelos manifestantes com gritos de: Pinóquio!

Na comitiva eleitoreira estavam: Pe. João, Pe. Salvador, prefeito de Buritizeiro (MG), Ciro Gomes, Jaques Wagner, o governador da Bahia, Luiz Tadeu Leite, o prefeito de Montes Claros (MG), Geddel Vieira Lima, Ministro da Integração e a candidata do presidente para o Palácio do Planalto, Dilma Rousseff. A Ministra da Casa Civil não discursou, permaneceu calada durante todo o tempo. Apenas Geddel, Lula e o Pe. Salvador discursaram e tentaram conseguir, em vão, o grito de apoio à candidatura de Dilma das pessoas que assistiam. A tentativa não teve respaldo popular.

Esgotamento Sanitário não barra poluição

Os manifestantes afirmam que o problema do São Francisco não é só o esgotamento e que esse está sendo feito com muitas irregularidades. Em Buritizeiros, há apenas o início do encanamento em algumas ruas. Da propangada estação de tratamento, existe apenas a proposta de um local.

Em Pirapora, a situação é mais vergonhosa, a obra já concluída com recurso do PAC, encontra-se na Fazenda da Prata, às margens do rio. Do tratamento, o que está funcionando é apenas a separação de resíduos sólidos. A água é acumulada em uma grande bacia (cheia de cianobactérias) com uma canalização que a joga, esverdeada, direto no rio. “Talvez, seja essa uma das razões pela qual o presidente desistiu de visitar o município de Pirapora. Seus emissários certamente verificaram o mau uso do recurso público de R$ 4,5 milhões”, analisa Letícia.

Nas proximidades da Estação, foi possível verificar também a drenagem de uma lagoa marginal. Os moradores da cidade, críticos à obra, questionam se no EIA/RIMA da obra da estação consta a existência de tal lagoa, que foi drenada durante o processo de construção da estação.

“É por isso que cada vez mais o povo vai reconhecendo que a verdadeira revitalização só será possível com garantia dos territórios das populações tradicionais, que poderão conquistar um São Francisco Vivo: Terra, Água, Rio e Povo!”, defende Letícia Rocha.

Obra de transposição divide especialistas


O projeto de transposição do São Francisco dividiu não apenas os políticos de Estados que perderão ou ganharão água, mas também especialistas. Engenheiros, geólogos e ambientalistas estão longe de um consenso sobre o impacto da obra.

A reportagem é de Daniel Bramatti e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-10-2009.

Para o geólogo Pedro Ângelo Almeida Abreu, doutor em Ciências Naturais pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri , o projeto representa a "redenção" do semiárido nordestino.

Já o engenheiro João Abner Guimarães, professor do Laboratório de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vê a iniciativa como "uma fraude que não tem nada a ver com a seca".

A discordância não se limita aos aspectos técnicos, como a necessidade de água nas regiões que serão atingidas e os eventuais prejuízos ao rio e a seu entorno. Até as causas e efeitos políticos da obra são encaradas de forma divergente.

Para Guimarães, a obra é resultado de lobbies de setores beneficiados pela chamada "indústria da seca". Já Abreu afirma que vêm da mesma "indústria" os ataques ao projeto, pois ele teria potencial para acabar com a "hegemonia política de coronéis e oligarquias que sempre abocanharam os recursos para o combate à seca".

"A perenização de alguns rios e a manutenção de açudes cheios vai melhorar o abastecimento às pessoas e, ao mesmo tempo, viabilizar projetos de irrigação, fruticultura, criação de peixes", previu o reitor da UFVJM.

"A água vai escoar, na parte inicial, por áreas despovoadas, e depois irá para grandes barragens, onde não falta água. Nenhum carro-pipa deixará de ser contratado", disse o professor da UFRN.

INTERESSES

Debatida desde a época do Império, a transposição do São Francisco foi apresentada como prioridade já no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O projeto em andamento prevê a abertura de 720 quilômetros de canais para levar a água do maior rio do Nordeste para áreas de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Estados que perderão água sempre protestaram contra a obra, mas a resistência diminuiu com a eleição de correligionários de Lula na Bahia e em Sergipe.

"É um grande lobby. Um vírus que se instalou no governo Itamar Franco, se replicou no governo Fernando Henrique Cardoso e ficou mais forte no governo Lula. São os interesses econômicos das empreiteiras que mandam neste País", afirmou João Abner Guimarães.

Para Almeida Abreu, as críticas à obra vêm de pessoas que a desconhecem ou que fazem "propaganda ostensiva" por temer que o vale do São Francisco - polo de produção de frutas e vinhos - perca investimentos para regiões mais ao norte.

"Fui testemunha de discussões com argumentos que beiram a ignorância. Vi gente dizendo que grande parte da água seria perdida com a evaporação. Los Angeles é abastecida por água que atravessa todo o deserto de Mojave, e as taxas de evaporação são insignificantes", afirmou o reitor.

Abner Guimarães afirma que o alto custo da água nas regiões atendidas vai inviabilizar a irrigação e o estabelecimento de novos polos de fruticultura, a não ser que os consumidores das cidades paguem a conta.

"Haverá um subsídio cruzado, semelhante ao que existe no setor de energia. As cidades do Nordeste setentrional vão acabar subsidiando a irrigação, mesmo as que não precisam da água do São Francisco."

O professor ataca ainda o discurso oficial de que a transposição beneficiará cerca de 12 milhões de habitantes dos Estados atingidos. "É mentira. Não há infraestrutura para levar água para essas pessoas."


Execução de transposição do São Francisco está em 15,3%


A execução média das obras de transposição de parte das águas do rio São Francisco está em 15,3%, segundo balanço apresentado ontem pelo Ministério da Integração Nacional ao presidente Lula. Isso indica que, para cumprir as metas estipuladas pelo governo para dezembro deste ano, a execução nesses 75 dias terá de superar o total realizado desde o início das obras, em agosto de 2007.

A reportagem é de Eduardo Scolese e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-10-2009.

No balanço de fevereiro do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o governo estimava para abril a execução de ao menos 18% das obras do eixo norte (rumo ao Ceará) e de 20% do eixo leste (em direção ao centro de Pernambuco).

Não atingidas, essas metas foram modificadas há dois meses, quando Lula e a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), diante de um relatório que apontava o atraso nos dois eixos da obra, exigiram a ampliação do número de máquinas e de operários, além da adoção de três turnos de trabalho - o que, diz o governo, deu um carimbo "adequado" ao ritmo das obras.

Agora, a meta oficial aponta, para dezembro, a execução de pelo menos 32% das obras do eixo norte e de 40% no leste.

Além das empresas que venceram as licitações, o Exército é o responsável por uma parte da obra. Os militares, segundo o balanço do ministério mostrado ontem a Lula, já concluíram 51% dos trechos sob sua responsabilidade: canais de aproximação (entre o rio e as estações de bombeamento) e duas barragens, em ambos os eixos.

A média de execução dos 14 lotes, ou seja, sem a ação dos militares, é de 12,7% -de 21,6% no leste e de 7,8% no norte.

O secretário-executivo da pasta, João Reis Santana, disse que as "obras estão dentro do cronograma previsto". Em relação a mudanças nas estimativas do PAC, a informação é que houve uma "readequação dos cronogramas físico e financeiro", mas que a meta de finalização dos eixos foi mantida.

O término das obras do eixo norte está previsto para 2012, por isso o governo dá atenção especial ao trecho leste, com chances de ser inaugurado no ano eleitoral de 2010.

Ontem, Lula iniciou uma viagem de três dias aos canteiros de obras do projeto de revitalização e transposição, tendo ao lado a ministra Dilma, pré-candidata petista ao Planalto.

Hoje, de acordo com documento da Integração Nacional, dos 14 lotes da transposição, 9 estão em andamento. A paralisação física nos cinco restantes ocorre por diferentes fatores, como editais de licitação não publicados e embargos jurídicos.

O projeto (executivo e ambiental) e a obra de transposição, orçados em R$ 5,5 bilhões, já consumiram R$ 847,5 milhões. Há ainda R$ 1,5 bilhão para a revitalização do rio. Segundo o governo, cerca de 12 milhões de nordestinos serão beneficiados com o projeto, uma das vitrines do PAC.

Reportagem de ontem da Folha mostrou que, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), os Estados receptadores da transposição (Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte) ainda não têm pronta uma estrutura de gestão para receber essas águas.

Entre outros pontos, a agência reguladora exige que esses Estados tenham um órgão estadual equipado que cuide da qualidade da água e organize um sistema eficaz de cobrança aos consumidores - como habitantes da zona urbana e fazendeiros interessados na irrigação de suas propriedades.



Fontes: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=26609

e

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=26614

Socialismo em crise no novo milênio


Artigo de Anthony Giddens


Segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens, "o declínio dos progressistas representa uma tendência ampla e prolongada". "Há muito a ser pensado, discutido e repensado, observando esse fenômeno", afirma o sociólogo, que foi diretor da London School of Economics e assessor do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 29-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A derrota do partido social-democrata na Alemanha foi pesada, até pior do que o previsto, confirmando uma fase de dificuldade para todos os partidos de centro-esquerda na Europa. Segundo previsões e pesquisas, o Labour também perderá o poder nas eleições previstas para a próxima primavera [europeia] na Grã-Bretanha: o declínio dos progressistas representa, portanto, uma tendência ampla e prolongada. Há muito a ser pensado, discutido e repensado, observando esse fenômeno.

Uma primeira consideração a ser feita é que, contrariamente ao que muitos esperavam, a crise do sistema financeiro, o colapso dos bancos e das bolsas, a recessão global que atravessou e em parte continua atravessando o mundo não produziram maiores consensos para os partidos de centro-esquerda europeus, ou seja, para aqueles movimentos que podiam mais facilmente distanciar-se de um capitalismo que a todos pareceu, de repente, como muito ávido, não muito regulado, não suficientemente útil ao desenvolvimento da sociedade.

Esse consenso que faltou à centro-esquerda, frente à crise do capitalismo, tem, a meu ver, duas explicações. Uma é que essa crise aumentou as divisões dentro da esquerda, reforçando o radicalismo daqueles que recusavam a reviravolta reformadora iniciada por Tony Blair e Gerard Schroeder no Reino Unido e na Alemanha nos anos 90. Em muitos países, essa divisão entre esquerda reformadora e esquerda radical se acentuou por causa da crise econômica e contribuiu para uma série de derrotas eleitorais.

A segunda razão é que os partidos de centro-direita, principalmente em alguns países, souberam dar uma resposta válida para a crise: Merkel na Alemanha e Sarkozy na França, por exemplo, estiveram entre os mais ativos a pedir uma nova reflexão sobre os mecanismos do mercado e uma contenção dos excessos dos banqueiros e dos bancos. Os progressistas diziam a mesma coisa, mas não eram os únicos a dizer.

A segunda consideração é que seria errado, ao julgar o equilíbrio político do planeta, concentrar-se exclusivamente no que está ocorrendo nos 27 países da União Europeia. Em nível global, com efeito, não se pode falar hoje de um retraimento das forças progressistas, mas, pelo contrário, é preciso reconhecer seu avanço. Isso é evidente a todos no mais poderoso e importante país do Ocidente, os Estados Unidos, onde a vitória de Barack Obama colocou em ação uma completa inversão das políticas seguidas pelo seu predecessor republicano. Na América e em outros lugares, alguns comentaristas estão desiludidos com Obama, mas a meu ver pareceria ridículo esperar que, em poucos meses, o novo presidente pudesse realizar resultados concretos em matérias delicadas e complexas: o que conta é que Obama está redesenhando a agenda global, não só dos EUA, mas também do mundo, das armas nucleares ao clima, das finanças ao bem-estar, até o diálogo com blocos aliados e adversários.

Partidos progressistas alcançaram ou conservaram o poder também na Índia e no Brasil, ou seja, em duas das três maiores nações emergentes, além da Austrália e do Japão, esta última uma conquista de significado histórico. E resultados análogos foram verificados em outros países da América Latina. Portanto, só a Europa, até agora, é o terreno onde a esquerda se encontra em dificuldades. Alguns comentaristas se perguntam como o efeito Obama ainda não se refletiu na Europa, assim como ocorreu depois da vitória de Bill Clinton. Mas a vitória de Clinton não causou imediatamente o seu efeito na Europa: o presidente democrata foi eleito à Casa Branca em 1992, Tony Blair assumiu o poder em Londres só em 1997. Por isso, é muito cedo para dizer que o efeito de Obama entre nós ainda não se fez sentir. Esperemos: é pos sível que iremos senti-lo em alguns anos.

Uma terceira consideração ajuda a compreender o que está ocorrendo no velho continente. A Europa se encontra novamente em confronto com novos problemas que a deixam em ansiedade: a imigração, o crime, a busca por uma identidade nacional diante da globalização. Para enfrentá-los, a centro-esquerda está procurando elaborar uma nova política liberal-reformadora: mas ainda não a definiu totalmente. Os progressistas entendem que hoje é necessário repensar a relação entre Estado e cidadão, entre Estado e mercado: mas ainda não decidiram completamente como. A crise financeira não é uma crise como as outras, assim como a ameaça posta pelas mudanças climáticas não é uma ameaça normal: tudo isso requer uma análise teórica aprofundada e o esforço de entender que, para certos problemas, não existem necessariamente soluções de direita ou de esquerda, mas sim a necessidade de encontrar alternativas verdad eiramente novas.

Em conclusão, a centro-esquerda tem necessidade hoje de dois elementos: a elaboração de um novo pensamento político para enfrentar os problemas postos por um mundo radicalmente mudado e a capacidade de unir todas as suas forças, pondo fim às divisões entre moderados e radicais. Dividida, enfraquece-se e perde, como ficou demonstrado, por exemplo, na Itália. Mas unir as forças de esquerda não é uma operação que pode ser feita só em nome do pragmatismo, formando uma coalizão heterogênea, capaz talvez de ganhar a maioria das urnas, mas incapaz depois de governar e de fazer as reformas necessárias: é preciso, pelo contrário, conseguir eliminar a suspeita de que a esquerda tradicional tem com relação à esquerda moderada e, ao mesmo tempo, conquistar os eleitores centristas, sem os quais seria difícil vencer nas urnas.

Se não conseguir fazer isso, a esquerda está em perigo. Mas as divisões, a meu ver, não são irrep aráveis. Melhor, a situação atual oferece um desafio para se criar um novo pensamento político. Não acho que um resultado semelhante seja impossível. Gostaria de poder contribuir para realizá-lo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Robert Kurz: A esquerda e a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno




Por: Patricia Fachin e Márcia Junges

Tradução Benno Dischinger e Walter O. Schlupp, 30/03/2009


Robert Kurz não faz concessões ao aproximar o pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal. Agora, diz ele, “a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada”. Incapaz de captar a “dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno”, a esquerda caiu num “objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco”. As ideias foram desenvolvidas na entrevista concedida por Kurz, por e-mail, à IHU On-Line.

O rótulo de ‘pós-modernidade’ era fajuto, argumenta, “e, no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de ‘multidão’, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real”. Dessa forma, continua Kurz, “a esperança pelo ‘renascimento da política’ é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema”. Se a esquerda quiser aproveitar “o bonde da administração estatista da crise” para iniciar suas reformas sociais, ela “acabará descarrilando junto com ele”, vaticina. “Ela bem que merece esse destino”.

Robert Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. É cofundador e redator da revista teórica EXIT! — Kritik und Krise der Warengesellschaft (EXIT! — Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a crítica ao Iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Entre seus livros publicados em português, citamos O colapso da modernização (São Paulo: Paz e Terra, 1991), O retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos combates (Petrópolis: Vozes, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - As atuais crises financeira e ecológica estão relacionadas com o “colapso da modernização”?

Robert Kurz -
O termo colapso é um chavão provocativo, geralmente usado em sentido pejorativo, no intuito de desqualificar como “apocalípticos”, que não devem ser levados a sério, os representantes de uma teoria radical da crise. Não só as elites capitalistas, mas também os representantes da esquerda preferem acreditar que o capitalismo pode renovar-se eternamente. É claro que um sistema social global não desmorona de uma hora para outra como um indivíduo infartado. Mas a era do capitalismo passou. Afinal de contas, a modernização não foi outra coisa senão a implementação e o desenvolvimento desse sistema, não vindo ao caso se os mecanismos eram do capitalismo privado ou do capitalismo estatal.

Apesar de todas as diferenças exteriores, o fundamento comum consiste na “valorização do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstrato" em “valor agregado”. Entretanto, esta não é uma finalidade subjetiva, mas um fim em si mesmo que acabou ficando independente. Tanto os capitalistas quanto os assalariados, assim como os agentes estatais, não passam de funcionários desse fim em si mesmo que se soltou e está incontrolável, o qual Marx chamou de “sujeito automático”. No caso, a concorrência universal força a uma dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva, a qual constantemente gera novas condições de valorização para finalmente encontrar uma barreira histórica absoluta.

A barreira econômica interior consiste no fato de o desenvolvimento da força produtiva levar a um ponto em que o “trabalho abstrato” enquanto “substância” do “valor agregado” é tão reduzido, mediante racionalização do processo produtivo, que fica impossível aumentar o valor real [reale Verwertung]. Essa “dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor” significa que os produtos em si deixaram de ser mercadoria, podendo ser representados em forma monetária como forma genérica de valor, limitando-se a ser meros bens de consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a fabricação de bens de consumo para satisfazer necessidades, e sim o fim em si próprio que é a valorização. Por isso, segundo critérios capitalistas, ao se alcançar a barreira econômica interna é preciso fechar a produção e, portanto, o processo vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.

Capitalismo virtual

Em termos reais, essa situação já havia surgido em meados dos anos 80, com a terceira revolução industrial. O capitalismo prolongou sua vida em forma “virtualizada”, por um lado, mediante endividamento historicamente sem precedentes (antecipação de valor agregado futuro, que na realidade jamais poderá ser resgatado); por outro lado, pelo inchaço, igualmente nunca visto, das assim chamadas bolhas financeiras (ações e imóveis). Esse pseudoacúmulo de capital monetário “desprovido de substância” foi usado para alimentar também a produção real de mercadorias.

Resultou daí uma conjuntura deficitária global com fluxos de exportação de mão única principalmente para os Estados Unidos. As zonas de processamento de exportação da China e da Índia, porém, não representam uma expansão real do “trabalho abstrato”, porque seu ponto de partida não foi poder de compra real, e sim o capital monetário “desprovido de substância” representado no endividamento e nas bolhas financeiras. Por mais de duas décadas se nutriu a ilusão de que o “crescimento tocado exclusivamente pelas finanças” seria viável. De forma alguma, o fim dessa ilusão consiste exclusivamente numa crise financeira. A decantada “economia real”, na verdade, há muito que já não é mais real, e sim foi alimentada artificialmente com bolhas financeiras “desprovidas de substância”. Agora o capitalismo é reduzido a seus reais fundamentos de valorização. A consequência é uma nova crise da economia mundial, sem que se vislumbrem novos potenciais reais de valorização.

Ao mesmo tempo, o capitalismo esbarra em sua limitação externa natural. Na mesma medida em que ficou supérfluo o “trabalho abstrato” enquanto transformação de energia humana em “valor agregado”, acelerou-se a expansão da aplicação tecnológica das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva não controlada socialmente levou, por um lado, ao previsível esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro, à destruição do clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível.

A barreira natural exterior e a barreira econômica interior apresentam horizonte temporal diverso. Ao passo que o final da real “valorização do valor” já se encontra no passado e a economia capitalista atravessa sua crise histórica agora, no espaço de poucos anos (grosso modo ao longo da próxima década), a barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo duas a três décadas). A crise econômica e o concomitante fechamento de capacidades de produção refreiam o esgotamento dos recursos energéticos – às custas da crescente miséria social global na forma capitalista. Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do clima apresentam tamanho avanço, que não chegam a ser detidos pela crise econômica, sendo que a barreira natural exterior será atingida apesar de tudo.

Destruição capitalista da natureza

O fim da modernização significa, portanto, que, além de ter que superar a forma capitalista da reprodução, durante muito tempo uma sociedade mundial pós-capitalista terá que sofrer e lidar com as consequências da destruição capitalista da natureza. Para a análise e crítica teórica da crise, é importante enxergar a interconexão interna das duas barreiras históricas do capitalismo. Existe, porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois aspectos da crise histórica; isto vale para ambos os lados: para as elites capitalistas bem como para os representantes de um “reducionismo ecológico”, que somente admitem a barreira natural exterior. A gestão capitalista da crise e o reducionismo ecológico poderiam entrar em aliança perversa, que redundaria em negar a barreira econômica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas depauperadas e miseráveis uma ideologia da “renúncia social”. Contra isso, é preciso sustentar que a crise, a crítica e a superação da estrutura capitalista têm prioridade, porque a destruição da natureza é consequência, e não causa da barreira interior desse sistema.

IHU On-Line - Por que o senhor diz que o vexame da crise é também o vexame da esquerda pós-moderna?

Robert Kurz -
A crise não é nenhum vexame, mas um processo objetivo, resultante da dinâmica cega da concorrência e do desenvolvimento descontrolado da capacidade de produção. No que tange à esquerda pós-moderna, pode-se falar de vexame na medida em que descartou, em sua maior parte, a crítica da economia política. O “economismo” dos tradicionais marxistas de partido só foi criticado para eliminar de vez a objetividade negativa das categorias capitalistas de “trabalho abstrato” e “valorização do valor”. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo passou totalmente despercebida, tendo sido traduzida para “possibilidades ilimitadas”. Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no “crescimento tocado a finanças” e se transformou na expressão ideológica do capital fictício. O virtualismo econômico foi complementado pelo virtualismo tecnológico da internet. O Second Life do espaço virtual sofreu a mutação de tornar-se a forma de vida “propriamente dita”, o suposto “trabalho imaterial” de Antonio Negri, acabou sendo a continuação da ontologia capitalista do trabalho.

O real problema de substância do “trabalho abstrato” foi negado; um “antissubstancialismo” ideológico (ou “antiessencialismo”) a contrastar com Marx denunciou esse problema de substância como mera metafísica de um pensamento ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do capitalismo, a qual não deixa de ser bastante material. Concomitantemente, ocorreu uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão financeira capitalista de que atos de compra e venda também poderiam gerar crescimento, como a real produção de mercadorias, também constituiu a premissa implícita do pensamento pós-moderno. O endividado sujeito de mercado e consumo aparecia como portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que nem mais se podia dizer em que esta consistiria.

O falso virtualismo econômico e tecnológico teve seu correlato filosófico numa epistemologia que não mais queria criticar e superar a fetichista “aparência real” da relação de capital, mas seduzia para a crença de a pessoa poder “realizar-se a si própria” nessas condições. Seguindo as ilusões virtualistas, a “gaiola de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de mercadorias foi redefinida como “ambivalência” e “contingência” abertas para tudo e a qualquer hora. Verdade, mesmo a verdade negativa da crítica, não teria mais base objetiva nas condições reinantes, mas podia ser “produzida” e “negociada”. Para a esquerda pós-moderna, a natureza negativa do capital se dissolvia numa indefinível “pluralidade” [“Vielfalt”, “diversidade”] de fenômenos, a qual se apresentaria como desconexa “pluralidade” de movimentos sociais, sem focalizar o âmago concreto do capital.

Pensamento pós-moderno e neoliberalismo

Em termos sociais, a esquerda pós-moderna foi um trendsetter da individualização e flexibilização capitalista. O flexi-indivíduo abstrato não foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas recebeu o nimbo de antecipação da individualidade liberta já no seio do capitalismo. Em vez de aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, a individualização aparecia como forma atomizada da “autorrealização”, e o “ser humano flexível” (Richard Sennet) se apresentava não como objeto indefeso ao sabor das imposições capitalistas, mas como seu próprio “soberano”, que poderia conquistar novos espaços e transformar a si próprio no que quisesse. A proximidade do pensamento pós-moderno para com a ideologia neoliberal sempre foi inquestionável, apesar dos contrastes exteriores. Agora a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada.

IHU On-Line - A esquerda de hoje vive uma crise existencialista? Antes de sugerir alternativas para as crises atuais, a esquerda mundial teria de resolver seus próprios impasses? Para o senhor, há atualmente um vazio teórico das esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns para uma teoria?

Robert Kurz -
A crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do século XXI. Pois naturalmente não existe volta para os paradigmas de uma época passada. O rótulo de “pós-modernidade” era fajuto, porque a real transformação social do capitalismo não inaugurou novos espaços sociais, mas justamente marcou a transição para sua ruína histórica. Nem o fim do antigo movimento operário nem o naufrágio do “socialismo real” foram digeridos criticamente. A transição pós-moderna não superou o marxismo tradicional, apenas lhe deu continuidade numa forma esvaziada. Enquanto desaparecia totalmente de vista o objetivo socialista e se dissolvia aquela falsa “pluralidade” de aspirações meramente particulares, o paradigma da “classe operária” se transformou numa insustentável multidão de sujeitos sociais postiços; no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de “multidão”, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real.

Caracterizar essa situação com “impasses” da esquerda é um eufemismo. A esquerda antiga tanto quanto a pós-moderna acabaram. Não existe mais sujeito ontológico do “trabalho”, porque o “trabalho” acabou revelando ser substância histórica do capital e ficou obsoleto. Com isto, também o paradoxal conceito marxista de “sujeito objetivo” em si, que somente precisaria chegar “a si”, está liquidado em termos históricos e não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o “vazio teórico” da esquerda é idêntico com o “desencontro metodológico”. A esquerda nunca conseguiu captar a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno. A consequência foi cair num objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa parte das discussões de esquerda que não conseguiram deixar para trás essa polaridade.

Sujeitos paradoxais

Para um novo movimento social emancipatório o que importa não é mais despertar pelo beijo um “sujeito objetivo”, mas fazer uma crítica da forma sujeito, sem salvaguarda ontológica, e interpretá-la como forma de existência capitalista. A forma “sujeito” sempre só pode ser um agente do “sujeito automático” da valorização do capital e não pode ser confundida com a vontade para a ação emancipatória, a qual precisa constituir-se a si própria e não pode ter fundamento ontológico. Isto é algo difícil de ser pensado, porque justamente a esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o Foucault tardio voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica fracassou principalmente por não estar conectada com a crítica da economia política.

Este problema também está ligado à crítica da moderna relação entre os gêneros. É verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fez suas mesuras obrigatórias perante o feminismo, mas nunca levou realmente a sério a sua temática. Também o próprio feminismo, apesar de meritórias análises, em grande parte limitou-se a definir as mulheres como “sujeito objetivo” tão paradoxal quanto a “classe operária”. O postulado de uma "formação de sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o feminismo foi vitimado pela transição pós-moderna e dissolveu a forma de existência feminina “divergente” [“abgespalten”] no capitalismo numa “diversidade” de aspirações emancipatórias particulares que não tangem o problema central.

Também aí seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da economia política, e não tratá-la como questão “derivada” [“abgeleitet”], secundária. No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente neutras do capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e que a “razão” capitalista é androcêntrica na origem. A dissolução da família tradicional e dos respectivos papéis de gênero nada altera no caso, porque o caráter androcêntrico do capitalismo continua de outra forma. A crítica dessas formas sociais e a crítica da relação capitalista dos gêneros condicionam-se mutuamente e precisam ser pensadas em conjunto.

A crítica do “sujeito objetivo” do “trabalho” e da existência feminina “divergente” não é jogo de palavras, mas tem consequências práticas enormes para a superação do capitalismo. Acontece que desse modo também ficou liquidada a noção do marxismo antigo de emancipação social e de socialismo “dentro” das categorias capitalistas que somente teriam que ser reguladas e moderadas de outra forma. No limite histórico do capitalismo, levanta-se o desafio da “crítica categorial” da conexão entre “trabalho abstrato”, forma de mercadoria e “valorização do valor” bem como da relação entre os sexos neste contexto. Isto também é difícil de ser pensado, porque essas condições existenciais estão interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo pensamento pós-moderno. Somente a formulação de novo objetivo socialista sobre a base de uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de exigências de transição imanentes que também sejam adequadas no processo da crise histórica, assim obtendo real poder de se impor. Sem o foco unificador sobre o âmago do capitalismo, movimentos sociais permanecem indefesos e particularizados. É de se temer, entretanto, que a esquerda, pega de surpresa pela crise, acabe confiando em concepções demasiado tacanhas de suposta “salvação”, assim apenas ratificando sua impotência histórica.




IHU On-Line - Em que sentido a conjuntura atual tem contribuído para que a política se torne um modelo em extinção? Podemos dizer que a economia “colonizou” a política? Está se repensando a política a partir do que está acontecendo atualmente?

Robert Kurz -
A política centrada no Estado como instância sintetizadora do capitalismo está saindo de linha não por ter sido colonizada pela economia, mas por ter fracassado, há muito, em função de suas próprias premissas. O problema não tem a ver apenas com a condição exterior da globalização do capital, a qual rompeu os espaços de economia nacional. A força reguladora do Estado se extingue principalmente pelo fato de substancialmente nada mais haver para ser regulado. A valorização capitalista nas formas de “trabalho abstrato” de dinheiro sempre já tem constituído a premissa do Estado, a qual ele não consegue contornar. Quando o capital se desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento de capacidade produtiva, o Estado somente consegue reagir a isso mediante inflacionária emissão de dinheiro pelo seu banco central. Isto não supera a falta de substância do capital virtualizado, mas a exacerba como desvalorização do veículo-fim-em-si-mesmo chamado dinheiro. Ocorre que a competência do banco central é puramente formal; sua geração de dinheiro somente pode dar expressão à produção substancial de valor agregado mediante “trabalho abstrato”, mas não consegue substituí-la.

Os limites do crédito estatal já haviam sido alcançados no final dos anos 1970. Naquela época, a expansão do crédito estatal, desprovida de substância, foi punida por surtos inflacionários. A ilusão do neoliberalismo consistiu no fato de atribuir a inflação exclusivamente à atividade do Estado. A desregulamentação neoliberal somente transferiu o problema do crédito estatal para os mercados financeiros. Embora a punição da inflação ficasse protelada por causa do caráter transnacional da economia de bolhas financeiras, o potencial inflacionário começou a manifestar-se na conjuntura deficitária global até 2008. Esse processo, num primeiro momento, foi interrompido porque desde então o capital virtual e com ele a conjuntura mundial estão dando seu último suspiro. Mas se agora o Estado é novamente invocado como “última instância” e deus ex machina, seus pacotes conjunturais e de salvação novamente terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso acontecerá numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito maior que trinta anos atrás.

Renascimento da política

Neste cenário, a esperança pelo “renascimento da política” é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos movimentos sociais particulares e simbólicos vira fumaça pela barreira interior da valorização, é de se temer que a esquerda sofra uma regressão para o seu tradicional estatismo, porque nada mais lhe ocorre. Já agora a maior parte daquilo que pretende ser crítica social de esquerda praticamente não passa de um pouquinho de nostalgia keynesiana. Se é que a esquerda espera lançar suas “reformas sociais” aproveitando o bonde da administração estatista da crise, ela acabará descarrilando junto com ele e, uma vez passado seu carnaval no virtualismo, ela se tornará um trendsetter da política inflacionária. Ela bem que merece esse destino.

IHU On-Line - Que outras forças de esquerda podem surgir nesse momento?

Robert Kurz -
Se fracassar a esquerda global presa nas categorias capitalistas, a gente naturalmente ficará se perguntando onde é que há outras forças de emancipação social. Com certeza haverá rebeliões e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de suas condições básicas de vida, por mais precárias que sejam. Essas erupções também podem tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo, antissemitismo e nacionalismo, embora isso não tenha a menor chance de superação reacionária da crise. Também ocorrem levantes sociais espontâneos que se entendem vagamente como esquerdistas, como se pode observar na Grécia faz alguns meses. Esses vândalos juvenis a reagir visceralmente contra a opressão das necessidades vitais já estão sendo mitificados por alguns esquerdistas, que os usam contra a necessária transformação teórica.

Mas o culto da espontaneidade sempre passou vexame. As revoltas espontâneas da juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem adquirir uma noção crítica da situação em termos condizentes com a época. Por isso não existe alternativa, senão desenvolver nova meta socialista por meio de uma crítica categorial que não pode ficar vinculada ao “falso caráter imediato” da práxis espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a emergente resistência social não morra sufocada em seu próprio palavreado a campear “filosofia de vida”.

IHU On-Line - O senhor diz que a sociedade mundial precisa se libertar do jogo do economismo real e organizar seus recursos de uma nova forma, além do Estado e do mercado. Nesse sentido, como a esquerda pode desenvolver um trabalho revolucionário e mudar a atual conjuntura? Quais seriam, neste caso, as propostas da esquerda diante da crise financeira internacional?

Robert Kurz -
É preciso salientar que é justamente a sociedade que precisa ser libertada globalmente do economismo real do capital. É verdade que uma nova forma de reprodução somente pode ter êxito mais além do mercado e do Estado. Nos últimos anos, essa fórmula foi cada vez mais usada no sentido de ser apenas uma economia alternativa cooperativista, por assim dizer “ao lado” da síntese social pelo capital, e a qual de alguma maneira haveria de se ampliar aos poucos. Isto apenas dá continuidade ao particularismo “colorido” pós-moderno. Entretanto, a formação negativa de sociedade [negative Vergesellschaftung] do capitalismo somente pode ser superada por inteiro, ou não será superada. A economia alternativa cooperativista já tem um longo histórico e sempre fracassou, da última vez nos anos 1980.

Esta crise de proporções históricas não melhora as condições para semelhantes ideias, muito pelo contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita a um espaço pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessas, mas também fica na dependência das funções de mercado e Estado, uma vez que por conta própria só consegue satisfazer poucas necessidades vitais. E a reprodução real dos indivíduos fica inserida num encadeamento que Marx, sob condições capitalistas, chamou de “trabalho social total”. Essa estrutura somente pode ser transformada por inteiro; não se pode começar com batatas ou software e achar que se criou um “modelo” em escala reduzida, que só precisaria ser aplicado à sociedade como um todo. O “platonismo de modelo” é produto da teoria econômica burguesa, não da crítica radical.

Quando, em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz, quando entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista de gêneros alimentícios, então o que está em pauta não é o gradativo “entrar em rede” de comunas que pretendem reformar a vida, ou a “formação de rede” de permuta virtual, e sim a transformação do modo capitalista de “formação de rede” de toda a sociedade. Para tanto, é necessária a resistência organizada de toda a sociedade contra a administração da crise que estipula metas próprias em nível de síntese social.


Robert Kurz


Economia solidária como placebo

Daí só desviam a atenção os placebos particularistas tipo “economia solidária”, que geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, “reformas monetárias” ilusórias e abstrata ideologia comunitária. Querem fazer da urucubaca uma bênção. É muito coerente que essas propostas também fiquem namorando com “soluções para a crise financeira” e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de “financiabilidade”, se é que se pretenda levar a sério um novo modo de reprodução que vá além do mercado e do Estado.

IHU On-Line - Considerando que estamos na era da informação e vivendo a crise do capital, que novos rumos vão compor o mundo do trabalho no que se refere à relação capital/trabalho? Considerando a inserção de novas tecnologias na sociedade atual, mas também as atuais crises, é possível pensar em desglobalização na era da informatização? Podemos pensar assim em uma nova economia mundial?

Robert Kurz -
A informática enquanto base da terceira revolução industrial justamente gerou o desenvolvimento da capacidade produtiva que necessariamente tinha que levar à barreira interior do capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura “tecnologia da crise”, que só mais além da valorização poderia desenvolver potenciais positivos. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro consistia em que a informática implicaria novas formas do “trabalho imaterial”, numa assim chamada sociedade da informação, bem como novas relações entre capital e trabalho, com maior “autodeterminação” dos trabalhadores. Na verdade, a “era da informação” já no passado levou ao desemprego em massa, ao subemprego e à precarização das relações de trabalho. Já a suposta autodeterminação levou a uma compulsiva “autorresponsabilização” dos indivíduos pelo processo de valorização. Antonio Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como opção para uma “autovalorização autônoma” (autovalorisazzione). Esta acabou virando um chavão para a administração repressiva do trabalho, a qual a transformou na proposta de definir os indivíduos como “autoempresários da sua força de trabalho” e como “gestores do seu próprio capital humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê das condições do capitalismo em crise. A nova crise exacerbaria dramaticamente essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de tentar enxergar na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está esgotada.

A globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições capitalistas ela somente poderia ser uma globalização do capital, sob cujo mando também se encontra a informação. É de se esperar que, com a política inflacionária do Estado, o processamento da crise leve a uma “desglobalização” na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo protecionista das economias nacionais, que somente ainda são formais; tudo isso acompanhado de ideologias neonacionalistas. Só que isto não pode superar a crise, apenas a agrava. Também é de se perguntar se a internet é sustentável – não por causa de um possível colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento da capacidade) -, mas porque ela depende de uma formidável infraestrutura, cuja “financiabilidade” está tão em dúvida quanto todo o resto. Uma globalização meramente virtual não é sustentável, caso não esteja ligada à reprodução material transnacional mais além do capitalismo. As maritacas da blogosfera e os bitolados freaks da internet ainda podem levar um baita susto.

IHU On-Line - Como se pode falar em ética nos moldes atuais da sociedade capitalista?

Robert Kurz -
Em todas as formações fetichistas históricas, ética não passou de uma tentativa de conviver socialmente com as condições de reprodução dadas, pressupostas às cegas, sem superá-las. Mesmo a ética burguesa moderna pretende resolver contradições e crises sem tocar nas causas constitutivas. Nela, o lugar da crítica radical deve ser assumido por um cânon de normas de conduta moral para os indivíduos, para que dentro das formas existentes a pessoa possa ficar nice para as outras. O que pode falhar não é o sistema, mas apenas a moral dos indivíduos. A crise atual, aliás, também tem sido atribuída aos déficits éticos dos banqueiros e executivos. Não é por acaso que o “pacote de resgate” de maior volume está na ética, que, para variar, está em alta. Infelizmente esse pacote está totalmente oco. O “sujeito automático” não está acessível para quaisquer imperativos éticos; ética, portanto, é mais ou menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Fetichismo do PIB





Por: Joseph E. Stiglitz,
prêmio Nobel de Economia,
em artigo publicado no jornal O Globo, 30-09-2009.

Eis o artigo.

A tentativa de reviver a economia internacional e ao mesmo tempo responder à crise climática global nos coloca diante de uma complicada questão: as estatísticas estão nos dando os sinais corretos sobre o que fazer? Em nosso mundo orientado para o desempenho, questões de mensuração assumem importância: o que aferimos afeta o que fazemos.

Se tivermos instrumentos de medição medíocres, o que tentarmos fazer (por exemplo, expandir o PIB) pode na verdade contribuir para piorar os padrões de vida. Podemos também ser confrontados com falsas escolhas, enxergando compromissos inexistentes entre a produção e a proteção ambiental.

Em contraste, uma melhor aferição do desempenho econômico pode mostrar que passos adotados para melhorar o meio ambiente são benéficos para a economia.

Há 18 meses, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, criou uma Comissão para Monitoramento do Desempenho Econômico e do Progresso Social, devido a sua insatisfação — e à de muitos outros — com o estado atual das informações estatísticas sobre economia e sociedade.

A grande questão é saber se o PIB fornece uma boa medida sobre padrões de vida. Em muitos casos, as estatísticas sobre o PIB parecem sugerir que a economia vai muito melhor do que a percepção dos cidadãos sobre ela. Além disso, o foco no PIB cria conflitos: líderes políticos são instados a maximizá-lo, mas os cidadãos também pedem que se dê atenção à melhoria da segurança, à redução da poluição do ar, da água e sonora e assim por diante — fatores que podem reduzir o crescimento do Produto.

O fato de que o PIB pode ser uma medida falha sobre bem-estar, ou mesmo sobre a atividade do mercado, foi há muito reconhecido. Mas mudanças na sociedade e na economia tornaram os problemas mais graves, ao mesmo tempo em que avanços nas técnicas econômicas e estatísticas fornecem oportunidades para melhorar nossa métrica.

Por exemplo, enquanto o PIB supostamente mede o valor da produção de bens e serviços, num setorchave — o governo — não temos como fazê-lo; frequentemente, medimos a produção simplesmente pelos investimentos. Se o governo gasta mais — mesmo que de forma ineficiente — a produção sobe. Nos últimos 60 anos, a participação estatal no PIB aumentou de 21,4% para 38,6% nos EUA, de 27,6% para 52,7% na França, de 34,2% para 47,6% na Grã-Bretanha e de 30,4% para 44% na Alemanha. O que era um problema relativamente pequeno se transformou hoje num grande.

Da mesma forma, melhorias na qualidade — por exemplo, carros melhores em vez de apenas mais caros — respondem por muito do aumento do PIB hoje em dia. Mas mensurar a melhoria de qualidade é difícil.

O mesmo problema em fazer comparações ao longo do tempo se aplica aos países. Os EUA gastam mais em assistência à saúde do que qualquer outro país, tanto per capita quanto percentualmente, mas recebem notas piores. Parte da diferença entre o PIB per capita nos EUA e em alguns países europeus pode, assim, resultar da forma como medimos as coisas.

Outra mudança marcante na maioria das sociedades é um aumento na desigualdade. Isto significa uma disparidade crescente entre a renda média e a renda de uma “pessoa típica”.

Se alguns banqueiros ficam muito mais ricos, a renda média pode subir, apesar de a maioria das rendas individuais diminuírem. Assim, as estatísticas do PIB per capita podem não refletir o que está acontecendo com a maioria dos cidadãos.

Usamos preços de mercado para dar valores a produtos e serviços.

Mas agora, mesmo aqueles com fé inabalável no mercado questionam a confiança nos preços de mercado. Os lucros pré-crise dos bancos — um terço dos lucros corporativos totais — parecem ter sido uma miragem. A constatação lança nova luz não só sobre a medição do desempenho mas também sobre as inferências que fazemos.

Antes da crise, quando o crescimento dos EUA (usando medidaspadrão para o PIB) parecia muito mais forte que o da Europa, muitos europeus argumentavam que seu continente deveria adotar o capitalismo à americana. Claro que qualquer um que quisesse poderia ter visto o endividamento crescente das famílias americanas, o que teria ajudado a corrigir a falsa impressão de sucesso dada pela estatística do PIB.

Avanços recentes na metodologia permitiram-nos saber mais sobre o que contribui para o sentimento de bem-estar do cidadão e para reunir os dados necessários para fazer essa avaliação regularmente. Esses estudos verificam e quantificam, por exemplo, o que deveria ser óbvio: a perda de um emprego tem um impacto maior do que pode ser percebido apenas pela perda do rendimento. Eles também demonstram a importância das conexões sociais.

Qualquer boa medida sobre quão bem estamos precisa levar em conta a sustentabilidade. Como uma empresa precisa medir a depreciação do seu capital, também as contas nacionais devem refletir a finitude dos recursos naturais e a degradação do ambiente.

Sistemas estatísticos devem resumir o que está acontecendo em nossa complexa sociedade em alguns poucos números facilmente interpretáveis. Deveria ser óbvio que nem tudo pode ser reduzido a um número, o do PIB. O relatório da Comissão para Monitoramento do Desempenho Econômico e do Progresso Social deverá, espera-se, levar a um maior entendimento sobre os usos e abusos dessa estatística.

Ele também deverá ser um guia para a criação de uma série mais ampla de indicadores que captem acuradamente tanto o bem-estar como a sustentabilidade.

Por outro lado, deve dar ímpeto à capacidade do PIB e de estatísticas correlatas para avaliar o desempenho da economia e da sociedade. Tais reformas nos ajudarão a direcionar esforços (e recursos) de uma forma que leve a melhorias em ambos.



Veja ainda neste Blog:

O Fim da Crise e o capitalismo que virá

O PIB precisa ser colocado em seu papel de coadjuvante

O FIB (Felicidade Interna Bruta) é mais importante que o PIB


segunda-feira, 12 de outubro de 2009

"Belo Monte foi proposto por megalômanos e trambiqueiros há mais de 20 anos"


Entrevista especial com Oswaldo Sevá

“Acho que engenharia é uma coisa muito séria para ser praticada por pessoas que são mentirosas como este grupo que inventou e está tocando o projeto de Belo Monte há vinte anos. São mentirosos e agora estas mentiras estão começando a vir à tona, felizmente”. A afirmação é do professor Oswaldo Sevá, que faz, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone, uma crítica à construção da hidrelétrica de Belo Monte. Entre as consequências que a obra gerará, Sevá destaca que um lugar belíssimo conhecido como Volta Grande será completamente modificado. Ele indaga: “Porque pretendem cortar a Volta Grande inteira, abrindo canais imensos, do t amanho do canal do Panamá, para poder desviar essa água e cair na mesma margem?”. E, em seguida, responde, apontando que este projeto é absurdo, “foi imaginado por gente que só pensa em dinheiro”.

Oswaldo Sevá é graduado em Engenharia Mecânica de Produção pela Universidade de São Paulo. Fez mestrado em Engenharia de produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, e doutorado na Université de Paris I. Em 1988, a Universidade Estadual de Campinas, onde é professor atualmente, lhe concedeu o título de Livre-docência. Em seu site, o professor disponibiliza alguns arquivos sobre hidrelétricas em geral e sobre os projetos do rio Xingu. Sevá organizou três livros: TENOTÃ-MÕ. Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu (São Paulo: International rivers Network, 2005); Riscos Técnicos coletivos ambientais na região de Campinas, SP (Campinas, SP: NEPAM - Unicamp, 1997); e Risco Ambiental - Roteiro para avaliação das condições de vida e de trabalho em três regiões : ABC/ SP, Belo Horizonte e Vale do Aço, MG, Recôncavo Baiano/BA (São Paulo: INSTY-Instituto Nacional de Saúde no Trabalho/CUT, 1992).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais falhas no projeto de Belo Monte?

Oswaldo Sevá –
O projeto é completamente absurdo. Um projeto de hidrelétrica, atualmente, deveria ter outros critérios. Esse é um projeto velho, que foi desenhado pela primeira vez no final dos anos 1970. Primeiro foi feito o inventário para calcular o potencial hidráulico do Xingu, que é baseado em uma concepção que já existe alguns lugares no Brasil, como sobre o rio Jacuí, no Rio Grande do Sul. Se pega o meandro do rio, corta-se esse meandro, desviando a água por uma das margens, para se colocar as turbinas em uma casa de força, depois do meandro. Começa por não se tratar de um projeto de uma hidrelétrica qualquer, não tem nada de parecido com Itaipu, nem com Tucu ruí, por exemplo. Não é uma usina que tem um único barramento, um prédio de concreto com as máquinas da casa de força e com vertedouros para o escoamento das cheias. É totalmente diferente disso.

Este projeto é muito mais parecido com o projeto da Usina Dona Francisca, no rio Jacuí, mas em uma dimensão cem vezes maior. Ele pega uma ideia da Volta Grande do Xingu. Esta pode ser enxergada a partir do satélite e aparece em qualquer mapa do Brasil, onde se vê o rio Xingu seguindo para o norte e descendo em direção ao rio Amazonas, de repente ele é obrigado a fazer uma volta de quase 200 quilômetros, chega a correr novamente para o sul, depois recomeça e aí retoma o rumo que ele tinha, fechando quase um anel completo, por isso chamado de Volta Grande. É um dos monumentos paisagísticos e fluviais do nosso planeta.

O projeto é absurdo porque pretende pegar um monumento fluvial, um lugar maravilhoso com cachoeiras de vários quilômetros de largura cada uma, com ilhas, arquipélagos florestados com morros dentro do rio, e pretende considerar que isso deve ser aproveitado para se fazer energia elétrica, simplesmente destruindo, fazendo uma coisa igual ou pior que Itaipu fez com as Cataratas das Sete Quedas do rio Paraná. Se fizermos isso com a Volta Grande, do Xingu, estaremos decretando a destruição de um dos lugares mais maravilhosos do mundo. Ninguém barrou as cataratas do Iguaçu, que eu saiba nem existe proposta para barrar, as cataratas do Niágara, nos Estados Unidos, as cataratas de Victória Falls no rio Zambezi, na África, portanto não tem que barrar e nem destruir a Volta Grande do Xingu. Isto é fácil de explicar desde que as pessoas estejam dispostas a considerar o planeta, os rios, a Amazônia, o que temos no mundo e o que as futuras gerações terão. Para discutir em term os de energia elétrica, custos e habilidade econômica, daria para fazer um rosário de argumentos.

IHU On-Line – Que critérios deve ter um projeto de hidrelétrica?

Oswaldo Sevá –
Acho que não existem critérios. Quando se fizeram a maioria das hidrelétricas brasileiras, entre os anos 1940 e 1980, o único critério que vigorava era medir a velocidade do rio, o desnível que existia, e construir uma usina de tal maneira que aproveitasse o máximo possível esta vazão. Este critério é de uma determinada época, já passou, porque, na maioria dos lugares em que permitia fazer isso, já foi feito. Não é um problema de falta de critério, é de visão de mundo. As pessoa s chegam lá, os burocratas, engenheiros, calculistas, as empresas que ganham dinheiro fazendo obras e vendendo eletricidade, olham um lugar maravilhoso como aquele, e só fazem contas, acham que vão conseguir modificar a geografia e o relevo daquele lugar de tal forma que isso vire um empreendimento rentável. Mesmo que fosse decidido fazer alguma obra lá, jamais deveria ser deste tamanho e com esta concepção. Ainda tenho muita esperança que os bancos financiadores e as entidades seguradoras vão descobrir isso, que é um projeto totalmente inviável do ponto de vista econômico exatamente porque é absurdo como projeto de engenharia. É um projeto que nem o próprio governo é capaz de dizer, até hoje, quanto irá custar. Até um ano atrás diziam uma mentira, que custaria sete bilhões de reais, depois passaram a dizer que iria custar onze, atualmente dizem que vai custar dezesseis, mas todo mundo sabe que vai custar pelo menos trinta. Tudo isso é o resultado de um processo completamente descontrolado de mentiras, de argumentos falaciosos, de falsidades que foram sendo construídas nos últimos vinte anos. É como se fosse um castelo de areia que está começando a ruir. Ainda bem.

IHU On-Line – E que debates foram feitos na época em que Itaipu foi construída?

Oswaldo Sevá –
Quando Itaipu foi construída, eu tinha acabado de me formar em Engenharia Mecânica, começava a dar aula em universidades e ainda não era um especialista na área de energia, embora prestasse muita atenção na natureza. Itaipu foi construída como resultado da união dos esforços de duas ditaduras militares, com meia dúzia de grandes empresas internacionais e mais a empresa brasileira Camargo Correa, que se tornou, a partir daí, uma multinacional. Foi resultado de duas ditaduras sangrentas, como foram a do ditador Stroessner, no Paraguai, e, no Brasil após o massivo período do Médici e do Geisel. Foram eles que decidiram fazer o que era melhor possível do ponto de vista do capitalismo da época e dos lucros das empresas que iam construir e vender os equipamentos, e simplesmente desprezaram qualquer critério de bom senso.

Itaipu nunca teve nenhuma cachoeira, na realidade era um trecho do rio em que as costas eram um pouco mais íngremes, formavam uma espécie de desfiladeiro natural com uma vazão muito grande. Foi necessário construir um prédio de 1 20 metros de altura, com mais de um quilômetro de largura, para fazer uma queda totalmente artificial que ali não existia. Lá no começo da represa de Itaipu, colocaram Sete Quedas embaixo d’água. Se tivessem feito ela trinta ou quarenta metros mais baixa, geraria 60 ou 70% da energia que gera e estariam ainda livres para visitação de milhões de turistas por ano, que iam deixar lá tanto dinheiro, praticamente o quanto se ganha com a venda de eletricidade, e estaria preservado aquele monumento fluvial para o resto da história do planeta. Faço questão de insistir nisso. As pessoas ficam querendo discutir, dialogar com o governo e as empresas no mesmo terreno. Eu faço questão de dizer que estou em outro terreno, em que eles não são capazes de dizer nada. Estou no terreno da ética e da civilização. Acho que engenharia é uma coisa muito séria para ser praticada por pessoas que são mentirosas como este grupo que inventou e está tocando o projeto de Belo Monte há vinte anos. São mentirosos e agora estas mentiras estão começando a vir à tona, felizmente.

IHU On-Line – O que a obra de Belo Monte trará para o rio Xingu?

Oswaldo Sevá –
É difícil saber o que uma obra feita em um ponto determinado do rio traz de consequência como um todo. O rio Xingu tem 2.300 quilômetros de comprimento, começa perto de Cuiabá, no planalto mato-grossense. O início dele está muito comprometido com o agronegócio, com a expansão do plantio de soja, de milho, e depois tem um pedaço grande, relativamente preservado, o nde fica o parque indígena do Xingu. Graças a Deus, foi criado um parque com uma área imensa, um conjunto de terras indígenas que já estão homologadas há quase 50 anos, e que é um pedaço que está muito mais preservado. Depois ele entra em um trecho encachoeirado, com quase 1.000 quilômetros ao longo do estado do Pará, e, lá no final deste trecho, um pouco antes dele desembocar no rio Amazonas, é que tem esta Volta Grande, onde a obra será construída.

Para o rio como um todo, se for feita, seria a primeira grande barragem, e iria interromper o fluxo natural do rio com consequências mais locais onde seria interrompido. Será a primeira barragem, mas não vai parar por aí porque se conseguirem fazer esta ninguém segura mais depois. Nos próximos vinte, trinta e quarenta anos vão ser feitas as outras quatro barragens que já foram calculadas e projetadas. Todo o rio brasileiro que tem uma barragem acaba tendo várias outras, não conheço históri a de um rio que tenha uma só. Nem o rio Jacuí, o rio Uruguai, o Iguaçu, o Paranapanema, o São Francisco e o Tocantins. Isto é uma empulhação que o governo federal resolveu fazer de um ano pra cá, de dizer que iriam fazer uma só. É tudo mentira, e ainda com a resolução que não tem menor valor de lei, de um conselho ministerial que praticamente não se reúne.

Então, se várias barragens forem feitas, o rio será destruído, passa a ser uma sucessão de lagos, de represas, como são vários rios brasileiros. Eles têm muita utilidade, podem gerar energia, criar peixes, podem ter hospedagem de classe média ou até de luxo na beira do rio para fazer turismo, mas deixa de ser um rio. Muitas vezes, a água apodrece, as espécies de peixe mudam, mas isso é um assunto para pessoas que são da área de ciências naturais, eles é que sabem dir eito qual é a consequência, mas só perder a Volta Grande já é uma algo enorme. O rio vai perder o seu principal trecho encachoeirado, uma parte dele vai ficar dentro d’água, e outra vai ficar sem água, completamente seca. As pessoas que moram lá não vão aguentar porque não vão ter nem água de poço para beber. Tem aspectos da vida local que também não estão sendo muito falados. Aquilo vai virar um inferno se, por acaso, a obra for feita, pois, as pessoas não vão mais ter condições de morar na região. Quem estiver na área alagada tem que sair, quem estiver na área seca vai sair também, pois será impossível de viver.

IHU On-Line – Um pesquisador afirmou que somente 39% da potência instalada de Belo Monte se transformará em energia firme. O que será feito com o resto?

Oswaldo Sevá –
Sobre discussão de energia firme acho o seguinte: estudei isso durante muito tempo, sou engenheiro mecânico, dou aula de energia na UNICAMP há muitos anos, acompanho várias obras e já conversei com pessoas que operam usinas hidrelétricas. Pouquíssimas pessoas no Brasil têm um conhecimento sofisticado, profundo, do funcionamento dos rios ao longo do ano, para poder afirmar que uma coisa que não existe ainda, no futuro, só terá uma determinada potência que é “x” % da potência das máquinas. Essa é uma questão que serve para ficarmos dizendo como a usina é mal projetada, mas não é por aí, pois, qualquer hidrelétrica tem muito mais máquinas do que precisa, porque, às vezes, elas têm que parar para manutenção. É preciso ter reservas. Durante o verão amazônico, pode acontecer de o rio Xingu não ter água suficiente para virar qualquer uma das máquinas previstas.

Agora, voltamos à questão: Por que pretendem instalar onze mil megawatts? Por que pretendem cortar a Volta Grande inteira, abrindo canais imensos, do tamanho do canal do Panamá, para poder desviar essa água e cair na mesma margem? Porque é um projeto absurdo, foi imaginado por gente que só pensa em dinheiro e está pensando em criar as coisas mais absurdas do mundo e que vai conseguir usar o dinheiro público para isso, e assim, ganhar dinheiro fazendo essas obras. É um problema de concepção. Vamos fazer as maiores obras de Engenharia Civil para ter a maior de todas, que é o jeito que encontraram para ganhar mais dinheiro. É uma coisa relativamente sim ples para qualquer cidadão entender. Estamos numa situação difícil de quase esquizofrenia para a sociedade, pois, Belo Monte foi proposto por megalômanos e trambiqueiros há mais de 20 anos, que continuaram a mentir para todo mundo do governo – que acreditam nas mentiras – e agora está chegando a hora da verdade, ou seja, o projeto começa a ser conhecido, mais detalhado e, ainda assim, não se tem a ideia do custo.

Esse é o indicador mais evidente dessa esquizofrenia. O governo diz que vai colocar a leilão a energia de Belo Monte daqui dois ou três meses e até hoje ninguém sabe quanto ele vai custar. Não existe isso em lugar nenhum no mundo. Esse é um sintoma de insanidade mental que foi mantida durante 20 anos. Podemos ficar horas falando dos impactos aqui e ali, inclusive sobre a energia firme que você levantou nessa questão. Ac ho, inclusive, que a maioria dos que estão falando da energia firme conhece muito pouco o problema. Aqui na Unicamp, onde eu trabalho, deve ter três ou quatro pessoas só que entendem direitinho do funcionamento dos rios e que seriam capazes de dizer alguma coisa a respeito disso. As simulações que fizemos aqui na Faculdade de Engenharia Elétrica são totalmente diferentes dos cálculos do governo.

IHU On-Line – Qual sua opinião sobre as audiências públicas que foram feitas sobre a construção de Belo Monte?

Oswaldo Sevá –
Eu estava analisando de longe, pois não pude participar porque há alguns meses fiz uma cirurgia muito pesada e estou em fase de tratamento. Fiquei na retaguarda, recebendo noticias e fotografias. Já participei de muitas audiências públicas em São Paulo, as audiências que são feitas pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo são muito mais organizadas e democráticas nesse sentido. O tempo de apresentação dos empreendedores e das entidades ambientalistas é mais ou menos equiparado. Os políticos não falam no começo da audiência, porque ela é técnica. Além disso, as quais participei, tiveram um caráter informativo maior porque fazia-se uma série de observações, assim, o empreendedor tinha o direito de replicar, e as entidades ambientalistas tinham direito a treplicar. Eram muito interessantes, muitas delas foram tensas, tiveram a presença da polícia. Mas nas audiências de lá, estavam todos morrendo de medo, de novo, que os índios fossem lá fazer aquela covardia como fizeram em maio de 2008 e machucaram o engenheiro da Eletrobrás. Com isso, botaram cerca de 400 policiais, guardas nac ionais, agentes da ABIN e polícia federal para proteger os caras do IBAMA e empreendedores. Então, é difícil imaginar uma audiência verdadeira com um clima desses.

A audiência não pesa no licenciamento. Ela é uma espécie de mise-en-scène que o empreendedor faz questão que seja realizado, porque depois tem que demonstrar que houve participação pública, e que o IBAMA também faz questão de realizar para ter um álibi. Mas a decisão, no caso de Belo Monte, já está tomada lá em cima, lá na Casa Civil, que já mandou dizer ao Carlos Minc logo que entrou no Ministério, que Belo Monte vai ter a licença prévia ambiental concedida. No fundo, você pode dizer que é uma palhaçada, porque as pessoas que levam a sério vão lá, gastam dinheiro do próprio bolso, mas, para o IBAMA e para os empree ndedores, aquilo é um teatro, porque já está tudo resolvido. O IBAMA vai conceder a licença prévia, só não vai fazer isso se acontecer algum terremoto. Essa decisão é do governo. A audiência é um meio para desgastar e é, também, um álibi. É uma pena, porque poderia ser de fato um momento para haver um debate.


Usina de mudanças

O projeto hidrelétrico de Belo Monte, no Pará, terá mais do que a missão de garantir a oferta de nova energia para a expansão da economia brasileira. A construção desse gigante, com impactos sobre 11 municípios e nove terras indígenas no norte do Pará, significará uma mudança completa da geografia econômica do Brasil, e sobretudo da Amazônia.

A reportagem é de Agnaldo Brito e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 20-09-2009.

Está será a maior obra de infraestrutura já realizada no país desde Itaipu e um teste para o que o governo sugere ser um novo modelo de "ocupação e uso sustentável" de uma região com baixíssimos índices de desenvolvimento e, em parte, já corroída pela exploração desordenada.

Se liberado pelo Ibama dentro de algumas semanas - como espera o governo -, Belo Monte será o 3º maior empreendimento hidrelétrico do planeta, com 11,2 mil MW, só aquém do projeto chinês de Três Gargantas (18 mil MW) e de Itaipu (14 mil MW). A obra vai exigir uma das maiores engenharias financeiras já montadas no hemisfério Sul. Demandará, segundo estimativas do governo, R$ 20 bilhões ou mais. O valor final será divulgado nesta semana.

Na Volta Grande, zona de transição entre o médio e o baixo rio Xingu, o projeto inspira reações diversas, da apreensão à euforia. A obra afetará áreas indígenas, desmatará grandes áreas de floresta e secará parte do rio Xingu. Promete, de outra parte, levar empregos e infraestrutura a uma região miserável que parece abandonada pelo Estado brasileiro.

A usina só ficará pronta depois de uma década de obras. Os números são superlativos. A movimentação de terra (150 milhões de metros cúbicos) e de rocha (60 milhões de metros cúbicos) será superior à que foi necessária para a construção dos 82 quilômetros do Canal do Panamá, que rasga a América Central e liga os oceanos Pacífico e Atlântico. O empreendedor terá de movimentar 310 milhões de toneladas, o equivalente a mais de duas safras de grãos do país.
A previsão é que Belo Monte mobilize 100 mil pessoas, incluídos os 18,7 mil trabalhadores empregados nas obras, 23 mil nas atividades que orbitam o empreendimento e um contingente de 55 mil pessoas em busca do "novo Eldorado".

Projeto militar

Para os críticos, essa parece ser uma conta subestimada. Avaliam que a obra mobilizará o dobro, 200 mil pessoas.

Rabiscado pela primeira vez em 1975, quando o governo militar lançou grandes planos de ocupação da Amazônia, o projeto deve finalmente sair do papel em dezembro, após um dos maiores leilões públicos a ser realizado no país, em ato que concretiza um sonho do governo Lula. Grupos nacionais e internacionais de infraestrutura estudam participar do projeto.

Maior obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), Belo Monte promete retomar e consolidar -despertando preocupação em ambientalistas- o plano nacional de ocupação amazônica.

Os principais objetivos do projeto, segundo o governo, são nutrir o sistema elétrico brasileiro com farto potencial de hidroeletricidade e possibilitar a industrialização da Amazônia.

Aliado do projeto, o governo do Pará impõe como condição o fornecimento de energia barata para grandes mineradores. No governo, a tendência é que o pedido seja aceito.

"O Brasil pode retomar um caminho que tínhamos abandonado. Um potencial hidrelétrico como o que temos na região Norte precisa ser explorado. Não é razoável que fiquemos comprando energia térmica quando temos uma opção renovável", diz Maurício Tolmasquim, presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).

Para os opositores, o problema é o modelo. "O que está em discussão não é só a usina de Belo Monte mas o modelo de desenvolvimento que está por trás do projeto. O impressionante é que de alguma maneira o plano repete o modelo de ocupação visto no período militar", diz Rodrigo Timóteo da Costa e Silva, procurador do Ministério Público Federal em Altamira (PA). A região teme a repetição de desastres ambientais como os ocorridos em Tucuruí (PA) e Balbina (AM).

A esperança do governo federal é a de que da Amazônia - 4% do território da Terra - venham os 4.000 MW anuais de que o país precisa para expandir o parque gerador nacional e assim manter distante qualquer ameaça de apagão.

Com 12% da água doce do planeta, o país já concluiu que 70% da disponibilidade de hidrelétricas ainda não foi aproveitada e que 66% dessa riqueza fica no Norte. Por isso, após os projetos do Madeira (6.400 MW) e de Belo Monte, deve vir o próximo: o complexo hidrelétrico Tapajós. E este não com uma, mas com cinco usinas.


Produção de energia em usina sofrerá fortes oscilações

A grande oscilação entre cheias e secas do rio Xingu vai transformar a hidrelétrica de Belo Monte numa imensa usina "vaga-lume". A vazão do rio pode alcançar 20 mil metros cúbicos por segundo no período de cheia, e em outros momentos, como agora, pode baixar a menos de mil metros cúbicos por segundo entre os períodos de setembro a outubro.

A reportagem é de Agnaldo Brito e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 20-09-2009.

A Grande São Paulo, maior núcleo urbano do país, consome cerca de 60 metros cúbicos de água por segundo. O Xingu, mesmo na baixa, pode abastecer 16 cidades como São Paulo. Mas com essa imensa variação do nível d'água, Belo Monte terá, no período seco, pouca água para movimentar as turbinas.

Para extrair a energia dos 11,2 mil MW, são necessários 14 mil metros cúbicos por segundo de água, condição só possível entre os meses de março e abril, auge do período chuvoso. A previsão é que em outubro a situação seja inversa, de baixíssimo volume d'água, com geração ínfima.

"Como é possível uma usina com tantos problemas ambientais ter uma ociosidade dessa magnitude? Se a vazão do rio baixar mais de 700 metros cúbicos por segundo, o que já ocorreu, Belo Monte produzirá quase como uma pequena central hidrelétrica", critica Francisco Hernanes, pesquisador do IEE/USP (Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo) e um dos coordenadores do grupo de 38 especialistas de várias regiões do país que apresentará ao Ibama suas impressões sobre o projeto até o fim deste mês.

Só a partir dessa particularidade é possível relativizar o tamanho de Belo Monte. Embora a capacidade seja imensa, a energia firme extraída da usina será de 4.428,1 MW, 39,4% da capacidade total, algo próximo às usinas do Madeira (Jirau e Santo Antônio). Essa potência com que o país poderá de fato contar é 7,5% menor do que havia desejado a Eletrobrás.

A área ambiental exigiu a liberação de pelo menos 700 m3/s para o trecho de vazão reduzida do Xingu, para a Volta Grande. A barragem vai desviar o rio e vai secar parte dos 100 quilômetros da Volta Grande. No período chuvoso, o volume d'água abaixo da barragem principal será, no máximo, de 4.000 m3/s no primeiro ano e de 8.000 m3/s no ano seguinte. Foi a forma encontrada para se evitar uma catástrofe ambiental, com morte de peixes e da floresta ribeirinha, além de assegurar condições de navegação aos povos da região.

Walter Cardeal, diretor de engenharia da Eletrobrás, não considera esse um problema para a operação da usina. A justificativa: apesar disso, Belo Monte vai revezar com as usinas do Sul e do Sudeste no abastecimento do Sistema Interligado Nacional. "As chuvas na região Norte ocorrem antes das chuvas do Sudeste. Com isso, Belo Monte pode gerar energia enquanto as usinas do Sul e do Sudeste reservam água, e vice-versa", explica.

Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, reconhece o problema, mas justifica que isso ocorre em razão da impossibilidade hoje de construir usinas como Itaipu, com grandes "estoques" de água. Foi isso que reduziu de 1.225 para 516 quilômetros quadrados a área alagada pelo projeto. "O país perde potencial energético, é inevitável. Ou fazemos isso, ou não temos mais hidrelétricas."

Para especialistas, reside aí um dilema. Uma resolução do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) determinou a construção apenas de Belo Monte na bacia do rio Xingu. "Quem pode assegurar que, numa eventual crise energética, o CNPE não mude sua posição e aprove outras barragens no Xingu para aproveitar mais a capacidade que ficará ociosa?", disse Hermes Fonseca de Medeiros, professor-adjunto da Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará. Para especialistas, a resolução não é uma garantia.


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sábado, 10 de outubro de 2009

A queda do Muro de Berlim: governantes ocidentais foram contra



Entrevista com Mikhail Gorbachev


Vinte anos depois, Mikhail Gorbachev conta a história desconhecida do Muro de Berlim. Sentado em seu escritório de Moscou no Leningradskij Prospekt, fala com um fio de voz, com calma. Mas das suas palavras transparece toda a emoção, a satisfação, mas também a indignação por aquilo que viu naquele ano fatal entre 1988 e 1989, que marcou para sempre a história do século XXI.

Lembra-se das pessoas de Berlim que saíram às praças, que lhe gritavam "Gorby, fique conosco", "Gorby, freiheit!", liberdade! Ele retornou com a mente aos acontecimentos que, verdadeiramente, comoveram o mundo, as reuniões com os partidos irmãos, ainda incertos e temerosos, os encontros e os telefonemas com Helmut Kohl, "a inadequação de Honecker", o chefe comunista da Alemanha Oriental, que não sabia entender. E depois "a feroz batalha contra a perestroika que se desenvolvia em Moscou", enquanto na Europa os líderes ocidentais procuravam impedir a reunificação alemã.

A reportagem é de Fiammetta Cucurnia, publicada no jornal La Repubblica, 30-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Mikhail Sergheevic, quando o senhor entendeu que, para a Alemanha, havia chegado o momento da unificação?

A história não é feita em um dia, e não poderei lhe indicar uma data precisa. A queda do Muro de Berlim, de fato, foi só o ato final, a culminação de um processo que ocorria há muito tempo. Quando as mudanças começaram a marchar na URSS, ocorreram as primeiras eleições democráticas, e, nos países do Leste europeu, estouraram as primeiras revoluções, de veludo ou não. Quando começou também o processo de desarmamento entre EUA e URSS, com o desmantelamento dos mísseis nucleares, uma triste realidade se mostrava claramente diante de nós: a Alemanha, e só a Alemanha, ficava à margem da grande estrada da história. Eles, os alemães, sentiam-se ofendidos e angustiados por causa isso. E eu os entendo.

Em sua opinião, qual foi o ato de nascimento da reunificação alemã?

Estamos falando de 1988. Foi então que, na Alemanha, ocorreram as primeiras manifestações. Em Moscou, chegava a notícia de cidadãos alemães orientais que procuravam passar para a República Federal através da fronteira húngara, diretamente ou através do vale austríaco. Depois, o mesmo ocorreu com a embaixada alemã na Polônia e na Tchecoslováquia, onde era possível chegar mais agilmente e onde os alemães orientais, então, pediam ajudar para passar para o Oeste. Eram pedidos sempre mais maciços e urgentes, que se tornaram depois um rio transbordante no verão [europeu] de 1989. Mas começaram bem antes que a imprensa se desse conta, muito antes que Hans-Dietrich Genscher [ministro do Exterior alemão] pudesse anunciar, na capital tchecoslovaca, a abertura da fronteira com a República Federal alemã. A história havia se colocado em ação. É inútil procurar relê-la hoje de modo primitivo. Os acontecimentos amadureceram no tempo, até que o seu fluir se tornou tão impetuoso que deixou só duas possíveis saídas: ou encontrávamos o modo de geri-los e governá-los, ou nos derrubavam.


Portanto, ficou logo claro para o senhor que a reunificação alemã era iminente?

O que eu entendi já perto do final de 1988 era que já era tarde demais para frear os eventos. Os alemães não tinham intenção de abandonar as praças e voltar para casa, resistiriam até o final, até a vitória. No dia 26 de janeiro de 1989, enquanto os protestos enfureciam em Berlim, decidi convocar uma reunião do Politburo, ampliada aos militares e aos diplomatas, para sondar os humores. Todos se disseram convencidos de que os alemães não se renderiam.

O PCUS [Partido Comunista da União Soviética] não temia a reunificação alemã?

Eram tempos de fogo. No partido, a batalha enfurecia, contra mim e contra a perestroika. Principalmente naquele momento. Estavam em jogo as grandes reformas políticas, as primeiras eleições livres da nossa história milenar. Justamente em 1989, o Politburo se reuniu logo depois das eleições de março. O resultado era impressionante: eleições livres, com listas de sete a 27 candidatos, em vez do nome único a que estávamos habituados. Pela primeira vez, todas as organizações tinham apresentado seus próprios candidatos e, no fim, 35 secretários regionais do partido não conseguiram ser eleitos, mesmo tendo à sua disposição todo o poder e todos os meios. Feitas as contas, porém, 84% dos deputados eleitos eram comunistas. O Politburo não conseguia aceitar que o nosso país, e com ele as nações que faziam parte do Pacto de Varsóvia, decidisse em plena autonomia a mudança dos homens no poder. Assim, logo depois, as forças reacionárias do partido começaram a se organizar e a fazer coalizões contra as mudanças, que percebiam como uma ameaça mortal. Foram golpes muito ferozes. Sempre às escondidas, pelas costas, porque não tinham nem a coragem nem a força de se mostrarem. Mais de uma vez fui obrigado a dar um soco na mesa e me retirar.

E os dirigentes alemães?

Naquele ano, fui à Alemanha duas vezes. Em junho, estive em Bonn, onde me encontrei com Kohl. Foi uma conversa calorosa, muito, muito amigável. Os jornalistas me perguntaram depois se havíamos discutido sobre os episódios alemães. Certamente havíamos discutido. Mas não havíamos decidido nada. Não era uma coisa que podia ser decidida em uma mesa de bar. Será a história, eu disse, que decidirá por nós. Quando? Eu e Kohl demos a mesma resposta, como se tivéssemos nos colocado de acordo: não antes do século XXI. Pelo contrário, as coisas ocorreram diferentemente. Bem rápido ficou claro que aquilo que ocorria na Alemanha não podia ser parado. Kohl me chamou mais de uma vez, já nos telefonávamos seguidamente: "O que fazemos?". Eu lhe dizia: "Fique atento. Não faça movimentos arriscados, senão serão perigosos". Foi então que ele apresentou os famosos dez pontos para a reaproximação entre as duas Alemanhas, que previam uma série de etapas em vista da reunificação. Nós, em Moscou, não fomos entusiastas dessa sua saída, mas as iminentes eleições alemãs lhes obrigavam a fazer alguma coisa.


O que o senhor encontrou em Berlim?

Cheguei a Berlim no dia 06 de outubro de 1989, para os festejos do 40º aniversário da RDT. Lembro que logo me dei conta do clima de inquietação, um fermento novo. Também logo me dei conta que o poder havia perdido a sua ligação com o país. Era uma realidade difundida, que não se referia diretamente à questão do muro. Era como se os alemães estivessem dando abertura à frustração de terem sido abandonados e deixados para trás, apenas eles, enquanto em todos os lados as transformações se impunham nos palácios do Leste. Há meses, as praças estavam cheias, pequenas e grandes manifestações que desafiavam o regime. Quando cheguei, entre os eventos organizados para o 40º aniversário estava também a Fackelzug, a marcha das tochas, na qual participavam os delegados de 28 regiões. Encontrei-me diante de uma massa de jovens e de menos jovens, cheios de entusiasmo, que gritavam "Gorbachev, fique aqui por um mês! Gorby, liberdade!". O primeiro-minis tro polonês, Tadeusz Mazowiecki, se aproximou de mim e disse: "Mikhail Sergheevic, o senhor entende alemão?". "Talvez com um tratado eu teria alguma dificuldade, mas eu entendo o que estão gritando aqui". E ele, em resposta: "Então entenderá que este é o fim".

É verdade que Honecker lhe revelou um dos seus maiores problemas?

Encontrei-o justamente naqueles dias. Foi uma conversa longa, de pelo menos três horas. Observei-o bem e me sentia desconfortável. Tinha a impressão de que fosse totalmente inadequado à grandeza dos eventos que estávamos vivendo. Como se não tivesse a percepção do que realmente tínhamos na nossa frente. Assim, no dia seguinte, pedi que me pudesse encontrar com toda a direção do partido. Não fiz recriminações, nem os incitei a agir. Fiel à linha que havia escolhido, contei sobre a perestroika, de como havíamos chegado tarde com as nossas decisões e por isso havíamos perdido e de como, pelo contrário, havíamos nos apressado muito outras vezes, terminando por tornar a tarefa ainda mais difícil. Os processos em curso, disse-lhes, exigiam grande inteligência. Depois, esse discurso se tornou famoso, resumido na frase "A história pune quem chega tarde".


Mikhail Sergheevic, como se comportaram os líderes europeus? É verdade que salvariam o muro com prazer?

Essa é uma questão dolorosa. À exceção dos EUA, posso dizer que todos estavam contra. Margaret havia se inclinado abertamente pelo "não". Não dizia isso publicamente, mas não fazia mistério durante os encontros oficiais. Andreotti era contrário, e Mitterrand era ferozmente contrário. Mais esperto do que os outros, dizia: "Amo a Alemanha de tal forma que prefiro ter duas". Todos os líderes europeus tinham medo. Mas não faziam propostas sobre como enfrentar a situação. Ficou-me claro que gostariam de impedir a queda do muro e a reunificação, mas queriam que, materialmente, nós os impedíssemos. Com o exército. Com as tropas de Gorbachev. Todos vieram até mim, um depois do outro, pedindo isso, abertamente. Com Mitterrand fomos a Kiev e falamos sobre isso. Só depois, quando tudo precipitou e tratou-se de decidir, todos assinaram.



Tem arrependimentos?

Pensei várias vezes nisso nestes anos. O que teria ocorrido? Os tanques e os soldados fora das casernas em marcha em Berlim. Muito sangue teria corrido. A Europa nas mãos dos militares de Oriente a Ocidente, armados até os dentes, dois milhões de cada lado. Poderíamos ter chegado à Terceira Guerra Mundial. Estou certo de que seria exatamente assim. E, de resto, disse isso desde o início aos dirigentes dos países do Pacto de Varsóvia, que não nos intrometeríamos mais nos seus assuntos internos. Talvez não tenham acreditado em mim, mas eu mantive a palavra. Nunca interviemos nas suas questões. E foi essa a sua tragédia.

Portanto, o senhor achou legítimas as expectativas dos alemães?

A primeira vez que fui à Alemanha foi em 1966. Ainda tinha no coração a recordação da dor, das destruições, das vítimas e dos horrores do nazismo. Mas quanto caminho os alemães fizeram no pós-guerra! Tanto no Leste quando no Oeste. Humilharam-se, pediram perdão, fizeram uma grande obra de purificação antinazista e democrática. Não é possível imaginar que eles tivessem que responder por Hitler até o final dos tempos. Hoje, todos parecem pensar assim. Mas nessa história há apenas dois heróis: os alemães e os russos.